quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

O que deseja Mark Zuckerberg

Ele está oferecendo a Trump suas plataformas para distrair o público americano

O dono da Meta, Mark Zuckerberg — Foto: ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP/ 31-01-2024

Faz uma semana que o principal acionista da Meta, Mark Zuckerberg, anunciou ao mundo um cavalo de pau na direção da companhia. Cai o uso de empresas de checagem de fatos, entra um sistema em que a comunidade avalia o que é confiável ou não. A moderação diminuirá, e o espaço para debates sobre política aumentará. Nesse barata-voa geral, quem leu a cobertura da imprensa brasileira possivelmente não compreendeu alguns pontos essenciais. O primeiro, e mais importante, é que estas mudanças valem em sua maioria para os Estados Unidos. Os contratos de checagem, aqui no Brasil, na América Latina, na Europa e no além-mar geral seguem de pé. Este não é um detalhe. Na verdade, para entender o que se passa na cabeça de Zuckerberg, essa é uma das peças essenciais.

As plataformas digitais estão perdendo a briga da regulação. Pode parecer o contrário, mas não é verdade. Sim, estas são companhias grandes, ricas como jamais companhias o foram na História do capitalismo. São poderosas. Mas, aos poucos, o que os Estados nacionais estão descobrindo é que, quando querem regular, regulam. Isso ficou claro quando a Europa impôs suas novas regras. A Apple está tendo de se virar para permitir que usuários possam comprar apps em seus iPhones fora da loja da empresa. Na Austrália, decidiu-se que menores de 16 anos não podem ter contas nas redes sociais. Decidiu-se, também, que o ônus dessa garantia é das plataformas. E elas não têm o que fazer. Precisarão cobrar documentação para abrir as contas ou desenvolver alguma tecnologia que permita fazer o filtro. Ponto final. Elon Musk bateu de frente com o Supremo Tribunal Federal no Brasil, forçou o quanto pôde — e aí cedeu em tudo que o STF queria. A alternativa era não funcionar no país, um luxo ao qual o X não pode se dar.

Este é, em essência, o problema de Zuckerberg. Não só dele, mas de todas as plataformas digitais. O lento consenso da necessidade de regulação está sendo alcançado. Não está claro ainda qual o melhor tipo de regulação, e o debate está aberto sobre que regulação é eficaz para combater que tipo de problema. Os debates são muitos. O que não é mais discutido é se governos conseguem regular. Sim, conseguem. Basta querer que o fazem. E isso está claro por uma única razão: todos os governos estão ganhando as brigas que compram. Essa é a razão de Zuck ter anunciado mudanças imensas, mas, no caso das de maior impacto, limitadas aos EUA. Ele não tem como bater de frente com a União Europeia. Ou mesmo com o Brasil. Perderia.

Este, portanto, é o jogo de Mark Zuckerberg: ele está propondo uma barganha para Donald Trump.

Ora, veja: o debate público americano foi dominado, na última semana, pela ideia de conquista do Canal do Panamá, da Groenlândia e do Canadá. Nenhuma das propostas é séria. Ou sequer plausível. Os EUA, com todo o seu poder militar, não foram capazes de controlar o Afeganistão ou o Iraque. Não foram capazes de conquistar o Vietnã, onde o exército adversário era uma guerrilha. Imagine o Canadá ou um país da União Europeia. Mesmo que uma guerra de conquista do pequeno Panamá fosse possível, o governo Trump precisaria de aprovação do Congresso, onde quase metade de deputados e senadores são da oposição. Se um pequeno número de republicanos votar contra em só uma das Casas legislativas, o que é esperado, as Forças Armadas não poderiam agir.

Isso mesmo. Não poderiam agir sequer sob ordens do presidente. Donald Trump sabe disso. Só que parte essencial de seu método é a criação permanente de ruído. O ruído serve a este novo governo americano. Ele suga a atenção do debate público enquanto decisões que levarão ao desmonte do Estado serão tomadas. Decisões, aliás, muito mais complexas e também burocráticas. Portanto chatas de acompanhar. Trump precisa de ruído constante.

É para isso que serve a desinformação. Ela é parte eficaz da estratégia de Trump não tanto porque engane as pessoas, mas mais porque as distrai. Ele gera tantos debates absurdos simultaneamente, a maioria sem qualquer consequência, que aquilo que de fato é importante se perde. A arte de Trump é a do ilusionista que constantemente desvia o foco de seu público dos movimentos relevantes.

Pois Zuckerberg está oferecendo ao novo presidente suas plataformas para distrair à vontade o público americano. Em troca, pede que o peso do Estado americano seja usado para enfrentar Europa, Canadá, Austrália, e, sim, o Brasil. O governo dos EUA tem melhores condições de pressionar para evitar a regulação desses negócios americanos.

É a esperança de Zuck.

Pedro Doria, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 14.01.25

A guerra

Já ingressamos em uma era em que o Ocidente deverá recorrer ao uso da força na defesa de seus valores de liberdade e igualdade


Em qualquer guerra, as crianças são as maiores vítimas

Se os filósofos sempre prezaram a racionalidade, chegando a formular a ideia de que o homem, por definição, seria um animal racional, a história da humanidade, porém, fez um contraponto: o da irracionalidade, se não o da maldade, da relação entre os homens e, mais especificamente, entre Estados. Intenções malignas, voltadas única e exclusivamente para destruição do outro, são apenas uma amostra disso. A violência, perseguida como um fim em si mesma, e não como um meio, continua povoando a História, apesar de tentativas de estabelecer a concórdia e o diálogo como vetores das relações intraestatais.

A cena histórica é frequentemente irracional. A relação entre Estados, enquanto unidades políticas, é regida por aquilo que filósofos como Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau e Friedrich Hegel consideravam como estado de natureza. Ou seja, ela seria regida por desejos de dominação e subjugação do outro. Os motivos podem ser variados, como prestígio, glória, ganhos econômicos e apropriação de territórios. Por sua vez, as relações internas aos Estados, individualmente considerados, nas experiências democráticas e constitucionais, vieram a se definir pelo império da lei, pelo livre jogo das instituições, pelas liberdades e pela economia de mercado.

Por um curto período, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), pareceu estabelecer-se a ideia de que uma instituição supranacional poderia preencher a função da lei e de racionalidade nas relações internacionais. Mal que bem, conseguiu preencher algumas dessas funções enquanto as potências hegemônicas, EUA e União Soviética, foram capazes de firmar formas de convivência, principalmente de equilíbrio nuclear, com a ressalva de que esse último país tivesse reconhecida a sua dominação sobre os países da Europa Oriental. Se se insurgissem, a invasão militar comunista era a regra, como aconteceu na Hungria em 1956, na Checoslováquia em 1968 e na Polônia em 1981.

Com a queda do Muro de Berlim e o desmoronamento da União Soviética, parecia enfim que o mundo da livre economia de mercado, através do primado do comércio internacional, iria reduzir as tensões entre os Estados. A guerra cessaria de ser um meio de resolver o combate pelos interesses econômicos. Voltar-se-ia para uma ideia elaborada pelo pensador francês Benjamin Constant. Ocorre, todavia, que a guerra tem outras razões, dentre as quais a dominação de outros Estados, a ocupação pura e simples de seu território, quando não a intenção física de aniquilação do adversário, tido por inimigo absoluto.

A Rússia invade a Ucrânia ao arrepio de qualquer lei internacional, por mais precária que seja a consideração de lei no sentido próprio, pela ausência de um poder coercitivo que a implemente e garanta. Interesse econômico propriamente dito não existia, haja vista as dificuldades que esse país enfrenta em seu cenário interno. Levou adiante o seu projeto tzarista e comunista de uma grande nação russa, portadora de uma ideia exclusiva e civilizatória, que deveria se impor, pela violência, aos povos eslavos e bálticos. Não contava com a resistência da Ucrânia, cujo povo e liderança reagiram com bravura e determinação. Contudo, em assim fazendo, a Rússia rompeu com o equilíbrio europeu vigente, fundado na inviolabilidade das fronteiras.

O Irã teocrático, graças ao apoio do ex-presidente Barack Obama e de seu acordo nuclear, teve recursos e mãos livres para estender os seus tentáculos sobre todo o Oriente Médio. Iraque, Síria, Líbano, por intermédio do Hezbollah, e Iêmen tornaram-se seus braços armados, instrumentos de sua dominação colonial. Leis internacionais não têm, para ele, nenhum valor salvo instrumental para justificar seus objetivos geopolíticos, centrados na eliminação do Estado de Israel. Paradoxalmente, tornou-se um membro proeminente da ONU, supostamente defensor dos “direitos humanos”, certamente segundo a moda xiita. Por si só, esse fato mostra a baixeza política e moral dessa organização internacional, afastada de seus ideais kantianos de fundação.

O Hamas, talvez atualmente a forma mais pura do terror islâmico, vive no culto da morte, na disseminação do ódio, visando, também, à destruição do Estado de Israel. Usa do assassinato, do estupro, da tortura e da captura de reféns. Em vez de administrar o seu território, criando um Estado de bem-estar social, submete os palestinos à sua total dominação, utilizando-os como escudos humanos. E o mais surpreendente, com o apoio da ONU e de seu secretário-geral, António Guterres, vindo a ser um instrumento do terror islâmico e do Irã. Em sua boca, direitos humanos são palavras vazias.

É forçoso reconhecer que o mundo está entrando em uma condição de guerra, sendo necessário repensar esse processo em curso para enfrentá-lo, sem que daí se derive necessariamente uma terceira guerra mundial. Já ingressamos em uma era em que o Ocidente, particularmente a Europa, deverá recorrer ao uso da força na defesa de seus valores de liberdade e igualdade. Se não o fizer, por falta de vontade, sucumbirá.

Denis Lerrer Rosenfield, o oautor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S.  Paulo, em 13.01.25

Um criminoso na Casa Branca

Trump será o primeiro condenado a presidir os EUA, num caso que ilustra como os demagogos abusam da vontade do povo expressa nas urnas para violar a vontade do povo expressa na lei


Trump confronta Juiz em audiência (G1/O Globo)

Na última sexta-feira, a poucos dias da posse de Donald Trump, um juiz de Nova York, Juan Merchan, manteve uma condenação criminal do júri ao presidente eleito dos EUA, tornando Trump o primeiro condenado a ocupar a Casa Branca.

