quarta-feira, 19 de março de 2025

Por que não acredito em uma única palavra do que Trump e Putin dizem sobre a Ucrânia

Eu simplesmente tenho muitas perguntas sem resposta

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cumprimenta o presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante uma reunião bilateral em Osaka, Japão  (Foto: Susan Walsh/AP)

Desde que o presidente Trump retornou ao cargo e começou a tentar fazer jus à sua vanglória de acabar com a guerra na Ucrânia em poucos dias, graças ao seu relacionamento com o presidente russo Vladimir Putin, tenho tido a preocupação de que algo tenha se perdido na tradução do romance entre Vlad e Don.

Quando o intérprete traduz a Trump que Putin diz estar pronto para fazer qualquer coisa pela “paz” na Ucrânia, tenho quase certeza de que Putin realmente disse foi estar pronto para fazer qualquer coisa por um “pedaço” da Ucrânia.

Você conhece esses homófonos - eles podem realmente causar muitos problemas se você não estiver ouvindo com atenção. Ou se estiver ouvindo apenas o que quer ouvir.

O The New York Times informou que, em seu telefonema de duas horas e meia com Trump na terça-feira, Putin concordou em interromper os ataques à infraestrutura de energia ucraniana, de acordo com o Kremlin, mas Putin deixou claro não concordar com o cessar-fogo geral de 30 dias que os Estados Unidos e a Ucrânia haviam acordado e proposto à Rússia.

O Kremlin também disse que a “condição fundamental” de Putin para encerrar o conflito era uma “cessação completa” da assistência militar e de inteligência estrangeira a Kiev - em outras palavras, destituir a Ucrânia de qualquer capacidade de resistir a uma tomada total da Ucrânia pela Rússia. Mais uma prova, se alguém ainda precisava dela, de que Putin não está, como Trump tolamente acreditava, buscando a paz com a Ucrânia; ele está buscando a posse da Ucrânia.

Dito isso, perdoe-me, mas não confio em uma única palavra que Trump e Putin digam sobre suas conversas particulares sobre a Ucrânia - incluindo as palavras “e” e “o”, como disse a escritora Mary McCarthy sobre a veracidade de sua rival Lillian Hellman. Porque alguma coisa não está cheirando bem desde o início com toda essa negociação entre Trump e Putin sobre a Ucrânia.

Eu simplesmente tenho muitas perguntas sem resposta. Vou contar as respostas.

Para começar, o Secretário de Estado Henry Kissinger levou mais de um mês de intensa diplomacia de vaivém para produzir os acordos de retirada entre Israel e Egito e Israel e Síria que encerraram a guerra de 1973 - e todas essas partes queriam um acordo. Você está me dizendo que duas reuniões entre Steve Witkoff, amigo de Trump, e Putin em Moscou e alguns telefonemas entre Putin e Trump são suficientes para acabar com a invasão russa na Ucrânia em termos razoáveis para Kiev?

Trump não conseguiria vender um hotel tão rapidamente - a menos que o estivesse dando de presente.

Espere, espere - a menos que ele estivesse dando de presente. ...

Presente

Senhor, espero não ser isso que estamos vendo aqui. Mensagem para o presidente Trump e o vice-presidente JD Vance: Se vocês entregarem a Ucrânia a Putin, levarão para sempre a marca de Caim em suas testas como traidores de um valor fundamental que tem animado a política externa dos EUA há 250 anos - a defesa da liberdade contra a tirania.

Nossa nação nunca vendeu tão descaradamente um país que luta para ser livre, e nós e nossos aliados apoiamos há três anos. Se Trump e Vance fizerem isso, a marca de Caim nunca será apagada. Eles entrarão para a história como “Neville Trump” e “Benedict Vance”. Da mesma forma, o secretário de Estado Marco Rubio, o secretário de Defesa Pete Hegseth e o conselheiro de segurança nacional Michael Waltz.

Por que mais estou desconfiado? Porque Trump continua dizendo que tudo o que ele quer é acabar com “a matança” na Ucrânia. Eu concordo com isso. Mas a maneira mais fácil e rápida de acabar com a matança seria o lado que começou a matança, o lado cujo exército invadiu a Ucrânia por motivos totalmente inventados, sair da Ucrânia. Presto - a matança acaba.

Putin precisa contar com a ajuda de Trump somente se quiser algo mais do que o fim da matança. Entendo que a Ucrânia terá de ceder algo a Putin. A questão é quanto. Também entendo isso: a única maneira de Putin obter a fatia extragrande de terra e as restrições pós-guerra que deseja impor à Ucrânia - sem mais combates - é recrutando Trump para obtê-las para ele.

Por que mais estou desconfiado? Porque Trump deixou todos os nossos aliados europeus de lado quando negociou com Putin. Desculpe-me, mas nossos aliados europeus contribuíram com bilhões de dólares em equipamentos militares, ajuda econômica e assistência a refugiados para a Ucrânia - mais do que os Estados Unidos, sobre os quais Trump mente - e deixaram claro estar prontos para fazer ainda mais para impedir o domínio de Putin sobre a Ucrânia para vir atrás deles em seguida.

Então, por que Trump entraria em negociações com Putin e não levaria nossa melhor vantagem - nossos aliados - com ele? E por que ele visivelmente desligou e voltou a ligar a ajuda militar e de inteligência dos EUA à Ucrânia - depois de chamar vergonhosamente o presidente ucraniano Volodimir Zelenski de “ditador”?

Desculpe, mas isso também não me cheira bem. Kissinger e o Secretário de Estado James Baker eram negociadores particularmente eficazes porque eles sabiam como alavancar nossos aliados para ampliar o poder dos EUA. Trump, de forma tola, dá as costas de sua mão para nossos aliados, enquanto estende a mão aberta para Putin. É assim que se desiste da alavancagem.

Alavancar aliados - o maior trunfo que temos e que Putin não tem - “é a essência da estratégia inteligente”, disse-me Dennis Ross, conselheiro de longa data para o Oriente Médio dos presidentes dos EUA.

Influência

“A chave para uma boa política é saber como usar o poder de influência que você tem - como combinar seus meios com seus objetivos. A ironia é que Trump acredita em influência, mas não usou todos os meios de que dispõe” na Ucrânia, disse Ross, autor do oportuno e recém-publicado “Statecraft 2.0: What America Needs to Lead in a Multipolar World” (O que os Estados Unidos precisam para liderar em um mundo multipolar).

Também me soa errado Trump parecer não ter a menor ideia do motivo pelo qual Putin é tão gentil com ele. Como um analista de política externa russo em Moscou me disse recentemente: “Trump não entende que Putin está apenas manipulando-o para atingir o seu principal objetivo: diminuir a posição internacional dos EUA, destruir sua rede de alianças de segurança - principalmente na Europa - e desestabilizar os EUA internamente, tornando assim o mundo seguro para Putin e Xi”.

Trump se recusa a entender, acrescentou esse analista, que Putin e o presidente chinês Xi Jinping querem ver os Estados Unidos encurralados no hemisfério ocidental, em vez de se meterem com qualquer um deles na Europa ou na Ásia/Pacífico - e eles veem Trump como seu peão para conseguir isso.

Por fim, e resumindo praticamente tudo o que foi dito acima, parece-me que Trump nunca deixou claro quais concessões, sacrifícios e garantias ele está exigindo da Rússia para conseguir um acordo de paz na Ucrânia. E quem entra em uma negociação sem um resultado final muito claro e inabalável em termos dos principais interesses americanos?

Há maneiras sustentáveis de terminar uma guerra e mantê-la terminada e há maneiras insustentáveis. Tudo depende do resultado final - e se o nosso resultado final for fundamentalmente diferente do resultado final da Ucrânia e de nossos aliados, não acho que eles vão simplesmente se render ao bromance Trump-Putin.

Putin quer uma Ucrânia com um governo que seja basicamente igual ao de sua vizinha vassala, Belarus, e não uma Ucrânia independente como a vizinha Polônia - uma democracia de livre mercado ancorada na União Europeia.

Não tenho a menor dúvida de qual delas é do interesse da Ucrânia, dos Estados Unidos e de nossos aliados europeus. O que me atormenta é não saber qual o interesse pessoal de Donald Trump - e isso é tudo o que importa agora na Washington de Trump.

Até ficar claro que o resultado final de Trump deveria ser o resultado final dos Estados Unidos - nenhuma rendição formal do território ucraniano a Putin, mas simplesmente um cessar-fogo; nenhuma adesão da Ucrânia à Otan, mas adesão à União Europeia; e uma força internacional de manutenção da paz no local, apoiada pela inteligência e pelo apoio material dos EUA -, fico muito, muito cético em relação a cada palavra que Trump e Putin dizem sobre a Ucrânia. Incluindo “e” e “o”.

Thomas Friedman, o autor deste artigo, é colunista de assuntos internacionais do The New York Times e ganhador de três prêmios Pulitzer. Autor de sete livros, entre eles 'De Beirute a Jerusalém', que venceu o Prêmio Nacional do Livro. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 19.03.25

Os novos cidadãos

O cidadão forjado no ativo e ruidoso ambiente digital atual não é um indivíduo politizado. Nem a tolerância é uma marca da comunicação digital atual.

No início deste ano, Mark Zuckerberg, (na foto acima), dono da Meta, anunciou que a empresa não submeterá mais ao sistema de checagem de fatos as postagens feitas no Instagram e no Facebook nos Estados Unidos. A decisão tem diferentes implicações e justifica todo o debate que provocou e ainda provocará.

É oportuna, porém, a observação feita a respeito do tema no editorial Zuckerberg lava as mãos: “A mediação do real nesse ambiente (das redes sociais) é simplesmente impossível, por mais formidável que seja a estrutura de checagem de fatos” (Estadão, 9/1, A3). A observação é oportuna porque recorda a dificuldade de distinguir verdade e mentira numa plataforma que é aberta a todos e que não supõe a participação de especialistas dedicados a fazer essa distinção (e, então, torná-la acessível a todos), como faz a imprensa profissional.

