quinta-feira, 6 de março de 2025

Trump dobra a aposta no confronto

Presidente se compromete com ações drásticas, como a ofensiva tarifária e o alinhamento com Putin em relação à Ucrânia


Donald Trump, presidente dos EUA, discursa no Congresso, em Washington - Mandel Ngan - 4.mar.25/Pool via Reuters

A imagem mostra uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos, com um grande número de pessoas presentes. No primeiro plano, um homem de costas, aparentemente falando, com os braços abertos. Atrás dele, há uma plateia composta por membros do Congresso, juízes e outras pessoas, algumas aplaudindo e outras em pé. O ambiente é formal, com bandeiras e símbolos do governo ao fundo.

Em 1987, quando era só um polêmico empreendedor, Donald Trump lançou um livro, escrito de fato pelo jornalista Tony Schwartz, chamado "A Arte do Negócio", sobre sua suposta genialidade empresarial.

A obra pode ser um guia para entender a mente do presidente americano, que suscita alarme com sua abordagem agressiva em temas como a ofensiva tarifária, a Guerra da Ucrânia ou o futuro da Faixa de Gaza.

Se está mantido o ideário negocial do Trump de quase 40 anos atrás, todas as ameaças seguem uma lógica: tumultuar o ambiente e assustar ao máximo o rival com exigências absurdas para, ao fim, arrancar concessões.

É uma leitura plausível dos acontecimentos, mas que não chega a ser tranquilizadora. Passados 45 dias de sua volta à Casa Branca, o republicano parece dobrar a aposta no confronto.

A começar pela guerra tarifária, que foi disparada contra os vizinhos México e Canadá e logo suspensa. Agora, as alíquotas de importação de 25% entraram em vigor, assim como os 20% aplicados sobre produtos chineses, o alvo real do equilíbrio comercial pretendido no discurso de Trump.

Ainda falta o teste da realidade para o argumento de que tal protecionismo vai gerar empregos, mas a ideia de que ele fará com que os EUA importem inflação está bastante consolidada. A medida acarreta juros mais altos, numa espiral de impactos no varejo doméstico e para consumidores de outros países, como o Brasil.

Dada a interconexão entre as maiores economias do mundo, EUA e China, a resultante dessa escalada tende a ser nefasta.

Na Europa, Trump ungiu Volodimir Zelenski como seu bode expiatório, armando uma espécie de emboscada ao vivo em encontro na Casa Branca. A partir dessa debacle histórica, com direito a bate-boca e expulsão do visitante, o americano suspendeu a ajuda militar à Ucrânia na sua luta contra Vladimir Putin.

Zelenski pediu perdão, mas parece improvável que o republicano vá deixar o alinhamento com o autocrata russo. Aqui, não seguiu o conselho central de seu livro: "A pior coisa que você pode fazer em uma negociação é parecer desesperado para fechá-la".

O embate azedou as relações entre Trump e a Europa, com a aliança militar Otan à frente. Governantes no continente correm a fazer contas para se rearmar, o que leva tempo e, ao fim, favorecerá empresas americanas.

Toda essa movimentação foi reafirmada no primeiro discurso do mandatário ao Congresso nesta gestão, com outros aspectos inquietantes. O anômalo ideário de enxugamento da máquina pública pelas mãos do bilionário Elon Musk foi aclamado, e Panamá e Groenlândia foram de novo ameaçados, assim como políticas ambientais e de diversidade.

Sem possibilidade de reeleição e em cenário muito mais favorável a ações drásticas do que no primeiro mandato, o Trump de 2025 confronta-se com o de 1987; resta saber qual prevalecerá.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 06.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

A mentira como verdade

Os que hoje gritam cinicamente por liberdade de expressão querem usá-la justamente para suprimi-la


Reprodução da capa do jornal Pravda, que circulou na extinta União Soviética - Alekseev/Reprodução/Wikimedia

O principal canal de Donald Trump para disseminar mentiras chama-se Truth Social —Confederação da Verdade ou algo assim. É a rede social fundada por ele em 2021, destinada a disparar textos, posts e arquivos para os lorpas americanos. Mas, se a extrema direita acha que essa tática de fazer da mentira a verdade é de sua invenção, engana-se. Foi usada com grande sucesso pela União Soviética de 1917 a 1991, através de seu jornal oficial, Pravda, editado pelo Partido Comunista com a função de encobrir os crimes do Estado. Pravda, em português, quer dizer verdade.

Em "1984", romance de George Orwell, a mentira era também a especialidade do Ministério da Verdade, órgão dedicado a "corrigir" periodicamente a história, falsificando informações e convertendo antigos heróis em inimigos do regime. Seu slogan era "Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado". Seu modelo era o mesmo Pravda, que apagava das fotos os velhos revolucionários que tinham se voltado contra Stálin.

Outra tática dos comunistas era inverter o sentido de certas palavras. Os países-satélites da URSS no Leste Europeu, tristes ditaduras subjugadas a Moscou, eram chamados de repúblicas "populares" ou "democráticas". O povo a que elas se referiam era o Comitê Central do Partido Comunista local, que supostamente o representava. Da mesma forma, na Alemanha, o nazismo era uma abreviatura de "nacional-socialismo". Não tinha nada de socialista, mas a palavra ajudou-o a consolidar-se.

Corromper palavras é típico dos autoritários de qualquer cor política. Bolsonaro e seus esbirros, adeptos da ditadura militar que asfixiou o Brasil por 21 anos, têm o cinismo de gritar por "liberdade de expressão" —liberdade que querem usar justamente para suprimi-la se voltarem ao poder. É o mesmo cinismo com que dizem "o Brasil acima de tudo" enquanto municiam Trump para afrontar a soberania brasileira.

O perigo não está só na mentira, mas, pior ainda, na mentira como verdade.

Ruy Castro, o autor desta crônica, Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 06.03.26

Gasto do Judiciário é anomalia e Congresso precisa agir

Projeto para enquadrar despesas com supersalários no setor está parado no Senado e governo apresentou proposta melhor

Imagem aérea da Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira/Folhapress

Assim como o Supremo Tribunal Federal (STF), por iniciativa do ministro Flávio Dino, impôs algum nível de transparência à origem, propósito e destinação das bilionárias emendas parlamentares, o Congresso deveria, mesmo que em forma de salutar resposta, tomar a iniciativa de regular os gastos do Poder Judiciário.

Eles tornaram-se uma anomalia no Brasil, onde uma casta do funcionalismo se apropria do dinheiro público de forma voraz, sem que isso se traduza em eficiência para o sistema de Justiça.

País de renda média e com enormes desafios no campo da desigualdade social, o Brasil sustenta privilégios escandalosos para juízes, desembargadores e servidores do setor. Algo que requer, o quanto antes, uma ação contundente a fim de que possam ser eliminados.

Notícias sobre rendimentos na casa de centenas de milhares de reais pagos a magistrados e desembargadores, muito acima do teto constitucional, tornaram-se corriqueiras e, infelizmente, quase não chocam mais. Trata-se de dinheiro de impostos, e os chamados penduricalhos custaram nada menos que cerca de R$ 40 bilhões entre 2018 e 2023.

Não apenas no topo. Dados oficiais mostram que a remuneração dos servidores do Judiciário nos últimos 40 anos ultrapassou em várias vezes o reajuste concedido à média do funcionalismo federal, estadual e municipal.

Outro levantamento, do Tesouro Nacional, revela que o gasto do poder público brasileiro com os tribunais de Justiça, incluindo a remuneração de magistrados e funcionários, é o segundo maior entre 50 nações analisadas. O sistema custa aqui quatro vezes mais que a média internacional.

O Brasil despende cerca de 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) com o Poder Judiciário, ante 0,3% em outros países. Apenas El Salvador tem um gasto maior com tribunais, de 1,6% do PIB.

Não há nenhuma justificativa para isso, apenas o fato de, encastelados, juízes e desembargadores legislarem em causa própria, com autonomia para se apropriar do Orçamento na União e, principalmente, nos estados.

Tal situação ocorre por omissão do Congresso Nacional, onde dormita no Senado, desde 2021, projeto para limitar o pagamento de benefícios acima do teto. É lamentável que, mesmo considerando mais de 30 exceções que permitiriam a existência de penduricalhos, a matéria não tenha sido analisada até hoje.

No final do ano passado, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em iniciativa sensata, encaminhou ao Legislativo uma Proposta de Emenda Constitucional que pretende substituir o projeto ora parado no Senado, de forma a limitar as brechas para pagamentos acima do teto.

Em nome da moralidade e do equilíbrio orçamentário, o Congresso deveria encarar já a matéria. Seria uma conveniente resposta ao STF pela fiscalização das emendas. Os dois movimentos tornariam o Brasil mais justo.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 05.03.25 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 3 de março de 2025

Europeus se oferecem como fiadores da paz na Ucrânia

Reunidos em Londres com Zelenski, líderes europeus e de países da aliança militar Otan querem ajudar Kiev a retomar negociações com Trump e apaziguar americano após bate-boca na Casa Branca.

Líderes europeus e da aliança militar Otan se reuniram em Londres com Volodimir Zelenski para discutir apoio à Ucrânia após fiasco de negociações de paz mediadas pelos EUA. (Foto: Christophe Ena/AP/picture alliance)

O Reino Unido e a França, as duas potências nucleares da União Europeia, estão encabeçando uma "coalizão dos dispostos" a garantir a paz na Ucrânia – isto é, a defendê-la militarmente com tropas e armamentos –, anunciou neste domingo (02/03) o premiê britânico, Keir Starmer, após reunião em Londres com lideranças de 18 países.

