segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Do jornalismo ao entretenimento

Um mundo sem jornalismo será um mundo sem democracia. E também sem liberalismo.

Elon Musk comemora durante discurso feito por Donald Trump um dia antes da posse (Alex Brandon / AP, 19.01.25)

Entendimento

Quase ninguém mais quer saber de buscar termos de convivência. Quase ninguém acha que precisa

Em outubro de 2024, o Instituto Gallup, dos Estados Unidos, publicou mais uma pesquisa sobre a credibilidade dos meios de comunicação na sociedade americana. Os resultados não foram bons: o prestígio da imprensa nunca esteve tão baixo. Apenas 31% das pessoas disseram ter confiança “grande” (“great deal”) ou “razoável” (“fair amount”) na maneira como jornais, televisão e rádio reportam os acontecimentos. É a pior marca já registrada. (https://news.gallup.com/poll/65 1977/americans-trust-mediaremains-trend-low.aspx.)

O êxodo é muito maior na direita do que na esquerda. Entre os adeptos do Partido Republicano, hoje um reduto do trumpismo galopante, somente 12% declararam confiar em órgãos de imprensa (eram 20% em 2018), ante 54% nas hostes do Partido Democrata (estes eram quase 80% em 2018). Até os anos 2000, não havia tanta distância entre um polo e outro: ambos se situavam no mesmo patamar, em torno dos 50%. Agora, o cenário é mais crispado.

No Brasil, a paisagem é quase idêntica. As facções que cerraram fileiras com o bolsonarismo abominam os repórteres e seus periódicos. Seus porta-vozes elogiam torturadores, execram a ciência, caluniam a universidade, hostilizam as artes, insultam a justiça e, last but not least, ofendem sistematicamente os jornalistas – e as jornalistas, de preferência.

Em todos os continentes, aumentam as multidões que aderem à onda anti-imprensa. Essas legiões não fazem mais distinções entre informação e propaganda, não têm a menor ideia do que separa o juízo de fato do juízo de valor e não dedicam nenhum respeito à verdade factual. Não raro, preferem abertamente a mentira.

Em resumo, o esvaziamento da confiança na imprensa é apenas a ponta do iceberg. Por baixo, prospera o triunfo da mentira, graças ao trabalho escravo de milhões de voluntários que espalham falsidades. Podemos comprovar o fenômeno diariamente pelos grupos de WhatsApp, especialmente os grupos de família e de turmas de amigos, que se tornaram uma estratégia dos agentes da extrema direita. Os tios e as tias do Zap, embora pacóvios, não são inocentes inúteis – eles sabem muito bem o que fazem e o que desfazem.

E aí? Como entender o cenário? Por que pessoas que até outro dia levavam uma vida pacata passaram a disseminar engambelações em período integral?

Em parte, as causas podem estar relacionadas à carência afetiva: quem posta sandices nas redes sociais suplica por elogios de meia dúzia de pares igualmente extremistas. De outra parte, é possível que a adesão à escalada desinformativa funcione como um jogo viciante, que gera dependência severa: os que se deixaram acometer dessa compulsão não conseguem parar e, para alimentar o vício, aceitam trabalhar de graça para as organizações antidemocráticas.

O que parece estar em marcha é uma crise epistêmica de enormes proporções. Os métodos de que dispúnhamos para produzir conhecimento sobre a realidade dão sinais de fadiga, porque perdem praticantes e interlocutores. A polarização, ou seja, a cisão que partiu ao meio a sociedade dita ocidental, mina as formas abstratas pelas quais interpretávamos coletivamente o mundo. O estatuto da verdade factual, que já foi o alicerce do melhor jornalismo que tivemos, cai em descrédito.

Só assim podemos entender por que grupos que plantam seus pés sobre o mesmo pedaço de chão, dentro de um mesmo país, habitam mundos imaginários tão díspares. O diálogo racional sobre os fatos deixa de ser possível entre esses grupos. Pior: deixa de ser desejável. Quase ninguém mais quer saber de buscar termos de entendimento ou de convivência. Quase ninguém acha que precisa. E, se o diálogo racional já não tem serventia para fazer pontes entre as “bolhas”, a imprensa não tem mesmo por onde escapar: é convidada a se retirar, como se fosse uma pregação anacrônica ou uma tecnologia ultrapassada, mais ou menos como a bússola e o astrolábio, que caíram em desuso depois da invenção dos dispositivos de georreferenciamento via satélite.

LUZES, OBSCURANTISMO. Foi no calor das revoluções liberais do final do século 18 que a imprensa entrou em cena. A ideia de que a sociedade precisaria contar com uma instituição não estatal para criticar publicamente o poder nasceu do liberalismo insurrecional, não nasceu da democracia. O substantivo “democracia” mal aparecia nos panfletos quando a liberdade de imprensa foi inventada.

Naquela fase, os redatores das folhas públicas eram ativistas. Eles não tinham a menor preocupação com objetividade, com reportagem precisa, com ouvir os dois lados de um debate. Suas finalidades eram conquistar a simpatia da incipiente opinião pública e pressionar o soberano. Ser jornalista era ser militante.

Foi só ao longo dos séculos 19 e 20 que as duas práticas se diferenciaram. À medida que o ordenamento social se modificava e que as liberdades dos negociantes cediam espaço para os direitos dos que não eram donos de riquezas, as causas do liberalismo passaram a ter que negociar com as demandas, agora, sim, da democracia em construção. A liberdade de imprensa deixava de ser entendida como uma prerrogativa burguesa e passou a ser vista como um direito da sociedade inteira. O direito à informação do público aflorou. A instituição da imprensa, sem abdicar de seu espírito crítico de origem liberal, assumiu o tríplice encargo de (1) fiscalizar as autoridades, (2) informar a sociedade com independência e (3) mediar o debate público.

Na primeira metade do século 19, as redações começaram a se profissionalizar. Os pesquisadores Michael Schudson e Leonard Downie Jr., no ensaio A Reconstrução do Jornalismo Americano, publicado na Columbia Journalism Review, em 2009, anotaram que, nos Estados Unidos, somente por volta dos anos 1820 os diários começaram a contratar profissionais regularmente remunerados. Logo adiante, a notícia bem apurada virou mercadoria e, acima disso, um bem público. Foi então que as melhores redações, como a do New

York Times, sentiram a necessidade de separar o relato factual (o noticiário) da opinião (os editoriais). Militância e jornalismo se separaram.

No nosso país, o processo foi mais lento. Apenas no início do século 20 o proprietário de O

Estado de S. Paulo, Julio Mesquita, num movimento pioneiro, retirou seu jornal da órbita do Partido Republicano, ao qual sempre fora ligado, e fez dele um título independente, com diversidade de pontos de vista. O Estado se tornou o diário mais sólido, mais influente e mais próspero do Brasil, como narra o historiador Jorge Caldeira em Júlio Mesquita e Seu Tempo (Editora Mameluco, 2015). O dono do Estado morreu, em 1927, aos 64 anos de idade, como um empresário de sucesso, rico, poderoso, invejado e temido, mais ou menos como William Randolph Hearst nos Estados Unidos, apesar das diferenças éticas e estilísticas que os distinguiam.

Nesse período, na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil, os autores das páginas impressas começaram a fazer o caminho de volta: saíam das redações para entrar na política. O próprio Hearst, que se elegeu deputado, concorreu à prefeitura e ao governo de Nova York na primeira década do século 20, mas fracassou. Em 1919, numa conferência famosa, “A política como vocação”, proferida na Universidade de Munique, o sociólogo alemão Max Weber afirmou que o jornalista era o “demagogo” da modernidade. Weber não empregou a palavra “demagogo” no sentido pejorativo, mas para enfatizar que os expoentes da imprensa, como os oradores que discursavam na ágora na Grécia clássica, dispunham dos meios para “conduzir” o povo pela palavra. Os jornais eram o centro da esfera pública e reinavam absolutos.

Então, o negócio do entretenimento, nascido de uma costela dos diários, entrou na briga. A palavra impressa passou a enfrentar a concorrência da imagem e, logo em seguida, da imagem em movimento. Atores de cinema também tiveram a chance de se projetar como líderes potenciais e alguns se deram muito bem. Ronald Reagan, Arnold Schwarzenegger e Donald Trump (protagonista do reality O Aprendiz) que o digam.

Com o advento das tecnologias digitais, o entretenimento teve um impulso ainda mais vigoroso. As redes sociais catapultaram comediantes à posição de chefes de Estado. As plataformas têm sido elogiadas porque turbinaram o fluxo de mensagens e ampliaram absurdamente as audiências, mas elas também trouxeram reveses. As inovações, atreladas à indústria do divertimento, aposentaram os relatos informativos confiáveis e anabolizaram atrações mais excitantes – e menos confiáveis. Os formatos discursivos do show business contaminaram a linguagem da política, de modo irreversível.

Dentro dessas turbulências, as empresas jornalísticas foram pegas no contrapé, sem saber como reagir. Na virada dos anos 1980 para os anos 1990, o jornalista Rodrigo Mesquita, o diretor da Agência Estado, passou a integrar o Media Lab no MIT e alertou para a letargia das redações. Não foi ouvido.

O modo como os jornais foram atropelados pelas inovações digitais pode dar a impressão de que a derrocada foi, antes de tudo, um descompasso tecnológico, mas a história real não é bem essa. O maior impacto da internet e seus passatempos sobre a circulação das notícias bem apuradas e bem editadas não foi meramente tecnológico, assim como não foi apenas econômico. O maior impacto se deu no plano da linguagem, das formas de representação, nas tramas do discurso. A internet e suas técnicas permitiram que o aliciamento emocional, característico do entretenimento, se impusesse sobre o argumento racional. Isso desnutriu o jornalismo, desnaturou a política e abriu caminho para as multidões que hoje têm prazeres gozosos com a difusão da mentira.

Veio assim uma alteração drástica da vida cultural. Os apelos sensuais do entretenimento tomaram para si latifúndios inteiros da linguagem. O pensamento, por sua vez, só conseguiu resistir, se é que foi capaz de resistir, em franjas exíguas. A imprensa, consequentemente, também encolheu. A crise atual do jornalismo só pode ser compreendida no quadro mais amplo da crise epistêmica – e esta, por sua vez, é inseparável da expansão predatória do entretenimento, que redundou na crise agônica da política democrática.