Por muito tempo, a imprensa atuou como curadora das informações e dos discursos que povoavam a esfera pública, medindo, avaliando e selecionando seu fluxo. Seu dever de buscar a verdade factual era, ou deveria ser, uma barreira à manipulação dos fatos pela política; a aplicação do seu cânone da imparcialidade podia mediar as paixões populares.

Mas quantos ainda toleram a imparcialidade (mais ainda, uma imparcialidade pronunciada “de cima para baixo”)? Nem a tolerância é uma marca da comunicação digital atual.

Talvez uma das razões disso seja o modo como geralmente se dá essa comunicação, não raro narcísica, tendenciosa, provocativa, divisiva, além de rápida, segmentada, imagética, emocional. Comunicação que nunca foi tão livre, nem tão manipulada; que ocorre normalmente à distância dos outros, às vezes até de si mesmo: “O mundo da internet trouxe a experiência da desencarnação, da perda do invólucro concreto em carne e ossos, num balanço entre um si mesmo imaginário e seu duplo” (Ponto de Fuga, Jorge Coli).

Essa comunicação, amparada e favorecida pelas tecnologias digitais, molda “como” e “o que” conhecemos. Moldaria, assim, nossa cultura atual; logo, nossa cultura política atual.

Nela, vínculos políticos frequentemente resultam de interações afetivas; o bom político é “espontâneo”, “autêntico”, especialmente quando o que ele diz que sente nós sentimos também (o que ele efetivamente faz torna-se secundário, então). A comunidade política, nesses termos, não deve mirar a civilidade (que estabelece uma distância entre nós), mas a personalidade (que nos aproxima do nosso líder ou grupo). Daí as adesões de corpo e alma a conhecidos personagens políticos da atualidade.

Nesse contexto, sobressai o papel do entretenimento. Ele sempre teve um lugar na política, bem antes dos influencers, dos vídeos do TikTok, dos memes, etc. Como afirma o professor Eugênio Bucci no artigo Sem jornalismo, mundo não tem democracia e, ironicamente, não tem liberalismo (Estadão, 4/1), “a disputa do poder sempre jogou com a dissimulação e com recursos cênicos”. Atualmente, no entanto, “não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política”.

O entretenimento, assim, mobiliza interpretações da realidade, induz e reforça convicções, celebra comportamentos com destreza inédita. E, com as tecnologias digitais, ganhou um impulso vigoroso. Como diz Bucci, relatos informativos confiáveis perderam espaço para atrações mais excitantes: “A internet e suas técnicas permitiram que o aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o argumento racional”. Assim, hoje, é o entretenimento que “modula as narrativas, rege o debate público, que funciona como um reality show”. O entretenimento tem a capacidade de suspender a dúvida em nome da diversão ou da confirmação do próprio ponto de vista.

E é assim que muitas sociedades pelo mundo vêm se “repolitizando”, num processo em que a autoexpressão, a representação prevalece sobre a comunicação, em que há mais divisões e menos comunidade, mais certezas do que interrogações, muitas identidades e pouca fraternidade.

É verdade que “democracia é feita de cacofonia”, como dito no editorial citado anteriormente, e que a pluralidade de vozes presentes no debate público geralmente atua em favor de um regime democrático, notadamente numa democracia liberal (democracia, sem esse adjetivo, por si só, não garante o respeito a direitos).

Por outro lado, que cidadão emerge deste ambiente digital espetacularizado de hoje? Uma cultura de participação política está bem encaminhada sob a liderança das lives, dos vídeos curtos, dos memes, da lacração, do cancelamento, do grotesco? Que comunidades políticas, de discussão e ação popular, se formam num tal ambiente? Nele, quais são as chances de tomarmos parte “nos processos de formulação, de monitoramento, de controle e de avaliação” das políticas sociais, como estabelece o parágrafo único do artigo 193 da Constituição federal de 1988? O cidadão forjado no ativo e ruidoso ambiente digital atual não é um indivíduo politizado.

Marcelo de Azevedo Granato, o autor deste artigo, é Doutor em Direito pela USP e pela Università degli Studi di Torin. Integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da FADI e FACAMP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 19.03.25

segunda-feira, 17 de março de 2025

Caixa de Pandora das emendas tem de ser fechada

 

Avanço do Congresso sobre Orçamento, que completa 10 anos, compromete qualidade do gasto público e relação entre Poderes

Fachada do Congresso Nacional, em Brasília (DF) - Rubens Chaves/Folhapress

Completam-se nesta segunda-feira (17) dez anos da mudança constitucional que tornou impositiva a execução de emendas parlamentares individuais ao Orçamento —e abriu uma caixa de Pandora que hoje compromete a qualidade do gasto público e as relações entre os Poderes republicanos.

Saudada na época como um mecanismo democrático para fortalecer o Legislativo, a aprovação da regra foi consequência do enfraquecimento político da então presidente Dilma Rousseff (PT), que acabaria sofrendo um processo de impeachment.

Desde então, as emendas, instrumento pelo qual deputados e senadores direcionam recursos federais, cresceram exponencialmente em volume e influência, reduzindo a capacidade de alocação por parte do Executivo.

Em 2019, o Congresso Nacional determinou que as emendas de bancadas estaduais também seriam impositivas. Instituíram-se ainda as chamadas emendas individuais Pix, que reduziram drasticamente a transparência da execução orçamentária.

Elas permitiram aos congressistas direcionar dinheiro do contribuinte diretamente ao caixa de prefeituras e governos estaduais, sem ao menos indicar a finalidade do gasto. Por causa disso, como noticiou a Folha, é desconhecido o destino de 12% dos investimentos da União nos últimos dois anos, ou R$ 14,3 bilhões.

Outra alteração importante —e nefasta— nas normas foi a ampliação do montante destinado obrigatoriamente às emendas individuais, que passou de 1,2% para 2% da receita corrente líquida da administração federal.

O impacto das mudanças no decênio impressiona. De 2014 para este ano, os gastos determinados por parlamentares saltaram de R$ 11,1 bilhões para R$ 49,2 bilhões, em valores corrigidos.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assim como o de Jair Bolsonaro (PL), reúne parcas condições políticas de conter o apropriação pelo Congresso de vastos recursos do Orçamento. A reação tem cabido principalmente ao STF, que tenta ao menos impor protocolos de transparência na apresentação e na execução das emendas.

Deputados e senadores, no entanto, resistem. Em 2024, votaram uma lei complementar que, embora tenha trazido alguma melhora nos processos, esteve longe de atender às exigências da corte. Já na semana passada, aprovou-se projeto de resolução que também mantém lacunas, como a ausência de identificação individual dos autores de emendas de comissão.

Persistem, assim, anomalias quantitativas e qualitativas. Nas principais economias, não há registro de tamanha ingerência direta de legisladores nos recursos públicos —e ela se dá em mero benefício de redutos eleitorais, sem critérios de prioridade.

É urgente, pois, interromper, disciplinar e, tanto quanto possível, reverter o avanço do Congresso sobre um Orçamento público já amplamente deficitário.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 17.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

sexta-feira, 14 de março de 2025

A molecagem do Congresso com emendas

Resolução para regulamentar acordo sobre transparência embute truque para manter sigilo e deve suscitar nova sanção do STF

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, recebe cumprimentos do petista Randolfe Rodrigues (esq) e do bolsonarista José Medeiros (dir) — Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

A relação entre Poderes da República não deveria comportar molecagem, mas é difícil encontrar outro nome para classificar a resolução costurada na surdina e aprovada a toque de caixa pelo Congresso que tenta, pela terceira ou quarta vez, driblar as determinações do Supremo Tribunal Federal quanto à necessidade de dar transparência e rastreabilidade às emendas orçamentárias.

O grau de apego e a insistência bizarra de deputados e senadores em manter algum grau de sigilo sobre a liberação de dinheiro público só escancara quanto esta se tornou, antes de tudo, uma maneira de políticos se perpetuarem em mandatos e expandirem seu poder sobre prefeitos, empresas e eleitorado, num ciclo perverso que eles não querem ver quebrado.

Basta lembrar que a tentativa de moralizar as emendas começou (já tarde) com a ministra Rosa Weber, lá atrás, em 2022. Desde então, houve seguidas idas e vindas para algo que não é um capricho do Supremo Tribunal Federal, mas apenas e tão somente o Judiciário cumprindo aquilo que manda a Constituição em relação ao Orçamento da União.

O último lance, com a aprovação de uma resolução que permite que apenas os líderes chancelem indicação das emendas de comissão, permitindo que parlamentares permaneçam incógnitos, tem um teor de afronta ainda maior que os anteriores, porque Hugo Motta e Davi Alcolumbre acabaram de assumir o comando da Câmara e do Senado, foram até o ministro Flávio Dino, se comprometeram com um acordo para, apenas poucas semanas depois, orquestrarem a tentativa de driblá-lo.

É óbvio que, diante da já esperada manifestação do PSOL, autor de uma das ações que questionam o trâmite das emendas, Dino voltará à carga, provavelmente sustando novamente o pagamento das emendas até que a nova diabrura dos senhores parlamentares seja desfeita.

Não adiantará de nada os deputados e senadores apontarem intervenção indevida do ministro, conluio com o governo ou o que quer que seja. O assunto já teve diversos rounds, todo mundo sabe o que está posto à mesa, e a resolução com a brecha marota para o sigilo foi urdida propositalmente nos últimos dias, diante da inação por parte do governo, que reconhece sua própria tibieza na relação com o Legislativo e deu a batalha por perdida. É o que explica a votação da proposta com apoio maciço de quase todos os partidos, inclusive do PT.

Uma segunda manobra que passou relativamente despercebida na votação da resolução prorrogou a atual composição da Comissão Mista de Orçamento até que seja votada a proposta orçamentária deste ano, que segue travada. Com isso, a cúpula do Parlamento mostra que a ideia é manter o Orçamento deste ano como refém até que seja encerrada a novela em torno das emendas — que, como se vê, terá mais um capítulo agora.

Caso a proposta não seja votada na semana que vem, estará alcançado o recorde de atraso na aprovação do Orçamento, um indicativo inquestionável da forma como a agenda de interesse do país está subordinada aos interesses dos congressistas e de quanto o negócio das emendas é, hoje, condição de vida e morte para eles, da esquerda à direita, com a exceção apenas dos nanicos PSOL e Novo, cada um numa ponta do espectro político.