A coalizão entraria em cena após a assinatura de um cessar-fogo apoiado pelos americanos. Deste modo, os europeus querem desencorajar novos ataques russos contra a Ucrânia, transformando-a num "porco-espinho de aço indigesto para potenciais invasores", nas palavras da chefe da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

"Nosso ponto de partida deve ser colocar a Ucrânia na posição mais forte possível agora, para que eles possam negociar a partir de uma posição de força, e estamos reforçando nosso apoio", disse Starmer ao final da reunião. "Os que estiverem dispostos [a aderir à coalizão] vão intensificar seus planejamentos agora com verdadeira urgência.

Participaram das discussões governantes europeus e do Canadá e da Turquia, além do chefe da aliança militar Otan, Mark Rutte, e do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski.

O encontro já estava planejado, mas ganhou caráter de urgência após a implosão de um acordo para exploração de terras raras ucranianas pelos Estados Unidos. Essa proposta é encampada pelo governo de Donald Trump como solução para o fim da guerra na Ucrânia.

O tratado deveria ter sido assinado na sexta-feira, mas acabou suspenso após Trump e seu vice, JD Vance, baterem boca com Zelenski e o acusarem de ingratidão. A insistência dele em garantias de segurança irritou Trump, que o despachou da Casa Branca e disse que só voltaria a conversar quando ele "estiver pronto para a paz".

Segundo Starmer, o Reino Unido está preparado para ser o fiador da paz na Ucrânia "com botas no terreno e aviões no ar, junto com outros [países]". O britânico, porém, frisou que embora a Europa tenha que dar conta da parte mais difícil desse trabalho, a paz no continente depende de um apoio sólido dos Estados Unidos – a quem os europeus agora tentarão persuadir.

Apesar de serem potências nucleares, o Reino Unido e a França não dispõem de um poderio militar comparável ao dos EUA. Eles querem convencer Trump de que a Europa é capaz de aumentar seus gastos militares e se defender, mas que a Rússia só irá respeitar um acordo se ele também for respaldado militarmente pelos americanos.

"Rearmar a Europa"

Von der Leyen disse que a União Europeia precisa "se preparar para o pior" e defendeu aumentar o "espaço fiscal" para manter elevados investimentos em defesa por "um período prolongado de tempo". O bloco encaminhará um plano em 6 de março para "rearmar urgentemente a Europa".

Assim como outros líderes europeus, Von der Leyen defendeu que a Ucrânia precisa de "garantias abrangentes de segurança". Segundo ela, a UE está pronta para "defender, junto com os EUA, a democracia e o princípio de que há um Estado de Direito, de que não se pode invadir [...] e atordoar vizinhos ou mudar fronteiras à força".

O chanceler federal alemão, Olaf Scholz, que deve ceder o cargo nas próximas semanas para o conservador Friedrich Merz, também defendeu a autonomia ucraniana, posicionando-se contra um veto da Rússia à entrada de Kiev na UE. Segundo Scholz, também não cabe à Rússia condicionar a paz à desmilitarização do país.

A Alemanha, que é a maior economia da UE e acabou de sair de uma eleição, até agora vinha evitando a discussão sobre o envio de tropas alemãs à Ucrânia. O assunto era considerado delicado e os conservadores, que venceram o pleito, descartaram a ideia durante a campanha.Resta saber se eles mudarão de ideia agora.

Starmer reconheceu que será preciso envolver Moscou num acordo de cessar-fogo, mas frisou que, diante de seu histórico de desrespeito a acordos, o presidente russo, Vladimir Putin, não deveria poder ditar quais garantias serão oferecidas à Ucrânia.

Ele justificou o apoio europeu à Ucrânia como necessário à estabilidade e segurança do próprio Reino Unido e de todo o continente. "O caminho para garantir estabilidade é garantir que somos capazes de defender um acordo na Ucrânia. Porque tem uma coisa que nossa história nos ensina: se há conflito na Europa, os dejetos acabam nas nossas praias."

Além do empréstimo de 2,26 bilhões de libras esterlinas (R$ 16,75 bilhões) à Ucrânia anunciado no sábado, Starmer prometeu mais 1,6 bilhão de libras esterlinas em financiamento para compra de "mais de 5 mil mísseis de defesa aérea" de fabricação britânica.

O anúncio deste domingo deve implicar o aumento de gastos com Defesa num contexto de arrocho fiscal, possivelmente demandando cortes em outras áreas, como gastos com assistência social, educação e investimentos em infraestrutura.  (a/as (DPA, Reuters, ots)

Publicado originalmente por Deutsche Welle, em 03.03.25

'"Ainda Estou Aqui" ensina aos jovens o que realmente significa viver em uma ditadura'

Indicada ao Oscar 2025 de Melhor Atriz, a brasileira Fernanda Torres comparou o prêmio ao Everest, a montanha mais alta do mundo.

'Eu não meço a vida em termos de ganhar ou perder', disse Fernanda Torres à BBC

"Se eu conseguir um lugar na base 1 do Everest, eu ficarei mais que satisfeita, mas ganhar...",disse a atriz em entrevista ao programa de rádio Weekend, do serviço mundial da BBC, dias antes da indicação ao prêmio da Academia americana.

"Eu odeio expectativas. Sou uma pessimista por natureza. E o que vier, vou ficar feliz. Sabe, estou mais do que feliz com o meu pesado Globo de Ouro na minha mala."

"Mas eu não meço a vida em termos de ganhar ou perder", afirmou então.

Ainda estou aqui recebeu mais duas indicações, além da da atriz: Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro. É a primeira vez que um filme brasileiro é indicado na principal categoria do Oscar.

Fernanda Torres vence Globo de Ouro: 'Às vezes você sonha que seus filhos te ponham no colo, mas não dá certo. O papel da mãe é segurar'

A carioca foi a primeira atriz brasileira a levar o Globo de Ouro, derrotando nomes conhecidos mundialmente como Nicole Kidman, Tilda Swinton e Kate Winslet.

Ela comparou ter ganhado o Globo de Ouro a subir o K2, a segunda montanha mais alta do mundo.

Uma tonelada de cocaína, três brasileiros inocentes e a busca por um suspeito inglês

"Eu era o cavalo azarão naquela noite, e foi bonito de ver, porque é um ano muito especial para performances femininas — performances incríveis, e também coisas muito bonitas de mulheres maduras", afirmou à BBC.

A atriz de 59 anos dedicou o Globo de Ouro à sua mãe, Fernanda Montenegro — que, em 1999, foi indicada ao mesmo prêmio e ao Oscar de melhor atriz por sua atuação em Central do Brasil, mas perdeu para Cate Blanchett e Gwyneth Paltrow, respectivamente.

A conexão entre as conquistas de mãe e filha é inevitável — inclusive porque tanto Central do Brasil quanto Ainda estou aqui foram dirigidos por Walter Salles.

E é interpretando uma mãe da vida real que Fernanda Torres está alcançando voos tão altos com Ainda estou aqui: ela faz o papel de Eunice Paiva (1929-2018), esposa de Rubens Paiva, político brasileiro desaparecido e morto durante a ditadura militar no Brasil.

O longa é baseado em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, um dos cinco filhos de Eunice e Rubens.

"Marcelo escreveu o livro porque a mãe dele estava começando a ter Alzheimer. Ele pensou: se eu não escrever isso, a memória dela vai ser esquecida junto com a memória do país", relatou a atriz.

Para Torres, o filme está ensinando aos jovens "o que realmente significa viver em uma ditadura", em um momento em que o Brasil "estava perdendo sua memória".

"Muitos jovens que foram criados durante o período democrático... A democracia não resolveu nossos problemas, a desigualdade e tudo mais. Eles [os jovens] começaram a pensar que talvez uma economia liberal com um toque de ditadura iria resolver nossos problemas, porque eles não tinham qualquer memória da ditadura."

A atriz considera que o momento atual é "distópico" — como o período retratado no filme.

"Não é só no Brasil. Acho que a Eunice Paiva e a família Paiva foram vítimas da Guerra Fria, um momento muito distópico no mundo", afirmou. "E tem muito a ver com o momento que estamos vivendo agora, eu acho."

'Não é um filme que te destrói'

À esq., foto de família com Eunice, Rubens e Babiu (filha caçula) em 1970; à direita, cena do filme

Fernanda relata que, mesmo diante de um drama familiar e político do país, Eunice decidiu "não se tornar uma vítima".

"Eunice sempre teve essa percepção de que, se se colocasse como uma vítima, a ditadura teria ganhado", diz a atriz, citando a marcante cena de Ainda estou aqui em que Eunice insiste em sorrir com os filhos para um retrato, após o fotógrafo de uma revista sugerir que a família — já sem Rubens Paiva — posasse de uma forma "menos feliz".

"Mesmo nas entrevistas que eu assisti para interpretar Eunice, ela sempre estava sorrindo."

Segundo a atriz, Eunice foi "criada para ser a dona de casa perfeita dos anos 1950".

"Foi criada para ser a grande mulher por trás do grande homem", comentou Torres.

"Então ela é uma mulher que, depois de abrir mão da vida utópica dela, é aí que ela se torna ela mesma."

"Ela conseguiu sair e se reinventar depois de uma tragédia como essa", disse a atriz na entrevista à BBC, acrescentando que Eunice Paiva formou-se em Direito aos 46 anos e se tornou uma ativista pelos direitos humanos e pelos povos indígenas.

Era uma "mulher à frente do seu tempo", concluiu Torres.

"É um filme sobre uma história triste, mas você sai do cinema muito tocado e com sentimento de esperança, eu acho. Não é um filme que te destrói. É um filme sobre uma família que foi capaz de sobreviver sorrindo, dizendo 'sim' para a vida."