Contudo, foi uma sentença estranha em tempos estranhos, pois Trump foi “incondicionalmente” dispensado de qualquer pena, já que será em breve o presidente dos EUA. Eis aí o dilema que populistas como Trump representam para o Estado Democrático de Direito: a lei, expressão da vontade popular, deveria valer para todos, mas esses líderes autoritários invocam a vontade popular expressa nas urnas para se tornarem inimputáveis.

Há um ano, Trump respondia a quatro processos criminais. Em maio foi condenado por unanimidade por 12 jurados em Nova York por 34 acusações de falsificação de registros contábeis para disfarçar pagamentos durante as eleições de 2016 a uma atriz pornô para que mantivesse silêncio sobre um alegado relacionamento sexual. As condenações deveriam acarretar desde multas até liberdade condicional – e, no limite, quatro anos de prisão. Um levantamento do jornal New York Times revelou que, de 30 condenações por falsificação de registros em Nova York na última década, nenhum outro réu recebeu uma dispensa incondicional.

Esse não foi o único passe livre da Justiça conferido a Trump. O republicano foi indiciado na Flórida por dispor ilegalmente de documentos confidenciais e no Distrito de Columbia pelas suas tentativas de subverter os resultados das eleições de 2020. Se tivesse perdido as eleições em novembro, teria sido julgado por ambas as acusações e, se condenado, também poderia ir para a prisão. Mas as acusações foram dispensadas em razão de uma regra do Departamento de Justiça de que um presidente em exercício não pode ser processado. De resto, numa decisão que deve ter feito os Pais Fundadores dos EUA se revirarem no túmulo, a Suprema Corte determinou que ex-presidentes da República não podem ser investigados e julgados criminalmente por seus atos no exercício do cargo.

Tudo isso obviamente é inconciliável com a noção basilar do Estado de Direito segundo a qual ninguém está acima da lei. A incompatibilidade ficou evidente nos esforços do juiz Merchan por resolver a quadratura do círculo.

Trump insiste que não fez nada de errado e em seu perfil nas redes sociais trombeteou que a sentença “prova que não há um caso”. Mas não foi o que disse a Justiça. Seus advogados tentaram bloquear a sentença nas cortes de apelação e na própria Suprema Corte, alegando que um presidente eleito gozava da mesma imunidade de um presidente em exercício, mas o pedido foi rejeitado em todas essas instâncias.

Explicitamente nas falas de Trump e implicitamente nos recursos estava a ideia de que ele fora absolvido pelo “veredicto do povo” dado nas eleições de novembro. Mas as urnas não podem apagar o legítimo veredicto do povo (sem aspas) dado pelo júri. Merchan não poderia se furtar a esse veredicto sem rasgar a toga, mas reconheceu ser impraticável um presidente exercer suas funções por trás das grades.

Trump, portanto, não será penalizado, mas ainda assim é um criminoso condenado. A sentença tenta preservar as aparências de que há alguma justiça, mas demonstrou que ela efetivamente não é igual para todos.

Como todo populista à direita, Trump se vangloria de ser o paladino da lei e da ordem. Mas, no que promete ser mais um teste de estresse do Estado Democrático de Direito de seu país, ele já anunciou que pretende empregar seus poderes presidenciais para perdoar os condenados pelo infame assalto ao Capitólio no 6 de Janeiro, passando a mensagem de que a violência política é aceitável se praticada a favor de quem está no poder.

“Sem precedentes” é uma expressão que se tornou corriqueira ao longo da carreira política de Donald Trump. Um ex-presidente condenado por crime foi sem precedentes, e a posse de um presidente condenado por crime será sem precedentes. Agora, a condenação sem pena ilustra mais uma vez a tensão sem precedentes entre o Estado Democrático e o Estado de Direito provocada por um presidente que, contra todos os anseios dos fundadores da República americana, quer governar como um rei.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.01.25

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Os venezuelanos saem às ruas. Está na consciência do soldado não atirar

Protestar contra Maduro é perigoso, mas seria ingênuo pensar que ele deixará o poder sem luta cidadã

Mulheres manifestam-se na Venezuela, em setembro de 2024. (Ronald Pena R (EFE)

A incerteza geral sobre se Edmundo González Urrutia, presidente democraticamente eleito em 28 de julho, conseguirá regressar à Venezuela e tomar posse marcou os últimos meses. Apesar dos esforços da sua equipa para criar condições que o permitam, o que inclui uma árdua diplomacia e uma intensa viagem de Ano Novo que o levou de Buenos Aires a Washington, para garantir o apoio de figuras tão politicamente diferentes como Javier Milei e Joe Biden, poucos acreditam que ele conseguirá. alcançá-lo. Em Caracas e em Washington, observadores experientes por anos de experiência acreditam que o uso da repressão por parte de Nicolás Maduro e dos seus tenentes alcançará o seu objectivo: paralisar os venezuelanos, frustrando o apelo de María Corina Machado para regressar às ruas a partir de 9 de Janeiro. De acordo com essa lógica, Maduro tomará posse, implementando um novo status quo pós-fraude e dando um passo decisivo para a normalização da tirania. Seria, sem dúvida, um tremendo golpe nas aspirações de liberdade e democracia expressas por 67% dos eleitores venezuelanos, para não mencionar o sonho de muitos dos oito milhões de migrantes de regressar ao país.

Essa é uma maneira de ver as coisas. Outra, mais optimista mas não menos realista, é que o 10 de Janeiro é o marco histórico que despoja para sempre o regime chavista, despindo-o das vestes justas, da superioridade moral e das belas mentiras que prometeu nos seus primórdios remotos, há um quarto. do século. Aqui vale a pena lembrar que Hugo Chávez chegou ao poder através das urnas oferecendo uma revolução pacífica e democrática. Nessa perspectiva, o dia 10 de Janeiro poderá não acabar com a tirania de Maduro, mas será, na verdade, o fim da revolução bolivariana. Não importa como você olhe para isso, não será um dia qualquer.

Ao fazer esta distinção, é essencial esclarecer que a revolução chavista está em declínio há pelo menos uma década e que o seu fim só foi adiado pela força com o trágico custo de levar um país inteiro à ruína.

A fraude eleitoral de Maduro foi o último elo naquele outono . Isolado da cena internacional, e sancionado pelos Estados Unidos, o que o impedirá de superar a crise económica crónica, o seu regime transformou o país num Estado falido apoiado pelas baionetas dos militares e que opera através de uma criminalidade descarada. Basta olhar para a onda de sequestros e desaparecimentos forçados esta semana, que inclui um familiar do presidente eleito, um activista pela liberdade de imprensa e um antigo candidato presidencial.

Perante esta realidade esmagadora, a questão é como a sociedade deve reagir. Pessimistas e céticos recomendam cautela. Isto é: reconhecer a assimetria entre o poder de fogo do regime e uma população que não tem outras armas senão a indignação e a vontade de mudança. Isto implicaria manter a denúncia da fraude eleitoral e retirar-se sem provocar o Governo nas ruas; resistir enquanto espera por um novo cenário mais favorável à mudança. É certamente possível que em algum momento as Forças Armadas abandonem Maduro. Mas dada a acção repressiva do Ministro do Interior, Diosdado Cabello, e a reengenharia constitucional anunciada pelo presidente da Assembleia Nacional, Jorge Rodríguez, a única coisa certa neste cenário é um controlo mais apertado da nomenklatura chavista sobre a sociedade.

Edmundo González Urrutia e María Corina Machado optaram por desafiar Maduro galvanizando o descontentamento e apelando à comunidade internacional para que tome medidas mais decisivas sobre a situação. Aos olhos do mundo e dos venezuelanos, Machado, González e uma miríade de líderes políticos e comunitários fizeram tudo o que podiam, apesar do elevado risco para eles próprios e para as suas famílias. Seja qual for o resultado, eles terão tentado honrar a sua promessa de ir até ao fim e poucos podem culpá-los.

Confrontados com esta realidade e rodeados por uma atmosfera de terror, como deverão os venezuelanos responder? Há muito se diz que a saída do regime chavista só ocorrerá por uma fratura interna, ou seja, quando os homens armados lhe virarem as costas. Este acontecimento pode ocorrer de duas formas: um golpe de Estado contra Maduro ou uma recusa em reprimir os manifestantes para evitar um banho de sangue que custará muitas vidas. Não há sinais de que esta fractura tenha ocorrido, mas está na consciência de cada líder de tropa e de cada soldado não disparar contra os seus compatriotas.

É o momento mais sombrio e perigoso que os venezuelanos viveram desde a queda da atroz ditadura de Marcos Pérez Jiménez, há mais de meio século. A história venezuelana é marcada por episódios violentos e sangrentos, como captou eloquentemente o ensaísta Jesús Sanoja Hernández em sua saga Entre Golpes e Revoluções . O apelo de María Corina Machado ao protesto pacífico é uma tentativa de desencadear uma crise que ponha fim ao regime. Na ausência de instituições públicas que os protejam e com uma sociedade civil sob vigilância, sair às ruas acarreta um enorme perigo para todos aqueles que participam no protesto. Seria ingenuidade negá-lo. Mas seria igualmente ingénuo acreditar que o regime chavista deixará o poder sem a luta dos cidadãos. Assim, tal como os venezuelanos optaram por votar em condições adversas em 28 de julho e venceram, deveriam agora apoiar o esforço para que o vencedor assumisse a presidência.

Nas próximas horas saber-se-á se a chamada tem pernas curtas ou longas. Se não houver repressão massiva e a mobilização dos cidadãos for sustentada por algum tempo, é provável que provoque uma negociação para a saída de Maduro. Se este objetivo não for alcançado, o Governo tentará tirar Machado do caminho e a possibilidade de mudança ficará sem cabeça até novo aviso, no limbo.

Mas esse final ainda não foi escrito. O destino da Venezuela é agora uma moeda no ar. O que está em jogo são dois futuros radicalmente opostos: um de terror totalitário, em que o poder continuará a ser sequestrado por uma liderança criminosa e pela sua elite corrupta, e outro em que há pelo menos a liberdade de empreender um debate plural que promova a tarefa muito difícil de reconstruir a democracia e de levantar uma sociedade prostrada. Perante ambas as possibilidades, serão as pessoas que se levantarem e os pequenos grupos da sociedade civil que ainda existem, que farão a diferença.