Lula disse na campanha que acabaria com o orçamento secreto, mas rompeu a promessa já antes da posse, quando pactuou a votação da PEC da Transição e o apoio à reeleição de Arthur Lira. Há dúvida razoável quanto ao grau de afinação entre ele e Dino na tentativa de disciplinar aquilo de que deputados e senadores se recusam a abrir mão.

Mas fica nítida a falta de voz e de pulso do Executivo em exigir que a destinação de recursos públicos por parte do Legislativo seja moralizada. A ousadia do Congresso em dobrar a aposta mostra que o negócio é tão lucrativo que a briga compensa.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é comentarista de política n'O Globo. Publicado originalmente em 14.03.25

Congresso aprova projeto que dribla STF e mantém sigilo a autores de emendas

Texto permite indicação por meio de líderes partidários, sem identificação específica dos parlamentares

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (esq.), ao lado do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta - Pedro Ladeira 3.fev.25/Folhapress

O Congresso Nacional aprovou, nesta quinta-feira (13), projeto de resolução que dribla o STF (Supremo Tribunal Federal) e mantém a brecha para que a destinação de emendas parlamentares escondam os seus respectivos autores.

A matéria foi aprovada por 361 a 33 entre deputados e 64 a 3 entre senadores. Ela era o único item na pauta da sessão.

A proposta —elaborada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal—, é fruto do acordo com o Supremo para dar mais transparência às emendas.

Ele foi firmado após uma série de embates com o ministro Flávio Dino, que relata ações sobre o tema e chegou a criticar a "balbúrdia" no Orçamento da União criada por esses procedimentos.

Como mostrou a Folha, porém, o texto permite que os parlamentares façam indicações por meio de suas bancadas partidárias, constando apenas a assinatura do líder da sigla, sem identificação do autor original.

A possibilidade está justamente dentro das emendas de comissão, um dos principais alvos de crítica de Dino, pela falta de clareza na alocação dos recursos.

Durante a sessão, parlamentares contrários à iniciativa, como os deputados Glauber Braga (PSOL-RJ) e Adriana Ventura (Novo-SP), também reclamaram que o texto foi protocolado oficialmente menos de 24 horas antes do início da votação.

Presidente do Senado e do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), decidiu manter a deliberação, mesmo assim.

Os partidos solicitaram que a proposta fosse alterada para explicitar o autor das emendas indicadas pelas bancadas, o que não foi acatado pelo relator Eduardo Gomes (PL-TO).

Também tentaram apresentar um destaque para que esse trecho fosse retirado da resolução, mas Alcolumbre argumentou que a medida não tinha amparo no regimento comum do Congresso e a rejeitou sem votação.

A minuta inicial continha um dispositivo que, como mostrou o UOL, esvaziava a competência da consultoria técnica do Congresso. O trecho foi retirado do texto após protesto de deputados.

As iniciativas de Dino sobre as emendas parlamentares tiveram seu ponto alto no final do ano passado, quando o ministro fez exigências de transparência para a aplicação dos recursos, suspendeu pagamentos e acionou a Polícia Federal para investigar possíveis irregularidades.

As medidas abriram uma crise com o Congresso, em especial com o então presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

As emendas de comissão foram turbinadas por Lira após a derrubada, pelo próprio STF em 2022, das verbas de relator, que não tinham mecanismos de transparência.

Os parlamentares, então, passaram a usar os recursos das comissões temáticas do Congresso para direcionar dinheiro a seus redutos eleitorais, sem a identificação de seus padrinhos.

Dino então exigiu mais transparência e que as indicações fossem votadas pelos colegiados. Ele criticou o mecanismo por transformar emendas de comissão em "emendas de líderes partidários", já que estes eram os únicos nomes que apareciam nos registros oficiais.

Lira manobrou e driblou a determinação para que não houvesse votação e para que as indicações fossem assinadas em conjunto pelos líderes da Câmara, mais uma vez escondendo os autores originais.

A resolução aprovada nesta quinta, que deveria adequar os ritos das emendas para dar mais transparência, manteve vivo o mecanismo de indicação pelo líder partidário.

Em um primeiro momento, o texto exige a identificação, em cada emenda, dos parlamentares que compõem as comissões temáticas.

Mais adiante, no entanto, ele permite que sejam feitas indicações às comissões por meio das bancadas de cada sigla, exigindo apenas a assinatura "pelos líderes partidários", acompanhadas de um formulário.

Nesse formulário, que consta em um anexo, são exigidas informações como município e CNPJ do favorecido, valor, beneficiário final, código da emenda e código da ação orçamentária à qual ela representa. Não se exige, portanto, que o parlamentar autor da indicação seja registrado no documento.

Nas decisões e nos acordos firmados até aqui na disputa entre Dino e o Congresso, não constava o conceito de uma ata partidária para as indicações, mas sim a exigência de que fosse dada transparência ao autor da emenda.

O relator Eduardo Gomes chegou a afirmar que havia atendido a solicitação para explicitar os autores das indicações das emendas.

No texto apresentado por ele, porém, apenas foi criada a possibilidade que qualquer parlamentar possa indicar emendas às comissões, se quiser, sem precisar passar pelos líderes.

Deputados do PSOL e do Novo então solicitaram que fosse alterado o formulário para explicitar claramente o padrinho da destinação dos recursos, mas Gomes se negou a fazer essa mudança —na prática, portanto, mantendo a brecha para que esses nomes permaneçam escondidos.

Já nas emendas de bancada estadual, também há uma brecha semelhante. Inicialmente o texto pede a apresentação de um formulário que indica a autoria do autor da emenda, mas em um segundo momento a resolução faz referência a um documento diferente, no qual não é exigida esse nome.

ONGs que foram ao Supremo cobrar mais transparência na destinação de emendas publicaram nota nesta quinta criticando a medida aprovada no Congresso. Elas disseram que a resolução é uma "clara afronta aos princípios constitucionais da publicidade e da moralidade" e estabelece "uma nova modalidade de emenda secreta".

"Cria-se, assim, uma modalidade de emenda não recepcionada pela Constituição Federal: a de bancada partidária."

João Gabriel, repórter, originalmente, de Brasília-DF para a Folha de S. Paulo, em 14.03.21

Maré de impopularidade precoce assedia Trump

Reversão do otimismo com o presidente reflete os custos de seu ativismo disruptivo, que ameaçam a renda dos americanos

Donald Trump, presidente dos Estados Unidos - Mandel Ngan/AFP

Os primeiros 50 dias do segundo mandato de Donald Trump foram marcados por intensa atividade disruptiva do chefe do governo dos Estados Unidos. Em pouco tempo abriram-se tantas frentes de controvérsia que as repercussões negativas, para o presidente e seu país, não tardaram a aparecer.

O otimismo nos mercados que precedeu a posse do republicano foi revertido assim que ficou clara a resultante inflacionária e contracionista das suas medidas. Hoje os investidores passaram a prever desaceleração —alguns vislumbram até recessão— na maior economia do planeta.

Não é para menos. O choque de custos embutido nos anúncios de elevação abrupta de impostos de importação castiga empresas e consumidores norte-americanos que compram produtos estrangeiros. Os preços domésticos do aço, apenas um dos muitos bens atingidos pela metralhadora tarifária de Trump, dispararam.

Se os anúncios forem concretizados, cadeias inteiras de suprimento que dependem de transações transfronteiriças serão atingidas, bagunçando produção, transporte e distribuição de mercadorias com sequelas que implicarão carestia e desemprego.

Mesmo se a catadupa de ameaças comerciais do presidente norte-americano ao final se mostrar menos gravosa do que o inicialmente alardeado, a mera incerteza disseminada por esse método irresponsável de lidar com as expectativas de agentes econômicos já terá produzido estragos.

No front político as sequelas do frêmito mudancista que começam a aparecer tampouco parecem pequenas. A anomalia de investir o empresário Elon Musk de um poder ao mesmo tempo ubíquo e informal na administração federal vai produzindo desgaste.

Numa república de bananas, a figura do amigo do rei que toca seus negócios privados enquanto manda e desmanda no governo com o qual mantém contratos talvez passasse como algo normal. Não numa democracia sólida de mais de 230 anos, como os EUA.

O Judiciário independente continua a bloquear e a reverter ordens ilegais ou inconstitucionais da Casa Branca. Trump já perdeu inclusive na Suprema Corte, apesar da inclinação conservadora da maioria do tribunal.

Somadas as tribulações na política e na economia causadas pelo ativismo trumpista, não espanta que uma maré precoce de impopularidade assedie o líder recém-empossado. O índice de quem desaprova o mandatário passou a superar o dos que o endossam num reputado agregador de pesquisas de opinião pública.

Trump, vale lembrar, não tem direito à reeleição pela regra constitucional dos EUA. Se continuar na toada de ameaçar a renda dos cidadãos e de desafiar o sistema de freios e contrapesos do país, correrá mais riscos de perder a tênue maioria no Congresso no pleito do ano que vem.

A perspectiva de uma segunda metade de mandato melancólica talvez estimule o vaidoso presidente a mudar logo de atitude.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 10.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 10 de março de 2025

Exército já discute onde Bolsonaro poderá ficar preso se for condenado

Força Terrestre debate possíveis acomodações para o ex-presidente, um dos denunciados no inquérito do golpe

Crédito da foto: Wilton Junior / Estadão. 21.02.25

Para militares, ideal seria que julgamento de Bolsonaro fosse concluído até dezembro deste ano

Ainda que com receio de que o julgamento sobre a tentativa de golpe avance em 2026 e não seja possível terminar ainda este ano, como o Supremo Tribunal Federal (STF) calcula, o Exército já planeja como serão acomodados nas prisões militares da ativa ou da reserva que forem condenados. Entre eles, o expresidente Jair Bolsonaro (PL), o que pode levar manifestantes à porta da unidade militar.