Ninguém ignora que a disputa do poder sempre jogou com a dissimulação e com recursos cênicos. No nosso tempo, entretanto, não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política, até o ponto de desfigurá-la. A escala mudou a ordem dos fatores e desorganizou o equilíbrio entre eles. O efeito de circo e a dimensão teatral, que antes entravam na fórmula como um meio para amplificar a razão política, foram convertidos no veio dominante, no qual a retórica política se reduziu a um pálido papel de coadjuvante. O marqueteiro roubou o emprego do ideólogo.

Olhemos em volta. Quem é o narrador: o jornalismo ou a indústria da diversão? Quem é o comentador? Quem é o indutor? Quem dá o tom? A resposta é tão fácil quanto ácida. Quem traz as boas-novas ou as más notícias é o entretenimento, que assumiu de vez o posto que antes cabia às manchetes. O entretenimento, com seus hábitos, seus templos, seus cânones e seu fundamentalismo contente, é quem confere a forma social da religião do nosso tempo. Ele modula as narrativas, rege o debate público, que funciona como um reality show, e subjuga as pobres vozes jornalísticas, às quais só resta a condição humilhante de sair por aí mendigando cliques.

O negócio do entretenimento não fiscaliza o poder. Não precisa. Ele é o poder.

Conclusão? Ora, por favor. A conclusão inexiste. Uma sociedade que se nega a conhecer os fatos não é nada além de uma turba que renuncia à textura da política e se rende ao fanatismo. O que vem a seguir não é bem uma nova ordem, mas uma desordem obscura, sem paralelo com nada que já tenhamos visto. Um mundo sem jornalismo será um mundo sem democracia – e, ironia das ironias, será também um mundo sem liberalismo.

Internet

O maior impacto das inovações digitais se deu no plano da linguagem, das formas de representação, nas tramas do discurso.

Ordem dos fatos

Não é mais a política que instrumentaliza o recurso cênico, mas o recurso cênico que se apossa da política

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista. Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo - USP, articulista do jornal  O Estado de S. Paulo e ECA-USP e membro da Academia Paulista de Letras. Publicado em 16.01.25

A arte lulista de iludir

Lula avisou a ministros que pode desistir de disputar a eleição em 2026. É uma artimanha tipicamente lulista: o presidente não pensa em outra coisa que não seja se manter no poder

Na mesma reunião ministerial em que anunciou, sem rodeios, que “2026 já começou”, convertendo seu governo num insolente comitê de campanha, o presidente Lula da Silva também recorreu a uma de suas cartadas típicas, sobretudo em períodos pré-eleitorais: a arte de iludir, com a qual invariavelmente sugere sinais opostos a suas reais intenções para obter dividendos políticos no futuro próximo.

Na parte pública da reunião, Lula tratou de invocar mais uma vez a “defesa da democracia”, atribuindo a seu governo (ou melhor, a si próprio) a missão de liderar a resistência nacional contra a “volta ao neofascismo, ao neonazismo e ao autoritarismo”, segundo suas próprias palavras. Já no momento fechado do encontro, o presidente fez chegar aos ministros a ideia de que seu nome poderá não estar nas urnas em 2026. “Deus no comando”, teria dito, segundo relatos, creditando a incerteza a um conjunto de variáveis, entre elas a saúde principalmente. Ao cogitar a hipótese de desistir, Lula teria mencionado ainda recentes episódios que colocaram sua vida em risco, como o problema técnico na aeronave presidencial e a cirurgia na cabeça após uma queda no banheiro.

Noves fora as inevitáveis incertezas do destino, que impedem qualquer ser humano – mesmo aqueles convictos de seus poderes divinos, como Lula – de ter a mais plena segurança sobre o que fará e onde estará daqui a quase dois anos, não há dúvida de que o presidente não pensa em outra coisa senão continuar governando o Brasil e liderando a esquerda tradicional lulopetista. Nesse ponto não lhe falta convicção: para Lula, não só governar é estar no palanque, como ele se sente o único que efetivamente pode salvar o Brasil do “neofascismo” e do “neonazismo”, que é como ele qualifica o bolsonarismo.

A reação de ministros aliados, espontânea ou calculada, foi de “preocupação”. Providencialmente, integrantes da cúpula do PT difundiram a jornalistas as razões para tanto: hoje, segundo petistas, os principais nomes que podem vir a lhe suceder não teriam condições de representar o partido na corrida eleitoral. Seria o caso dos ministros Fernando Haddad, Camilo Santana e Rui Costa. Essa é a costumeira artimanha de lulistas, possivelmente inspirados no próprio Lula: difunde-se uma dúvida sobre a disposição do Grande Líder; faz-se chegar à militância o nome dos eventuais substitutos; conclui-se que nenhum tem condições de conquistar corações e mentes de eleitores; e, por fim, volta-se ao essencial, isto é, Lula precisa ser o candidato.

A prestidigitação lulista já ocorreu em outros tempos, mas rigorosamente nada o impediu até aqui de disputar sete eleições presidenciais, tornando-se o recordista de candidaturas na história de nossa república. Ensaiou desistir – apenas ensaiou, sublinhe-se – em 1998, quando meses antes já parecia certa a sua derrota para um imbatível Fernando Henrique Cardoso pós-Plano Real, e em 2002, quando impôs ao PT carta branca para ele e José Dirceu atraírem alianças para além dos satélites tradicionais da esquerda. Lula não hesitou em ser o candidato nem mesmo quando estava claro que sua candidatura seria barrada. Foi o caso de 2018, ano em que o lulopetismo quis ter o seu nome na urna mesmo com Lula preso. Coube a Haddad então cumprir o papel de boneco de ventríloquo na eleição.

A “vontade de Deus” a que Lula se referiu na reunião, portanto, parece ter muito mais a ver com seu método de fortalecer o próprio nome e manter-se como o único farol a iluminar o espectro da esquerda tradicional liderada pelo PT. É inegável que até aqui o estratagema deu certo para si mesmo. Resta saber se o demiurgo será bem-sucedido novamente. Há quem veja no recado uma forma de galvanizar apoios entre partidos, mas lideranças do Centrão já alertaram publicamente que, ao contrário, isso pode abrir espaço para defecções numa base já ideologicamente frágil. Pode também ser uma forma de colocar à prova uma providencial fragilidade dos seus substitutos, o que só revela o horizonte rarefeito na esquerda – enquanto na direita já existe uma profusão de nomes dispostos a herdar o espólio de Jair Bolsonaro, à sombra da liderança de Lula poucos emergem para valer. Assim caminha o lulopetismo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 27.01.25

domingo, 26 de janeiro de 2025

O sonegador agradece

Revogação de monitoramento do Pix só beneficia um grupo: o crime organizado

Após forte ruído nas redes sociais, o governo Lula se acovardou e optou por revogar instrução normativa da Receita Federal que ampliava o monitoramento de transações via Pix superiores a R$ 5 mil mensais (para pessoas físicas) e R$ 15 mil (para jurídicas) a fintechs e plataformas de pagamento, como, aliás, já ocorre com os chamados bancos tradicionais.

Com isso, perdeu-se uma oportunidade de atualizar uma regra que já existia antes mesmo da adoção exitosa do Pix, quando transações financeiras eram feitas por meio do hoje descontinuado DOC. “Corre-se o risco de abrir uma fresta em todo o sistema, por exemplo, de controle de lavagem de dinheiro, de fraude”, afirmou Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central, à revista Capital Aberto.

Loyola não é voz isolada. Em publicação recente, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco) também alertou que, com o recuo do governo, se compromete o combate ao crime organizado, uma vez que os dados de fintechs e plataformas de pagamentos, algumas das quais empresas de fachada a serviço de bandidos de alta periculosidade, ficarão de fora da base de dados da Receita.

É fundamental ressaltar que a maioria das fintechs é séria, tem no Pix um importante aliado na inclusão bancária de milhões de brasileiros, cumpre regras e coopera com os órgãos governamentais para que o sistema financeiro seja cada vez mais transparente e seguro.

Contudo, também há fortes indícios de que organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC) utilizavam fintechs que teriam movimentado bilhões de reais de origem suspeita. Esses dublês de “bancos digitais” dariam aos seus clientes delinquentes uma blindagem contra, por exemplo, bloqueios judiciais.

Investigadores e economistas ouvidos pelo Estadão afirmaram, em novembro passado, que a profusão de casos de fraudes envolvendo fintechs demonstra a necessidade de atualização do ambiente regulatório no qual elas operam. A instrução da Receita, infelizmente revogada, era um importante passo nessa direção.

Atente-se ainda para o fato de que o Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e Lavagem de Dinheiro. Ao revogar uma medida que ampliava o escopo de combate à sonegação, o País corre o risco de ter sua seriedade na luta contra o crime manchada internacionalmente, algo extremamente contraproducente porque a transnacionalização das organizações criminosas exige cooperação cada vez maior com parceiros externos.

Incapaz de explicar à população que a instrução era importante no combate à sonegação, e que exatamente por isso apenas sonegadores precisariam se preocupar com seus atos ilícitos, o governo, politicamente fraco, preferiu cancelar uma medida absolutamente correta.

Inovação brasileira que é motivo de orgulho nacional, além de interesse internacional, o Pix bate sucessivos recordes no País ano após ano. Apenas em 2024, o volume de transações foi de mais de R$ 26 trilhões, praticamente 2,5 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) de 2023. Quanto mais abrangentes e transparentes forem as regras de monitoramento do Pix, melhor para todos os brasileiros, com exceção dos criminosos. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.01.25

O que Mauro Cid disse sobre Bolsonaro em seu primeiro depoimento à Polícia Federal

Ex-ajudante de ordens da Presidência narrou aos investigadores no primeiro anexo de sua colaboração premiada que o então presidente ‘trabalhava com duas hipóteses’: encontrar uma fraude nas eleições de 2022 ou convencer as Forças Armadas a aderir a um golpe; teor da delação foi revelado pelo colunista Élio Gaspari, da Folha de S. Paulo, e confirmado pelo Estadão

Michelle e Eduardo Bolsonaro durante evento em Washington, na noite anterior à posse de Donald Trump; ambos foram citados por Cid na primeira delação e não figuram entre os indiciados da PF.

No depoimento do primeiro anexo de sua delação premiada, em agosto de 2023, o tenente-coronel Mauro Cid narrou à Polícia Federal (PF) como aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) teriam divergido sobre a melhor estratégia para ser adotada após a derrota nas eleições de 2022.