Publicado originalmente por BBC News, em 03.03.25

sábado, 1 de março de 2025

Vem aí a ministra da discórdia

Ao trazer Gleisi Hoffmann para o governo, Lula mostra que está disposto a ir para o tudo ou nada pela reeleição, ainda que isso prejudique a governabilidade e implique riscos para o País

O presidente Lula da Silva confirmou na tarde de ontem que a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, será a substituta do ministro Alexandre Padilha na Secretaria de Relações Institucionais (SRI). A deputada paranaense, portanto, ficará incumbida da articulação política do governo com o Congresso a partir do próximo dia 10 de março, quando está prevista sua posse.

São incertos os resultados da ida de Gleisi para a SRI no que concerne aos interesses político-eleitorais do presidente da República, mas as agruras do PT e de Lula nesse particular são irrelevantes. Para o País, contudo, não poderia ter havido escolha pior para uma área tão sensível do governo – e uma das mais carentes de competência e espírito público.

Gleisi Hoffmann é a antítese do esforço de concertação política de que o Brasil precisa para avançar em uma agenda virtuosa comum, que seja capaz de exprimir o melhor interesse público em meio às rusgas ideológicas que não raras vezes têm travado o bom debate político no Brasil. Como presidente do PT, Gleisi pode até ter contribuído, como Lula argumenta, para a formação de palanques durante a campanha vitoriosa do petista em 2022, articulando sua candidatura com uma variada gama de partidos. Mas, àquela época, tratava-se exatamente disto, de uma campanha eleitoral – e contra um incumbente amplamente rejeitado.

Com Lula eleito e empossado, a sra. Gleisi Hoffmann não contribuiu com uma palavra sequer para a pacificação do País nem tampouco para a construção daquela agenda virtuosa, que haveria de derivar de um governo que refletisse, de fato, a frente ampla que o elegeu. Muitíssimo ao contrário. Passada a eleição, a presidente do PT se esmerou no papel de agente da discórdia, não raro sabotando políticas do próprio governo petista, em particular as formuladas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Portanto, a decisão do presidente de nomear Gleisi Hoffmann para o cargo de ministra das Relações Institucionais, longe de trazer alívio, liga um incandescente sinal de alerta para a estabilidade política do País. Tida e havida como uma das figuras mais polarizadoras da política brasileira, Gleisi Hoffmann, uma vez encarregada da articulação política com o Congresso – e, por extensão, com o conjunto da sociedade –, pode representar um passo decisivo em direção à ingovernabilidade.

Ao contrário do que seriam os atributos ideais de alguém à frente da SRI, Gleisi sempre se comportou como um obstáculo à pacificação do País – não raro manifestando certo orgulho por isso. Ao invés de promover o diálogo, ela tem sido mais uma advogada incansável de posições radicalmente opostas àquelas defendidas por uma parcela significativa da população brasileira e às vezes até pelo próprio governo, como evidenciam as suas diatribes contra o mercado financeiro, o Banco Central, o Congresso, a direita em geral e países alinhados com os valores liberais democráticos, cerrando fileiras na defesa de autocracias repulsivas por alinhamento ideológico, pura e simplesmente.

Esse perfil de enfrentamento incessante – decerto admirado por um presidente que se ressente da falta de “agressividade” de alguns de seus ministros – faz com que a escolha de Gleisi para a articulação política se torne mais preocupante do que normalmente já seria. Trata-se de uma função que exige, por óbvio, habilidade política, tato e capacidade de transitar entre diferentes espectros ideológicos – atributos que Gleisi não tem. A bem da verdade, nem precisaria ter, pois sempre que instado a decidir entre a competência e a fidelidade canina de seus correligionários, Lula nunca titubeou ao fazer sua escolha.

Por tudo isso, ao invés de ajudar a construir pontes e restabelecer os laços comuns entre os brasileiros, malgrado suas eventuais dissensões ideológicas, Gleisi tem se destacado por seu especial denodo em erigir muros. Isso reforça que, premido pela queda recorde de sua aprovação, Lula parece disposto a ir para o tudo ou nada pela reeleição, ainda que isso prejudique a governabilidade e implique consequências imprevisíveis para a estabilidade política e econômica do País. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 01.03.25 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Além de Zelensky, a diplomacia também foi expulsa da Casa Branca pelo governo Trump

Desastre do encontro dos presidentes dos EUA e da Ucrânia, com bate-boca na frente da imprensa, inicia nova crise internacional, joga sombra sobre possível cessar-fogo de Moscou e Kiev, e escancara despreparo e perigo para o planeta do novo comando em Washington.

Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, deixa a Casa Branca após reunião com o presidente dos EUA, Donald Trump — Foto: SAUL LOEB / AFP

Mais de um diplomata experimentado europeu, reservadamente, afirmou à imprensa americana nesta sexta-feira que jamais havia visto um presidente dos EUA tratar um líder de um país "amigo" da maneira como o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, o foi nesta quarta-feira por Donald Trump. E por seu vice, J.D Vance. O choque não se limitou à Europa, com declarações de apoio a Kiev pelos líderes de França, Alemanha, Espanha e Suécia, cada vez mais convictos de estarem sozinhos na contenção do expansionismo russo. Também está sendo assimilado por aliados históricos de peso, entre eles Canadá e Austrália.

Se alguém ainda tinha alguma dúvida, a imagem do líder ucraniano, convidado a se retirar às presas da Casa Branca após a decisão de não assinar a proposta de Washington sobre o uso de minerais raros no país sem o que considera ser uma garantia real de proteção contra Moscou, e de um impressionante bate-boca público, selou o início de uma nova crise internacional, com direito a alertas do republicano sobre uma "terceira guerra mundial". Interrompeu a discussão sobre um cessar-fogo que impeça mais perdas humanas. E ilustrou com incômoda mas necessária nitidez o despreparo e o perigo para o planeta da nova direção da maior potência global. Além de Zelensky, que enfrenta a invasão russa no campo de batalha há três anos, a diplomacia também foi expulsa da Casa Branca nesta sexta-feira pelo governo Trump.

É revelador observar no incômodo bate--boca público desta sexta-feira as feições de um quarto personagem de peso na reunião. Se em alguns momentos Vance ri, de forma debochada, e Trump se dedica a punir o hóspede acuado como se este fosse um menino rebelde, o comandante da diplomacia americana se mantém calado, sério, sem reação. O senador Marco Rubio, que comanda o Departamento de Estado, era reconhecido por seus pares, inclusive os do Partido Democrata, como um defensor da parceria transatlântica que assegurou a paz na Europa nas últimas oito décadas, um político ciente da importância dos órgãos multilaterais pós-Segunda Guerra para o equilíbrio global e para os próprios EUA. Pois ele testemunhou, calado, o que foi batizado pela imprensa profissional americana de "desastre".

A falta de protagonismo de Rubio bisou o silêncio dos senadores republicanos, que tiveram um encontro com Zelensky antes da conversa do ucraniano com Trump e dele saíram "convictos" de que um acordo seria assinado nesta sexta-feira. O único a falar após o "desastre" foi o veterano Lindsey Graham, escalado para apresentar a narrativa de que Trump e Vance ofereceram ao planeta – e aos eleitores americanos — uma "demonstração de força" contra a histeria do líder que se recusa a usar terno e gravata "até a guerra terminar". Curiosamente, o senador da Carolina do Sul foi ecoado pelo ex-presidente russo Dmitry Medvedev, que celebrou o fato de "os EUA finalmente falaram a verdade na cara de Zelensky".

Pesquisa do Pew Research Center divulgada há duas semanas mostrou a profunda divisão dos americanos sobre o envolvimento dos EUA no conflito desde a invasão da Ucrânia pela Rússia. Enquanto 47% dos que se identificam como republicanos consideram que o apoio a Kiev é "exagerado", 62% dos democratas acham que é "correto" ou "ainda menos do que o necessário". Em um país extremamente polarizado, como as urnas de novembro mostraram, Trump segue governando apenas para a base e com uma oposição decidida a deixar o volume muito mais baixo do que durante sua primeira temporada na Casa Branca. Aguarda-se trabalho que revele o que os eleitores independentes acharam do "ótimo material para televisão" [em frase do próprio Trump enquanto o reality show acontecia] desta sexta-feira.

Na semana passada, o oráculo democrata James Carville [que cunhou a frase "é a economia, estúpido", para explicar a vitória de Bill Clinton em 1992 contra o então presidente George Bush, pai] afirmou que a estratégia democrata de oposição pontual e menos barulhenta a Trump 2.0 estava correta. Em sua bola de cristal, viu o governo Trump cair de maduro, sozinho, "pelos próprios erros, em até um mês". O decano da análise política pode ter exagerado no calendário, mas o presidente dos EUA e seu vice deram hoje um senhor empurrão para, a depender do ponto de vista do leitor, profecia ou praga.

Eduardo Graça, o autor desta matéria, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, edição online, em 28.02.25, às 17,45 hs.

Trump humilha Zelensky em reunião tensa na Casa Branca: “Ele está brincando com a terceira guerra mundial”

O presidente dos EUA cancela a coletiva de imprensa conjunta e afirma nas redes sociais que seu interlocutor “não está pronto para a paz”. Acordo sobre minerais continua sem assinatura após líder ucraniano deixar abruptamente o Salão Oval

Trump para Zelensky: “Você está pulando para a terceira guerra mundial” (Foto: Brian Snyder (REUTERS) 

Um desastre absoluto que deixa o futuro da Ucrânia em dúvida. O encontro entre os presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, na Casa Branca terminou catastroficamente, depois que Trump repreendeu Zelensky - em público, na frente de todas as câmeras e em um tom sem precedentes - no início da reunião no Salão Oval para discutir o futuro da guerra na sexta-feira. O republicano, que recebia o líder ucraniano pela primeira vez na Casa Branca, alertou o líder do país invadido: “Você não tem cartas” para jogar na negociação e o acusou diretamente: “Você está brincando com a terceira guerra mundial”. Zelensky saiu mais cedo, sem assinar o acordo planejado para a exploração conjunta de minerais ucranianos, enquanto Trump o acusou nas redes sociais de "não estar pronto para a paz".