Segundo um oficial, ainda não se fala em quem, como e por quanto tempo cada um deles poderá ficar preso, mas é importante que haja uma mínima organização para que, se esta hora chegar, tenha-se uma ideia de como agir.

Extraoficialmente, os militares têm dito que o ideal seria o fim do julgamento até dezembro deste ano, sem entrar em 2026, ano eleitoral em que os ânimos ficam muito mais exaltados. No entanto, como os denunciados são 34 e o julgamento ficará, por enquanto, na Primeira Turma do STF, é pequena a expectativa de que tudo termine nos próximos nove meses.

A maior preocupação diz respeito a Bolsonaro – em razão do cargo que ocupou e da condição de ex-integrante das Forças Armadas, que ele venha a ter de cumprir pena em uma unidade militar. O ex-presidente foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), acusado de comandar uma organização criminosa que planejava um golpe de Estado. Ele nega qualquer articulação para uma ruptura institucional, além de afirmar que nunca ouviu falar em um plano de assassinato de autoridades, conforme registra a denúncia apresentada pelo chefe do Ministério Público Federal, Paulo Gonet, ao Supremo.

LULA. O ex-presidente poderia ainda ir para uma unidade da Polícia Federal, como ocorreu com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que cumpriu pena durante 580 dias numa sala da PF, em Curitiba. O ex-presidente Michel Temer (MDB), que também foi preso no âmbito da Operação Lava Jato, em 2019, ficou quatro dias em uma cela especial que foi improvisada para essa finalidade, na Superintendência da PF no Rio de Janeiro.

O mais provável, porém, é que Bolsonaro, em caso de uma condenação, cumpra a pena em uma unidade militar e, na condição de ex-chefe de Estado, venha a ocupar instalações semelhantes às que estão sendo usadas pelo general Braga Netto, outro denunciado, no quarto

General Preso desde dezembro, Braga Netto está em cômodo com frigobar, TV e banheiro exclusivo do comandante da 1.ª Divisão do Exército na Vila Militar, no Rio. O cômodo tem armário, frigobar, televisão, ar-condicionado e banheiro exclusivo.

Para Bolsonaro, entre as hipóteses que estão sendo analisadas, está a liberação de um espaço no Comando Militar do Planalto, com sede em Brasília. Mas, por enquanto, nenhum preparativo está sendo feito e, de acordo com oficiais, essas são apenas hipóteses. O espaço destinado a ex-presidentes presos é um direito previsto no Código Penal Militar e inclui uma série de autoridades, como ministros de Estado, parlamentares e oficiais das Forças Armadas.

Por mais que a legislação não cite ex-presidentes, a regra geralmente é aplicada a eles por serem considerados comandantes em chefe das Forças Armadas durante seus mandatos. A expectativa na caserna é de que o benefício da prisão especial também valha para eventuais condenações definitivas de Bolsonaro.

CONTATO. Um motivo levantado por oficiais-generais para sinalizar que o quartel seria inviável é a possibilidade de o expresidente manter contato com outros militares e também que seguidores de Bolsonaro montem acampamentos ou façam arruaças em frente aos quartéis. Isso já aconteceu após a derrota do ex-presidente na eleição de 2022. Os acampamentos nos quartéis são apontados como elementos do plano para pressionar as Forças Armadas a aderirem a um golpe de Estado.

Durante o período em que Lula ficou preso, foi montado um acampamento de apoiadores do petista em frente à sede da PF em Curitiba. No caso de Bolsonaro, no entanto, uma mobilização semelhante poderia tumultuar a rotina de uma unidade militar.

REFORMULAÇÃO. Dos 34 denunciados pela Procuradoria, 24 integram ou já integraram as Forças Armadas. Como mostrou o Estadão nesta semana, o Exército decidiu diminuir as vagas e retirar curso de formação de militares, além de enxugar o efetivo do Comando de Operações Especiais (COpEsp), do qual fazem parte os chamados “kids pretos”, alvo do inquérito do golpe.

Após dois meses de estudos, o Estado-Maior da Força Terrestre começou a reformulação da tropa que esteve no centro das operações militares clandestinas durante a tentativa de golpe bolsonarista, segundo acusação da PGR.

O diagnóstico no EstadoMaior é de que o COpEsp se tornou uma espécie de “exército dentro do Exército”, com autossuficiência excessiva, desempenhando funções além daquelas para as quais foi programado: ações de comandos e de forças especiais.

Os “kids pretos” são citados na denúncia como parte da “organização criminosa” que tramou uma ruptura. “Esse grupo atuou para pressionar o comandante do Exército e o Alto-Comando, formulando cartas e agitando colegas em prol de ações de força no cenário político”, diz a acusação. 

Monica Gugliano, originalmente para O Estado de S. Paulo, em 06.03.25

Ministério da Defesa publicou link para canal com pedido de golpe de Estado em 2022

Perfil oficial da pasta compartilhou, após a derrota de Bolsonaro contra Lula, um canal do Telegram com pedido ‘dê o golpe Jair’; tuíte segue no ar

O perfil oficial do Ministério da Defesa publicou em 7 de novembro de 2022, ainda sob o governo Bolsonaro, um tuíte que leva para um canal no Telegram com uma mensagem de pedido de golpe de Estado. A publicação permanece por 28 meses no ar. Procurado, o ministério não quis comentar.

A postagem original no então Twitter foi feita oito dias após a derrota do então presidente Jair Bolsonaro (PL) para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na eleição. O ministro da pasta era o general Paulo Sérgio Nogueira, que havia sido antes comandante do Exército.

O tuíte da Defesa orienta o usuário a conferir na íntegra uma nota sobre o relatório do trabalho de fiscalização do sistema eletrônico de votação, mas o link publicado leva para outra rede social, o Telegram. Ali, há uma única mensagem publicada: “Dê o golpe jair”, diz o texto ao lado de um emoji de bandeira do Brasil. Veja no vídeo abaixo.

Publicação no antigo Twitter tratava de relatório sobre integridade das urnas, mas direcionava para chat do Telegram com mensagem "dê o golpe jair"

O pedido de golpe foi postado por um canal no Telegram intitulado “Ministério da defesa”, com erro no uso de letra minúscula no nome da Pasta. Esse canal conta com apenas 289 inscritos e não é o oficial da pasta.

Já a conta oficial da Defesa no Twitter (rebatizado de X), hoje administrada pelo governo Lula, tem 910 mil seguidores e faz publicações semanais. O mesmo ministério também tem uma conta no Telegram que hoje tem mais de 20 mil seguidores.

Consultados informalmente, membros da pasta não souberam dizer se o episódio se trata de um hackeamento ou teve o envolvimento de algum servidor.

Há registros feitos por usuários no Twitter naquela semana de que a mensagem pedindo golpe foi feita entre a noite do dia 9 e a tarde do dia 10, dias após a criação do canal. No post, consta como última edição às 13h11 do dia 10. A publicação ocorreu em meio ao envolvimento direto do ministério e de setores das Forças Armadas para investigar as urnas eletrônicas.

Antes do pedido de golpe, a conta da Defesa havia divulgado um aviso sobre o trabalho que fizera na auditoria das urnas. Uma nota replicada no site oficial da Defesa, ainda no ar, do dia 7 de novembro, dizia que, dali a dois dias, o ministério encaminharia ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o relatório do trabalho de fiscalização do sistema eletrônico de votação, realizado pela equipe de técnicos militares das Forças Armadas.

O relatório, entregue no dia 9, no entanto, não apontou qualquer fraude eleitoral e ainda reconheceu que os boletins de urnas e os resultados divulgados pelo TSE eram idênticos. Ou seja, o boletim que a urna tinha imprimido registrando os votos dados ao final da votação conferia com o resultado da totalização divulgada pelo tribunal.

Apesar disso, Nogueira pedia que fosse feita uma investigação técnica urgente sobre eventuais riscos à segurança das urnas. O ministro se referiu a uma suposta possibilidade de que um “código malicioso” pudesse interferir no funcionamento dos aparelhos de votação.

O Estadão apurou naquela ocasião que o uso dessa expressão pelo ministro da Defesa foi interpretada no TSE como uma forma de Nogueira atender de alguma forma ao presidente Jair Bolsonaro, que contava com esse relatório como a última cartada para contestar o resultado da eleição.

A conclusão do Ministério da Defesa de Bolsonaro apresentou mais de 5 mil palavras reunidas em 22 páginas de texto. O termo “fraude” não constou no documento. Mas a construção do relatório deixava aberta uma suposta chance de interferência eleitoral, mesmo não apresentando qualquer evidência.

Naqueles dois últimos meses, autoridades do governo federal e da cúpula das Forças Armadas se reuniram, planejaram um golpe de Estado e alimentaram a expectativa de seus apoiadores por uma intervenção no processo eleitoral, conforme mostraram posteriormente investigações da Polícia Federal.

Áudios revelados pela TV Globo no mês passado mostram o envolvimento de militares e civis com cargos no Poder Executivo no plano para tentar um golpe de Estado. Há registros de oficiais em trocas de áudios incitando a participação popular no esquema.

Tanto Bolsonaro quanto Nogueira foram denunciados ao Supremo Tribunal Federal (STF) no mês passado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por tentativa de golpe de Estado. Outras 32 pessoas foram apontadas na denúncia do procurador-geral, Paulo Gonet.

A atuação de Nogueira no suposto esquema golpista é descrita como “indiscutível” no documento. Gonet citou que o general apresentou uma minuta de teor golpista aos três comandantes das Forças Armadas. O episódio foi confirmado à Polícia Federal pelo comandante do Exército, general Freire Gomes, e pelo chefe da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro Carlos Baptista Junior. Depois, seguiu o PGR, o então ministro da Defesa voltou a tratar do tema com os comandantes em seu gabinete.