O anexo aborda as divisões internas no núcleo duro de apoio ao ex-presidente. Como ajudante de ordens da Presidência, Mauro Cid prestava assistência direta a Bolsonaro e acompanhava o presidente em compromissos oficiais e reuniões. Ele crava no depoimento que o ex-presidente Jair Bolsonaro trabalhava com duas hipóteses. “A primeira seria encontrar uma fraude nas eleições e a outra, por meio do grupo radical, encontrar uma forma de convencer as Forças Armadas a aderir a um Golpe de Estado”, declarou à PF.

O teor do depoimento foi revelado pelo colunista Élio Gaspari, da Folha de S. Paulo, e confirmado pela reportagem. Os citados foram procurados pelo Estadão.

Os advogados Paulo Cunha Bueno, Daniel Tesser e Celso Sanchez Vilardi, que representam o ex-presidente, disseram estar “indignados” com “vazamentos seletivos” da delação, “enquanto lhe é sonegado acesso legal à integralidade da referida colaboração”.

“Investigações ‘semisecretas’ — em que às defesas é dado acesso seletivo de informações, impedindo o contexto total dos elementos de prova —, são incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, que nosso ordenamento busca preservar”, diz a nota.

Segundo Mauro Cid, uma ala “conservadora” defendia que Bolsonaro mandasse para casa os manifestantes bolsonaristas que acampavam próximo aos quartéis do Exército e se consolidasse como um líder de oposição. Era um grupo “de linha bem política”, conforme descrito pelo tenente-coronel. “Diziam que o povo só queria um direcionamento.”

As principais notícias e colunas sobre o cenário político nacional, de segunda a sexta.

Esse grupo seria formado pelos senadores Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e Ciro Nogueira (PP-PI), então ministro da Casa Civil, pelo advogado-geral da época Bruno Bianco e pelo Brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Júnior, então comandante da Aeronáutica.

O segundo grupo seria o dos “moderados”, que segundo Mauro Cid eram “totalmente contra” um golpe armado e temiam que aliados radicais de Bolsonaro levassem o então presidente a assinar uma “doideira”. Essa ala seria formada por Marco Antônio Freire Gomes, ex-comandante do Exército, e por outros generais da ativa que tinham contato com Bolsonaro.

“Apesar de não concordar com o caminho que o Brasil estava indo, com abusos jurídicos, prisões e não concordar com a condução das relações institucionais que ocorriam no país, entendiam que nada poderia ser feito diante do resultado das eleições, que qualquer coisa em outro sentido seria um golpe armado, que representaria um regime militar por mais 20, 30 anos”, afirmou Mauro Cid no depoimento à PF.

Havia ainda um outro grupo “moderado”. Eram aliados que defendiam que Bolsonaro deixasse o Brasil. São mencionados nominalmente o senador Magno Malta (PL-ES), o empresário do agronegócio Paulo Junqueira e o ex-secretário de Assuntos Fundiários Luiz Antonio Nabhan Garcia.Por fim, Mauro Cid apontou o último grupo, o dos “radicais”. O tenente-coronel afirma que havia uma divisão interna. Parte dos radicais queria achar uma fraude nas urnas. A outra parte “era a favor de um braço armado”.

O primeiro grupo - descrito como os “menos radicais” no organograma de Mauro Cid - “tentava encontrar algum elemento concreto de fraude”. Era composto pelo então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto, pelo senador Luis Carlos Heinze (PP-RS), pelo major da reserva do Exército Angelo Martins Denicoli, pelo general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e “por um grupo de pessoas que prestavam assessoramento técnico”.

Por fim, o braço “mais radical” é descrito como um grupo de pessoas “que se encontravam com presidente, esporadicamente, com a intenção de exigir uma atuação mais contundente”.

O tenente-coronel afirma que essas pessoas “romantizavam” o artigo 142 da Constituição Federal - dispositivo que regulamenta a atuação das Forças Armadas - como fundamento para o golpe e acreditavam que, se colocasse a ideia em prática, Bolsonaro “teria apoio do povo e dos CACs (Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores)”. “Tais pessoas conversavam constantemente com o ex-presidente, instigando-o para dar um golpe de Estado”, declarou Mauro Cid à PF.

Fariam parte desse grupo Filipe Garcia Martins, ex-assessor especial da Presidência, os ex-ministros Onyx Lorenzoni (Casa Civil) e Gilson Machado (Turismo), os senadores Jorge Seif (PL-SC) e Magno Malta, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e o general Mário Fernandes, apontado pela PF como autor do plano “Punhal Verde e Amarelo”.

O senador Magno Malta reiterou que nunca incentivou o ex-presidente a dar um golpe de Estado e informou que está à disposição para prestar esclarecimentos à Justiça.

Michelle e Eduardo Bolsonaro eram de grupo pró-golpe mais radical, afirmou Cid em delação premiada

“Minhas interações com Bolsonaro após as eleições eram pautadas em momentos de consolo, orações e leitura da Bíblia. Estou plenamente disposto a cooperar com as autoridades, buscando esclarecer quaisquer dúvidas que possam surgir. Acredito que a menção do meu nome está relacionada ao tempo que passei com o ex-presidente, mas reitero que não há fundamento para preocupações, pois não cometi nenhum crime”, disse Malta.

O senador Jorge Seif disse, em nota, que as declarações de Mauro Cid são “falaciosas, absurdas e mentirosas”.

“Nego veementemente que em quaisquer de meus encontros com o Presidente tenha abordado ou insinuado decretação de intervenção ou outras medidas de exceção”, diz a manifestação.

Filipe Martins é citado no depoimento como o responsável por levar a Bolsonaro um rascunho de decreto golpista para determinar novas eleições e prender os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, e “outras autoridades que de alguma forma se opunham ideologicamente ao ex-presidente”.

Mauro Cid afirma que Bolsonaro “recebeu o documento, leu e alterou as ordens, mantendo apenas a prisão do ministro Alexandre de Moraes e a realização de novas eleições devido a fraude no pleito”.

Michelle e Eduardo Bolsonaro eram de grupo pró-golpe mais radical, afirmou Cid em delação premiada

De acordo com o depoimento, após receber de Filipe Martins a versão com ajustes, Bolsonaro chamou os comandantes das Forças Armadas - Marco Antônio Freire Gomes (Exército), Carlos de Almeida Baptista Junior (Aeronáutica) e Almir Garnier Santos (Marinha) - para uma reunião. Segundo Mauro Cid, o então presidente “queria entender a reação dos comandantes das forças em relação ao seu conteúdo”.

“Nessa reunião com os generais o presidente apresentou apenas os ‘considerandos’ (fundamentos dos atos a serem implementados) sem mostrar as ordens a serem cumpridas (prisão do ministro Alexandre de Moraes e a realização de novas eleições)”, disse Mauro Cid. “O ex-presidente queria pressionar as Forças Armadas para saber o que estavam achando da conjuntura.”

O tenente-coronel afirmou no depoimento que o almirante Almir Garnier era a favor do golpe e disse que a Marinha “estava pronta para agir”, mas que precisariam da adesão do Exército, “pois não tinha capacidade sozinho”. Já comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, era “terminantemente contra qualquer tentativa de golpe de Estado” e “afirmava de forma categórica que não ocorreu qualquer fraude nas eleições presidenciais”. O general Freire Gomes era, segundo Mauro Cid, um “meio-termo”. “Ele não concordava como as coisas estava sendo conduzidas; que no entanto, entendia que não caberia um golpe de Estado, pois entendia que as instituições estavam funcionando; que não foi comprovado fraude nenhuma.”

O acordo de colaboração de Mauro Cid esteve sob ameaça real de rescisão. A Polícia Federal estava insatisfeita por acreditar que ele estava omitindo informações. Pressionado, o tenente-coronel prestou um novo depoimento diretamente ao ministro Alexandre de Moraes, em novembro do ano passado, quando entregou o general Walter Braga Netto, que acabou sendo preso no final de 2024.

Nesse primeiro anexo de sua delação, Mauro Cid afirmou apenas que Braga Netto era o “elo entre os manifestantes e o ex-presidente”. Ao ser ouvido por Moraes, deu novas informações. O ex-ajudante de ordens declarou que Braga Netto entregou dinheiro aos “kids pretos” para financiar o plano de execução do próprio ministro Alexandre de Moraes, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e do vice Geraldo Alckmin, em 2022. Também acusou o general de tentar influenciar sua delação.

Leia a íntegra do primeiro depoimento de Mauro Cid:

O COLABORADOR MAURO CESAR BARBOSA CID, assessorado por seus advogados, manifestou intenção de colaborar, nos termos da lei 12.850/2013, com as investigações desenvolvidas no âmbito os Inquéritos Policiais 2020.0075332 - CGCINT/DIP/PF (Ing. 4781/DF) e 2021.0052061 - CGCINT/DIP/PF (Inq. 4874/DF), que tramitam no Supremo Tribunal Federal, relacionados ao seguintes tópicos: a) ataques virtuais a opositores; b) ataques às instituições (STF, TSE), ao sistema eletrônico de votação e à higidez do processo eleitoral; c) tentativa de Golpe de Estado e de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito; d) ataques às vacinas contra a Covid-19 e as medidas sanitárias na pandemia e; f) uso da estrutura do Estado para obtenção de vantagens, o qual se subdivide em: f.1) uso de suprimentos de fundos (cartões corporativos) para pagamento de despesas pessoais e; f.2) Inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde para falsificação de cartões de vacina; e f.3) Desvio de bens de alto valor patrimonial entregues por autoridades estrangeiras ao ex-Presidente da República, JAIR MESSISAS BOLSONARO, ou agentes públicos a seu serviço, e posterior ocultação com o fim de enriquecimento ilícito; g) outros tópicos que possam surgir no transcorrer da investigação.

A presente oitiva não exaure a coleta de dados relativa aos fatos apurados, em razão da dimensão da investigação referente aos eixos de atuação. O presente ato de colaboração será gravado em mídia audiovisual para garantir a fidelidade das informações prestadas, podendo seu conteúdo ser utilizado nas referidas investigações. Ademais, também será reduzido a termo como forma de facilitar o acesso ao conteúdo pelo juízo e demais atores. Inquiridoa respeito dos fatos investigados no presente ato, o senhor, na presença de seus advogados, reafirma a renuncia ao direito de permanecer em silêncio e o compromisso legal de dizer a verdade?