Boris Muñoz, o autor deste artigo, é um cronista e editor venezuelano. É curador do IDEAS da plataforma BOOM e colunista do EL PAÍS. Foi fundador e Diretor de Opinião do  The New York Times en Español. Publicado originalmente pelo EL PAÍS, em 09.01.25

Oposição denuncia detenção e posterior liberação de María Corina Machado às vésperas da posse de Maduro

A líder da oposição venezuelana María Corina Machado foi "detida violentamente" nesta quinta-feira (9/1) e minutos depois liberada, segundo denunciou o seu partido.

María Corina Machado compareceu às manifestações na véspera da posse de Maduro, depois de permanecer meses na clandestinidade (Getty Images)

Machado apareceu em um protesto contra a posse de Nicolás Maduro, marcada para esta sexta-feira (10/1), após meses escondida na clandestinidade. Ela não era vista em público desde o final de agosto, em meio a um período em que se intensificaram as prisões de cidadãos comuns e líderes da oposição.

"O que eles farão amanhã marca o fim do regime", disse Machado diante de uma multidão de apoiadores em Caracas. "A partir de hoje, estamos em uma nova fase."

Pouco depois de terminar seu discurso, seu partido, Vente Venezuela, informou na rede social X que a líder havia sido "detida violentamente" pelas forças de segurança do Estado.

"María Corina (@MariaCorinaYA) foi detida violentamente ao sair do comício em Chacao. Esperamos confirmar sua situação em minutos. As tropas do regime atiraram nas motocicletas que a transportavam", afirma a postagem.

O portal de notícias venezuelano Economía Cocuyo informou que agentes do governo "dispararam contra as motocicletas em que viajava a líder da oposição".

"De acordo com informações divulgadas por sua gestora de campanha, Magalli Meda, a dirigente foi detida por um contingente de drones, motocicletas e agentes que a detiveram e ao condutor de sua motocicleta", acrescentou o portal.

Momentos depois, sua liberação foi anunciada.

"María Corina Machado (@MariaCorinaYA) foi interceptada e derrubada da moto que a transportava. No evento foram detonadas armas de fogo. Ela foi levada à força. Durante o período de seu sequestro, foi forçada a gravar vários vídeos e logo foi liberada", informou o Comando con Venezuela, que faz parte da coalizão opositora.

À BBC News Brasil, a organização Human Rights Watch confirmou que ela estaria em liberdade.

O ministro da Informação do governo da Venezuela, Freddy Ñáñez, chamou o episódio de "distração midiática" e compartilhou um vídeo em que Machado aparece dizendo que está bem.

Ela é acusada de "traição à pátria" e estava sob ameaça de ser presa.

Em entrevista recente à BBC, poucos dias antes de ser detida, pediu que Maduro não permanecesse no poder pela força.

"Ele sabe que não tem como permanecer no poder, exceto pelo uso da violência, o que é insustentável", defendeu ela, em entrevista concedida por teleconferência.

Chamado ao protesto

Um dia antes da posse de Maduro, Machado apelou a opositores que saíssem às ruas para protestar.

O governo Maduro respondeu com uma extensa operação de segurança que incluiu a instalação de postos de controle e com a convocação de manifestações favoráveis ao chavismo nos mesmos locais programados pela oposição.

Esta reivindica a vitória do candidato Edmundo González nas eleições realizadas em 28 de julho afirmando que ele teve 70% dos votos — o grupo divulgou um grande número de atas de votação.

No entanto, o Conselho Nacional Eleitoral, próximo do partido no poder, declarou Maduro vencedor sem publicar as atas conforme exigido por atores internacionais.

Os Estados Unidos e a maioria dos governos da região questionaram a vitória de Maduro, e alguns até reconhecem González como presidente. O candidato da oposição deixou a Venezuela em setembro devido a ameaças de prisão, exilando-se na Espanha.

O Brasil não reconheceu a vitória de Maduro e tem pedido nos últimos meses a publicação das atas.

Após anos de alinhamento entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Maduro, o brasileiro passou a criticar o regime venezuelano principalmente após as eleições de 2024 no país vizinho, cuja transparência foi contestada por Brasília.

Para a posse de Maduro nessa sexta-feira, está prevista a presença da embaixadora do Brasil em Caracas, Glivânia de Oliveira. Lula não deve comparecer.

Simpatizantes do chavismo também saíram às ruas nesta quinta-feira, 09/01, (Getty Images)

Maduro assumirá um terceiro mandato em cerimônia de pompa no Palácio Legislativo Federal, sede do Parlamento unicameral venezuelano, dominado pelo chavismo.

Nas cidades de Maracaibo e Maracay, os protestos da oposição foram rapidamente dispersados ​​pela polícia e militares, enquanto bombas de gás lacrimogéneo foram disparadas no centro de Valência, informou a agência de notícias Reuters.

Apoiadores da oposição também se reuniram em San Cristóbal, perto da fronteira com a Colômbia.

Maduro conta com o apoio do alto comando militar, da inteligência militar e dos órgãos policiais.

Após o anúncio da vitória de Maduro há cinco meses, eclodiram manifestações nas quais cerca de 2.000 pessoas foram presas, segundo o governo.

Os planos de regresso de González

González prometeu voltar à Venezuela para assumir o mandato de presidente, apoiado por um grupo de ex-presidentes de outros países, embora não tenha explicado como pretende fazê-lo.

"Devo assumir o papel de comandante-em-chefe", disse González Urrutia num vídeo no qual instou os militares a "romperem" com a atual liderança militar e a serem uma "garantia de soberania e respeito pela vontade popular".

O procurador-geral do país, Tarek William Saab, e o presidente da Assembleia Nacional, Jorge Rodríguez, afirmaram que, se González, regressasse ao país seria preso.

As autoridades venezuelanas chegaram a oferecer mesmo uma recompensa de US$ 100 mil pela captura do candidato da oposição.

No momento, González está numa viagem que o levou à Argentina e na segunda-feira a Washington, onde se encontrou com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.

Como parte da pressão contra ele, na última terça-feira (7/1) o opositor denunciou o "sequestro" de seu genro, Rafael Tudares, em meio a uma série de prisões ocorridas nos últimos dias — entre as quais do ativista de direitos humanos Carlos Correa e o líder político Enrique Márquez.

As prisões também ocorreram no interior do país. No Estado de Bolívar, no sul do país, na fronteira com o Brasil, agentes do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin) detiveram pelo menos quatro opositores desde dezembro, incluindo o vereador Jeremy Santamaría.

Por sua vez, no Estado andino de Trujillo, outras cinco pessoas foram presas na segunda-feira (6/1), informou a imprensa local.

Até agora, as autoridades venezuelanas não confirmaram estas detenções.

Publicado originalmente por BBC News, em 09.01.25

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Maduro rouba eleição, e Brasil vai à posse

O governo brasileiro decidiu enviar representante à posse do ditador venezuelano, estágio final de uma crise contratada pelo compromisso ideológico do lulopetismo com o chavismo


Lula e Maduro no Planalto

O Governo do presidente Lula da Silva enviará uma representante à nova posse do ditador venezuelano Nicolás Maduro, marcada para 10 de janeiro. Será a embaixadora do Brasil na Venezuela, Glivânia Maria de Oliveira. Os exegetas do Palácio do Planalto se apressaram em tentar edulcorar a decisão, destacando que o presidente ficará no Brasil e não enviará nenhum ministro a Caracas, e que a presença da embaixadora não significa que o governo brasileiro reconheceu o resultado da eleição fraudada com mão de ferro pela ditadura chavista. Mais um pouco e dirão que o envio da representante brasileira é uma sanção diplomática para marcar posição.

Como tudo o que diz respeito à imoral relação de Lula da Silva com Maduro e sua ditadura, dá-se aos fatos e aos gestos nomes distintos do que realmente são. Sejamos claros, contudo: só a presença de uma representante do Brasil, independentemente de seu escalão, é uma forma explícita de chancela, aceitação e conivência institucional por parte do governo brasileiro. É o reconhecimento da legitimidade da posse e, por efeito, do resultado da eleição que garantiu o novo mandato a Maduro de maneira reconhecidamente fraudulenta. Mas, na falta de coragem de admiti-lo de maneira oficial, inventa-se um reconhecimento oficioso.

No fim das contas, dá no mesmo: o envio da embaixadora à posse é o estágio final de uma crise contratada há meses, quando o governo Lula resolveu equilibrar entre suas obrigações constitucionais de defesa da democracia e os compromissos ideológicos – e sabe-se lá o que mais – do lulopetismo com o chavismo. Embora o Palácio do Planalto, sob o silêncio cúmplice do Itamaraty, hesite em reconhecer oficialmente o resultado, o fato é que o governo brasileiro jamais admitiu sequer duvidar abertamente da lisura da eleição e do poder de Maduro, apesar de todas as evidências e dos alertas em contrário.

Quando o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um simulacro da Justiça Eleitoral que se submete às ordens do Palácio de Miraflores, declarou a vitória de Maduro, sabia-se que o ditador não sobreviveria politicamente se respeitasse liberdades individuais e a soberania da vontade popular. Foi porque os chavistas sabiam disso que, do início ao fim, o processo eleitoral foi conspurcado. A oposição não só jamais teve chance real de derrotá-lo, como foi perseguida sistematicamente, incluindo a cassação sumária de candidaturas que, segundo pesquisas independentes, poderiam vencer Maduro, prisões políticas de oposicionistas, intimidação de adversários e violência do Estado contra quem ousou protestar em público contra o regime.

Antes do pleito, o ditador fez ameaças, prevendo uma “guerra civil” caso não fosse eleito e prometendo que o país testemunharia um “banho de sangue” – uma ignóbil incitação à violência política. Depois, autoproclamado vitorioso mesmo que o CNE tenha resistido a fornecer as atas de votação à oposição e aos escassos observadores internacionais presentes na Venezuela, ele continuou a promover arbitrariedades. Dezenas de manifestantes foram mortos e cerca de 2 mil foram detidos nos meses seguintes. Há relatos de que as milícias paramilitares conhecidas como “Coletivos”, a Gestapo chavista, intimidaram famílias e jornalistas. O oposicionista Edmundo González Urrutia, que reivindica a vitória eleitoral, é caçado pelas instituições de Maduro, que ofereceram uma recompensa de US$ 100 mil por informações que levem à sua prisão.