Guilherme Caetano, originalmente para O Estado de S. Paulo, edição online, em 10;03.25

'É melhor sair da política muito bem do que já velho', diz Sarney ao responder sobre Lula

Prestes a fazer 95 anos, primeiro presidente civil após a ditadura, cuja posse completa quatro décadas nesta semana, defende apoio do MDB à reeleição do petista

O ex-presidente José Sarney, prestes a completar 95 anos — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Quem chega à sala da casa do ex-presidente José Sarney em Brasília contempla, em meio a uma coleção de arte sacra, um quadro com o retrato do frei Francisco de Bourdemare, missionário espanhol enviado ao Maranhão no século 17. Na parede em frente, uma imagem do próprio Sarney, de dimensões maiores, com a faixa presidencial, dá o tom imponente ao ambiente, frequentado por presidentes, ex-mandatários e lideranças políticas variadas. Enquanto desenvolve um raciocínio político aguçado, o ex-presidente caminha com lentidão e diz que o envelhecimento começa pelas pernas. “É melhor sair muito bem (da política) do que já velho”, diz ele.

Prestes a fazer 95 anos de idade, Sarney se mantém ativo como conselheiro político. Longe do dia a dia da vida partidária desde o fim de seu quinto mandato como senador pelo MDB , em 2015, ele divide seu tempo entre a capital federal e São Luís (MA) escrevendo um livro sobre a necessidade de uma reforma do sistema eleitoral no país, baseado na experiência do primeiro civil a ocupar a Presidência da República após a redemocratização. No próximo sábado, completam-se quatro décadas da posse, data considerada um marco do fim da ditadura.

Em uma de suas raras entrevistas, ele critica a falta de liderança no Congresso, diz que Lula está governando num tempo difícil, defende aliança do MDB com o petista em 2026 e afirma que o Brasil precisa superar a polarização para trilhar o caminho da prosperidade. “A política de inimigos foi superada”, pontua.

O governo Lula tem enfrentado queda na popularidade, em especial pela alta nos preços dos alimentos. Seu governo também sofreu com a inflação. A que o senhor atribui a atual crise?

O presidente Lula fez excelentes governos. E a democracia possibilitou um operário no poder. Isso raramente acontece. Mas ninguém governa o tempo no qual se vai governar. Há tempos em que governamos na abundância, mas há tempos em que governamos na escassez. Lula não está nos governando num tempo de bonança, mas sim num tempo difícil, não só para o Brasil, mas de uma maneira internacional. Eu governei num tempo que a História se contorcia. Criamos as eleições diretas. Asseguramos direitos civis e os direitos humanos. Criamos uma Constituição.

O MDB esteve presente em todas as gestões petistas. Essa aliança deve ser renovada em 2026?

Não administro a convivência partidária e as alianças, mas sou o presidente de honra do MDB e vejo que sempre foi um partido difícil porque tem democracia interna. Ninguém domina o MDB. Não há dono do partido. Acho que o MDB deve apoiar (Lula), sim. Entre os candidatos que estão colocados, Lula ainda é o homem que tem a maior popularidade, a maior confiança do povo brasileiro.

O senhor concorreu pela última vez numa eleição aos 76 anos. Lula, se renovar o mandato, terá 81. O que o senhor acha de ele entrar na disputa com essa idade?

Só ele pode decidir. Quando deixei de ser candidato, muita gente no Amapá pedia que eu fosse candidato. Achei que não deveria. É melhor sair muito bem do que já velho.

O senhor vê carência de alternativas a Lula na esquerda?

Temos tido surpresas nas eleições. Tivemos uma grande surpresa com o Fernando Collor. Outra com o Bolsonaro. Ninguém podia ter imaginado que Bolsonaro, em algum momento, pudesse ser presidente. Não dá para avaliar o que pode acontecer.

É mais difícil governar hoje com o Congresso, que ganhou poder por meio das emendas, do que na sua época?

O Congresso mudou muito. Houve uma multiplicação dos partidos sem raízes históricas. Não estou querendo julgar, mas acho que naquele tempo seguíamos líderes partidários, pessoas com grande expressão nacional. Atualmente, há falta de liderança do Congresso. A pior coisa que os acontecimentos de 1964 produziram foi a extinção dos partidos, que eram uma formação de líderes. Sem partidos políticos fortes, não há democracia forte. A disciplina partidária democrática é aquela que tem democracia interna. E hoje nós verificamos que os partidos não têm democracia interna.

O novo presidente da Câmara, Hugo Motta, defende o debate sobre uma mudança no sistema do governo para o parlamentarismo. Como o senhor vê essa discussão?

A reforma política é a mais urgente de todas. Vejo que o parlamentarismo algum dia chegará no Brasil. Esse presidencialismo de coalizão leva a muitas acusações de corrupção, porque o presidente tem que aliciar, fazer maiorias e todos têm reivindicações que muitas vezes extrapolam o interesse público. Defendo o parlamentarismo mitigado, a exemplo do francês. Com voto distrital misto.

O Brasil comemora nesta semana 40 anos de redemocratização, que se iniciou com o seu governo. Qual é o principal aprendizado deste período?

Sem dúvida alguma foi a melhor transição democrática feita nos países da América. Conseguimos fazer uma transição sem hipotecas militares, como no Chile. Fizemos com que os militares voltassem aos quartéis e que se dedicassem a garantir as funções constitucionais da democracia do Brasil. Nesse período, o país constituiu uma democracia consolidada. Nesses 40 anos, não tivemos nenhum hiato. Este é o maior período democrático da história brasileira.

O ex-presidente José Sarney — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

O senhor acredita que em algum momento neste período a democracia no Brasil esteve sob risco?

Sim, viveu muitos riscos. Principalmente durante o período da transição. Houve muitas ameaças de retrocessos. Durante a Constituinte também.

Os atos de 8 de janeiro e a trama golpista no governo Bolsonaro denunciada pela Procuradoria-Geral da República foram o momento de maior tensão da nossa democracia?

Os fatos do 8 de janeiro foram uma pressão muito grande sobre a democracia. Mas vejo que criamos instituições fortes, capazes de aguentar dois impeachments e também esse episódio. Isso tudo ainda será devidamente apurado pela Justiça, ainda não se tem uma noção exata do que estava ocorrendo. Foi um fato grave, mas foi mais um momento da nossa democracia em que as Forças Armadas mostraram que elas estão aí para sustentar a Constituição, a democracia, a liberdade. A maioria dos militares foi contra. Aqueles que se meteram eram na maioria da reserva. A democracia prevaleceu.

Como o senhor avalia as discussões no Congresso de conceder anistia aos envolvidos nos atos golpistas do 8 de janeiro?

Isso tem que ser remetido ao Congresso. Não posso opinar sobre hipóteses.

Como é possível superar um cenário de maior polarização política?

O Brasil tem que superar isso porque casa dividida não prospera. A política se ideologizou muito nos últimos anos e não pode ser uma política de inimigos, e sim de adversários. A política de inimigos era a política do nazismo, do fascismo, do comunismo. O mundo superou isso no passado, chegamos a tempo de economia liberal e democracia plena.

O senhor foi opositor do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Como contornou essa rivalidade?

Fui muito injusto com ele. Cheguei a pedir a ele que relevasse aquele tempo (Sarney era da UDN, partido de oposição ao governo JK) e as coisas que eu disse. Mas quando o Juscelino foi cassado (como senador), eu o recebi no Maranhão, dei a ele um almoço e chamei-o de presidente. Me escreveu uma carta muito elogiosa. A partir daí, tivemos um relacionamento estreito e ele dizia que eu era um amigo dele no ostracismo.

Ivan Martinez-Vargas, de Brasília - DF, originalmente para O Globo, em 09.03.25

STF não tem menor condição de reorganizar sistema político, diz Fernando Limongi

Ao lado de historiador, professor lança livro sobre Nova República, critica atuação do Supremo e diz que intelectuais deveriam respeitar o Congresso


O professor e cientista político Fernando Limongi, que lança livro sobre a Nova República, ao lado do historiador Leonardo Weller - Karime Xavier - 16.mai.23/Folhapress

A Nova República foi fundada na construção de consensos entre elites políticas. Esse traço pode ser visto como negativo ou positivo. Por um lado, tais negociações impediram soluções definitivas para desigualdades que marcam a sociedade brasileira; por outro, também evitaram que os conflitos descambassem em violência, produzindo estabilidade.

Esse é um dos eixos de "Democracia Negociada - Política Partidária no Brasil da Nova República", do historiador Leonardo Weller e do cientista político Fernando Limongi, ambos professores da FGV-SP.

Um homem está sentado em uma cadeira de balanço no jardim. Ele está inclinado para trás, com uma expressão relaxada. O fundo é composto por plantas verdes e flores, criando um ambiente natural e tranquilo.

No livro, os dois retornam à lenta transição iniciada no governo de Ernesto Geisel para mostrar como a ditadura se empenhou para que a direita continuasse a ter seu quinhão de poder na democracia —e, de fato, vários aliados do regime conseguiram se perpetuar. Os autores passam pelos embates na Constituinte e avançam por diversos governos, até chegar ao impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016.

O resultado é uma síntese informativa sobre a história recente do país. A dupla defende que a democracia brasileira viveu seu auge entre o governo Itamar Franco e a gestão da petista —quando, à direita ou à esquerda, havia um consenso em defesa de avanços sociais.

Agora, bem, agora é tudo mais complicado, diz Limongi à Folha. Ele defende que não adianta espernear contra o conservadorismo da sociedade brasileira, diz que os intelectuais do país deveriam respeitar o Congresso como voz da sociedade e sustenta que o Supremo Tribunal Federal não tem capacidade para tutelar o sistema político.

Uma grande preocupação da ditadura é que, após a transição, a direita pudesse continuar no poder. E várias lideranças desse campo, de fato, conseguiram continuar na política. O sistema que nasce na Nova República tende ao conservadorismo ou esse traço é uma vocação do eleitor brasileiro?

Difícil dizer. Mas não há um viés institucional que provoque maior ou menor conservadorismo. Não há nenhum preceito, é o funcionamento da democracia. A democracia é intrinsecamente conservadora, o jogo democrático tende para o centro.

Você precisa negociar, você não consegue impor a sua vontade. Aqui, a pressão por reformas e mudança bate no Executivo —e a pressão por conservação também.

Há coisas que a maioria da população não quer. Ela pode ser mais conservadora em questões morais, culturais, e isso é uma coisa com a qual você tem que viver. Se você é um pouco mais moderninho, mas a maioria é conservadora, viva com isso. Você não pode impor sua visão, mas isso não quer dizer que a culpa seja das instituições.