A Polícia Federal conduz investigação que apura a prática de atos relacionados a uma possível tentativa de execução de um Golpe de Estado e Abolição violenta do Estado Democrático de Direito ocorridos após o resultado do segundo turno das eleições presidenciais de 2022.

Nesse sentido, INDAGADO sobre os elementos que têm conhecimento em relação aos referidos fatos investigados, respondeu QUE depois que acabou o período eleitoral, o então Presidente JAIR BOLSONARO recebia diversas pessoas, sempre no Palácio da Alvorada; QUE as pessoas que visitavam o então Presidente formavam três grupos distintos; QUE tinha um grupo bem conservador, de linha bem política; QUE aconselhavam o Presidente a mandar o povo para casa, e colocar-se como um grande líder da oposição; QUE diziam que o povo só queria um direcionamento; QUE para onde o PRESDENTE mandasse, o povo iria; QUE o grupo era formado pelo Senador FLÁVIO BOLSONARO, o AGU BRUNO BIANCO, CIRO NOGUEIRA (então Ministro da Casa Civil) e o Brigadeiro BATISTA JUNIOR (então Comandante da Aeronáutica); QUE o outro grupo era formado por pessoas moderadas; QUE apesar de não concordar com o caminho que o Brasil estava indo, com abusos jurídicos, prisões e não concordar com a condução das relações institucionais que ocorriam no país, entendiam que nada poderia ser feito diante do resultado das eleições: QUE qualquer coisa em outro sentido seria um golpe armado; QUE representaria um regime militar por mais 20, 30 anos; QUE esse grupo era totalmente contra isso; QUE o grupo se subdividia em dois: QUE um primeiro grupo era composto basicamente por generais da ativa que tinham mais contato com o então Presidente da República JAIR BOLSONARO; QUE eram as pessoa que o então PRESIDENTE mais gostava de ouvir; QUE o grupo era composto pelo COMANDANTE DO EXÉRCITO GENERAL FREIRE GOMES; pelo GENERAL ARRUDA, chefe do DEC -Departamento de Engenharia e Construção; pelo GENERAL TEOFILO, chefe do COTER- Comando de Operações Terrestres; pelo GENERAL PAULO SERGIO, então Ministro da Defesa; QUE esse grupo temia que o grupo radical trouxesse um assessoramento e levasse PRESIDENTE JAIR BOLSOANRO assinar uma “doidera”: QUE o GENERAL FREIRE GOMES estava muito preocupado com essa situação, com que poderia acontecer com esse pessoal que ia para o Palácio da Alvorada; QUE estavam preocupados com o grupo radical que estava tentando convencer o então Presidente a fazer “alguma coisa”, um golpe: QUE havia um outro grupo de moderados que entendia que o ex-Presidente deveria sair do país; QUE o próprio colaborador sugeriu que o ex-presidente deveria sair do país; QUE o grupo era composto pelo PAULO JUNQUEIRA, empresário do agronegócio, que financiou a viagem do presidente para os EUA; por NABAN GARCIA, que ocupou algum cargo na secretaria de agricultura, e por fim o senador MAGNO MALTA que tinha uma posição mais radical e se juntou ao referido grupo entendendo que o presidente deveria deixar o país; QUE o terceiro grupo, denominado pelo colaborador como “radicais”, era dividido em dois grupos; Que o primeiro subgrupo “menos radicais” que queriam achar uma fraude nas urnas; QUE o segundo grupo de “radicais” era a favor de um braço armado. QUE gostariam de alguma forma incentivar um golpe de Estado; QUE queria que ele assinasse o decreto; QUE acreditavam que quando o Presidente desse a ordem, ele teria apoio do povo e dos CACS: QUE “romantizavam” o art. 142 da Constituição Federal como o fundamento para o Golpe de Estado: QUE o primeiro grupo que defendia a identificação de uma possível fraude nas umas era o que o ex-Presidente mais pressionava; QUE JAIR BOLSONARO queria uma atuação mais contundente do GENERAL PAULO SÉRGIO em relação à Comissão de Transparência das eleições montada pelo Ministério da Defesa; QUE JAIR BOLSONARO queria que o documento produzido fosse “duro”: QUE o grupo era composto pelo GENERAL PAZZUELLO, pelo PRESIDENTE DO PL VALDEMAR DA COSTA NETO, pelo MAJOR DENICOLE e por um grupo de pessoas que prestavam assessoramento tecnico: QUE nessa época após o segundo tumo, recebiam muitas informações de fraudes; QUE o presidente repassa as possíveis denúncias para os GENERAIS PAZZUELLO e PAULO SERGIO para que fossem apuradas; QUE o grupo tentava encontrar algum elemento concreto de fraude, mas a maloria era explicada por questões estatísticas: QUE as informações estatísticas foram tratadas pelo MAJOR DENICOLE: QUE O MAJOR DENICOLE era quem geralmente trazia os dados ao ex-presidente; QUE o grupo não identificou nenhuma fraude nas umas; QUE a única coisa substancial que encontraram foi a questão das umas antigas que ensejou a ação do PL; QUE o Senador HEINZ, que também integrava esse grupo, usava um documento do Ministério Publico militar que dizia que como o país estava em GLO, para garantia das eleições, o Senador entendia que as forças armadas poderiam pegar uma uma, sem autorização do TSE ou qualquer instancia judicial, para realização de testes de integridade; QUE o senador encaminhava esse entendimento tanto ao Colaborador, quanto ao ex-presidente JAIR BOLSONARO para que repassassem esse entendimento ao Ministro da Defesa; QUE o ex- presidente não encampou esse entendimento; QUE o ex-Diretor-Geral da PRF SILVINEI VAQUES era politizado; QUE ele comparecia a todos os eventos políticos; QUE ele esteve com o ex-Presidente por algumas ocasiões durante o período pré-eleitoral; QUE não informar o que tratavam; QUE a questão de compra de votos era um preocupação constante do ex-Presidente; que reclamava de maneira genérica; QUE não participava das reuniões entre o ex-Presidente e os Ministros e os Generais; QUE esse grupo tinha ligação com o Argentino; QUE quanto a parte mais radical, não era um grupo organizado, eram pessoas que se encontravam com presidente, esporadicamente, com a intenção de exigir uma atuação mais contundente do então Presidente; QUE uma dessas pessoas era FELIPE MARTINS, ex-assessor internacional do ex-presidente e ligado à área mais ideológica; QUE FELIPE MARTINS vinha acompanhado de um jurista, que não se recorda um nome; QUE o colaborador se recorda que o referido jurista escreveu livros sobre Garantias Constitucionais; QUE os encontros ocorreram em meados de novembro de 2022; QUE em um dos encontros o jurista também foi acompanhado de um padre; QUE foram mais de dois encontros dessas pessoas com o ex-Presidente JAIR BOLSONARO; QUE FELIPE MARTINS juntamente com esses juristas apresentaram um documento ao Presidente JAIR BOLSONARO, no Palácio da Alvorada; QUE o documento tinha várias páginas de “considerandos”, que retratava as interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e no final era um decreto que determinava diversas ordens que prendia todo mundo; QUE determina as prisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, dentre eles ALEXANDRE DE MORAES, GILMAR MENDES e outros; QUE determinava também a prisão do Presidente do Senado RODRIGO PACHECO e de outras autoridades que de alguma forma se opunham ideologicamente ao ex-presidente; QUE decretava novas eleições; QUE não dizia quem iria fazer, mas sim, o que fazer, QUE o ex-presidente recebeu o documento, leu e alterou as ordens, mantendo apenas a prisão do Ministro ALEXANDRE DE MORAES e a realização de novas eleições devido a fraude no pleito; QUE o colaborador teve ciência do documento quando FELIPE MARTINS apresentou ao colaborador o documento impresso e de forma digital para que fossem feitas as correções; QUE FELIPE MARTINS tinha uma versão digital em seu notebook, que levou para a reunião; QUE FELIPE MARTINS não alterou o documento, conforme pedido pelo então PRESIDENTE JAIR BOLSONARO, naquele momento; QUE alguns dias depois FELIPE MARTINS retomou juntamente com o jurista trazendo o documento alterado conforme solicitado pelo então PRESIDENTE JAIR BOLSONARO, no Palácio da Alvorada; QUE o presidente concordou com os termos ajustados e em seguida mandou chamar, no mesmo dia, os Generais, comandantes das forças; QUE participaram o ALMIRANTE GARNIER, GENERAL FREIRE GOMES e o BRIGADEIRO BATISTA JUNIOR; QUE nessa reunião com os Generais o presidente apresentou apenas os “considerandos” (fundamentos dos atos a serem implementados) sem mostrar as ordens a serem cumpridas (prisão do Ministro ALEXANDRE DE MORAES e a realização de novas eleições); QUE na reunião com as Generais, FELIPE MARTINS foi explicando cada item; QUE o colaborador participou da reunião, operando a apresentação no computador; QUE o ex-presidente queria pressionar as Forças Armadas para saber o que estavam achando da conjuntura; QUE queria mostrar a conjuntura do país: QUE o colaborador saiu da sala, não participando do restante da reunião QUE depois o GENERAL FREIRE GOMES relatou ao colaborador o conteúdo do que conversaram; QUE o ex-presidente apresentou o documento aos GENERAIS com intuito de entender a reação dos comandantes das forças em relação ao seu conteúdo; QUE o ALMIRANTE GARNIER, comandante da Marinha, era favorável a um intervenção militar, afirmava que a Marinha estava pronta para agir: QUE aguardava apenas a ordem do ex-presidente JAIR BOLSONARO; QUE no entanto, o ALMIRANTE GARNIER condicionava a ação de intervenção militar à adesão do Exército, pois não tinha capacidade sozinho; QUE o Brigadeiro BATISTA JUNIOR, comandante da aeronáutica, era terminantemente contra qualquer tentativa de golpe de Estado; QUE afirmava de forma categórica que não ocorreu qualquer fraude nas eleições presidenciais; QUE o GENERAL FREIRE GOMES, era um meio-termo dos outros dois Generais; QUE ele não concordava como as coisas estava sendo conduzidas; QUE no entanto, entendia que não caberia um golpe de Estado, pois entendia que as instituições estavam funcionando; QUE não foi comprovado fraude nenhuma; QUE não cabia às Forças Armadas realizar o controle Constitucional; QUE dizia que estavam “romantizando” o art. 142 da CF; QUE dizia que tudo que acontecesse seria um regime autoritário pelos próximos 30 anos, decorrente de um Golpe Militar, QUE o ex-Presidente teve várias reuniões com os Generais; QUE o ex- Presidente JAIR BOLSOANRO não queria que o pessoal saísse das ruas; QUE o ex- Presidente JAIR BOLSOANRO tinha certeza que encontraria uma fraude nas umas eletrónicas e por isso precisava de um clamor popular para reverter a narrativa; QUE o ex- Presidente estava trabalhando com duas hipóteses: a primeira seria encontrar uma fraude nas eleições e a outra, por maio do grupo radical, encontrar uma forma de convencer as Forças Armadas a aderir a um Golpe de Estado; QUE o ex-Presidente não interferia nos manifestantes que estavam nas ruas; QUE o ex-Presidente pediu apenas para que os caminhoneiros não parassem o país; QUE acredita que os militares não adeririam a uma ideia de golpe de Estado; QUE como não teve apoio dos Comandantes do Exército e da Aeronáutica, a proposta de FELIPE MARTINS não foi executada: QUE acredita que o ex- Presidente não assinaria esse documento; QUE as outras pessoas que integravam essa ala mais radical era composta pelo ex-ministro ONIX LORENZONE, pelo atual SENADOR JORGE SEIFF, o ex-ministro GILSON MACHADO, SENADOR MAGNO MALTA, DEPUTADO FEDERAL EDUARDO BOLSONARO, GENERAL MARIO FERNANDES (secretário executivo do General RAMOS); QUE GENERAL MARIO FERNANDES atuava de forma ostensiva, tentando convencer os demais integrantes das forças a executarem um golpe de Estado; QUE compunha também o referido grupo a ex- primeira dama MICHELE BOLSONARO; QUE tais pessoas conversavam constantemente com o ex- Presidente, instigando-o para dar um golpe de Estado; QUE afirmavam que o ex-Presidente tinha o apoio do povo e dos CACs para dar o golpe; QUE não sabe se essas pessoas levavam documentos para o ex-Presidente; QUE não presenciou todos os encontros dessas pessoas radicais com o ex-Presidente; QUE o GENERAL BRAGA NETO conversava constante com o ex-Presidente; QUE ele seria o elo entre os manifestantes e o ex-Presidente; QUE o GENERAL BRAGA NETO atualizava o ex-Presidente sobre as manitestações; QUE não sabe informar se o GENERAL BRAGA NETO tinha contato com AILTON BARROS; INDAGADO sobre pessoas que exerciam influência em relação às pessoas acampadas e que entraram no Palácio do Alvorada, responde QUE no dia 12/12/2022, após a prisão do CACIQUE SERERE, na saída do palácio da Alvorada, as pessoas de BISMARK e PAULO SOUZA, integrantes do canal do YouTube HIPÓCRITAS e OSWALDO EUSTAQUIO, com meo de também serem presos, ligaram para o ex-presidente JARI BOLSONARO; QUE JARI BOLSONARO mandou que autorizasem a entrada de BISMARK e PAULO SOUZA e OSWALDO EUSTAQUIO no Palácio da Alvorada; QUE a intenção era evitar que fossem presos; QUE após a advertência do colaborador de que a permanência de OSWALDO EUSTÁQUIO no Palácio da Alvorada poderia causar problemas, o ex-Presidente determinou que um carro da Presidência levasse OSWALDO EUSTÁQUIO para o local que estava hospedado em Brasilia/DF; QUE os integrantes do HIPÓCRITAS jantaram com o ex-Presidente no Palácio da Alvorada; QUE não se recorda se os referidos jornalistas dormiram no Palácio da Alvorada; QUE os integrantes do HIPÓCRITAS tinham contato direto com o ex-Presidente JAIR BOLSONARO; QUE entendiam que os CACs apoiariam o ex-Presidente em uma tomada de decisão, como um tropa civil em caso de um Golpe; QUE o Deputado Federal EDUARDO BOLSONARO tinha mais contato com os CACs.