Tudo isso sob o silêncio obsequioso do governo lulopetista ou sob declarações que beiraram o escárnio – como aquela em que Lula declarou que a Venezuela realiza mais eleições que o Brasil, e por isso é um país democrático. Ou quando o chanceler de facto Celso Amorim, cobrado a fazer o mesmo que diversos países latino-americanos que haviam emitido notas veementes de repúdio contra Maduro, afirmou, em tom jocoso: “Sou do tempo da bossa nova – a gente nunca sobe o tom”. Nunca, claro, desde que se trate de tiranos companheiros. Depois da eleição, o regime chavista passou a criticar abertamente Lula e o Itamaraty, chegando a afirmar que o presidente brasileiro estaria a serviço da CIA, o serviço secreto americano. Nem o Brasil reagiu nem, como se reafirma agora, quer distância do chavismo. O lulopetismo é irremediável.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 07 de janeiro de 2025

Por uma Venezuela livre

Talvez a pressão internacional force a mudança, que deverá ser pacífica e negociada, como foi o caso dos países orientais sequestrados pela URSS. Ou talvez ainda exista um soldado venezuelano que se reconhece no hino nacional e decide homenagear, gloriosamente, o “povo valente que o jugo derrubou”. 

A líder da oposição venezuelana, María Corina Machado. (Crédito: Miguel Gutierrez - EFE)

Você não pode viver com um pouco de luz na testa

                                                                              onde os tiranos governam. - José Marti, líder da Independência de Cuba

A liberdade no nosso continente tem uma data histórica na Venezuela. Se em 10 de janeiro Nicolás Maduro tomar posse da presidência , usurpando o mandato que o povo deu nas urnas em 28 de julho ao candidato da oposição Edmundo González (e à sua parceira política, a heróica María Corina Machado) , a partir daí, cada passo , cada ato, cada palavra, cada minuto da sua gestão ficará marcado pelo estigma indelével da ilegitimidade.

90% dos venezuelanos querem o fim do seu governo. Maduro concluiu o trabalho de demolição económica e institucional iniciado por Chávez. Ele tem sido tirânico por causa da miséria e do desamparo em que mergulhou o povo, por causa do exílio a que a sua "gestão" inepta forçou oito milhões de seus compatriotas, por causa da sufocação de todas as liberdades (excepto a sua e a que da sua satrapia) e – acima de tudo – pela barbárie das suas perseguições, torturas e assassinatos. Se ele impor a sua reeleição ilegal, não só a esmagadora maioria do povo o repudiará ainda mais (se possível). Todas as democracias lhe virarão as costas, especialmente a Europa, os Estados Unidos, o Canadá e a maioria dos países latino-americanos, incluindo aqueles governados por líderes de esquerda, como Gabriel Boric. É claro que não faltarão estados autoritários, totalitários ou teocráticos que se prestam à farsa. Claro que a China, a Rússia, o Irão e os seus satélites; Também a Nicarágua e Cuba, que não só não são democráticas como também mostram o seu carácter tirânico. E nessa trupe de ignomínia os governos do Brasil e do México (e certamente da Colômbia) incluirão um representante.

Mas outro ato poderia ocorrer a partir daquele dia. Sem que seja possível saber como – tão incerta é a figura da história – Edmundo González pôde ser empossado presidente da Venezuela. Talvez mudem as forças de pressão internacionais, políticas e financeiras, que deveriam ser pacíficas e negociadas, como foi o caso dos países orientais sequestrados pela URSS até 1989. Ou talvez ainda haja um soldado venezuelano que se reconhece na letra do hino nacional . e, dada a natureza ilegítima do regime, decidir homenagear, gloriosamente, as “pessoas corajosas que o jugo derrubou”. Certamente o povo marchará novamente em direção ao bunker de Miraflores. E o acaso, como sempre, jogará as suas cartas, que nem sempre favorecem o mal.

Seria o maior triunfo da democracia na história da América Latina. Não hesito em afirmar isso. O regresso da ordem democrática só ocorreu com ditadores de direita. Na Argentina isso foi conseguido em 1983 com a retirada dos militares criminosos, o mesmo que no Peru, Uruguai, Brasil e até no Chile, onde Pinochet, com toda a sua imprudência, não teve escolha senão aceitar o resultado do plebiscito que separou ele do poder em 1988.

Nada semelhante foi visto em ditaduras de esquerda. Em 1990, a transição fugaz de um regime revolucionário para um regime democrático ocorreu na Nicarágua, mas não demorou muito para que o líder máximo do sandinismo, Daniel Ortega, se declarasse líder vitalício e restaurasse práticas que o próprio Somoza aplaudiria. Quanto a Cuba, alguém alguma vez sonhou que Fidel Castro daria início a uma ordem republicana? Morreu na sua cama – como tantos tiranos – ainda aclamado pelo mito de uma Revolução que prometia ser de Martí e acabou stalinista. Mas esse mito já não sustenta os militares cubanos, donos daquela ilha de tristeza que morre de fome e de solidão diante dos nossos olhos. Por tudo isto, o regresso à democracia na Venezuela estabeleceria um precedente fundamental: provaria que os ditadores de esquerda também estão a abandonar o poder.

A Venezuela livre chegará. Voltarão os filhos e netos que migraram, voltarão os agricultores, trabalhadores, empresários, profissionais e técnicos espalhados pelo mundo, voltarão os laços diplomáticos e comerciais, voltará o capital, a PDVSA se reconstituirá como a empresa estatal exemplar que já foi e muitas empresas expropriadas ou arruinadas renascerão. A paz voltará às estradas, às praças e às consciências.

E os horrores? E as horríveis prisões e salas de tortura? E justiça? No seu exílio indeterminado, os déspotas gastarão os seus milhões, os seus milhares de milhões. Os venezuelanos curarão as suas feridas, honrarão os seus mártires, mas não terão tempo de olhar para trás. Eles reconstruirão a sua república, respirarão o ar da liberdade.

Enrique Krauze, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente pelo EL PAÍS, o diário global, em 07 de janeiro de 2025.

Pesquisas - Curiosidades do Maranhão

          No Maranhão, não tem governo fraco, todos são fortes. Aqui a Penitenciária de Pedrinhas foi matéria do Fantástico, tal as atrocidades ocorridas ali de cabeças decepadas, mas as pesquisas sempre apontaram índices de aprovação acima de qualquer bom senso. 

Pontes caem, pessoas perdem as vidas, mas o resultado das pesquisas não muda. Nem o mistério da Santíssima Trindade é tão complexo de explicar como os resultados dos escrutínios locais que envolvem desempenho de governos.                

Cerca de 61 famílias estão morando debaixo da Ponte José Sarney, conhecida como Ponte do São Francisco, em São Luís. Grande parte destas pessoas estão vivendo em condições precárias, sem acesso à água encanada, saneamento básico e alimentação. (Blog do Djair Prado)
                                     
Uma coisa que me chama atenção há bastante tempo são as pesquisas sobre desempenho dos governos aqui no Maranhão. Em geral, todos os governos recebem aprovação da população pesquisada acima de 70%. Não raro chegam a 90%, independentemente de como estão os índices sociais do estado se comparados aos demais, quase sempre na rabeira. Se o índice é o de pobreza pior ainda. Andam juntos, o aumento da pobreza e o da popularidade dos governantes. Que coisa engraçada, não fosse trágica.

Não importa o quão são deploráveis o desempenho dos governantes, como deixaram os índices sociais que medem a sua passagem pelo honroso cargo de governador, as pesquisas desmoralizam o trabalho censitário do IBGE. Chego a desconfiar que tais estatísticas oficiais valem para todos os estados, menos para o Maranhão.

Recentemente, viu-se uma pesquisa que teria sondado a opinião de mais de 22.000 entrevistados, nos 217 municípios do Estado, cujo resultado foi a aprovação do desempenho do atual governo de 70,9%. Não se tem notícias se a coleta das opiniões foi ao vivo ou por telefone, ou outro método qualquer que agora mais recentemente a inteligência artificial tenha produzido; também não se sabe quantos dias foram consumidos para a realização de tal façanha, se ela desceu ao campo ou foi feita no escritório. O que se sabe é que em São Luís a aprovação do nosso governo não passava de 40%. É de se estranhar, portanto, que a soma dos outros municípios tenha superado o peso da população da Capital e o resultado tenha ido a 70,9% de aprovação. Teria ocorrido uma revolução silenciosa na percepção pública?  (Dados e comentários do Diário 98).

A isso ser verdade, há que se parabenizar o governo pelo que está fazendo no interior do Maranhão, ainda que por aqui disso não se tenha notícias. Se você tenta analisar os dados, não encontra cruzamentos sólidos para ter uma ideia do mistério circundante. Alguém me falou que o Instituto Opinião, realizador da pesquisa, deve ter se esquecido das entrevistas e exibiu opinião própria acerca do objeto pesquisado.

No Maranhão, não tem governo fraco, todos são fortes. Aqui a Penitenciária de Pedrinhas foi matéria do Fantástico, tal as atrocidades ocorridas ali de cabeças decepadas, mas as pesquisas sempre apontaram índices de aprovação acima de qualquer bom senso. Pontes caem, pessoas perdem as vidas, mas o resultado das pesquisas não muda. Nem o mistério da Santíssima Trindade é tão complexo de explicar como os resultados dos escrutínios locais que envolvem desempenho de governos.  

Antigamente, tínhamos o IBOPE, que se consagrou entre nós pelas fraudes em pesquisas eleitorais, mormente quando se tratava de beneficiar o grupo Sarney. Agora, parece que tudo ficou ainda mais fácil de fraudar, pois não há vigilância da concorrência. Jornais de oposição desapareceram, emissoras de TV também, rádios tomaram o mesmo rumo, agora só existem diários oficiais ou panfletos de governo.

A grande verdade do Maranhão é que aqui não existe sociedade civil, ninguém reclama nada. Todos os absurdos que se cometem contra a população são tidos como normais. Um exemplo bem claro desta afirmação foi a cassação do governador Jackson Lago (costumo chamar de estupro judicial): nenhuma manifestação da sociedade civil sobre o assassinato que o TSE cometeu contra a população que elegeu democraticamente o governador, o mesmo Tribunal que, depois, decide diferentemente em Recurso Contra Expedição de Diploma mandando que o TRE seja ouvido em primeiro lugar, como deveria ter sido ouvido no caso do ex-governador.

A sociedade civil há tempos perdeu a voz, anda de joelhos perante os poderosos, de cabeça baixa, moralmente abatida, envergonhada da cabeça aos pés. Triste!