Após a extrema animosidade de Trump, a reunião dos líderes da UE e da OTAN convocada pelo primeiro-ministro britânico Keir Starmer em Londres no domingo é mais importante do que nunca. Os canais que se previam para negociar o futuro da guerra parecem ter explodido, e todo tipo de questionamentos estão sendo levantados sobre qual apoio Kiev receberá agora de um Trump que está negociando com Moscou para acabar com a guerra, que repete ponto por ponto os argumentos do Kremlin e que já havia evitado prometer garantias de segurança ao país invadido. A Rússia é a grande beneficiária das pontes quebradas entre os líderes dos dois países, que antes eram aliados

“Decidi que o presidente Zelensky não está pronto para a paz se os Estados Unidos estiverem envolvidos, porque ele acredita que nossa participação lhe dá uma grande vantagem nas negociações. Não quero vantagem, quero PAZ. "Ele foi desrespeitoso com os Estados Unidos no estimado Salão Oval", escreveu um Trump furioso em sua rede social, Truth, após a discussão pública e enquanto seu interlocutor se preparava para sair sem realizar a entrevista coletiva conjunta que ambos haviam planejado. O ucraniano também cancelou outras atividades planejadas em Washington, incluindo uma palestra em um think tank conservador , para poder voar para Londres.

A discussão, tão pública, tão violenta e tão visível para a imprensa, não tem precedentes na história diplomática contemporânea. Não é incomum que líderes internacionais, ou seus representantes, discutam, mas sempre a portas fechadas. A imagem da embaixadora ucraniana em Washington, Oksana Markarova, cobrindo o rosto com as mãos, foi a melhor ilustração da situação.

"Ou eles chegam a um acordo, ou nós vamos embora", declarou o presidente dos EUA. “E se formos embora, eles ficarão lutando sozinhos, e não será bonito. Eles ficarão lutando, e não têm nada a ver com isso", ele continuou sua reprovação. A hostilidade era claramente visível nos rostos de ambos os lados, e o confronto entre eles criou enorme incerteza quanto ao apoio de curto prazo que a Ucrânia receberá dos Estados Unidos.

A disputa começou quando o vice-presidente dos EUA, JD Vance, declarou que a estratégia do governo Biden anterior de apoio incondicional à Ucrânia na guerra foi um fracasso e recomendou o caminho da diplomacia com o presidente russo, Vladimir Putin. Zelensky alertou contra fazer qualquer acordo com Putin, lembrando que seu país já havia assinado pactos de paz com Moscou depois que a Rússia ocupou a Crimeia e parte do leste da Ucrânia, os chamados acordos de Minsk, e o país vizinho não os cumpriu. Vance, sentado ao lado de Trump e que era extremamente cético em relação à ajuda dos EUA à Ucrânia durante seu mandato como senador, disse a Trump que considerava "desrespeitoso" "vir ao Salão Oval e brigar na frente da mídia", o que significa que ele culpa Zelensky pelos comentários duros de Trump. Em linguagem paternalista, ele o repreendeu por não ter demonstrado gratidão suficiente aos Estados Unidos ou ao presidente.

Zelensky tentou parecer conciliador. “Todos nós temos problemas, até você. Mas eles têm um oceano entre eles e não o sentem agora. Você sentirá isso mais tarde.” Foi aí que Trump entrou: "Não nos diga como vamos nos sentir... Você não está em uma boa posição."

“Isso não vai funcionar a menos que haja uma mudança de opinião”, acrescentou Trump, declarando: “Putin quer um acordo, mas não sei se você quer um acordo”.

O confronto é ainda mais surpreendente dado que o presidente dos EUA, que na semana passada havia sido altamente crítico – até mesmo insultuoso – em relação a Zelensky, nos últimos dias pareceu ter suavizado sua posição e até mesmo garantido que faria todo o possível em suas negociações com Moscou para permitir que a Ucrânia recuperasse parte do território ocupado pela Rússia.

Na semana passada, o presidente dos EUA atacou a Ucrânia com uma série de falsas acusações, incluindo a de que ele é um "ditador sem eleições" e que ele é responsável pela guerra, que Kiev "começou" a guerra. Zelensky o acusou de viver em uma “bolha de desinformação” de propaganda russa.

A Rússia começou a guerra em 2014 com a ocupação da península da Crimeia. Em fevereiro de 2022, começou uma invasão em larga escala do território ucraniano. Zelensky foi eleito presidente democraticamente em 2019 por uma grande maioria, e seu país não realiza eleições desde o início da guerra porque a lei marcial em vigor desde então as proíbe expressamente em tempos de combate. Em contraste, o presidente russo, a quem Trump repetidamente elogiou como um "gênio", tem um mandado de prisão internacional por crimes de guerra, livrou-se da oposição em casa e permanece no poder por meio de eleições que são consistentemente consideradas injustas.

Os dois presidentes se encontraram na sexta-feira para assinar um acordo econômico que prevê que Kiev ceda aos Estados Unidos metade de suas receitas provenientes da futura monetização de seus recursos naturais, incluindo minerais essenciais, gás e petróleo. Washington alegou que ter tal pacto lhe dá um incentivo para defender o país invadido, pois também protege seus investimentos econômicos, e Trump afirma que isso ajudará a reconstruir a economia ucraniana após a guerra.

A divergência pública entre Trump e Zelensky conclui uma semana de intensa atividade diplomática em Washington sobre a Ucrânia, que começou na segunda-feira com a visita do presidente francês Emmanuel Macron à Casa Branca e continuou na quinta-feira com a do presidente britânico Starmer. Ambos estavam tentando extrair de Trump garantias de segurança para Kiev no caso de um cessar-fogo.

Embora a Europa esteja preparada para formar uma força de paz de dezenas de milhares de soldados para monitorar o cumprimento do cessar-fogo, essas tropas por si só não seriam suficientes para dissuadir a Rússia de novas agressões. Os países europeus estão, portanto, pedindo a Washington que forneça uma "rede de segurança": vigilância com radares e aeronaves militares que interviriam em caso de perigo. Mas Trump tem repetidamente evitado assumir esse compromisso, apesar da insistência de aliados. Ele se recusa a permitir que a Ucrânia se junte à OTAN, enfatiza que os Estados Unidos não enviarão tropas para o solo em nenhuma circunstância e declara que a melhor garantia de segurança é o próprio acordo sobre minerais, que atualmente está no ar. De acordo com esse argumento, a presença econômica dos EUA será um impedimento suficiente para Putin.

Lírio Macarena Vidal, o autor desta matéria, é correspondente do El País em Washington-DC. Publicado originalmente em 28.02.25



Lula, cansado e impopular

Lula, seu governo, Congresso e oposição não vão mudar – nem com a “reforma ministerial”, que está virando dança de cadeiras do PT, nem com a eventual, ou previsível, prisão de Jair Bolsonaro.

Impopularidade de presidentes é como inflação: ambas começam por motivos objetivos, passam a sofrer efeito psicológico, se retroalimentar e fugir do controle. Lula enfrenta impopularidade e inflação em alta ao mesmo tempo, até porque as duas têm tudo a ver e, juntas, foram decisivas, por exemplo, para Trump e Milei derrotarem os candidatos à reeleição nos EUA e na Argentina.

E não estavam sozinhas, pois foram e são embaladas pela crise e o descrédito do sistema político e instituições mundo afora e foram e são massificadas pela orquestração da oposição na internet, que se transformou no grande fator político, capaz de confundir líderes e opinião pública.

A pesquisa Quaest desta semana é devastadora para Lula, reprovado por mais de 60% em São Paulo, Minas e Rio, os maiores eleitorados do País, e em queda acentuada em Pernambuco, seu Estado natal, onde é campeão de votos faça chuva ou faça sol, e na Bahia, governada pelo PT há duas décadas. Aliás, por Rui Costa e Jaques Wagner. Lula venceu em 2022 por margem apertada. E sem o Nordeste?

Lula 3 concilia um líder cansado e desatualizado, falta de estratégia, rumo e marca, base parlamentar frágil e oposição feroz e ativa nas redes sociais, sem perspectiva de melhora. Lula, seu governo, Congresso e oposição não vão mudar – nem com a “reforma ministerial”, que está virando dança de cadeiras do PT, nem com a eventual, ou previsível, prisão de Jair Bolsonaro.

Impopularidade e inflação andam juntas e, quando disparam, ninguém segura

Lula teve o grande momento na vitória, na posse colorida, no enfrentamento do 8/1 e no belo slogan “o Brasil voltou”, mas foram todos simbólicos, animadores de torcida. O problema começou junto com a rotina, decisões, ações, sinalizações, quando foi ficando claro algo constrangedor: Lula não tinha assimilado as mudanças do Brasil e do mundo, nem na política, nem na economia, nem na comunicação. Estava no passado.

Teria sido fácil brilhar na comparação com Bolsonaro em política externa, saúde, educação, cultura, ambiente..., mas alguém é capaz de lembrar algum golaço em alguma delas? O que todos lembramos é Lula estendendo tapete vermelho para Maduro, a dengue disparando, as interferências na Petrobras, a insistência na exploração de petróleo na Margem Equatorial.

Se algo andou bem foi na economia no primeiro ano, mas, assim como São Sidônio Palmeira, Dom Fernando Haddad não faz milagre e vem dando sinais de cansaço ao ser atacado pelo PT e desautorizado por Lula.

Sobre Janja, não se fala, mas não custa lembrar que Lula reclamou nas redes de coluna minha publicada neste espaço, em setembro de 2021, que me parece bem atual. Título: “Golpe de mestre”. Um golpe de mestre que Lula não soube dar. 