Rayssa Motta e Fausto Macedo, os autores, são Jornalistas. Publicado originalmente pelo O Estado de S. Paulo, em 26.01.27

sábado, 25 de janeiro de 2025

'Trump mente sobre o Canal do Panamá. É preciso checar se amigos dele não têm interesses lá'

Trump considera que a América Latina é irrelevante para os Estados Unidos. E também diz que ela deve se comportar de determinada maneira para merecer algo positivo.


Donald Trump assinou dezenas de ordens executivas imediatamente após o início do seu segundo mandato presidencial nos Estados Unidos. (Getty)

Para Juan Gabriel Tokatlian, doutor em relações internacionais pela Universidade Johns Hopkins de Washington, nos Estados Unidos, Donald Trump retorna à Casa Branca com uma lista de assuntos pendentes em suas relações com a América Latina.

"Trump chega frustrado com a América Latina pelo que não conseguiu no seu primeiro mandato", declarou o ex-reitor e atual professor da Universidade Torcuato Di Tella, de Buenos Aires, na Argentina. Ele conversou com a BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, de sua propriedade perto de Medellín, na Colômbia, onde morou por 18 anos.

"Acredito que iremos observar esta mistura de desinteresse e fúria pela América Latina representada nas suas primeiras ações [no governo]", declarou o reconhecido analista e pesquisador argentino.


Juan Tokatlian é doutor em relações internacionais pela Universidade Johns Hopkins, de Washington DC, nos Estados Unidos.(Crédito: Universidad Torcuato Di Tella)

Tokatlian acaba de publicar seu livro Consejos No Solicitados sobre Política Internacional ("Conselhos não solicitados sobre política internacional", em tradução livre), que reúne suas conversas com a jornalista Hinde Pomeraniec.

A obra analisa as relações de Trump com o México, o posicionamento de Washington frente a Nicolás Maduro e o vínculo com a China na sua disputa pela influência na América Latina.

Confira abaixo a entrevista.

BBC News Mundo - Como o sr. analisa esta nova etapa nas relações entre os Estados Unidos e a América Latina?

Juan Gabriel Tokatlian - Se fizermos uma análise histórica dos discursos de posse dos presidentes dos Estados Unidos no último século, o papel da América Latina na mensagem de Trump na segunda-feira [20/1] é incomum.

Trump não mencionou nenhum país ou região, a não ser por dois anúncios vinculados à América Latina: a fronteira sul dos Estados Unidos e o Canal do Panamá.

Ele quis mostrar que estava voltando com força frente à região, mas seu discurso apresentou um paradoxo. Para Trump, os Estados Unidos enfrentam um estado calamitoso, uma espécie de impotência, que ele resolve de forma totalmente prepotente.

Ele afirma que irá recuperar os Estados Unidos, mas parte da mesma debilidade exposta por ele próprio.

BBC News Mundo - Como o sr. acredita que Trump veja a América Latina?

Tokatlian - Tanto na campanha de 2016, que o levou à Presidência, quanto na de 2024, tudo o que se referia à América Latina fazia parte de uma agenda negativa: criminalidade, narcotráfico e migração.

Para Trump, pelo menos no discurso de campanha e depois de ser eleito presidente, a América Latina não tinha nenhum valor positivo. Acredito que irá continuar desta forma.

Mas Martha Cottam, autora do livro Foreign Policy Decision Making ["Tomada de decisões na política externa", em tradução livre], utiliza a imagem da ameaça e da dependência para analisar a política externa americana.

A imagem da ameaça é a de um país ou região que coloca em risco a segurança nacional e a própria sobrevivência dos Estados Unidos. Antes, era a União Soviética. Agora, é a China.

A imagem da dependência é a do país ou região que, para os Estados Unidos, não entende que suas ações possam prejudicar este país. É aquele que não percebe os danos que pode provocar, por exemplo, com o narcotráfico ou a migração.


O governo americano cancelou as reuniões com solicitantes de asilo no país assim que Donald Trump assumiu a presidência. (EPA)

BBC News Mundo - Então Trump vê a América Latina como "dependente", mais do que como ameaça...

Tokatlian - Sim, para Trump, a América Latina é a imagem do dependente. E, acima de tudo, ele a infantiliza.

Trump considera que a região é irrelevante para os Estados Unidos. E também diz que ela deve se comportar de determinada maneira para merecer algo positivo.

A imagem da América Latina como dependente atravessa diversos governos além de Trump. Mas, com ele, ela se fortalece e inclui também um componente de revanche.

BBC News Mundo - Por que de revanche?

Tokatlian - O livro do seu último secretário de Defesa, Mark Esper [A Sacred Oath: Memoirs of a Secretary of Defense During Extraordinary Times – "Juramento sagrado: memórias de um secretário de Defesa durante tempos extraordinários", em tradução livre], conta que Trump queria aumentar o bloqueio total a Cuba, iniciar uma política de ataque em laboratórios de fentanil no México e derrubar Maduro, na Venezuela.

Trump continua tentando, em parte, impor esta agenda. Mas ele chega frustrado com a América Latina, pelo que não conseguiu fazer no seu primeiro mandato.

Além disso, seu nível de desinteresse pela região naquele momento foi total. Ele foi o primeiro presidente, em mais de 60 anos, a não fazer nenhuma visita oficial a um país latino-americano. Ele só compareceu à cúpula do G20 na Argentina, em 2018.

Acredito que iremos ver esta mistura de desinteresse e fúria pela América Latina representada nas suas primeiras ações no governo.


Para Tokatlian, o retorno de Trump ao poder traz um componente de revanche contra a América Latina. (Getty)

BBC News Mundo - O sr. escreveu que, com o regresso de Trump, observamos a volta da Doutrina Monroe, "a América para os americanos". A disputa pela América Latina agora é com a China, no lugar da Europa?

Tokatlian - Trump retoma a Doutrina Monroe, mas com um detalhe.

Quando os Estados Unidos instrumentalizaram esta ideia, seu objetivo era evitar militarmente a expansão da Europa rumo às suas ex-colônias. O desafio era militar.

Agora, no caso da influência da China, não existe nenhuma expansão militar chinesa. Na verdade, o que observamos é um participante que ingressa e se projeta na América Latina, com recursos, investimentos, assistência e presença.