Aziz Santos, o autor deste artigo, é economista. Foi Secretário do Planejamento e Orçamento do Estado (Governo Jackson Lago - 2007-2009). Publicado originalmente no WhatsApp).

domingo, 5 de janeiro de 2025

Sempre será a economia, estúpido

Democratas têm de encontrar formas de se comunicar melhor com os americanos

Bolsa de NY: democratas precisam retomar narrativa econômica (Seth Wenig / AP).

Tenho 80 anos e posso ver claramente que caminhamos em direção a um ambiente de mídia não tradicional

Achei que Kamala Harris ganharia. Eu estava errado. Tenho certeza de que nós, democratas, podemos argumentar que a derrota não foi esmagadora ou encontrar um pequeno consolo em nosso desempenho na Câmara, mas o mais importante agora é encarar que estávamos errados e tomar uma atitude sobre o “porquê”.

Estive repassando isso na minha cabeça pelos últimos dois meses, todas as variáveis, todos os “e se”, todas as perguntas sobre as decisões de reeleição de Joe Biden, que tipo de democrata ou mensagem poderia ter funcionado contra Donald Trump. Continuo voltando para a mesma coisa. Perdemos por uma razão muito simples: era, é e sempre será a economia, estúpido! Precisamos começar 2025 com essa verdade como estrela-guia e não nos distrair com mais nada.

Embora a economia dos EUA permaneça a mais forte do mundo, com o PIB disparando e a inflação diminuindo, o povo americano não se contentou em estar melhor do que o restante ou em considerar isso como bom o suficiente.

Trump, pela primeira vez em sua carreira política, venceu decisivamente ao conquistar uma faixa de eleitores de classe média e de baixa renda focados na economia. Os democratas simplesmente perderam a narrativa econômica. A única via para a salvação eleitoral é retomá-la.

A percepção é tudo na política, e muitos americanos nos veem como alheios à economia – não sentindo a dor deles, ou então preocupados demais com outras coisas.

Para reconquistar a narrativa econômica, devemos nos concentrar em acelerar uma máquina de mensagens transformada para o novo paradigma político em que agora nos encontramos. Trata-se de encontrar maneiras de falar com os americanos sobre economia que sejam persuasivas. Repetitivas. Memoráveis. E totalmente focadas nas questões que afetam a vida cotidiana dos americanos.

OPOSIÇÃO. Isso começa com a maneira como formamos nossa oposição. Primeiro de tudo: temos de parar de fazer do próprio Trump nosso foco principal – ele não pode ser eleito novamente. Além disso, está claro que muitos americanos não estão nem aí para os indiciamentos de Trump – mesmo que sejam justificados – ou para seus impulsos antidemocráticos ou para questões sociais se eles não conseguirem sustentar a si mesmos ou a suas famílias.

Trump ganhou colocando a raiva econômica dos americanos em primeiro plano. Se focarmos em qualquer outra coisa, corremos o risco de cair ainda mais no abismo. Nossa máquina de mensagens deve se concentrar em se opor à impopular agenda econômica republicana que viverá além dele.

Oponha-se ao partido, não à pessoa ou ao extremismo de seu movimento. Não concordo sempre com Wall Street, mas Jamie Dimon estava certo quando disse que os democratas atacarem o trumpistas era insultante e politicamente insensato. Denunciar outros americanos ou seu líder como malfeitores não vai ganhar eleições; focar na dor econômica deles sim, assim como contestar a agenda econômica republicana.

Haverá muito a se opor. Nossa mensagem central deve girar em torno de se opor aos cortes de impostos dos republicanos para os mais ricos. É profundamente impopular, e sabemos que eles querem fazer isso novamente.

Então, atacamos o resto. Sabemos que os republicanos, provavelmente, farão os custos diários dispararem com tarifas desastradas; eles certamente tentarão cortar o Obamacare (programa de acesso à saúde), aumentando as mensalidades da classe trabalhadora; e provavelmente não farão quase nada para conter os custos dos medicamentos prescritos.

Em uma exibição verdadeiramente impressionante de desumanidade, o presidente da Câmara, Mike Johnson, já cortou o financiamento da saúde para os trabalhadores do 11 de Setembro e sobreviventes. Virá algo muito pior.

OFENSIVA. Mas, claro, a oposição é apenas metade da moeda. Enquanto os democratas têm quase nenhuma chance de passar uma agenda econômica progressista e ousada nos próximos quatro anos, o que podemos fazer é forçar os republicanos a se oporem a nós. Devemos estar na ofensiva com uma agenda econômica popular e populista que eles não podem apoiar.

Vamos começar forçando-os a se opor a um aumento do salário mínimo para US$ 15 por hora. Vamos fazer do Roe v. Wade (precedente legal que autoriza o aborto) uma questão de mensagens econômicas – e forçálos a bloquear nossas tentativas de codificá-lo em lei.

E vamos retomar a questão da imigração, tornando-a uma questão econômica – e forçar o Partido Republicano a negar uma reforma que acelere a entrada de talentos de alto desempenho e daqueles que trarão negócios para nossa nação.

Este ano, a liderança do Partido Democrata deve se reunir e publicar uma agenda econômica criativa, popular e ousada e retomar proativamente nosso território econômico. Seja ousado, seja populista, foque no progresso econômico – e force os republicanos a se oporem ao que não podem apoiar. Em uma só voz.

NOVAS MÍDIAS. Finalmente, os democratas devem avançar decididamente com essa agenda econômica no novo paradigma de mídia em que agora vivemos. Sou um homem de 80 anos e posso ver claramente que estamos avançando em direção a um ambiente de mídia não tradicional e descentralizado.

Podcasts são os novos jornais e revistas impressas. Plataformas sociais são uma consciência social. E influenciadores são os guardiões digitais dessa consciência. Nossa mensagem econômica deve ser afiada, clara e direta – e devemos levá-la diretamente ao povo.

Aos futuros presidenciáveis democratas, suas audições para 2028 devem ser baseadas em duas coisas: 1) O quão autênticos vocês são sobre a economia e 2) quão bem vocês transmitem as ideias em um podcast.

O caminho à frente não será fácil, mas não há duas estradas para escolher. O caminho a seguir não poderia ser mais certo: vivemos ou morremos pela vitória na percepção pública da economia. Assim foi, assim é e assim será para sempre. 

James Carville, o autor deste artigo, é Consultor de Campanhas Democratas, incluindo a de Bill Clinton, em 1992). Publicado originalmente no New York Times e reproduzido no Brasil n'O Estado de São Paulo, em 05 de janeiro de 2025.

A violência sem limites

Todas as dores originadas da violência perdem a magnitude, porém, quando comparadas aos registros da Bíblia relatando que Caim matou seu irmão Abel. 

O assassinato é crime sem paralelo, mas se agiganta quando a vítima é o próprio irmão. 

Tudo aí passa a ter uma sordidez absoluta que conduz necessariamente a outra indagação: seria esse o futuro da humanidade, em que a inveja é dominante e conduz ao assassinato, à fraude e ao roubo?


E ainda há quem, nessa extrema direita sádica, defenda hoje a volta da ditadura no Brasil. Parafraseando o Cristo, eles não sabem nada sobre o que falam e querem. (Foto de Evandro Teixeira, meu colega de trabalho no Jornal do Brasil.)

Completei 90 anos em meados de 2024. Na maior parte desse tempo convivi direta ou indiretamente coma violência. Tive ímpetos violentos também, e a tal ponto que me leva a indagar: o próprio viver será violento?

Talvez a ideia se origine porque me alfabetizei através dos jornais que descreviam os sangrentos combates da 2.ª Guerra Mundial e os horrores do nazismo. Até hoje, recordo os filmes documentários em que as vitoriosas tropas aliadas levavam os habitantes das cidades alemãs para conhecer os campos de concentração nos quais milhares (ou milhões) de pessoas, principalmente judias, foram torturadas e mortas pelos nazistas.

Em agosto de 1945, festejamos o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, matando a população civil elevando o Japão a render- se. Desconhecíamos o horror da expansão nuclear e aplaudíamos o fim da 2.ª Guerra Mundial.

Todas as dores originadas da violência perdem a magnitude, porém, quando comparadas aos registros da Bíblia relatando que Caim matou seu irmão Abel. O assassinato é crime sem paralelo, mas se agiganta quando a vítima é o próprio irmão. Tudo aí passa a ter uma sordidez absoluta que conduz necessariamente a outra indagação: seria esse o futuro da humanidade, em que a inveja é dominante e conduz ao assassinato, à fraude e ao roubo?

Talvez a pergunta seja exagerada e não tenha sentido, pois os que matam, fraudam e roubam são uma minoria que a sociedade repele, a polícia vigia ou combate e o Judiciário pune.

Em alguns casos, porém, a violência é tão brutal que foge a toda interpretação (até as mais ilógicas e absurdas) como sucedeu com Gisèle Pelicot, estuprada na França por mais de 50 homens levados pelo próprio marido numa requintada perversão absoluta. O marido a sedava antes de entregá-la à sanha dos estupradores, revelando-se um psicopata que supera todos os violadores e masoquistas da História.

Ou como ocorreu aqui em 2008, quando Alexandre Nardoni assassinou a filha Isabel e hoje cumpre pena de 30 anos de prisão em regime aberto.

A violência agigantou-se a tal ponto que, se nos assaltam de arma em punho para roubar, chegamos a agradecer aos criminosos por nos deixarem com vida. 

Amanhã, 4 de janeiro, este jornal completa 150 anos, e por suas páginas passaram os mais variados tipos de violência e, por outro, também atos de amor. Aí esteve a descrição de um tempo impossível de medir ou quantificar em dias ou horas. O Brasil e o mundo já não são os mesmos de 1875, o estilo de vida sofisticou-se e outras são as necessidades.

Também a violência é outra: agigantou-se a tal ponto que, se nos assaltam de arma em punho para roubar, chegamos até a agradecer aos criminosos por nos deixarem com vida.

No Brasil, não há pena de morte. Como já lembrei aqui, nenhum juiz pode condenar à morte o autor do crime mais brutal, mesmo com provas concretas. No entanto, a polícia mata diretamente ou pelas “balas perdidas” que atingem até crianças. Lembro um caso recente: em Osasco, na madrugada do Natal, um jovem de 24 anos foi baleado à queima-roupa por um policial ao filmar uma ação da Polícia Militar.