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.02.25

Estrela e coadjuvante na tentativa de golpe

A grande curiosidade é saber como se fará justiça a pessoas que tiveram papéis diferentes neste caso

O processo sobre a tentativa de golpe deve ser julgado em setembro. Até lá, o debate entre juristas pode esclarecer alguns pontos. No entanto, existem certos aspectos que permanecem um pouco nebulosos para mim.

Um deles é o elo entre os preparativos para a tentativa de golpe e as invasões de 8 de janeiro em Brasília. É possível depreender dos depoimentos, provas e gravações que a virada de mesa dependia basicamente de dois fatores.

O primeiro deles era a suspeição sobre as urnas eletrônicas. Bolsonaro investiu pesado nisso. Começou por duvidar de sua própria vitória nas eleições de 2018; fez reuniões com embaixadores para disseminar a suspeita; recebeu hacker no Palácio da Alvorada e, de uma certa forma, introduziu a ambiguidade num relatório da comissão das Forças Armadas que não encontrou indício de fraude.

O segundo fator era a mobilização popular. Bolsonaro achava que a denúncia de fraude seria um fator importante para colocar gente nas ruas. A porta dos quartéis foi o lugar de encontro, e no dia 12 de dezembro houve conflitos em Brasília, numa espécie de ensaio geral para o desejado caos.

Os dois fatores essenciais, denúncia das urnas e agitação popular, eram o que Bolsonaro contava para assinar um decreto de golpe e obter o apoio das Forças Armadas para sua aventura. No entanto, quando ocorreu o 8 de Janeiro, uma tríplice invasão aos Poderes da República, Bolsonaro não estava mais no governo, assim, ele não poderia assinar nenhuma minuta de golpe.

Outro aspecto da conjuntura que havia sido alterado entre dezembro e janeiro foi que os comandos das Forças Armadas foram trocados, conforme advertiu, numa mensagem, o general reformado Mário Fernandes.

Portanto, a chamada festa da Selma, que reuniu gente de todo o País em Brasília, tinha a característica de um ato de desespero: Bolsonaro já não podia assinar decretos, as Forças Armadas, que recusaram apoio em dezembro, estavam ainda mais predispostas a se afastar de um golpe. Os líderes mais informados sabiam que a conjuntura mudara. Quem assinaria um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) seria o Lula, um político experiente que perceberia o perigo de uma decisão dessa natureza.

Ainda assim, a manifestação preparada em escala nacional aconteceu. Foi como se dissessem: falhou toda a articulação de cúpula, a iniciativa popular que se resolva.

Para os líderes, era tranquilo porque, na verdade, quem arriscaria o pelo seria a multidão. Bolsonaro estava nos Estados Unidos. Seu ex-ministro da Justiça Anderson Torres também foi para os Estados Unidos, licenciando-se do cargo de secretário de Segurança de Brasília.

A única esperança que movia a multidão era a ideia de que as Forças Armadas, indiferentes ao movimento na porta dos quartéis, iriam se sensibilizar com os conflitos da tríplice ocupação.

Não sei como esses episódios serão examinados juridicamente. Mas a verdade é que os líderes foram incapazes de desmobilizar os manifestantes e esperavam, em lugares seguros, o desfecho daquele drama histórico.

Os participantes do 8 de Janeiro foram uma verdadeira massa de manobra. Colocaram a cara para as câmeras, quebraram o que podiam com as próprias mãos, possivelmente contando com a impunidade e futuras menções de honra.

Certamente, foram iludidos pelas análises, inclusive uma de Olavo de Carvalho, divulgada depois de sua morte, antes da festa da Selma, na qual afirmava que o Exército só se mobiliza quando o caos se instala.

Mas foram iludidos também pelas mensagens ambíguas de generais e militares de outras patentes indicando que algo iria acontecer. O próprio Bolsonaro estava esperando algo, uma esperança bem vaga, mas suficiente para manter as pessoas mobilizadas.

O julgamento é de uma tentativa de golpe contra o Estado de Direito. Mas houve também golpe contra a ingenuidade popular, uma suposição de que todos cumpririam seu papel, quando, na verdade, os líderes estavam abrigados longe dali.

O ideal seria um julgamento que abordasse o conjunto dos acontecimentos, envolvendo todos os acusados. Os manifestantes do 8 de Janeiro foram julgados e condenados por seus atos, é verdade. Mas, vistos num quadro mais amplo, mostraram-se mais destemidos do que seus líderes e, nestes primeiros anos, por outro lado, confirmam o ditado de que a corda arrebenta sempre do lado mais fraco.

Faltam ainda detalhes sobre a preparação do 8 de Janeiro. Assim como algumas informações sobre a preparação do golpe no mês de dezembro ainda podem aparecer. Mas a grande curiosidade é saber como se fará justiça a pessoas que tiveram papéis diferentes, inclusive aquelas condenadas a longa penas: em caso de êxito do golpe de Estado, talvez continuassem sua vida modesta e obscura, completamente esquecidas dos líderes que viriam recolher os aplausos pela tomada do poder.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.02.25

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Mais um bode expiatório de Lula

Nísia foi demitida da Saúde por um presidente que desde sempre joga suas falhas nos ombros alheios. Num governo sem rumo e sem projeto de país, nem o mais competente ministro terá sucesso

O presidente Lula da Silva recorreu à prerrogativa do cargo e anunciou a troca de comando no Ministério da Saúde, demitindo a ministra Nísia Trindade e nomeando para substituí-la o hoje ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha. Mas tão inconteste quanto a prerrogativa presidencial de mudar ministros quando bem entender é a confirmação do método a que o petista recorre no manejo de suas funções. Que não haja dúvida: Nísia é o bode expiatório da vez, escolhida por um presidente habituado a jogar suas falhas em ombros alheios.

Fizesse ou não o possível e o desejável, Nísia não conseguiria satisfazer o que dela se esperava – porque, afinal, nem o próprio Lula saberia dizer o que dela esperar. A despeito dos muitos problemas e eventuais acertos no período, o pecado original não está, portanto, na Saúde, mas no Palácio do Planalto e atende por um nome: Lula da Silva, o presidente que não tem a mais pálida ideia do que cobrar de seus ministros que não sejam apelos fáceis de curtíssimo prazo e eficácia duvidosa para o País. Não há outra obsessão em sua mente hoje senão encontrar uma providencial “marca”, capaz de amenizar o desconforto nacional com o seu mandato e assegurar-lhe dividendos em 2026. Como não a encontra, a reforma ministerial foi incluída no rol de soluções para superar a inépcia da qual ele é o maior culpado.

Na teoria lulocêntrica de poder – autorreferente e fiel apenas a si mesma –, o mundo ao redor será sempre menor do que o ego de Lula. Razão pela qual o demiurgo petista não só submete seus auxiliares a situações vexatórias, como deixa correr os boatos sobre sua insatisfação com o desempenho dos ministros. Foi assim ao creditar os problemas do governo às falhas da comunicação, dirigida por Paulo Pimenta até sua substituição por Sidônio Palmeira após meses de fritura pública. A descortesia já havia sido exposta em 2023, quando Lula demitiu a ex-atleta Ana Moser do Ministério do Esporte, trocando-a pelo deputado André Fufuca (PP-MA), que trouxe consigo a promessa de votos do Centrão.

O bode expiatório não está sozinho. Fernando Haddad tem sua autoridade de ministro da Fazenda frequentemente desautorizada pelo chefe e pela ala petista avessa a qualquer responsabilidade na gestão das contas públicas. Marina Silva só tem sua voz ouvida quando o presidente precisa exercer seu sonhado papel de líder global na defesa do planeta. As falhas da articulação política são direcionadas aos ministros da área, como se ao presidente não coubesse liderar e apontar com clareza o que deseja de prioritário no Congresso. Um governo sem rumo e um presidente impopular levam a uma gestão que atira para todos os lados, de forma tão aleatória quanto ineficaz em busca da gratidão popular perdida.

Nísia Trindade é vítima desses tiros. Sua gestão foi decerto marcada por polêmicas e altos e baixos. Após anos de negacionismo bolsonarista, trabalhou para recompor o Programa Nacional de Imunizações e os patamares de vacinação, mas deixou sequelas com os estoques de vacinas da covid-19 com validade vencida. Recompôs programas desmontados, mas não soube lidar com o apetite parlamentar sobre as bilionárias verbas da pasta. Formulou e começou a implementar um programa prioritário de nome pouco marqueteiro – Mais Acesso a Especialistas – e de resultados de longo prazo, mas foi atropelada por um presidente com pressa incontrolável.

Mas se há muitas razões para a queda, inclusive sua inaptidão para a marquetagem, uma delas é claramente política. Ao deslocar Alexandre Padilha para a Saúde, Lula abre espaço para uma troca na área que trata de um vespeiro, isto é, a difícil relação do governo com o Congresso. Na conjugação entre acertos e desacertos, porém, a ministra não merecia a forma como foi demitida, exposta no noticiário por gente próxima ao presidente, que a carimbou como incompetente – como se fosse dela a culpa pela queda na popularidade do governo.

Para sorte de Lula, as vítimas de suas dispensas humilhantes retribuem a indelicadeza com elegância. Ao falar sobre a demissão, Nísia escolheu indevidamente a imprensa, e não o presidente e seus sabujos palacianos, como culpada pela sua fritura pública – sinal de cuidado com o chefe, mas um evidente disparate de quem foi atirada aos leões pela covardia de quem a escolheu.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.02.25

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Nísia não teve erros que justificassem sua saída, avaliam nomes importantes da área

Primeira mulher à frente do Ministério da Saúde deixa marcas como a retomada da vacinação e o investimento na indústria nacional, apesar de deslizes

Nísia Trindade, demitida do Ministério da Saúde nesta terça-feira, 25, deixa um legado positivo, segundo especialistas. Entre os triunfos da agora ex-ministra estão o aumento da cobertura vacinal, a inclusão de novos imunizantes na rede pública, a reorganização da pasta e a retomada de programas como o Mais Médicos.