Não podemos chegar a um acordo, por exemplo, sobre permitir ou não o aborto. Não há um meio termo. Ou pode ou não pode. Nosso sistema é majoritário e permite, pelo Congresso, que a sociedade seja ouvida. Há uma tendência nas análises no Brasil de desrespeitar o Legislativo como uma expressão da sociedade

Em que sentido?

Para fazer uma referência, por exemplo, ao presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que falou que cabe ao Supremo empurrar uma agenda modernizadora… Quando a corte tentou avançar na questão do aborto, criou-se um problema. Tanto FHC quanto Lula queriam ter ido mais à frente nesse ponto, mas sentiram que a sociedade não queria porque o Congresso expressou isso, e precisaram moderar posições.

Aí vem o Supremo e dá a reação que deu. Parte dessa reação é: "Vocês não estão me ouvindo? Estamos dizendo que não é para fazer isso!". A sensibilidade dos políticos e a negociação deles precisa ser valorizada. Os intelectuais brasileiros menosprezam o Congresso o tempo inteiro.

A visão negativa do Legislativo e a identificação dele com o centrão, acho que isso é uma reação ideológica e desrespeitosa com as instituições representativas. É como se o Congresso não fosse legítimo. Respeite o resultado da eleição. Se não gostou, trabalhe para inverter. O Brasil é isso aí, um país mais conservador em valores.

Um dos seus pontos centrais é como a Nova República não foi capaz de romper com a herança da ditadura. As investigações sobre os atos golpistas —e, agora, a denúncia contra os envolvidos— sinaliza um rompimento dessa cultura de conciliação?

Um ponto ausente do livro é uma análise de como a Constituinte reforçou demais o poder tanto do Executivo quanto do Judiciário, representado no Supremo. Esse fortalecimento vem de uma desconfiança do Legislativo porque você acha que o Congresso vai ser necessariamente conservador. Essa ideia é vista como fato, vem desde os anos 1970, ou até antes.

No começo do sistema, como esses juízes do Supremo ainda vêm do regime militar, eles têm outra cabeça e não intervêm tanto. A partir da crise do mensalão e da derrubada da cláusula de barreira pelo Supremo, é o sinal de que o STF resolveu que vai tutelar o sistema político —e que a desconfiança não deve ser só quanto ao Legislativo, mas também quanto ao Executivo. Partindo de uma interpretação equivocada do que seria o tal presidencialismo de coalizão.

O Supremo não tem a menor condição de reorganizar o sistema político porque não sabe como o sistema funciona, tem ideias mirabolantes. Aí você tem uma expansão da ação do Supremo —e a ação contra o Bolsonaro é parte desse processo.

Não começa com o ex-presidente. Houve o momento em que o Supremo impediu Lula de ser candidato, sob a mesma racionalidade, de que o petista seria um perigo para a democracia. A Lava Jato é parte desse processo. Posso ser contra o Lula ou contra o Bolsonaro… Mas há uma intervenção deliberada, sequencial, do Judiciário para controlar o sistema político. E eu preferia que isso não acontecesse porque esses caras não são eleitos.

Vê um recuo do Judiciário como algo possível?

Não. Depois que saiu da garrafa, o gênio não volta. Precisaria de uma consciência de que esse poder é excessivo e milita contra a própria instituição, para que a própria instituição se contivesse. Mas pensar nisso é acreditar em fadas, em varinha mágica. Pode se restringir mais, diminuir essa expansão…

Mas há também um aumento do poder do Congresso, sobretudo desde o governo Michel Temer e em especial sobre o Orçamento, por meio das emendas. Esse é também um gênio já fora da garrafa?

Não acho que esse seja um gênio fora da garrafa, nem que a gente saiba quanto esse poder do Legislativo realmente aumentou, quanto ele pode ser reconfigurado etc. Não há nenhuma análise empírica sobre o poder dessas emendas, quem de fato as controla… Mas é um exagero pensar que todo o Congresso se beneficia delas. Quem se beneficia é um pequeno grupo.

Estão colocando limites, é mais difícil de voltar ao status quo, mas não quer dizer que o Executivo perdeu controle sobre o Orçamento. Perdeu sobre uma parcela pequena. Para um grupo de deputados? Sim. O que esse grupo está fazendo e quais as consequências para o sistema político? Ainda é uma incógnita.

O que sabemos de estudos do passado, antes deste momento de agora, é que emenda não dava tanta vantagem eleitoral quanto se achava. Emenda é parte desse folclore, dessa desconfiança de que o Congresso vai ser sempre uma baixaria.

Boa parte desse argumento anti-Legislativo se baseia numa suposição de que alguém sabe qual seria a distribuição ótima dos recursos das emendas. Quem tem essa informação? O planejador central? Os economistas neoliberais, que não pensam no sistema de informação necessário para ver quais localidades pedem recursos? Ou o editorialista da Folha? Parece que o editorialista sabe qual cidade precisa de mais dinheiro para o SUS.

O sistema representativo produz parte dessa informação. É preciso ouvir os deputados, não o burocrata dos ministérios da Saúde, da Educação. Há distorções que vêm disso, não é o melhor sistema? Ok, mas não é o pior. Há uma gritaria sobre isso que é demasiada.

Depois de 21 anos de ditadura militar, Tancredo Neves (PMDB) venceu Paulo Maluf (PDS) na disputa para a Presidência da República em votação no Colégio Eleitoral. A histórica vitória do político mineiro em 15 de janeiro de 1985 passou a ser considerada o ponto inicial da chamada Nova República, que agora completa quatro décadas. Não faltaram, porém, obstáculos nessa transição da ditadura para a democracia, a começar pela morte de Tancredo em 21 de abril daquele ano.

O cenário para 2026 aponta para mais uma disputa bipartidária, como tem sido a regra na Nova República?

Tem muito imponderável aí para fazer qualquer chute. Eleição majoritária, mesmo com dois turnos, tende a ter poucos candidatos. Mesmo que nominalmente haja muitos, os viáveis tendem a ser dois e meio —esse meio sendo a tal da terceira via. Se não chover canivete, vai dar isso. Ainda mais quando o presidente é candidato à reeleição, muito provavelmente ele está no segundo turno.

Temos muitos governadores em estados centrais completando seu segundo mandato. Para quem é ambicioso, em vez de ir para presidente, pode ir para governador. A incógnita é o Tarcísio de Freitas [Republicanos], governador de São Paulo. Depende da organização da direita, se Bolsonaro é candidato, se apoia o governador paulista… A outra é a saúde do Lula, dado o efeito Joe Biden.

Quando vocês dizem que a Nova República viveu um auge entre Itamar e Dilma, isso significa que estamos vivendo um declínio agora?

Antes havia maior moderação, uma agenda comum. Avanços em saúde, educação e proteção social eram consensos. Bolsonaro chacoalha esse consenso e diz que vai desfazer tudo o que foi feito depois da redemocratização. E Paulo Guedes diz que tudo o que cheira a Estado tem que sair.

Não fizeram nada disso. Fizeram muita bobagem, destruíram muita coisa, mas não reverteram. Quando se viram na necessidade de fazer campanha para a reeleição, o fizeram da forma mais irresponsável fiscalmente e politicamente possível. Fizeram o receituário do fiscal irresponsável e ampliação de gastos sociais.

Isso diz algo. Qualquer tentativa de reverter esse processo de maior atenção social não tem suporte político - eleitoral. E isso é bom.

Então, de um lado, talvez estejamos exagerando demais o conflito no plano cultural, moral, prestando muita atenção ao simbólico, sem perceber o que está na base. Por exemplo, no pacote fiscal que o ministro Fernando Haddad estava armando, todo o problema sempre foi onde cortar. E onde tem para cortar? Só gasto social. Aí é duro, o custo político é muito alto.

Outra questão é o manejo da vinculação entre política social e política salarial. Houve uma valorização real do salário mínimo, e isso impacta o maior gasto social, que é a Previdência. Haddad jogou como balão de ensaio desconectar as duas coisas, mas ninguém aceita, é perigoso porque o governo vai ter um incentivo para diminuir o pagamento da Previdência. E isso bate nas pessoas. Então, o governo atou as próprias mãos.

Dá uma falta de flexibilidade, mas o mundo é o que é. Não vamos ter um crescimento maravilhoso porque é assim que está funcionando a economia brasileira. É viver com isso aí. E vai ser esse Congresso. A sociedade brasileira é conservadora, não adianta gritar. É baixar as expectativas e não ficar gritando que está tudo errado, como um bando de palmeirenses malucos.

Democracia Negociada - Política Partidária no Brasil da Nova República

Preço R$ 61 (ebook R$ 43)Autoria Leonardo Weller e Fernando Papaterra LimongEditora FGV (256 págs.)

RAIO-X

Fernando Limongi, 67

Doutor em ciência política pela Universidade de Chicago, é professor titular aposentado de ciência política da USP. Atualmente dá aulas na Escola de Economia de São Paulo da FGV (Fundação Getúlio Vargas). É autor de livros como "Operação Impeachment - Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato" (2023) e "Política Orçamentária no Presidencialismo de Coalizão" (2008), este em co-autoria com Argelina Figueiredo.

Mauricio Meireles, originalmente para a Folha de S. Paulo, edição impressa, em 07.03.25


Lula se refugia entre aduladores e reforça erros do governo

Presidente encara impopularidade com lentes do passado, recusa responsabilidade fiscal e se afasta de forças moderadas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - Adriano Machado - 29.jan.25/Reuters

Por uma mistura de falta de visão estratégica, apego a ideias obsoletas e má leitura do equilíbrio de forças na política, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) avança pela segunda metade de seu mandato sem um projeto claro sobre o que pretende fazer daqui para a frente. Na dúvida, ele vira à esquerda.

Na economia livrou-se dos últimos vestígios daquele verniz que vez ou outra o fazia prestigiar a agenda de mínima responsabilidade orçamentária proposta pelo seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A opção pela gastança, que sempre foi a preferida de Lula, agora está escancarada.