Nos anos 1960, morando em Brasília, vivi a angustiosa tristeza do golpe militar de 1.º de abril de 1964 e dele fui vítima. Conheci a tortura, que a ditadura transformou em método de interrogatório.

No entanto, existe outra violência que é cega e que é exercida pelas torcidas no desporto, especialmente no futebol. As competições desportivas exigem adversários, pois, sem a parte contrária, não existiria jogo e tudo seria amorfo e sem vencedor. Podem compreender-se até as jogadas violentas ou bruscas, nas quais se apoiam ambas as equipes, para derrotar o seu contrário. Aí busca-se a vitória que é a finalidade de toda competição. Mas sem a parte contrária – insisto – não existiria confronto desportivo.

As torcidas, porém, brigam além do arrebatamento típico de toda disputa. Algumas vezes chegam a matar-se num corpo a corpo que toma conta dos estádios e que nem a polícia consegue impedir. Ou, então, são apedrejados os ônibus que conduzem os torcedores da parte contrária. Em certas ocasiões, existem até casos de morte.

É, então, o momento de recordar a visão do escritor francês Albert Camus ao dizer que “o conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol”.

Por sua vez, Hannah Arendt escreveu que há ocasiões em que até o pensar representa um perigo que nasce do desejo de encontrar resultados que tornem desnecessária toda visão crítica.

Indago: não será isso o que mostra o inquérito da Polícia Federal que, entre outros, apontou o general Braga Netto como um dos mentores da conspiração que levaria ao assassinato do presidente e do vice-presidente da República, além de um ministro do Supremo Tribunal Federal? Não se trata de um marginal, mas de general “quatro estrelas”, que foi ministro da Defesa no governo Bolsonaro e seu companheiro de chapa (como Vice - Presidente) na frustrada tentativa de reeleição.

O assassinato não se consumou, mas prepará-lo já define o perverso limite da violência sem limites.

Flávio Tavares, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor - Prêmio Jabuti de Literatura 2000 e 2005. Prêmio APCA 2004. Professor Aposentado da Universidade de Brasília. Publicado n'O Estado de São Paulo, em 05 de Janeiro de 2025. 

O custo do loteamento político

Queda de ponte sobre o Rio Tocantins reacende polêmica em torno do Dnit, gestor da infraestrutura de transportes terrestres e aquaviários há anos usado na distribuição política de cargos

O colapso da ponte sobre o Rio Tocantins, um desabamento que engoliu carros, motos e caminhões, fazendo 17 vítimas, entre mortos e desaparecidos, na divisa dos Estados do Maranhão e Tocantins, traz à tona uma questão tão antiga quanto revoltante: a serventia do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), que hoje se limita a funcionar como cabide de apadrinhados políticos em todo o território nacional.

Alvo, há anos, de investigações sistemáticas por denúncias de corrupção, superfaturamento de obras e outras irregularidades, o departamento, vinculado ao Ministério dos Transportes, administra um orçamento bilionário – foram R$ 16,62 bilhões em 2023 e R$ 14,72 bilhões em 2024, para citar apenas os últimos dois anos – para gerir a política de infraestrutura de transportes terrestres e aquaviários. Ou seja, contrata obras e serviços de manutenção de estradas (com suas pontes, viadutos e túneis), ferrovias, portos e vias navegáveis.

Conta com superintendências em cada Estado para atender todo o País e é justamente essa capilaridade, aliada ao orçamento do órgão, a principal fonte de atração numa disputa suprapartidária. Somente a formação da diretoria do Dnit já dá a dimensão da quantidade de cargos disponíveis no departamento. O colegiado é formado por sete membros, e cada um deles comanda uma diretoria específica que reúne entre 6 e – pasmem – 27 outros integrantes.

A queda do vão central da sexagenária ponte entre Aguiarnópolis (TO) e Estreito (MA) reúne elementos que sugerem má conservação. E o pior, o estado precário da via, com trânsito intenso e pesado de veículos de carga, foi denunciado inúmeras vezes por moradores e políticos. O próprio Dnit atestou a precariedade da ponte em 2019, dando a ela nota 2, numa escala de 1 a 5, sendo 1 o estado mais crítico. Depois da ruptura, o órgão informou que a licitação que havia lançado para a manutenção fracassou.

Não é desculpa para o gritante descaso, ainda mais quando se trata de uma usina de problemas como se apresenta há anos o Dnit. A autarquia foi criada em 2001 para reestruturar o sistema de transportes, substituindo o antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (Dner), de igual má fama. Como não basta trocar o nome para extinguir o imbróglio – embora seja este um expediente comum no País –, não demoraram a aparecer novas denúncias.

Em 2011, depois de assumir pela primeira vez a Presidência, Dilma Rousseff anunciou uma “faxina completa” no Dnit, após denúncias de superfaturamento em licitações. Afastou diretores e, para deixar claro a adoção de uma “linha dura”, nomeou oficiais do Exército para cargos de direção, numa aparente contradição da gestão petista. Reportagem do Estadão da época reproduziu um diálogo de Dilma com o então recém-empossado ministro dos Transportes, Paulo Sérgio Passos: “Paulo Sérgio, você tem de fazer uma ‘limpa’ nesse ministério e no Dnit. Todo dia a gente abre o jornal e tem uma crise. Não tem cabimento isso! Eu não quero mais saber de denúncia contra A, B ou C. Tem de tirar todo mundo de lá!”.

Pelo andar da carruagem, a faxina promovida por Dilma deve ter apenas varrido a sujeira para debaixo do tapete, como diz a expressão popular. O problema continuou ali, como um painel permanente do custo do loteamento político de cargos em órgãos de controle. Uma barganha, diga-se, feita às claras, como se fosse o expediente mais natural do exercício do poder político.

No governo de Jair Bolsonaro, o Dnit foi alvo de investigações da Operação Rolo Compressor, por desvio de recursos. Em novembro passado, a Fase 2 da operação, conduzida por CGU, Polícia Federal, Receita e Ministério Público Federal, relatou denúncias em obras que somam R$ 693,8 milhões no Paraná. Em janeiro de 2023, início do terceiro mandato de Lula da Silva, o governo informou que ouviria as bancadas estaduais na Câmara para definir os superintendentes regionais do Dnit. As imagens da ruptura da ponte do Rio Tocantins estão aí para confirmar, da forma mais cruel, quem acaba pagando a conta de tanta permuta política.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 03 Janeiro de 2025

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Luís XVI e Lula III

A Revolução Francesa nos ensinou que, quando a elite do país se ilude com governos corruptos, líderes populistas e um Estado antiliberal, ela perde o pescoço, seus negócios e propriedades

Na véspera da Revolução Francesa, o rei Luís XVI estava alienado da situação dramática da nação. A fome que assolava o país, o caos das finanças públicas e a existência de um governo que extorquia a população por meio de uma carga tributária brutal para financiar os privilégios e as mordomias de uma corte encastelada no Palácio de Versalhes desencadearam a Revolução Francesa, em meados de 1789. Lula III está cada vez mais parecido com Luís XVI. A lição que o presidente brasileiro deveria aprender com o rei da França é de que o povo não aguenta o desaforo de maus governantes por muito tempo.

O Brasil parece a França às vésperas da revolução. Um governo encastelado em Brasília, cujo único “programa” é arrecadar mais impostos para financiar um Estado caro, ineficiente e corrupto. Apesar de já pagarmos a carga tributária mais alta entre os países emergentes, o governo quer nos taxar mais para financiar um Estado que já consome 40% do PIB e presta serviço público de péssima qualidade, como atestam os indicadores de educação (60% das crianças não estão devidamente alfabetizadas) e de segurança pública (43 mil homicídios por ano, equivalentes a 10% dos homicídios do mundo). O crescimento exponencial do crime organizado e a incompetência do Estado em combatê-lo já mudaram o panorama econômico e político do País. O lucro do crime organizado é empregado para eleger políticos, financiar advogados e corromper juízes. Estamos a caminho de nos tornarmos um narcoestado em pouco tempo.

No mundo encantado de Brasília, a corte vive regada a privilégios – e o papel do povo é pagar a conta com o suor do seu trabalho. A gastança desenfreada do Poder Executivo e sua relutância em promover o ajuste fiscal contribuíram para o aumento da inflação, o desarranjo das contas públicas e o aumento recorde da taxa de juros. O Poder Judiciário tornou-se o propagador da insegurança jurídica. Além de ser o Judiciário mais caro do mundo e gastar 1,6% do PIB para financiar seus privilégios, supersalários e penduricalhos, as cortes tornaram-se antro de escândalo de venda de sentenças e o Supremo Tribunal Federal (STF) deixou de atuar como guardião da Constituição e tornou-se reduto do ativismo judicial, onde imperam decisões arbitrárias e o desrespeito ao devido processo legal. O Congresso Nacional tornou-se um balcão de negócios. Quando os recursos são liberados, votam-se propostas sem ler ou entender o que está em jogo, contribuindo para o aumento das despesas públicas e o agravamento da irresponsabilidade fiscal.

O populismo petista alimenta o nacional-estatismo. Assim como a corte de Versalhes de Luís XVI, a corte de Brasília cultiva sua clientela de nobres palacianos que dependem das benesses do Estado. A “Bolsa Empresário” – soma de benefícios fiscais, subsídios e regimes especiais – custa três vezes mais que o Bolsa Família. Esse capitalismo de Estado é uma vergonha que criou um país viciado em governo e transformou o Brasil no paraíso dos rentistas do Estado, onde o sonho é conquistar um privilégio ou uma meia entrada estatal. A existência de uma elite omissa, que abandonou a arena política e apoia líderes populistas, é corresponsável pela degeneração da democracia, da economia de mercado e da liberdade no Brasil.

A saída para livrarmos o País do populismo, do Estado ineficiente e do nacional-estatismo é a mobilização cívica. Precisamos nos mobilizar para lutar por três causas vitais: educação de qualidade, meio ambiente e abertura comercial. Temos de transformar a educação de qualidade na prioridade nacional para preparar as crianças e jovens para o mundo do conhecimento, garantir igualdade de oportunidade e impulsionar o ganho de produtividade. É imperioso transformar a vocação ambiental do Brasil numa potência global capaz de exercer um papel protagonista na agricultura sustentável, no desenvolvimento da bioeconomia e na transformação de áreas degradadas em florestas plantadas. A abertura comercial é vital para tirar o País da armadilha da renda média, gerar crescimento econômico sustentável, impulsionar a competitividade e a inovação para criarmos riqueza e prosperidade.