Para eles, Nísia não cometeu erros que justificassem sua saída e a demissão é uma questão política. Pesaram contra sua gestão a queda de popularidade do governo federal, a falta de articulação e a ausência de padrinhos políticos.

“Um ministro de Estado precisa ter uma boa penetração e articulação no Congresso. Isso é fatal. Se o ministro não tem esse perfil, tem de ter um preposto que faça isso por ele”, avalia o médico Walter Cintra, professor de gestão em saúde da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Essa compreensão faltou ao Ministério da Saúde”, resume. Para ele, não adianta ser muito técnico e esquecer que a questão política é central, porque quem vai decidir os recursos da saúde, em última análise, são os políticos — ainda mais no modelo das emendas parlamentares.

O fato de ser a primeira mulher à frente da pasta também aumentou o teto de vidro. “Muita gente olha de forma preconceituosa, com misoginia e diz: ‘As mulheres são mais frágeis, não têm tanto poder de comando’”, critica o médico sanitarista Claudio Maierovitch Pessanha Henriques, ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Nísia já foi ‘acusada’ de ser ‘suave demais’. Ser gestor, ter poder e conseguir fazer isso sem gritar, ofender, menosprezar é uma grande qualidade”.

Embora enalteçam sua capacidade técnica e a equipe que reuniu, os especialistas apontam que a gestão não foi isenta de deslizes. Mencionam, por exemplo, a falta de coordenação nacional no combate à dengue e a dificuldade de lidar com a gestão de filas no Sistema Único de Saúde (SUS) no período à frente da pasta, o qual superou a média.

Desde a redemocratização, calcula a médica Ana Maria Malik, professora da FGV, os ocupantes do cargo duram, em média, 16 meses.

A professora Lorena Guadalupe Barberia, do departamento de Ciência Política da USP, refina o cálculo. Ela e colegas publicaram na revista científica Leadership in Health Services uma análise sobre a queda de ministros e secretários de Saúde no Brasil durante a pandemia. “Na média, ministros da Saúde ficam no cargo 500 dias. Ela ficou 786 dias. Considero uma vitória ela ter permanecido tanto tempo sabendo que, durante períodos de crise, há maior alternância.”

Reconstrução

É unânime entre os especialistas que Nísia reconstruiu um ministério desmontado após gestões “desastrosas” de seus antecessores nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. “Ela pegou um ministério destruído e está entregando para seu sucessor uma pasta com projetos bem encaminhados”, pondera Cintra.

“O que foi destruído nos seis anos de dois governos em que a saúde deixou de ser priorizada, Nísia reconstruiu em 25 meses. Isso não é pouco”, dizem a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) em nota de agradecimento.

Foi ela a responsável por retomar programas como o Mais Médicos, o Brasil Sorridente e a Farmácia Popular. Por outro lado, faltou à ministra uma marca própria. O mais próximo disso foi o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, que Nísia tocou ao lado do vice-presidente Geraldo Alckmin. O projeto busca expandir a produção nacional de insumos, medicamentos e vacinas e reduzir a dependência de produtos estrangeiros, mas é uma iniciativa de longo prazo e não repercutiu junto ao público.

Crise no Território Yanomami

Logo no início da gestão, houve a crise no território Yanomami. A longa interferência de não indígenas na região, relacionada ao garimpo ilegal, aumentou os índices de violência, degradação ambiental – impactando diretamente na alimentação – e doenças. Em janeiro de 2023, a situação veio à tona, escancarando para o mundo centenas de casos de desnutrição severa, falta de medicamentos e mortes por malária.

A tentativa de solucionar a crise foi uma das primeiras medidas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele decretou situação de emergência em saúde e mobilizou ministérios. Apesar disso, dados divulgados em janeiro de 2024 mostraram que o número de mortes no território havia aumentado.

Leon Ferrari e Stefhanie Piovezan, de Brasília - DF, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 26.02.26

‘Tudo de graça’

Pressionado pela queda na popularidade, Lula faz comício travestido de pronunciamento oficial e oferece ‘tudo de graça’ a um eleitor que já não se deixa seduzir facilmente pelo seu falatório


No pronunciamento que fez em rede nacional de rádio e televisão anteontem, o presidente Lula da Silva exibiu mais um elemento do manual de marketing adotado pelo novo ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência, Sidônio Palmeira. Nessa cartilha da comunicação presidencial, produzida sob a lógica de comitê eleitoral, revogam-se todas as disposições legais, morais ou políticas em desfavor de uma comunicação pública, republicana, impessoal e apartidária. O mundo mágico de Lula da Silva e de Sidônio Palmeira é outro.

Em pouco mais de dois minutos, o presidente leu o roteiro do seu marqueteiro não como chefe de Estado, mas como candidato; fez um comunicado não como uma prestação de contas ou informação de interesse público destinada à população, mas como uma peça de propaganda eleitoral; apresentou dois programas de seu mandato não como novidade ou celebração de um marco digno de tal, mas como uma das patranhas tipicamente lulopetistas que servem de louvação aos poderes sobrenaturais de Lula da Silva.

“Uma dupla que não é sertaneja, mas que está mexendo com o Brasil: o Pé-de-Meia e o novo Farmácia Popular”, anunciou o presidente, numa fala permeada com imagens de cortes e cenas de atores reproduzindo momentos dos dois programas. Sobre o primeiro, informou-se o pagamento da poupança para os jovens do ensino médio – represado em parte pela marotagem do governo de destinar recursos do programa fora da previsão orçamentária – e descreveu-se uma “ação extraordinária” que “está ajudando 4 milhões de jovens a permanecerem na escola”. A segunda notícia já fora anunciada pela agora ex-ministra da Saúde, Nísia Trindade, isto é, a gratuidade de 100% dos medicamentos do programa, além da oferta de fraldas geriátricas. “Tudo de graça”, resumiu Lula da Silva.

É da graça marqueteira, concentrada num presidente em campanha permanente, que se sustenta a cartilha do seu ministro da Propaganda. Na realidade onírica do lulopetismo, “tudo de graça” não se resume apenas a uma informação literal ou a uma frase de efeito, mas se revela uma ideia-força por meio da qual funciona o modo petista de governar: num País “reconstruído” por Lula da Silva, ao Estado convém dar dinheiro e medicamentos “a quem mais precisa”. Nesse esforço de um presidente convicto de que é o pai dos pobres, ignora-se que, a despeito dos méritos de tais iniciativas, nada, na prática, é de graça – o País paga a conta de qualquer benefício concedido pelo governo, legítimo ou ilegítimo.

Pelo que diz, como diz e quando diz, o pronunciamento é tudo menos um comunicado tradicional ao País, como os brasileiros se acostumaram a ver sempre que um presidente ou algum de seus ministros recorre à rede nacional de rádio e TV. É evidente que, em nome da boa comunicação pública, instituições e autoridades devem modernizar o formato de seus informes. Mas o que está em curso é de outra natureza: trata-se de campanha eleitoral antecipada. Não havia nenhuma urgência que demandasse um pronunciamento oficial do presidente da República. A única urgência óbvia é a queda acentuada da popularidade de Lula.

O ministro da Propaganda mostrou a Lula da Silva que os tempos são outros. Engolfado pelo mau momento nas pesquisas, balançado por uma coalizão instável e hostil e pressionado pela proximidade cada vez maior do ciclo eleitoral de 2026, o governo resolveu agir – do modo lulopetista, claro. Não à toa, a peça publicitária mirou em dinheiro no bolso e medicamento de graça, com foco no brasileiro pobre, aquele que passou a engrossar o índice de desaprovação ao presidente e ao governo.

À certa altura do pronunciamento-comício, Lula da Silva diz algo que trai suas aspirações: “Seguimos ao lado de cada brasileiro e de cada brasileira: para levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima”. A frase completa mostra que o presidente se referia à “reconstrução de um País que estava destruído”. Mas, na cosmologia lulopetista, trata-se, no fundo, de uma tentativa de fazer o governo, esse sim, sacudir a poeira e tentar dar a volta por cima.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.02.25

Mudar ministros requer etiqueta

Lula maltrata os colaboradores

Lula ao lado de Nísia Trindade — Foto: Evaristo Sá/AFP/20-03-2023

Lula troca alguns de seus ministros numa humilhante fritura pública que desqualifica o próprio governo. Em setembro de 2023, sem uma só palavra de agradecimento, ele demitiu a atleta Ana Moser do Ministério dos Esportes, colocando em seu lugar o deputado André Fufuca (PP-MA). Tratava-se de trocar competência na equipe por votos do Centrão na Câmara.

Numa operação semelhante, em 1996, o presidente Fernando Henrique Cardoso viu-se obrigado a dispensar a ministra Dorothea Werneck, da Indústria e Comércio. Visitou-a, comoveu-se e registrou em seu Diário:

— Fui ficando com raiva de mim mesmo.

O cavalheirismo foi uma das marcas da presidência de FH.

Depois da dispensa de Ana Moser, a descortesia mudou de patamar. Em janeiro passado, Lula trocou o ministro da Secretaria de Comunicação, Paulo Pimenta, submetendo-o a fritura pública, desqualificando seu trabalho. Como Pimenta é um velho companheiro do PT, seria um tipo especial de jogo jogado.

Num novo lance, fritou a ministra Nísia Trindade. Há mais de uma semana ela dava expediente enquanto circulavam rumores de que seria substituída pelo colega Alexandre Padilha. Há dias, em Itaguaí, Lula disse que “de vez em quando a gente erra, mas na maioria das vezes a gente acerta e escolhe um ministro de qualidade”. A gente quem, cara-pálida? Quem escolhe os ministros é o presidente da República.