Por isso, se Trump quiser aplicar à China uma nova versão da Doutrina Monroe, como não há uma ameaça militar direta de Pequim, ele enfrenta um "dilema de recursos e compromissos".

Mas os americanos exigem compromissos sem oferecer recursos. Eles querem que os países da América Latina os sigam sem que eles coloquem um dólar, o que é um equívoco absoluto e pode causar muitos danos.

À medida que aumentar a disparidade entre poucos recursos e mais compromissos, Washington irá aumentar as retaliações, recorrendo mais à ameaça da força e jogando no limite da chantagem.


Existe forte rejeição no Panamá à posição de Donald Trump sobre o canal. (Getty)

BBC News Mundo - A reivindicação do Canal do Panamá por Trump vai nesta direção?

Tokatlian - Sim, mas o que Trump diz sobre o papel da China no Canal do Panamá é falso.

Trump afirma que um dos terminais no Pacífico e outro no Atlântico são controlados por uma empresa chinesa. Mas os dois outros grandes terminais são operados por capital ocidental. Ou seja, o canal não está sob o controle da China.

Além disso, os Estados Unidos nunca tiveram problemas com o Panamá a este respeito. Mais de 40% das suas exportações para a Ásia cruzam o canal, que sempre funcionou e operou sem nenhuma dificuldade.

É preciso recordar que o Panamá mantinha relações diplomáticas com Taiwan até o ano de 2017, quando decidiu rompê-las para estabelecer relações com a República Popular da China. Esta foi uma mudança muito importante do ponto de vista de Washington.

Isso significa que o canal foi dominado pelos chineses? Não. Isso quer dizer que Washington deveria ter feito muito mais para recuperar sua influência e projeção no Panamá.

BBC News Mundo - Então por que o sr. acredita que Trump coloca este tema na mesa de discussões?

Tokatlian - Acho que, aqui, é preciso verificar se existem interesses particulares de amigos de Trump no Panamá, porque a China não afetou a neutralidade do canal, nem fez nada para colocar em xeque o eventual aumento de investimentos americanos.

Por isso, presumo que, aqui, entra o mundo dos negócios. Se compreendermos este quadro, ficará mais claro que, por trás de uma suposta rubrica geopolítica estratégica, o que existe é uma disputa por parcelas de negócios.

Por isso digo para não olharmos apenas para Washington e Nova York ao analisar os Estados Unidos.

É preciso também observar a Califórnia, onde estão as empresas de tecnologia que, nesta última corrida eleitoral, fizeram um movimento massivo e decisivo a favor de Trump, e para a Flórida, porque este Estado ocupa um lugar inusitado neste novo gabinete.


Os executivos das principais empresas de tecnologia (Mark Zuckerberg, Lauren Sanchez, Jeff Bezos, Sundar Pichai e Elon Musk) presenciaram a posse de Donald Trump para seu segundo mandato. (Getty)

BBC News Mundo - No seu último livro, o sr. descreve a América Latina não como irrelevante para os Estados Unidos, mas como uma região que perdeu gravitação. O que significa isso e qual é a resposta da América Latina a esta posição de Trump?

Tokatlian - A América Latina é uma região com menos gravitação, porque seu peso global é menor do que era 50 anos atrás.

Mas esta perda de gravitação não significa que ela seja irrelevante, pois é uma região rica em minérios, hidrocarbonetos e alimentos.

Existem muitos atributos que, se funcionassem em associação e não unilateralmente, nos dariam pelo menos alguma capacidade de negociação. Mas não existe uma posição regional frente aos Estados Unidos, já que vivemos a maior fragmentação e fratura política da América Latina desde a década de 1960.

A América Latina está totalmente fragmentada. Nossos mecanismos de associação não funcionam. O Mercosul vive encalhado, a Aliança do Pacífico deixou de existir e a Celac não chega a consensos.

Por isso, presumo que, ante os Estados Unidos, observaremos mais políticas bilaterais, ou seja, Argentina com os Estados Unidos, Brasil com os Estados Unidos, Chile com os Estados Unidos – e não regionais, o que favorece Trump.

BBC News Mundo - O sr. costuma dizer que, na América Latina, existe um país que mantém posições políticas diferentes do restante da região: o México. Como o sr. vê as relações deste país com Donald Trump?

Tokatlian - As relações dos Estados Unidos com o México foram, são e serão fundamentais.

O México é o parceiro comercial mais importante dos Estados Unidos. Sua relação bilateral, em termos de intercâmbio comercial, é de US$ 807 bilhões (cerca de R$ 4,8 trilhões) por ano. Os Estados Unidos não mantêm este tipo de intercâmbio com os outros países da América Latina.

Mas, além deste tema, existe o fentanil, o narcotráfico, a deportação dos migrantes mexicanos e da América Central e a declaração dos cartéis como sendo organizações terroristas.

Neste sentido, acredito que o México tentará proteger a relação, pois tem muito a perder. Não é nenhuma novidade.

Insisto que é uma continuidade. É preciso ver se o México muda de posição, não os Estados Unidos.


O combate ao narcotráfico é um dos principais pontos nas relações entre os Estados Unidos e o México. Claudia Sheinbaum, Presidente do México. (Getty Images)

BBC News Mundo - Em relação ao México, Trump assinou uma ordem executiva que designa os cartéis e as gangues criminosas como organizações terroristas. O que isso significa?

Tokatlian - Isso significa que haverá uma pressão maior sobre o México, porque El Salvador já está fazendo sua parte de forma brutal. Mas esta mensagem também se dirige à presença dessas gangues no território americano.

Trump identificou organizações mexicanas, salvadorenhas e uma venezuelana, mas não acrescentou os grupos armados colombianos, que poderiam ter sido incluídos na denominação geral de narcoguerrilhas. Por isso, inicialmente, o peso específico é em relação ao México.


O presidente da Argentina, Javier Milei, compareceu à posse de Donald Trump. (Getty)

BBC News Mundo - Isso dará a Trump o poder de avançar sobre outros países?

Tokatlian - Imagino que o que Trump irá fazer será perseguir de forma mais dura estas organizações dentro dos Estados Unidos.

Mas não o vejo tomando uma ação de ataque com drones ou destruindo laboratórios no México. Se ele fizesse isso, acredito que estaria cruzando uma fronteira inédita na América Latina e, particularmente, nas relações com o México.

BBC News Mundo - Como o sr. analisa as relações entre Donald Trump e o presidente argentino Javier Milei? Milei se aproxima de Trump por afinidade pessoal ou porque atende aos interesses da Argentina?

Tokatlian - Milei é um presidente que se interessa mais pelas relações pessoais do que pelas relações entre os Estados.

Trump também funciona assim. Ele é um homem de acordos e não de regras. Por isso, existe proximidade entre os dois.

Existe aqui um núcleo de coincidências próprio de dois estilos que, apesar das nuances, são muito semelhantes. E eles também estão unidos por convicções ideológicas similares e pela conveniência.

Esta conveniência é a intenção de fazer com que o projeto econômico interno da Argentina funcione. Ou seja, que o Fundo Monetário Internacional despeje mais recursos na Argentina e que o país passe a ser atraente para os capitais internacionais, especificamente norte-americanos.

Nesta relação, existe uma mistura de convicção e conveniência pessoal para preservação de um projeto político.

Tokatlian acredita que Donald Trump irá testar diversos instrumentos para lidar com Nicolás Maduro e a questão venezuelana. (Getty)

BBC News Mundo - Por fim, Trump insinuou, na noite da sua posse, que os Estados Unidos podem deixar de comprar petróleo da Venezuela porque "não precisa dele". Como o sr. vê as relações com Nicolás Maduro?

Tokatlian - A Venezuela é o quarto maior exportador de petróleo para os Estados Unidos. Dizer que seu petróleo é irrelevante é relativo.

De qualquer forma, não acredito que se trate apenas do petróleo. Eu diria que ele irá tentar diversos instrumentos.

Trump também precisará definir o que fazer com Edmundo González [candidato de oposição à presidência da Venezuela, que se declarou vencedor das últimas eleições].

O que os Estados Unidos fizeram, durante o primeiro mandato de Trump, com Juan Guaidó [autoproclamado presidente venezuelano em 2019] foi um fracasso. Se quiserem fazer novamente o mesmo, o risco de um novo fracasso é alto.

Por isso, eu diria que devemos dar um passo de cada vez, observando gesto após gesto e entendendo que os Estados Unidos com Trump sempre irão combinar incentivos e sanções, não apenas praticar coerção.

Ayelén Oliva, o autor desta matéria, é Jornalista. Publicado originalmente pela BBC News Mundo, em 25.01.25

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Com posse de Trump, aumenta o caos em que ninguém ouve mais ninguém

Nem sabemos como explicar a aposta caótica no niilismo que define era de contradição e impotência diante da realidade

Donald Trump em nova Foto Oficial

[RESUMO] Autor reflete sobre a complexidade do cenário atual, marcada por polarização, superficialidade e impotência analítica diante da realidade, critica a fragmentação social, a perda de diálogo democrático e a transformação de antigas bandeiras em discursos contraditórios e sugere que a era digital amplifica histerias e abismos cognitivos.

Advertência: este texto não pretende explicar nada. Seu ponto de partida é a certeza de que ninguém entende o que está acontecendo no mundo hoje, que nossas ferramentas analíticas —sobretudo as autodenominadas críticas— perderam o poder de encontrar na (ir)realidade contemporânea qualquer pista para sua explicação ou, pior, interpretação. Nada faz sentido.

É preciso reconhecer essa impotência (contra a moda dos adjetivos potente, robusto, resiliente e companhia).

No lugar da maioria silenciosa de Baudrillard, o planeta ganhou uma maioria tagarela-rede-social, com inteligência emoticon e —spoiler do que vem abaixo— vontade (sem causa profunda nenhuma, tudo é superficial, tudo vibe sem motivação grave) de que o mundo acabe em crise climática apoteótica/apocalíptica cafona/patrocinada como festa de reality show ou em pirueta suicida de administrador de fundo de investimento em comemoração de privatização na Bolsa de Valores de Orlando.

Claro que não existe Bolsa em Orlando, mas não existir hoje é grife niilista indignação-ostentação, bem ao gosto do mercado. Deixe toda a esperança, quem ler o resto, as palavras a seguir. Fim da advertência.