O presidente está à caça de "medidas" como liberações de créditos e recursos do FGTS que, de acordo com a sua cartilha primitiva de gestão pública, possam ajudá-lo a combater a impopularidade. Como decidiu torrar recursos no início da administração, as opções agora são restritas.

O custo de continuar pisando no acelerador também ficou difícil de enfrentar. Não dá para empurrar a conta para o mandato seguinte, um clássico na política, com a inflação à porta. Toda pressão extra no gasto federal vira carestia, toda heterodoxia populista impulsiona a cotação do dólar e as taxas de juros da praça.

Esse será o efeito de qualquer "atitude mais drástica", palavras de Lula, que o presidente vier a tomar para frear na marra a inflação da comida. A ida ao supermercado não deixará tão cedo de ser uma experiência desagradável para milhões de brasileiros.

Diante desse quadro desfavorável, o chefe do governo tem basicamente duas linhas de resposta.

A mais promissora, embora desconfortável para um líder vaidoso, passa pelo exercício da autocrítica e pela inculcação da necessidade de alterar a rota. Trata-se de se reaproximar das racionalidades econômica —que exige neste momento austeridade fiscal— e política —a aliança com as forças moderadas na sociedade e no Congresso.

A segunda vereda é a de reforçar o que já se provou um equívoco. Dar as costas à agenda do controle da dívida pública e encastelar-se entre forças sociais e políticas de ideias envelhecidas e pouca representatividade parlamentar foi a escolha de Lula.

Ele preferiu a familiaridade de assessores e aduladores que atribuem o declínio da popularidade à má comunicação do governo, e não à desconexão com o Brasil atual. Nomeou uma imoderada, Gleisi Hoffmann, para articular as pautas do governo no Legislativo e cogita nomear outro, Guilherme Boulos (PSOL), para o ministério.

Os titulares da Previdência e do Trabalho ainda não superaram o século 20 nas suas mentalidades. O mandatário continua achando que posar de pai dos pobres, de provedor-geral da nação, vai lhe render dividendos eleitorais.

Sem inspiração, sem projeto, sem tirocínio, sem nem sequer a sagacidade de outras passagens do maior líder da moderna esquerda brasileira, a terceira Presidência Luiz Inácio Lula da Silva corre grande risco de ser a pior.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 09.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

Trump dobra a aposta no confronto

Presidente se compromete com ações drásticas, como a ofensiva tarifária e o alinhamento com Putin em relação à Ucrânia

Donald Trump, presidente dos EUA, discursa no Congresso, em Washington - Mandel Ngan - 4.mar.25/Pool via Reuters

Em 1987, quando era só um polêmico empreendedor, Donald Trump lançou um livro, escrito de fato pelo jornalista Tony Schwartz, chamado "A Arte do Negócio", sobre sua suposta genialidade empresarial.

A obra pode ser um guia para entender a mente do presidente americano, que suscita alarme com sua abordagem agressiva em temas como a ofensiva tarifária, a Guerra da Ucrânia ou o futuro da Faixa de Gaza.

Se está mantido o ideário negocial do Trump de quase 40 anos atrás, todas as ameaças seguem uma lógica: tumultuar o ambiente e assustar ao máximo o rival com exigências absurdas para, ao fim, arrancar concessões.

É uma leitura plausível dos acontecimentos, mas que não chega a ser tranquilizadora. Passados 45 dias de sua volta à Casa Branca, o republicano parece dobrar a aposta no confronto.

A começar pela guerra tarifária, que foi disparada contra os vizinhos México e Canadá e logo suspensa. Agora, as alíquotas de importação de 25% entraram em vigor, assim como os 20% aplicados sobre produtos chineses, o alvo real do equilíbrio comercial pretendido no discurso de Trump.

Ainda falta o teste da realidade para o argumento de que tal protecionismo vai gerar empregos, mas a ideia de que ele fará com que os EUA importem inflação está bastante consolidada. A medida acarreta juros mais altos, numa espiral de impactos no varejo doméstico e para consumidores de outros países, como o Brasil.

Dada a interconexão entre as maiores economias do mundo, EUA e China, a resultante dessa escalada tende a ser nefasta.

Na Europa, Trump ungiu Volodimir Zelenski como seu bode expiatório, armando uma espécie de emboscada ao vivo em encontro na Casa Branca. A partir dessa debacle histórica, com direito a bate-boca e expulsão do visitante, o americano suspendeu a ajuda militar à Ucrânia na sua luta contra Vladimir Putin.

Zelenski pediu perdão, mas parece improvável que o republicano vá deixar o alinhamento com o autocrata russo. Aqui, não seguiu o conselho central de seu livro: "A pior coisa que você pode fazer em uma negociação é parecer desesperado para fechá-la".

O embate azedou as relações entre Trump e a Europa, com a aliança militar Otan à frente. Governantes no continente correm a fazer contas para se rearmar, o que leva tempo e, ao fim, favorecerá empresas americanas.

Toda essa movimentação foi reafirmada no primeiro discurso do mandatário ao Congresso nesta gestão, com outros aspectos inquietantes. O anômalo ideário de enxugamento da máquina pública pelas mãos do bilionário Elon Musk foi aclamado, e Panamá e Groenlândia foram de novo ameaçados, assim como políticas ambientais e de diversidade.

Sem possibilidade de reeleição e em cenário muito mais favorável a ações drásticas do que no primeiro mandato, o Trump de 2025 confronta-se com o de 1987; resta saber qual prevalecerá.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 06.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

Gasto do Judiciário é anomalia e Congresso precisa agir

Projeto para enquadrar despesas com supersalários no setor está parado no Senado e governo apresentou proposta melhor

Imagem aérea da Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira/Folhapress

Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), por iniciativa do ministro Flávio Dino, impôs algum nível de transparência à origem, propósito e destinação das bilionárias emendas parlamentares, o Congresso deveria, mesmo que em forma de salutar resposta, tomar a iniciativa de regular os gastos do Poder Judiciário.

Eles tornaram-se uma anomalia no Brasil, onde uma casta do funcionalismo se apropria do dinheiro público de forma voraz, sem que isso se traduza em eficiência para o sistema de Justiça.

País de renda média e com enormes desafios no campo da desigualdade social, o Brasil sustenta privilégios escandalosos para juízes, desembargadores e servidores do setor. Algo que requer, o quanto antes, uma ação contundente a fim de que possam ser eliminados.

Notícias sobre rendimentos na casa de centenas de milhares de reais pagos a magistrados e desembargadores, muito acima do teto constitucional, tornaram-se corriqueiras e, infelizmente, quase não chocam mais. Trata-se de dinheiro de impostos, e os chamados penduricalhos custaram nada menos que cerca de R$ 40 bilhões entre 2018 e 2023.

Não apenas no topo. Dados oficiais mostram que a remuneração dos servidores do Judiciário nos últimos 40 anos ultrapassou em várias vezes o reajuste concedido à média do funcionalismo federal, estadual e municipal.

Outro levantamento, do Tesouro Nacional, revela que o gasto do poder público brasileiro com os tribunais de Justiça, incluindo a remuneração de magistrados e funcionários, é o segundo maior entre 50 nações analisadas. O sistema custa aqui quatro vezes mais que a média internacional.

O Brasil despende cerca de 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) com o Poder Judiciário, ante 0,3% em outros países. Apenas El Salvador tem um gasto maior com tribunais, de 1,6% do PIB.

Não há nenhuma justificativa para isso, apenas o fato de, encastelados, juízes e desembargadores legislarem em causa própria, com autonomia para se apropriar do Orçamento na União e, principalmente, nos estados.

Tal situação ocorre por omissão do Congresso Nacional, onde dormita no Senado, desde 2021, projeto para limitar o pagamento de benefícios acima do teto. É lamentável que, mesmo considerando mais de 30 exceções que permitiriam a existência de penduricalhos, a matéria não tenha sido analisada até hoje.

No final do ano passado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em iniciativa sensata, encaminhou ao Legislativo uma Proposta de Emenda Constitucional que pretende substituir o projeto ora parado no Senado, de forma a limitar as brechas para pagamentos acima do teto.

Em nome da moralidade e do equilíbrio orçamentário, o Congresso deveria encarar já a matéria. Seria uma conveniente resposta ao STF pela fiscalização das emendas. Os dois movimentos tornariam o Brasil mais justo.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 05.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

sexta-feira, 7 de março de 2025

Catarina Mina, de escravizada a empreendedora de sucesso

São Luís do Maranhão guarda a história intrigante de uma mulher trazida da África no século 19, que subverteu a mecânica da escravidão ao conquistar liberdade e enriquecer. Mas há controvérsias sobre como isso aconteceu.

Beco Catarina Mina, em São Luís do Maranhão (Foto: Tainã Mansani/DW)

Quando a africana liberta Catarina Mina caminhava pelas ruas de São Luís do Maranhão colonial, a cidade parecia estremecer. Caminhava altiva, sempre sorrindo. Atrás dela, o cortejo de outras africanas, vestidas de renda, ouro no pescoço, nos pulsos, nas orelhas. "Lá vem Catarina Mina com as suas escravas para a festa da padroeira", escreveu um jornalista da época.

Catarina Rosa Pereira de Jesus chegou ao Brasil como escrava da Costa da Mina, região do golfo da Guiné (daí o nome "Mina"). Foi quituteira, comerciante: de escrava de ganho a "mulher de negócios". Comprou sua alforria e fez fortuna com o dinheiro do próprio trabalho, e, segundo dizem, dos favores prestados a comerciantes portugueses da Praia Grande (algo que a historiografia nunca provou).

"Quando encontrei o inventário da Catarina Mina, fiquei surpresa. Essa mulher era riquíssima! O inventário, e depois o testamento, foram os documentos que mais me emocionaram durante as pesquisas sobre a vida dela", contou à DW Brasil a historiadora Iraneide Soares da Silva, que estuda a vida da africana. Embora seja difícil precisar o valor dos seus bens, sabe-se que tinha muito – e o mistério sobre como ela alcançou tal feito intriga estudiosos até hoje.