Esse tipo de tratamento para os ministros que serão dispensados ofende também os que permanecem e inibe eventuais postulantes. Chegar ao ministério pode ser uma ambição de pessoas qualificadas, mas o risco de uma dispensa humilhante não vale a pena correr. Para um candidato desqualificado, tanto faz, pois seus interesses são outros.

Há algo imperial nos maus modos de Lula. Na segunda-feira, ele revelou que, numa conversa com um presidente da Petrobras, soube que a empresa pretendia comprar uma sonda coreana e disse-lhe:

— Não vai comprar. Se você comprar, a mesma caneta que te colocou na presidência vai te tirar da presidência. Nós vamos fazer aqui.

Lula não revelou quando ocorreu esse diálogo, mas falava de corda em palácio de enforcado. A construção de sondas para explorar petróleo gerou a Sete Brasil, empresa que faliu em dezembro passado, deixando um espeto de R$ 36 bilhões e recordações de uma tenebrosa caixinha, revelada na colaboração do ex-ministro Antonio Palocci, designado para administrá-la.

A postura imperial de Lula espelha a conduta de dois presidentes excêntricos: João Figueiredo (1979-1985) e Jair Bolsonaro (2019-2022).

Dispensar ministro é coisa que exige alguma etiqueta dos presidentes e de suas vítimas. Lula tem sido brindado com a elegância dos colaboradores que demitiu. Nenhum deles saiu atirando.

Em 1953, Getúlio Vargas demitiu por telegrama o ministro da Educação, Ernesto Simões Filho, que estava na Europa. O governo começava a ir mal das pernas, e Simões recusou-se a reclamar, com uma frase que vale tanto para quem sai, como para quem tira:

— Perdi a pasta, mas não perdi a educação.

Elio Gaspari, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O Globo, em 26.02.25

Reprovação a Lula traduz deficiências de seu governo

Saúde e segurança são as duas maiores angústias responsáveis pela insatisfação da população

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva — Foto: EVARISTO SA / AFP/18-02-2025

A pesquisa Quaest divulgada nesta quarta-feira mostra que a reprovação ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva supera 60% nos três maiores colégios eleitorais do país, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Nos oito estados pesquisados, violência e saúde são as maiores preocupações. A violência é o maior problema para moradores de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. A saúde é o que mais aflige cidadãos de Minas, Paraná, Rio Grande do Sul e Goiás. Trata-se de mais um recado para Lula. Em ambos os temas, o governo federal não tem conseguido dar respostas minimamente satisfatórias à angústia dos brasileiros.

Na segurança, os sinais de que a situação saiu de controle estão por toda parte. Porções significativas do território são dominadas por organizações criminosas que achacam moradores, cobram taxas por serviços essenciais, impõem leis marciais e têm a audácia de impedir a entrada do Estado em seus domínios, como mostram as barricadas na entrada de comunidades do Rio. Facções do Sudeste, como a paulista Primeiro Comando da Capital (PCC) ou a fluminense Comando Vermelho (CV), atuam em diferentes regiões do país e até no exterior, disseminando a violência. O problema não é novo, mas precisa ser enfrentado.

Disputas sangrentas entre traficantes ou milicianos se traduzem em assassinatos, tiroteios, balas perdidas, prejuízos a aulas e serviços de saúde, quando não em ataques a ônibus e prédios públicos. Nas ruas das metrópoles brasileiras, cidadãos andam com medo, em meio à explosão de furtos e roubos, muitas vezes com desfecho trágico. É óbvio que tudo isso afeta a percepção sobre o governo.

Diante do poder assustador que ganharam as organizações criminosas, os estados não conseguem combatê-las sozinhos. O ônus recai também sobre a esfera federal. É verdade que o Ministério da Justiça elaborou uma Proposta de Emenda à Constituição sensata para a área de segurança, prevendo maior participação federal e melhor integração entre as forças da lei. Mas lá se vão dois anos de mandato, e até agora tudo o que existe é uma proposta que enfrenta dificuldades para avançar.

Na saúde, a situação também é deficiente. O próprio Lula passou recibo, ao demitir a ministra Nísia Trindade. Embora motivos políticos tenham influenciado a decisão, são indisfarçáveis os problemas. Na gestão Jair Bolsonaro, a saúde errática foi alvo preferencial dos petistas. Mas o governo que assumiu vacilou na logística de vacinação, comprou produtos desatualizados, jogou no lixo frascos com validade expirada, hesitou diante da crise dos hospitais federais do Rio e fracassou diante da maior epidemia de dengue já registrada, responsável por 6,6 milhões de casos e 6.230 mortes no ano passado. Não se sabe se o novo ministro, Alexandre Padilha, chega ao ministério para resolver as mazelas da pasta ou apenas para atender aos desígnios de Lula, que parece encarar todas as deficiências de seu governo apenas como “problema de comunicação”.

A realidade das ruas é outra, como mostra a pesquisa Quaest. O cidadão que pena nas filas do SUS para conseguir consulta, exame ou cirurgia, que enfrenta a alta dos preços na feira e no supermercado ou que é obrigado a entregar o celular ao ladrão, muitas vezes sob a mira de uma arma, já se cansou. O receituário de Lula podia convencê-lo há 20 anos, mas não convence mais.

Editorial de O Globo, em 26.02.25

Lula precisa de seu próprio 'Desenrola'

Maneira tortuosa de conduzir o governo, que inclui demora em decisões e fritura desnecessária de auxiliares, só complica crise do governo

Nísia Trindade ao lado de Lula em seu último ato como ministra da Saúde — Foto: Ricardo Stuckert/PR

Num momento em que atira para vários lados em busca de uma bala de prata que lhe devolva a popularidade ainda em queda, o presidente Lula carece, neste terceiro mandato, de seu próprio Desenrola, pois vem se esmerando em dificultar ainda mais as coisas para si.

A demissão de Nísia Trindade da Saúde, que cravei no site do GLOBO ainda no início da tarde de sábado, só foi confirmada nesta terça-feira, mesmo assim de forma oblíqua, que expôs uma cientista respeitada no meio acadêmico a um desgaste desnecessário e imerecido. Sim, porque uma coisa é reconhecer que Nísia padecia de problemas de gestão, que venho apontando nesta coluna há pelo menos um ano e que nada tinham a ver com a cobiça do Centrão por sua cadeira, aqui repudiada. Outra, completamente diferente, é submeter uma auxiliar a humilhação pública.

De nada adianta culpar a imprensa por cumprir sua obrigação de informar conversas, movimentos e decisões do presidente da República e de seus auxiliares mais próximos. Buscar bodes expiatórios para a forma atabalhoada como Lula vem conduzindo os processos nessa sua volta ao Planalto só dificultará que ele encontre a saída do labirinto de popularidade em que está metido.

Se a reforma ministerial está anunciada pelo menos desde o segundo turno, e se já começou torta com a demissão, também em capítulos, do responsável pela comunicação do governo, Paulo Pimenta, era de esperar que ela fosse feita de forma racional e ordenada, com diagnóstico mais claro do que se quer — e que a mudança na maneira de comunicar as coisas (para fora e para dentro) já começasse a surtir efeito.

É inútil investir em vídeos simpáticos de Lula e Janja nas redes sociais para tentar aumentar a aprovação do petista quando os problemas de fundo seguem tratados na base da tentativa e erro, e mesmo a configuração do primeiro escalão atende a critérios tão pouco claros e a um cronograma tão atabalhoado.

'Troca de Nísia na Saúde não é injustificada, mas forma de fazer isso me parece errada'

Lula quer baixar a inflação com um estalar de dedos e, se não for possível, quer dar um jeito de anestesiar a população insatisfeita com a alta dos preços baixando medidas no varejo, como a ainda não detalhada liberação do saldo congelado do FGTS daqueles que optaram pelo saque-aniversário, mas foram demitidos depois e não puderam acessar o valor remanescente.

O casuísmo da medida fica evidente por um contexto óbvio: ainda em janeiro, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, disse na reunião ministerial que “sonhava” em acabar com essa modalidade de saque-aniversário, uma criação do governo de Jair Bolsonaro.

Não só não acabará, como o saque-aniversário parece ter passado a ser visto como uma forma de injetar dinheiro nas contas de quem compra menos com o salário. Qual a duração da medida? E, mais que isso, qual a chance de algo tão pontual levar quem acha o governo ruim a mudar de ideia?

Ainda no afã de melhorar sua avaliação, Lula parece aflito por marcas de gestão. Como o próprio Desenrola, aqui citado, não decolou, e o Pé-de-Meia, apontam ministros e especialistas em educação, tem alcance tão restrito que também não consegue emplacar, voltou suas baterias para o programa Mais Acesso a Especialistas.

Mas, de novo, quem é da área da Saúde diz que não será essa a salvação da lavoura e que os velhos mutirões conseguem resultados mais rápidos e mais facilmente associáveis ao governo federal por parte da população.

Se o presidente desenrolar seus processos decisórios, de preferência sem queimar aliados na fogueira da desorganização, passar a ouvir mais, retomar a ideia de frente ampla que o elegeu e deixar seu time saber o projeto para estes dois anos de mandato — não um slogan, mas um propósito —, deixará de criar mais dificuldades para a própria recuperação.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 26.02.25

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Combate à corrupção não interessa mais a ninguém no Brasil

País teve sua pior nota desde 2012 no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, e isso parece não interessar a ninguém – um erro que pode ter consequências dramáticas para a sociedade brasileira.

Brasil não conseguiu interromper e reverter a tendência de queda no combate à corrupção nos últimos anos, observa a TI (Foto: Dreamstime/Imago)

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez 465 discursos nos primeiros dois anos de seu terceiro mandato. A ONG Transparência Internacional (TI) contou neles 15 menções à palavra corrupção.