Aperte os cintos, a partir da próxima segunda (20) temos novo governo nos EUA e o piloto é o Donald. A maioria do povo daquele país assim decidiu, mesmo conhecendo bem em quem votou. Não quero menosprezar a vitória, mas preciso lembrar, em antiquado respeito aos fatos: não foi uma maioria avassaladora. Trump teve 49,9% dos votos, e Kamala Harris, 48,4%.

Fazendo as contas: só 1,5 ponto percentual de diferença. 77.303.573 votaram em quem ganhou; 75.019.257, na candidata democrata. Esses números retratam uma nação rachada entre dois projetos de vida (educação, saúde etc. —até crença ou não em crise climática), que se mostram cada vez mais incompatíveis. Sendo assim, ainda é possível falar em nação?

Cada um dos lados do espectro político vê o outro como pura insanidade, sem possibilidade de diálogo ou de contenção de radicalidades. No primeiro governo Trump, houve até dois impeachments seguidos, que não mudaram coisa alguma. E agora com o Congresso todo dominado pelo Partido Republicano?

O que as 75 milhões de pessoas que votaram em Kamala Harris vão fazer quando, por exemplo (e espero ainda que isso não aconteça), a obrigatoriedade de várias vacinas para crianças for extinta? Um ponto percentual e meio de votos a mais —e o pacto democrático de aceitar o resultado de eleições— pode obrigar tanta gente assim a viver quatro anos sob um governo que ameaça só tomar decisões contra seus princípios mais caros (e contra a ciência etc.)? Ao levantar essas perguntas ingênuas, estou aqui contribuindo para a descrença em ou corrosão de valores democráticos?

Sei que os EUA são também a terra de Thoreau e sua desobediência civil, mas tal multidão desobediente significaria o quê?

Eu também sei: nada disso é exatamente novidade. Clausewitz já denunciava esse tipo de efeitos especiais do processo democrático como "continuação da guerra civil por outros meios".

No clássico "A Retórica da Intransigência", Albert Hirschman resumiu a receita para evitar impasses beligerantes: para haver legitimidade das decisões em uma democracia, as pessoas que participam das deliberações "não devem ter opiniões formadas de maneira plena ou definitiva no início". "Espera-se que se dediquem a um debate significativo, o que quer dizer que devem estar dispostas a modificar as opiniões que tinham anteriormente à luz dos argumentos dos demais participantes, e também como resultado das informações tornadas acessíveis no curso do debate."

Parece simples, mas as dificuldades para que as coisas aconteçam cordialmente são bem conhecidas desde as assembleias atenienses.

Hoje, ficaram frenéticas: todo o mundo chega no debate com opiniões imbecis tão sólidas e imutáveis quanto aquele monolito de "2001: uma Odisseia no Espaço" (olha a IA ali, gente!). Perda de tempo absolutamente desgastante. Certamente as redes sociais têm culpa no cartório, mas imagino que outros fatores estão em jogo, provavelmente alguma radiação alienígena fritando os cérebros humanos com o bug do milênio.

Nunca vi tanta gente esbravejando certezas idiotas ou tantos grupúsculos (coitado do Guattari) usando conspirações para desqualificar de antemão qualquer "nova informação". Passamos a viver saltando entre abismos cognitivos dissonantes.

No Brasil, somos medalha de ouro nessa nova categoria das olimpíadas de ideias. Eu me acreditava o mais esforçado defensor do relativismo, mas tudo tem um limite: descobri que não quero nem conversar com o pessoal formado em medicina (que em tese deveria entender o que é método científico) que receita cloroquina como cura milagrosa para qualquer doença. Se esse tratamento virar regra aprovada por um CRM da vida, quero me mudar para um lugar onde essa regra não seja aplicável.


Repito: chegamos a um ponto em que conversas não adiantam nada, ninguém vai convencer ninguém, não há chance de meio-termo conciliador. Como perguntaria Lênin: o que fazer? Secessão no país: quem quer vacinar crianças vai para o Nordeste (onde, segundo Manuel Bandeira, há brisa) e quem não quer se muda para o edifício residencial mais alto do mundo em Balneário Camboriú (ou vai para a Flórida ou para a Hungria)?

O filósofo especulativo francês Tristan Garcia, um dos pensadores mais interessantes da atualidade (autor inclusive de uma história, em andamento, do sofrimento), também escreve ficção, inclusive algo como ficção científica. No seu romance "7", uma das sete partes (a sexta) fala de um mundo transformado em hemisférios, bolhas hermeticamente fechadas para evitar a entrada de informações das bolhas exteriores.

Começou com a bolha cristã, depois a islâmica e aí disparou: aqui só entra neoanimistas, ali é o hemisfério do "comunismo em um só país", mais adiante o que legaliza o incesto, outro que reconstrói o Japão feudal da Paz Tokugawa e ainda uma cidade grega antiga fortemente militarizada.

Sabemos que há gosto para tudo e as pessoas gostam de viver entre "iguais". Claro que há rachas e a formação de sub-hemisférios com gente descontente. Sectarismo é coisa nossa, comoventemente humana. A fragmentação vai ficando tão intensa e acelerada que a tendência é só restar lobos solitários ou bolhas do eu e meus avatares sozinhos.

Esse separatismo radical seria a única solução para nossos impasses atuais? Pena: sempre simpatizei com gente diferente, que pensa diferente, que me faz pensar diferente do "costume". Mas ficou difícil: a tolerância e a aposta na boa-fé de quem pensa diferente não estão "funcionando" no meio da histeria atual.

Fico até desconfiado de que quem propõe —como cura para tudo— a recusa de qualquer vacina faz isso não por crença, mas por pura implicância ou diversão, estilo pagode só para contrariar. Gente de niilismo absoluto, mas envergonhado. Cosplayers fajutos do "mais feio dos homens" ("devasto e torno intransitável todo caminho em que piso") de Nietzsche, que querem se divertir com teatrinhos do absurdo, já que não encontram nada melhor para passar estes tempos com tantos indícios de serem terminais.

Por isso, optaram não por um novo governo nos EUA, mas por um reality show (com gabinete VIP de pulseirinha) de furiosa bizarrice transmitido direto da Casa Branca. Gente que quer bet, cada vez mais tudo bet, aposta pesada no caos, com distribuição farta de dopamina para espantar o tédio de propostas tidas como sensatas de melhorar o mundo.

É como naquela canção do Roberto: para essa bet-gente (não mais bat-gente), a sensatez só sabe proclamar que "tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda", aumentando a chatice geral com cada vez mais limites e promessas de lockdowns ou finais do mundo por catástrofes terríveis.

A ideia básica da alt-right é estourar a boca do balão, sem medo de ser feliz, como se não houvesse amanhã, já que amanhã sem farra do boi (com muita picanha), próteses de silicone, fake news e queimação de combustíveis fósseis (com muita motociata) não tem graça nenhuma.

Sim, há também a pregação anarcocapitalista. Sua pré-história pré-alt-right está bem contada no livro "Radicals for Capitalism", de Brian Doherty, que parte da experiência pessoal do autor em grupos —que incluem há décadas muitos think tanks patrocinados por bilionários— desse movimento, que não é nada homogêneo e hoje se espalha mundo afora, do Vale do Silício à Casa Rosada.

São muitas leituras diferentes de Ayn Rand ou da antiga crítica que Hayek fez do Estado do bem-estar como caminho para a servidão, contra liberdades individuais. Na base de seu multifacetado projeto político, está a crença no poder do mercado (e a tecnologia produzida por um mercado totalmente desregulado) para resolver todos os problemas da humanidade.

Hoje, vemos a ideia de liberdade ser aplicada de forma seletiva e circunstancial por quem se diz fã de Hayek. Claro que imigrantes na fronteira entre Texas e México não têm a liberdade de decidir para onde querem ir (obviamente, há imigrantes com mais liberdade, como Elon Musk, agora com passe livre para entrar em Mar-a-Lago, ou o pai e a mãe de Usha Chilukuri Vance, mulher do J.D., agora segunda dama dos EUA). Outras liberdades "individuais", como de ser trans ou fazer aborto, são cada vez mais atacadas ou cerceadas.

Ao mesmo tempo, gente "influencer" em ambientes Cpac (Conferência de Ação Política Conservadora) e no Partido Republicano dos EUA (sem falar em gurus "eurasianos" da Rússia), como o economista Oren Cass (ou Trump inimigo de teto de gastos), já aponta para o fim do neoliberalismo, sem receio de apostar (bet!) em protecionismo para fortalecer a indústria norte-americana ou mesmo em privilégios para seu operariado do Cinturão da Ferrugem.

Quem poderia cuidar disso se não for um Estado "great again"? Afinal, mesmo o Vale do Silício tem consciência de que, sem o Estado, não teríamos computador, internet ou inteligência artificial (delicado lembrar esses "detalhes" no momento atual do Brasil, onde aparentemente o único projeto político aprovado pelo mercado —e adjacências— para o futuro do país é uma reforma fiscal —e ai do governo que não fizer a reforma que o mercado quer).

Essa situação ganhou contornos mais dramáticos com a pandemia. A China pôs o Ocidente contra a parede: decretou rapidinho um lockdown de proporções épicas, cercando Wuhan e o país todo logo depois. O mundo inteiro não teve opção, precisou ir atrás, mas em total desvantagem: com internet controlada etc., a China tinha facilidade para fazer o que fez.

Tentar a mesma coisa em democracias "ocidentais" se revelou tarefa mais que temerária, com questionamentos de todos os lados, sobretudo de novos movimentos de direita já bem populares, com a pregação de defesa de liberdades individuais estilo Hayek, incluindo campanhas antivacina. Agora já era: de certa forma, nunca mais saímos de nossos lockdowns mambembes.

Muito barulho em volta. A nova direita não cria nenhuma ideia realmente nova, mas inventa uma maneira de reciclar, de forma mais maluca a cada dia, tudo aquilo que um dia foi bandeira da esquerda (também encostada na parede de suas crenças do passado).

Quem fazia a crítica do capitalismo selvagem da indústria farmacêutica era a esquerda, agora isso virou coisa de gente "patriota" que defende tradição e família. De repente, ao mesmo tempo, até o desconstrucionismo virou arma da direita, que continua tratando tudo como se fosse "narrativa". Sem falar na psicodelia "conservadora". Que o diga o xamã do Q-Anon, invasor "viking" do Capitólio. Quem sabe se, com perdão presidencial, ele não passe a comandar rituais animistas nos jardins da Casa Branca?