Por fim, precisamos combater os populistas na política, nas urnas, nos tribunais e nas redes sociais. Demagogos que pregam a salvação da democracia por meio de golpe, do aparelhamento das instituições e da propagação da censura e da arbitrariedade jurídica revelam sua descrença nas virtudes da liberdade de expressão, do livre mercado e da capacidade de fazermos as nossas próprias escolhas sem a tutela do Estado.

A Revolução Francesa nos ensinou uma lição importante: quando a elite do país se ilude com governos corruptos, líderes populistas e um Estado antiliberal, ela acaba perdendo o pescoço, suas propriedades e seus negócios. Se quisermos evitar o caminho da guilhotina, é bom acordarmos e começarmos a combater o populismo, defender a liberdade e nos preparamos para vencermos as eleições em 2026 e tirar a esquerda do poder. Feliz Natal e que Deus nos ilumine nesta travessia do deserto.

Luiz Felipe D'Avila, o autor deste artigo, é cientista político e autor do livro ‘10 Mandamentos – Do brasil que Somos para o País de Queremos’. Foi candidato à Presidência da República (2022). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.12.24

Uma história de resistência

A história do Natal é a afirmação de que a periferia sabe inverter o destino a ela designado por quem não a ama; de que recomeços são possíveis

Pintura sobre nascimento de Jesus - (Wikimedia commons)

O Natal é uma história da esperança humana e, nesse sentido, uma história de todos nós. O imaginário presente nas narrativas dos diferentes evangelhos articulam figuras simbólicas e miraculosas a fim de afirmar que a realidade, por mais crua que seja, pode se tornar surpreendente e inverter sua própria lógica e sentido.

Assim, transitam anjos e magos pela Belém periférica, cenário do refúgio de um casal sem casa e de uma criança sem lugar para nascer. A manjedoura, centro simbólico da vida excluída e desabrigada, carrega a força da inversão e a teimosia da resistência de quem ressurge dos escombros produzidos pelo sistema gerador de desigualdades e morte.

A criança nasce, e sobre ela cantam anjos e brilham estrelas. Visitantes longínquos caminham cerca de um ano na direção apontada pela estrela vista no oriente. A tradição os chama de magos e reis. Eles buscam uma presença tão intensa que seja capaz de iluminar a vida. Seguem o seu desejo profundo de encontrar graça e amor suficientemente amplos que abrigue a humanidade inteira.

A palavra "desejo" é linda! Vem do latim "desiderare" e é composta pela preposição "de" e "sider", "sidus", estrela. Assim, etimologicamente falando, "desejo" significa "o que procede de uma estrela". Não é surpreendente que, ao longo da história, nossos antepassados tenham escolhido situar a "casa" de Deus nos céus, no meio das estrelas, porque Deus é o nome do nosso desejo mais profundo. Quando pronunciamos a palavra "Deus" estamos nomeando a energia pulsante que está dentro de nós e, ao mesmo tempo, além de nós; estamos nominando nossos antigos anseios entranhados bem lá no fundo e, simultaneamente, dando asas a nós mesmos.

Os magos, que Heródoto diz ser originalmente uma tribo que habitava na região de Medes e se tornado uma casta sacerdotal entre os persas, são considerados pela tradição como sábios, observadores das estrelas; hoje seriam astrônomos.

Quando, de acordo com a narrativa, eles se encontram com Herodes indagando sobre o paradeiro da criança, dizem que "viram no oriente a sua estrela". A palavra grega para "oriente" é "anatolai", que está no plural. No singular, a palavra "anatolé" significa "nascente". "A sua estrela no oriente" significa "a sua estrela nascente", ou "a estrela que se levanta".

No mundo antigo era comum associar o nascimento de uma grande pessoa ou um grande evento ao aparecimento de estrelas ou sinais celestes. Estudiosos contemporâneos dizem que o que os reis magos viram não era uma estrela, mas o encontro dos planetas Vênus e Mercúrio, que acontece a cada 400 anos e dá a impressão de ser uma grande estrela no céu. Outros astrônomos pensam tratar-se do cometa Halley, que passa pela Terra a cada 70 anos. Independentemente do fenômeno cósmico que tenha ocorrido (ou não), essa história carrega em si muitas outras histórias.

Os poderosos do mundo que, estando em governos, empresas ou bancos, agem sem piedade. Nele estão os banqueiros que impõem taxas de juros excruciantes, tornando a vida insuportável; estão governos como o de Israel e seus parceiros, que matam indiscriminadamente mulheres e crianças palestinas numa guerra injustificável e cruel; estão os membros do governo passado que planejaram o assassinato do presidente e vice-presidente eleitos e do ministro da Corte Suprema. Nele estão todos aqueles e aquelas que naturalizam os mecanismos geradores de desigualdades, exclusões e mortes.

A história do Natal é uma história de resistência a esses poderes tortos. É a afirmação de que a periferia sabe inverter o destino a ela designado por quem não a ama. É o nosso desejo de uma humanidade mais humana e é a nossa esperança de que recomeços são possíveis.

Lusmarina Campos Garcia, a autora deste artigo, teóloga e pastora luterana, é doutora em direito (UFRJ). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 25.12.24 .

O governo dos milionários

Pela primeira vez, os donos de imensos monopólios, digitais ou não, chegaram diretamente ao poder político para defender os seus interesses

                                                                    Elon Musk por Eulogia Merle

Um. Há muitos anos, em meados do século XIX, o multifacetado pensador de Trier, um certo Karl Marx, levado pelo seu refinado espírito crítico, sustentava que os governos eram os conselhos de administração dos interesses da burguesia como um todo. . Talvez quando essa frase foi escrita respondesse ou refletisse boa parte da realidade, mas com o passar do tempo e a evolução das lutas sociais e políticas acabou perdendo a sua virtualidade. Basta pensar que em meados do século XIX não existia sufrágio universal - as mulheres eram proibidas de votar e o voto censitário ainda funcionava para os homens, ou seja, para os ricos. Os partidos operários não tinham nascido e as formações conservadoras e/ou liberais representavam apenas as classes proprietárias, pelo que o dizer ou a reflexão poderiam ter feito sentido. Depois, com a extensão do sufrágio após a Segunda Guerra Mundial, e o aparecimento de partidos de esquerda no final do século XIX, a situação começou a mudar, e, com o passar do tempo, estes partidos chegaram aos governos e já não conseguiam sustentar isso. eles representavam os interesses da burguesia.

Dois. A partir de então, os partidos políticos, embora personifiquem interesses económicos diferentes dependendo das classes e sectores em que a sociedade está dividida, não foram uma simples nomenclatura mimética dessas classes ou sectores, uma vez que as pessoas não pensam e agem apenas por desejos económicos. . Pelo contrário, são motivados por uma maior variedade de causas e impulsos: crenças religiosas e atitudes morais; concepções ideológicas; sentimentos de identidade; estruturas culturais ou costumes ancestrais. Assim, como assinala a nossa Constituição no seu artigo 6.º, “os partidos políticos expressam o pluralismo político, contribuem para a formação e manifestação da vontade popular e são um instrumento fundamental para a participação política”. Tão fundamentais que sem eles não há democracia ou algo parecido. É por isso que venho insistindo há muitos anos que os ataques sistemáticos, relevantes ou não, aos partidos, aos políticos, à política nada mais são do que ataques contra a democracia. É claro que a crítica concreta e fundamentada às decisões políticas ou ao comportamento individual acarreta uma atitude muito diferente da desqualificação genérica dos partidos ou dos políticos como se fossem uma “classe” ou “casta” com interesses próprios, versão que se tem difundido como a lepra com grandes danos à democracia.

Três. Agora, superada a representação de classe, típica do Antigo Regime, de base material agrária, e constituídas as nações após a Revolução Francesa, os partidos políticos começaram a emergir como a representação essencial das democracias como órgão intermediário entre os cidadãos. . e poder político. Ao mesmo tempo, foram criadas novas instituições, como as que compõem os diferentes poderes do Estado, os próprios meios de comunicação e, no calor da revolução industrial, as organizações sindicais e patronais. Todos eles com o propósito, entre outros, de evitar a concentração excessiva de poder nas suas diferentes formas e de alcançar um equilíbrio saudável no funcionamento do sistema. Um processo que tem vindo a desenvolver-se nas democracias mais ou menos avançadas que conhecemos até agora. A propósito, algumas democracias cuja base material ou física, móvel ou imóvel, têm sido essencialmente os objectos, as manufaturas típicas daquela revolução industrial com a sua correspondente “propriedade dos meios de produção”, apropriada ao capitalismo. No entanto, o que foi dito acima começa a mudar rapidamente como consequência dos efeitos da revolução digital se, por exemplo, estivermos conscientes de que esta mutação – inteligência artificial e outras – ainda está na sua primeira infância. E, no entanto, já está a ter consequências notáveis ​​no funcionamento da nossa vida política, uma vez que a sua matéria-prima não são os objetos, mas nós próprios e a pilhagem dos nossos dados.