A TI é uma organização não governamental independente e de atuação global que se dedica a combater a corrupção e a promover, em todo o mundo, a transparência, a integridade e a obrigação de autoridades de prestarem contas de seus atos.

Para a Transparência Internacional, a falta de interesse de Lula por temas como corrupção e nepotismo é sintomática da atual abordagem que se dá ao assunto no Brasil. Se o assunto continuar sendo visto como secundário, isso pode ter consequências dramáticas para a sociedade brasileira, alerta.

Por um lado, a questão da corrupção desapareceu do debate público brasileiro, e isso mais de dez anos após o início das investigações da Operação Lava Jato, que pareciam um ponto de virada na luta contra a corrupção no Brasil.

E a corrupção voltou a aumentar: no mais recente relatórioda TI, o Brasil tem um desempenho historicamente ruim no que diz respeito à disseminação da corrupção no Estado, na economia e na vida cotidiana. Dez anos atrás, quando o Brasil obteve sua melhor posição no ranking, o país estava no mesmo nível da Itália ou da Grécia.

Hoje, o Brasil está numa posição muito pior entre as principais economias emergentes do que, por exemplo, a Índia ou a China, que são internacionalmente considerados países com níveis notoriamente altos de corrupção. Que a corrupção seja ainda maior na Rússia do que no Brasil não é exatamente um consolo.

O Brasil não conseguiu interromper e reverter a tendência de queda no combate à corrupção nos últimos anos, após o fim das investigações da Lava Jato, observa a TI. Ao invés disso, a corrupção continuou a se espalhar no Estado. Isso é particularmente evidente na crescente presença do crime organizado nas instituições estatais.

A TI observa retrocessos significativos no combate à corrupção. Por exemplo, empresários, políticos e funcionários públicos corruptos já condenados foram posteriormente absolvidos pelo Judiciário, mesmo tendo confessado e admitido seus crimes. E o Judiciário ainda cancelou bilhões de reais em multas.

A situação não é diferente no Poder Legislativo: as emendas parlamentares, que restringem severamente o controle e a transparência do orçamento público, se consolidaram no Congresso.

O mais surpreendente é que esse relatório catastrófico sobre a corrupção no Brasil recebeu pouca atenção: a única reação do governo veio da Controladoria-Geral da União (CGU), que criticou o Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência Internacional como pouco confiável. "O índice se baseia em pesquisas com grupos específicos, como empresários, e não representa a percepção geral da população", afirmou a CGU. Em resumo: conversa de botequim. "O uso do IPC para embasar debates públicos pode levar a distorções, alimentando narrativas que minam a confiança nas instituições democráticas", acrescenta.

Retrocesso nos EUA

As perspectivas de que o combate à corrupção no Brasil seja retomado num futuro próximo são pequenas. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, acaba de suspender a aplicação da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA, na sigla em inglês), que proíbe as empresas dos Estados Unidos de subornar autoridades estrangeiras. Trump argumentou que a lei prejudica a competitividade das empresas americanas e mina a segurança nacional.

Antes de Trump, eram sobretudo os Estados Unidos que pressionavam pela punição criminal da corrupção no setor econômico. Se o "novo xerife" em Washington não estiver mais interessado em combater a corrupção, muitos governos pelo mundo seguirão o exemplo de bom grado.

Isso é preocupante, pois a corrupção é um importante amplificador da desigualdade social: ela desvia recursos públicos, destrói a igualdade de oportunidades e promove um sistema no qual as elites podem garantir seu poder e privilégios.

Assim, não é de se espantar que o Brasil, segundo pesquisa do Banco Mundial, ocupe o sétimo lugar na lista dos países com maior desigualdade de renda – entre 195 países.

Há mais de 30 anos o jornalista Alexander Busch, o autor deste artigo, é correspondente de América do Sul. Ele trabalha para o Handelsblatt e o jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 20.02.25

O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.

Moraes determina bloqueio do Rumble no Brasil

Ministro do STF alega que plataforma de vídeos cometeu "reiterados, conscientes e voluntários descumprimentos de ordens judiciais" e tenta instituir "terra sem lei" ao disseminar desinformação e discurso de ódio.

Moraes reiterou que a Constituição brasileira deve ser cumprida tanto pelas empresas nacionais quanto pelas estrangeiras (Foto: Adriano Machado/REUTERS)

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou nesta sexta-feira (21/02) o bloqueio da rede social Rumble no Brasil, acusando a plataforma de "reiterados, conscientes e voluntários descumprimentos" de ordens judiciais, além de tentativas de "não se submeter ao ordenamento jurídico e Poder Judiciário brasileiros, para instituir um ambiente de total impunidade e de 'terra sem lei' nas redes sociais brasileiras".

Nesta quinta-feira, Moraes ordenou que o Rumble indicasse, dentro de um prazo de 48 horas, um representante legal no Brasil, com poderes para nomeação de advogados e cumprimento de decisões judiciais. Ao não obter as respostas, o ministro determinou a suspensão da rede social em todo o Brasil.

"Determino a suspensão imediata, completa e integral, do funcionamento do 'Rumble INC.' em território nacional, até que todas as ordens judiciais proferidas nos presentes autos – inclusive com o pagamento das multas – sejam cumpridas e seja indicado, em juízo, a pessoa física ou jurídica representante em território nacional", afirmou Moraes em sua decisão.

O Rumble é uma plataforma de vídeos similar ao YouTube bastante popular entre influenciadores conservadores e nos círculos da direita americana, tendo se envolvido em diversas polêmicas nos últimos anos. A plataforma diz ter a missão de "proteger uma internet livre e aberta".

O STF avalia que a plataforma é utilizada para disseminação de discurso de ódio e ataques à democracia. A decisão de Moraes ocorre em meio às ações do Supremo contra as redes de desinformação e reforça a necessidade de regulamentação das grandes empresas de tecnologia no Brasil.

Caso semelhante ao do X

O caso traz semelhanças ao embate entre o STF e a rede social X que, apesar da retórica agressiva de seu proprietário, o bilionário Elon Musk, acabou cedendo às exigências do Supremo.

Em sua decisão desta sexta, Moraes alertou para os perigos da ausência de controle jurisdicional no combate à desinformação e no uso da inteligência artificial pelo que chamou de "populistas digitais extremistas" que utilizam o Rumble. O ministro reiterou que a Constituição brasileira deve ser cumprida tanto pelas empresas nacionais quanto pelas estrangeiras.

"A nova realidade na instrumentalização das redes sociais pelos populistas digitais extremistas com maciça divulgação de discursos de ódio e mensagens antidemocráticas e utilização da desinformação para corroer os pilares da Democracia e do Estado de Direito exige uma análise consentânea com os princípios e objetivos da República, que, obrigatoriamente, deverão ser respeitados por todas as empresas nacionais ou estrangeiras que atuem em território nacional", afirmou o ministro.

Processo nos EUA

O Rumble move na Justiça dos Estados Unidos uma ação contra  Moraes, em um processo aberto em conjunto com o grupo de comunicação Trump Media & Technology Group, do presidente dos EUA, Donald Trump. A plataforma de vídeos possui negócios em comum com a Trump Media e já recebeu investimentos de pessoas próximas ao presidente, como o vice-presidente americano, J.D. Vance.

As duas empresas acusam Moraes de praticar censura e pedem que determinações do magistrado que ordenavam a derrubada de perfis de usuários do Rumble não tenham efeito legal nos EUA.

A abertura do processo teve como base o bloqueio de contas no Rumble de diversos de usuários, incluindo o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, que vive nos Estados Unidos. Ele é considerado foragido pelo STF, uma vez que Moraes já determinou sua prisão em 2021 por ameaças à democracia e ao Estado de direito. Ele fugiu do país após se tornar alvo da Polícia Federal (PF), mas se manteve ativo no exterior.

A determinação de Moraes nesta sexta-feira ordena que o Rumble bloqueie o canal de Allan dos Santos, além de impedir novos cadastros e interromper repasses financeiro ao brasileiro. Outras redes sociais, como YouTube, Facebook, X e Instagram, já haviam sido notificadas anteriormente e cumpriram as determinações do ministro.

O descumprimento das ordens de Moraes poderá acarretar sanções mais severas ao Rumble, incluindo a suspensão total de suas atividades no Brasil.

Moraes reiterou que desde 10 de fevereiro a empresa vem sendo intimada a comprovar o cumprimento das decisões e a apresentar um representante legal, mas, no dia 17, os advogados do Rumble informaram a renúncia ao mandato judicial outorgado pela empresa.

Embate com CEO do Rumble

O CEO da empresa, Chris Pavlovski, postou mensagem na quinta-feira afirmando que havia recebido "mais uma ordem ilegal e sigilosa" de Moraes. "Você não tem autoridade sobre o Rumble aqui nos EUA, a menos que passe pelo governo dos Estados Unidos. Repito: nos vemos no tribunal", diz a postagem em português e inglês.

Em sua decisão, Moraes citou as publicações de Pavlovski e disse que elas demonstram como a empresa pretende continuar descumprindo as determinações da Justiça brasileira, e acusou o CEO de incitar o ódio contra a corte.

"A conduta ilícita do Rumble INC., por meio das declarações de seu CEO Chris Pavlovski, pretende, claramente, continuar a incentivar as postagens de discursos extremistas, de ódio e antidemocráticos, e tentar subtraí-los do controle jurisdicional", escreveu Moraes.

Mais tarde, Pavlovski escreveu uma postagem se dirigindo ao "ao povo brasileiro". "Eu posso não ser brasileiro, mas prometo que ninguém lutará mais pelos seus direitos à liberdade de expressão do que eu. Lutarei até o fim, incansavelmente, sem jamais recuar", afirmou.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 2102.25