Tudo confuso, tudo embaralhado, tudo duplo pensar 1984, tudo com sinais trocados. Tudo parecido com as estratégias das vanguardas da virada do século 19 para o 20 para "épater la bourgeoisie" com múltiplos tratamentos de choque. Só que agora a caretice é que parece estar no comando, ridicularizando a maluquice beleza, fazendo paródias de suas conquistas modernas.

Roteiro para os próximos anos: o Heliogábalo de Artaud reencenado sem parar na vida real, sem objetivo nenhum? Não precisa nem de crueldade ou a crueldade é bem mais sofisticada, como quando Trump tem que parar um comício e fica 40 minutos com aquela dancinha de filme de terror, repetida depois por Elon Musk em Mar-a-Lago.

Dançando o quê? YMCA, ex-hino gay! É "mashup" juntando elementos de procedências antes disparatadas do imaginário contemporâneo, tudo ganhando novos sentidos ou sentido nenhum.

A mesma coisa aconteceu com as coreografias e marchas TikTok inventadas para dançar o hino nacional brasileiro naqueles acampamentos nas portas de quartéis militares. Como cantava David Bowie citando o acionismo vienense: "It's all deranged". Ou: degringolou/abilolou geral.

Ronaldo Lemos diagnosticou tudo isso, aqui mesmo na Ilustríssima, como a Grande Ruptura. Cito suas palavras: "Seu objetivo final não é transmitir informação, mas modular experiências imediatas, especialmente estados emocionais; é muito mais experiência do que conteúdo. Para isso, seus artefatos são instrumentalizados mais para produzir alegorias e mesmo manipulação emocional do que para comunicar qualquer coisa".

Não é algo que acontece só na arte ou em guerras culturais. É a doença infantil (ainda lembrando Lênin) do conservadorismo doidão que derrubou o mundo.

Em que buraco abestalhado nos metemos! Como adverti acima, este meu texto-chacrinha não explica nada, quer apenas confundir ainda mais ou é atestado reclamão da minha perplexidade. Eu que não gostava de reclamar de nada, cá estou. Tenho que me acostumar: este é o (meu) novo normal.

Hermano Vianna, o autor deste ensaio, é Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com / Publicado na Folha de S. Paulo - Ilustrada, em 19.01.25

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Emendas (Parlamentares) movimentam R$ 150 bi em 5 anos com protagonismo do Congresso e baixa transparência

Verba representa mais de quatro vezes a quantia do período anterior e drena orçamento federal

O plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília - Pedro Ladeira - 17.mai.23/Folhapress

A explosão de verbas de emendas parlamentares a partir de 2020 movimentou mais de R$ 148,9 bilhões em cinco anos. O aumento drenou recursos dos ministérios e garantiu protagonismo a deputados e senadores.

A cifra representa mais de quatro vezes o valor desembolsado em indicações parlamentares no ciclo anterior, de 2015 a 2019, de R$ 32,8 bilhões.

Do valor total pago nos últimos cinco anos, cerca de R$ 74 bilhões são das chamadas emendas individuais, enquanto R$ 29,5 bilhões foram direcionados pelas bancadas estaduais, e R$ 9 bilhões partiram das comissões temáticas da Câmara e do Senado.

Ainda foram distribuídos mais de R$ 36,5 bilhões de emendas de relator, modalidade que se tornou um dos símbolos da distribuição de verbas apadrinhadas pelo Congresso sob baixa transparência. Em 2022, o STF (Supremo Tribunal Federal) declarou esse modelo inconstitucional.

O aumento do controle do Orçamento pelo Congresso tornou órgãos públicos dependentes das indicações parlamentares para despesas de rotina. O Ministério dos Esportes, por exemplo, teve mais de 74% dos seus recursos discricionários (de execução não obrigatória) em 2024 definidos por emendas, de acordo com levantamento feito pela Folha.

A cifra desembolsada desde 2020 ainda é o dobro dos R$ 70 bilhões aplicados por órgãos federais, no mesmo período, em ações ligadas a ciência e tecnologia, cultura, esportes e saneamento.

O boom de emendas resultou na remodelação de órgãos federais, como a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) e o Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas).

Antes dedicados aos projetos de irrigação e de redução de desigualdades, ambos se voltaram à distribuição das emendas por meio de doações de maquinários e obras de pavimentação.

Emendas executadas pelos dois órgãos são alvos de apurações sobre possíveis irregularidades. Em dezembro, a PF realizou uma operação dentro de um inquérito sobre um suposto desvio de emendas direcionadas ao Dnocs.

O avanço do Legislativo sobre o Orçamento ocorreu a partir de uma série de mudanças na legislação feitas a partir de 2015.

Desde então, o Congresso tornou obrigatória a execução das emendas individuais e das bancadas dos estados, criou a emenda Pix e garantiu fatias cada vez maiores de recursos.

Entenda as emendas parlamentares

As mudanças se escancararam a partir de 2020, quando o Orçamento federal chegou a prever R$ 46,2 bilhões em emendas, mais que o triplo dos R$ 13,7 bilhões disponíveis no ano anterior.

Com o avanço inédito, elas se tornaram a principal ferramenta de poder de deputados e senadores em suas bases eleitorais e continuaram a ter importância como moeda de troca em negociações entre Congresso e Executivo.

Para garantir o apoio de parlamentares, o presidente Lula (PT) manteve sob domínio do centrão pastas que servem como canais de escoamento das emendas, como a Codevasf.

Durante a campanha eleitoral de 2022, Lula o petista se referiu à distribuição de verba com baixa transparência de "o maior esquema de corrupção da atualidade", "orçamento secreto" e "bolsolão". Aliados da sua gestão, porém, ocupam posições de destaque em órgãos que mantiveram o escoamento de bilhões de reais, sem apontar os verdadeiros padrinhos da verba.

A distribuição das verbas ganhou como novo elemento, em 2024, uma série decisões do STF travando por meses a execução das emendas, sob argumento de que não havia transparência na partilha.

Relator das ações no Supremo, o ministro Flávio Dino também ordenou abertura de auditorias da CGU (Controladoria-Geral da União) sobre repasses para ONGs e para os municípios mais beneficiados pelos parlamentares.

O atrito arrefeceu após a aprovação de uma lei e a edição de uma portaria que atenderiam às decisões do STF.

Dino, porém, voltou a segurar a destinação de parte das emendas em dezembro. Ele ainda determinou a abertura de uma investigação da PF sobre uma suposta manobra de líderes da Câmara para remanejar, sem transparência, cerca de R$ 4 bilhões das chamadas emendas de comissão.

Para integrantes do governo e do Congresso, as decisões do Supremo sinalizam que as incertezas sobre o tema devem se repetir neste ano.

A destinação das emendas também está na mira de investigações sobre supostas irregularidades que envolvem políticos de diferentes posições.

Integrante da cúpula do governo Lula, o ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil-MA), foi indiciado pela Polícia Federal sob a suspeita de desvio de verba indicada para obras na cidade governada pela sua família. Ele nega e diz que os investigadores criaram uma "narrativa".

Em 2023, o ministro do STF Gilmar Mendes mandou paralisar e anulou provas de uma investigação sobre supostas irregularidades na compra de kits de robótica com verbas de emendas, caso que envolve pessoas ligadas ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O deputado rechaça as suspeitas.

Lira mantém forte influência sobre a partilha das verbas de comissão. Como a Folha mostrou, parte desse dinheiro era direcionada conforme orientações dadas aos colegiados por uma assessora de confiança do presidente da Câmara.

Em nota, a Secretaria de Relações Institucionais, pasta comandada pelo ministro Alexandre Padilha (PT) e que faz a interlocução com o Congresso, disse que cabe ao Executivo a execução da Lei Orçamentária, enquanto o Congresso "detém a competência para incluir emendas".

O ministério ainda afirmou que a lei complementar 210, sancionada em novembro passado, limita o crescimento das emendas pelas regras do novo arcabouço fiscal e estabelece outros critérios, como a "exigência de aplicação a projetos de interesse nacional ou regional, no caso das emendas de comissão".

Explosão de emendas movimenta quase R$ 150 bi em 5 anos

Valor pago, em R$ bilhões

Ministério da Saúde

78,680

Emenda Pix*

20,740

Ministério do Desenvolvimento Regional

11,780

Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional

7,650

Ministério da Educação

6,090

Ministério da Cidadania

3,730

Ministério da Justiça e Segurança Pública

2,730

Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome

2,440

Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento

2,410

Ministério da Defesa

2,380

Ministério da Infraestrutura

2,120

Ministério da Agricultura e Pecuária

2,030

Ministério do Turismo

1,490

Ministério dos Transportes

0,850

Ministério das Cidades

0,700

Ministério da Economia

0,470

Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

0,470

Ministério do Esporte

0,440

Ministério do Trabalho e Emprego

0,200

Ministério do Meio Ambiente

0,190

Ministério da Cultura

0,190

Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania

0,180

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações

0,170

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação

0,170

Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações

0,100

Ministério das Comunicações

0,100

Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar

0,090

Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima

0,080

Ministério das Mulheres

0,060

Ministério de Portos e Aeroportos

0,040

Ministério da Igualdade Racial

0,030

Presidência da República

0,030

Ministério das Relações Exteriores

0,020

Ministério da Pesca e Aquicultura

0,020

Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços

0,020

Ministério de Minas e Energia

0,010

Ministério do Trabalho e Previdência

0,010

Encargos Financeiros da União

0,008

Ministério dos Povos Indígenas

0,006

Ministério da Fazenda

0,006

Controladoria-Geral da União

0,005

Operações Oficiais de Crédito

0,003

Ministério do Desenvolvimento Agrário

0,001

Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos

0,001

Ministério Público da União**

0,000

Justiça Eleitoral**

0,000

Ministério da Previdência Social**

0,000

Total: R$ 148,96 bilhões

*Modalidade de emenda individual em que o recurso é enviado diretamente ao cofre do estado ou município

**Ministério Público da União: R$ 0,0003 bilhões; Justiça Eleitoral: R$ 0,0003 bilhões; Ministério da Previdência Social: R$ 0,00003 bilhões

Fonte: Siga Brasil/Senado Federal, com dados extraídos em 9 de janeiro

Mateus Vargas, o autor, é Repórter da Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 13.01.25