Trazida para o Brasil no século 19, Catarina Mina continua viva na cidade que adotou, "sempre sorrindo" (Foto: Tainã Mansani/DW)

Testamento generoso

Datado de 1887 e hoje preservado no arquivo público do Tribunal de Justiça do Maranhão, o testamento da ex-escrava revela uma generosidade incomum entre os ricos da época. Mina distribuiu sobrados, casas, vilas e lotes entre comadres, figuras influentes do judiciário e do meio eclesiástico. Mas, acima de tudo, libertou seus escravos e lhes assegurou riqueza – algo raro, pois em geral esses eram repassados como bens.

Os documentos mostram que Catarina Mina acumulou riqueza e criou uma rede de socialização e cooperação entre mulheres libertas durante a escravidão, explica a Iraineide Soares. Nos jornais da época há muitos a anúncios de fugas de mulheres que contavam com redes de apoio, pois, para fugir, precisavam de colaboração externa.

De fato, até hoje circulam em São Luís histórias sobre a vida de Catarina Mina. Elas falam de uma personagem de caráter heroico, que comprava escravos para os libertar. Mas as pesquisas historiográficas revelam que ela também manteve escravos durante a vida.

Quando eles saíam com ela às ruas, andavam bem ornados, mas sempre descalços, explica a historiadora. "Há sempre essa pergunta: 'Como assim? Catarina Mina viveu a escravidão e escravizou?' Minha compreensão é a que, quando existe um escravo numa condição de vida miserável, e você o traz para perto de si para ser tratado com mais humanidade, há um pouco a lógica de trazer para perto para poder libertar de algum modo."

A documentação sobre Mina revela que foi uma das mulheres mais ricas do período, com pecúlios e riqueza, mas que não teve o título de 'senhora dona', um importante símbolo de distinção para mulheres de posse.

"Beco Catarina Mina"

Catarina Mina não teve o reconhecimento oficial para a época, mas fez história. Seu nome ficou em ruas, músicas, marcas de roupas e nas cozinhas da capital maranhense. O assim chamado "Beco Catarina Mina" era o local onde vendia peixes e farinha, e nele se encontra um restaurante que também leva o nome da benfeitora.

Maria de Lourdes, a dona do estabelecimento, ri ao dizer que trabalha muito, mas não tem a liberdade que Catarina Mina conquistou. Para ela, a história de Mina – marcada pela solidariedade e uma mudança incomum de condição social para a época – entrelaça passado e presente, inspirando sua própria vida.

"Quando eu coloquei o nome do restaurante ‘Catarina Mina', comecei uma grande pesquisa. Antes de eu vir para esse beco, ninguém falava sobre ela. Eu já trabalhei muito essa história e divulgo sempre que posso."

Maria de Lourdes tem o restaurante desde 1990. Por muitos anos preservou o testamento de Catarina Mina, mas o entregou para conservação. Segundo ela, a ex-escrava teria falecido por volta dos 35 anos. Ao longo de sua vida, além de comprar a própria alforria, comprava outros escravos e os libertava, incluindo a própria mãe.

A pesquisa revela que Mina teve um único filho, chamado Alexandre (embora haja controvérsias se foi realmente filho, afilhado ou se faleceu ao nascer). A africana também teria se casado e, num gesto significativo de ascensão social, adquirido para seu esposo uma patente de alferes, um posto de oficial subalterno do Exército, intermediário entre tenente e aspirante a oficial.

Dona do Bar e Restaurante Catarina Mina preserva a memória da homenageada (Foto:Tainã Mansani/DW)

Como Mina enriqueceu?

Uma das questões mais intrigantes sobre a história dessa personagem é por que Catarina conseguiu enriquecer e outros escravos, não? Segundo historiadores, havia uma diferença entre a escravidão urbana (contexto em que Mina viveu) e a rural, em que era muito mais difícil qualquer ascensão social, pois escravos raramente tinham alguma remuneração.

No Brasil colonial e no Império, escravos de ganho, como Mina, trabalhavam nas ruas sob ordens de seus senhores, devendo entregar uma quantia diária estipulada. Essa prática surgiu no século 17, mas só no Império passou a ser mais controlada pelo Estado. Esse trabalho lhes permitia, em algumas circunstâncias, acumular algum valor excedente, que poderia ser guardado para negociar a compra da alforria e acumular algum recurso.

Diferentemente dos escravizados nas fazendas, os escravos de ganho desempenhavam atividades urbanas remuneradas, como carregadores, doceiras ou faziam pequenos reparos. As mulheres trabalhavam dentro das casas e podiam sair para vender. E as pesquisas mostram que Catarina foi além, ao construir, à sua própria maneira, negócios que lhe permitiram acumular muitos bens.

O caráter de Catarina Mina chama atenção nos documentos seu respeito, explica a historiadora Iraneide Soares. Como quituteira, estabeleceu sua rede de sociabilidade que manteve até a ascensão social. Foi uma personagem bem relacionada naquele contexto histórico, o que explicaria, em grande parte, o seu mérito.

Também o historiador Manolo Florentino, um dos maiores nomes nas pesquisas sobre os escravos de ganho no Brasil, mostrou, com estudos principalmente sobre o Rio de Janeiro, que os escravizados eram vítimas, mas também tinham ação, relevância e protagonismo como sujeitos humanos.

Florentino explicou numa entrevista em 2012: "Sobretudo em países como o Brasil, estratégias que levavam à formação de famílias e à adoção do trabalho por tarefas foram fundamentais para a acumulação de pecúlio e a obtenção da alforria [...]. Sabemos terem sido altas as taxas anuais de alforrias, sobretudo nas cidades, com amplo predomínio de manumissões [ato de libertar um escravizado]."

Outras histórias de ascensão social

Mas Catarina Mina não foi a única ex-escrava bem-sucedida no Brasil colônia, embora essa não fosse a realidade mais comum em todo contexto da escravidão. Cem histórias semelhantes de mulheres negras escravizadas com trajetórias excepcionais para o período estão no livro Dicionário biográfico: Histórias entrelaçadas de mulheres afrodiaspóricas (Editora Malê, 2024).

Adelina, a Charuteira, filha de uma escravizada e de um senhor empobrecido, tornou-se vendedora de charutos em São Luís. Frequentando o Largo do Carmo, entrou em contato com estudantes abolicionistas e passou a atuar como informante, alertando sobre investidas policiais e auxiliando na fuga de escravizados, contribuindo para o movimento abolicionista.

Para além do Maranhão, no Piauí do século 18, Esperança Garcia não se tornou advogada formalmente, mas é reconhecida simbolicamente pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como primeira advogada do país. Mulher negra e escravizada, ela ficou conhecida por escrever uma carta-petição ao governador da capitania do Piauí, em 1770, denunciando os maus-tratos que sofria e pedindo melhores condições para si e outras escravizadas.

Esse documento foi considerado por juristas e historiadores um dos primeiros registros de petição por direitos no Brasil. Em reconhecimento a seu ato pioneiro na luta por justiça, a OAB do Piauí concedeu-lhe, em 2017, o título honorário de primeira advogada do estado.

Segundo a pesquisadora Iraneide Soares, a ausência de histórias como essas nos livros escolares implica que "a historiografia brasileira tem muito a avançar nas pesquisas sobre essas personagens que aparecem como sujeitos ativos e dinâmicas de vida diferentes, na história da escravidão".

Tainã Mansani, a autora, é Jornalista. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 07.03.25

Cid Flaquer Scartezzini, ministro aposentado do STJ, morre aos 96 anos

O magistrado ingressou na Corte como membro do Tribunal Federal de Recursos — que antecedeu o STJ — e ocupou a vice-presidência até 1999, quando se aposentou. O velório acontecerá no sábado (8/3), às 9h, e sepultado, às 13h, no Cemitério Morumbi, na capital paulista.

O ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça Cid Flaquer Scartezzini

Scartezzini foi professor titular de Direito Público e Privado, Direito Penal e Direito Processual Penal nas Faculdades Metropolitanas e no Instituto de Ensino Superior Senador Flaquer, em Santo André. Atuou como advogado, principalmente, em São Paulo e na região do ABC paulista. Foi presidente da Associação dos Advogados de Santo André e conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo por dois biênios.

Trabalhou, ainda, como professor primário e secundário, ministrando disciplinas como Língua Portuguesa, Economia Política e Legislação Aplicada.

O professor ingressou na magistratura como juiz federal. Entre 1969 e 1971, atuou no Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Foi nomeado ministro do TFR em 1981 e ficou no cargo até a criação do STJ, em 1988. Permaneceu na nova corte até sua aposentadoria.

O ministro também exerceu o cargo de corregedor-geral eleitoral no Tribunal Superior Eleitoral, onde trabalhou de 1990 a 1994. No Legislativo, foi vereador da Câmara Municipal de Santo André.

Advogados, magistrados e estudiosos do Direito lamentaram a morte de Scartezzini. Um deles foi Fábio Prieto, secretário de Justiça de São Paulo e ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso do Sul): “O ministro Cid Scartezzini foi o magistrado mais relevante na história da Justiça Federal de São Paulo. Dos anos 1960 até os dias atuais”.

Em nota, a Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Ajufesp) prestou condolências à família e aos amigos do ministro. “É com profunda tristeza que recebemos a notícia do falecimento do ministro Cid Flaquer Scartezzini. Sua trajetória de vida e serviço à Justiça brasileira deixarão uma marca eterna em todos que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Cid Scartezzini foi um exemplo, principalmente, para nós, juízes federais (…) Sua atuação foi marcada pela busca incansável pela verdade e pela defesa dos direitos fundamentais, sempre pautada pelo respeito e pela integridade. Neste momento de dor, expressamos nossas mais sinceras condolências à família e aos amigos. Que todos encontrem conforto nas memórias de sua vida e nos legados que deixou.”

Juiz federal criminal em Santos (SP), Roberto Lemos ressaltou sua gentileza e importância para a jurisdição federal. “Sempre gentil, humilde, alegre e muito cordial. Por certo, parte importante da história da Justiça Federal”, disse.

Martina Colafemina, a autora deste texto, é repórter da revista Consultor Jurídico. Publicado originalmente em 07.03.25