Quatro. Um destes efeitos, que atinge o cerne da democracia, é que forças muito poderosas compreendem, em virtude do controlo que têm sobre estas tecnologias, que as suas instituições – partidos, sindicatos, elementos do próprio Estado ou dos meios de comunicação social – são um obstáculo, o que tenho chamado de jibarização da democracia. Um exemplo do que estou expondo está acontecendo nos Estados Unidos, desde o triunfo de Trump/Musk. Uma primeira manifestação consistiu no facto de, pela primeira vez de forma tão obscena, grandes proprietários ou gestores de imensos monopólios, digitais ou não, terem acedido diretamente ao poder político e a partir daí manifestarem claramente os seus interesses particulares. Se observarmos as nomeações de Trump, podemos certificar que muitas delas foram para milionários que pertencem aos mesmos sectores económicos que devem assumir politicamente, a começar por Musk. Com efeito, as principais linhas que emergem das intenções destes poderosos milionários poderiam ser resumidas nos seguintes títulos: para começar, estamos perante uma Administração Trump/Musk e não o Partido Republicano, que foi raptado pelo magnata e pelos seus amigos e família, sem necessidade de partidos ou Conselhos de Ministros, pois são a fusão, osmose ou acoplamento da economia e da política. Uma deriva muito perigosa cujo antecedente europeu, numa escala muito menor, foi a Itália de Berlusconi e já vemos como terminou. Depois, na mesma linha, aquele slogan que Musk, ou Sr. X, lançou no dia em que venceram as eleições, dirigindo-se ao público: “Agora vocês são os meios de comunicação”; Ou seja, sou a opinião, já que todos os meios de comunicação tradicionais - jornais, rádios ou televisões - são supérfluos, porque as redes sociais e os algoritmos que eu e os meus comparsas controlamos são as pessoas e temos bastante todo o resto. Se o exemplo se espalhar, passaremos da propriedade privada dos meios de produção para a propriedade privada das consciências e opiniões, através do X, Google ou TikTok. Assim, pretende-se também reduzir o Estado à sua expressão mínima, tarefa a que Musk e outro milionário se dedicarão no futuro quando declararem que há milhões de funcionários públicos e todos os órgãos estatais que se dedicam aos poucos tarefas sociais que existem nos EUA. Se estivessem na Europa, calçariam as botas. No fundo, uma manifestação de anarco-liberalismo-niilismo, que permite uma redução radical dos impostos que põe fim ao que resta do Estado social, um artefacto que, na opinião dos seus mais ilustres teóricos como Milei e companhia,É um roubo. Para finalizar o trabalho, uma passagem pelo negacionismo ambiental, pois não há necessidade de se preocupar se nosso planeta vai para o inferno, pois segundo a tese criacionista do prefeito Oreja e outros, algum Criador beneficente irá substituí-lo para nós ou mesmo nos fornecer com um novo. A conclusão final de tudo isto não é outra senão que, se estas teorias e políticas triunfassem, isso significaria a evaporação da social-democracia que conhecemos e, claro, não seria aconselhável tentar a sorte e acreditar nestas bobagens criacionistas, para que não sejam uma farsa e só sejam salvos aqueles que puderem ir a Marte com Musk e seus amigos.

Nicolás Sartorius, o autor deste artigo, é advogado e escritor. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 25.12.24. Seu último livro é "Expansive Democracy" (Anagrama). 

O que prova que Jesus existiu?

Entre historiadores é praticamente consenso que Jesus foi um personagem real. Sem evidências arqueológicas, sua existência pode ser comprovada em antigos relatos não ligados ao cristianismo.

Quadro de Leonardo da Vinci, "A última Ceia", retrata Jesus e apóstolos comendo à mesa (Foto: World History Archive/picture alliance)

Para a maior parte dos historiadores contemporâneos, a existência de um homem chamado Jesus, que viveu há cerca de 2 mil anos na região da Galileia, ficou conhecido por suas pregações e acabou executado pelo poder romano, é tida como verdade. E isto não é uma questão de fé — até porque essas pesquisas se limitam a buscar evidências daquilo que é história e não do mito criado depois em torno da figura deste ser humano.

Mas não há nenhum objeto, nenhum artefato, nenhum resquício palpável de sua vida.

"Jesus fazia parte de um campo socioeconômico de pessoas simples e comuns, subalternos que viviam no limite da sobrevivência. A arqueologia não tem condições de identificar [vestígios de] pessoas comuns e anônimas, de mapeá-las. E nem por isso elas deixaram de existir", pontua o historiador André Leonardo Chevitarese, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de, entre outros, Jesus Histórico: Uma Brevíssima Introdução.

"Precisamos lembrar que Jesus não era um personagem importante no tempo em que ele viveu, então não esperamos encontrar um monumento feito para ele em sua época", exemplifica o historiador Alex Fernandes Bohrer, professor do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e autor do livro Jesus: Um Breve Roteiro Histórico Para Curiosos.

Aquele homem pobre, de origem camponesa, provavelmente analfabeto, monoglota no aramaico, que passou a maior parte da vida numa minúscula cidade — Nazaré — localizada na periferia do império romano, até arrebanhou alguns seguidores. Contudo, sua relevância só ganharia corpo tempos depois de sua morte, quando seus seguidores — e os seguidores desses seguidores — acabariam fazendo uma religião do seu legado.

Relíquias supostamente ligadas à crucificação e morte dele, como a coroa de espinhos guardada na Catedral de Notre-Dame, em Paris, e o tecido de linho que teria envolvido seu cadáver, conhecido como Santo Sudário e exposto na Catedral de Turim, na Itália, não têm autenticidade comprovada por pesquisas científicas — há suspeitas de que seriam peças forjadas ao longo da Idade Média.

Historiadores antigos

Para os estudiosos, contudo, a existência do Jesus histórico se comprova por textos de historiadores antigos que o citam e evidências arqueológicas indiretas que confirmam o contexto descrito em passagens bíblicas sobre ele.

Autor da obra Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus, o padre e biblista John Paulo Meier (1942-2022) entendia ser importante buscar referências extrabíblicas sobre o Jesus histórico, já que "as evidências bíblicas são tendenciosas, encapsuladas em um texto teológico escrito por crentes comprometidos".

O nome de Jesus aparece entre autores romanos e judaicos. O historiador romano Cornélio Tácito (56 d.C. – 118 d.C.), que notoriamente desprezava os cristãos, mencionou-o em seu relato sobre o famoso incêndio de Roma ocorrido no ano de 64. No texto, ele diz que o imperador Nero (37-68), para "acabar com o boato" de que teria sido ele o mandante do ato, "substituiu como culpados e puniu das formas mais incomuns aqueles odiados por seus atos vergonhosos, a quem a multidão chamava de cristãos". "O fundador deste nome, Cristo, havia sido executado no reinado de Tibério pelo procurador Pôncio Pilatos", escreve Tácito.

"Tácito, como autores clássicos em geral, não revela as fontes que usou. Mas isso não deve diminuir nossa confiança em suas afirmações", avalia o historiador Lawrence Mykytiuk, professor na Universidade de Purdue, nos Estados Unidos, em artigo publicado em 2015. Em sua avaliação, Tácito "estava entre os melhores historiadores de Roma" e "nunca era dado a escrever descuidadamente".

Santo Sudário está em Turim (Foto: Godong/robertharding/picture alliance)

Outro autor comumente citado é Flávio Josefo (37 d.C. – 100 d.C.), historiador judaico-romano. Ele menciona Jesus duas vezes em sua obra Antiguidades Judaicas.  O livro A Guerra dos Judeus também cita o personagem em algumas versões, mas não há consenso se tais trechos são autênticos ou interpolações posteriores de autores cristãos.

Em Antiguidades Judaicas, há uma menção incidental quando ele está identificando Tiago, líder da igreja em Jerusalém — o autor o define como "irmão de Jesus que é chamado Messias". Mykytiuk comenta que ao usar Jesus para identificar claramente "Tiago, o assunto da discussão", o historiador acaba deixando claro que Jesus havia sido "uma pessoa real".

O outro trecho, mais longo, é envolto em polêmica. Porque a versão que se conhece traz algumas colocações claramente cristãs, sugerindo que houve deturpações ao longo dos séculos. Contudo, pela análise textual comparativa com outros escritos de Josefo e a comparação com uma tradução árabe descoberta no século 20, a maior parte dos historiadores concorda que parte do texto é autêntica — ou seja: sobre um relato não religioso acerca da figura histórica, cristãos acrescentaram elementos teológicos.

Assim, extrai-se que "por volta dessa época vivia Jesus, um homem sábio", "um mestre de pessoas" que "conquistou muitos judeus e muitos gregos". Diz ainda que morreu crucificado, mas que "a tribo dos cristãos, assim chamada após ele, não está extinta até hoje".

Outros historiadores abordaram Jesus. Por exemplo, Plínio, o Jovem (61 d.C. – 114 d.C.), que registrou a existência de uma adoração primitiva a ele.

Na época, ninguém contestou sua existência

Há ainda evidências documentais indiretas da existência de Jesus. O teólogo Robert Van Voorst, autor de Jesus Outside The New Testament: An Introduction to the Ancient Evidence olha para os documentos produzidos por rabinos da época para afirmar que "nenhum judeu [daquele período] que se opôs ao cristianismo negou ou questionou a historicidade de Jesus".

Em seu livro, ele lembra que "se alguém no mundo no mundo antigo tinha uma razão para não gostar da fé cristã, eram os rabinos". Portanto, "argumentar que Jesus nunca existiu, mas foi uma criação dos primeiros cristãos, teria sido a polêmica mais eficaz contra o cristianismo". "Todas as fontes judaicas trataram Jesus como uma pessoa totalmente histórica. Os rabinos usaram os eventos reais da vida de Jesus contra ele", aponta Van Voorst.

Por ser um cidadão comum, não foram construídos monumentos para Jesus enquanto ele viveu (Foto: Carl De Souza/AFP)

Na arqueologia, são evidências indiretas que também atestariam, no entendimento de pesquisadores, a existência do Jesus real. "De uma figura sem muita expressividade no primeiro século, que era importante apenas para aqueles que o conheciam, não esperamos encontrar vestígios diretos. Mas há os indiretos", diz Bohrer. "Que, somados e colocados num prisma histórico, permitem tecer um panorama geral."

Ele cita túmulos "de pessoas ligadas à história de Jesus", como o ossário de Caifás, descoberto em 1990 e que pode ser do sumo-sacerdote de mesmo nome — embora não haja consenso entre os pesquisadores. E também do anel atribuído ao governador romano Pôncio Pilatos, descoberto em 1968 e analisado em 2018. "Existe uma série de elementos que demonstram que aquele contexto existiu", comenta o historiador.

A cidadezinha de Jesus

Chevitarese lembra de outro trabalho recente, o realizado pelo arqueólogo Ken Dark, professor do King's College, de Londres, e autor do livro Archaelogy of Jesus' Nazareth. Ao longo de 14 anos, Dark realizou um extenso trabalho arqueológico em busca dos resquícios da cidade de Nazaré dos tempos de Jesus — inclusive para provar que o povoado existia naquela época.

"Ele constatou, do ponto de vista estratigráfico, que Nazaré existia desde a segunda metade do século 2º antes da Era Comum", pontua Chevitarese. Na análise do arqueólogo, a cidade onde Jesus morou era paupérrima e tinha de 300 a 500 habitantes.

"Portanto, a arqueologia demonstra, do ponto de vista de um cenário histórico, que é plenamente coerente a existência de Nazaré, de Jesus e de tantos outros camponeses daquela primeira metade do primeiro século", conclui o professor da UFRJ.

Edison Veiga, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente em Deutsche Welle / A Voz da Alemanha, em 25.12.24