terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Por uma Venezuela livre

Talvez a pressão internacional force a mudança, que deverá ser pacífica e negociada, como foi o caso dos países orientais sequestrados pela URSS. Ou talvez ainda exista um soldado venezuelano que se reconhece no hino nacional e decide homenagear, gloriosamente, o “povo valente que o jugo derrubou”. 

A líder da oposição venezuelana, María Corina Machado. (Crédito: Miguel Gutierrez - EFE)

Você não pode viver com um pouco de luz na testa

                                                                              onde os tiranos governam. - José Marti, líder da Independência de Cuba

A liberdade no nosso continente tem uma data histórica na Venezuela. Se em 10 de janeiro Nicolás Maduro tomar posse da presidência , usurpando o mandato que o povo deu nas urnas em 28 de julho ao candidato da oposição Edmundo González (e à sua parceira política, a heróica María Corina Machado) , a partir daí, cada passo , cada ato, cada palavra, cada minuto da sua gestão ficará marcado pelo estigma indelével da ilegitimidade.

90% dos venezuelanos querem o fim do seu governo. Maduro concluiu o trabalho de demolição económica e institucional iniciado por Chávez. Ele tem sido tirânico por causa da miséria e do desamparo em que mergulhou o povo, por causa do exílio a que a sua "gestão" inepta forçou oito milhões de seus compatriotas, por causa da sufocação de todas as liberdades (excepto a sua e a que da sua satrapia) e – acima de tudo – pela barbárie das suas perseguições, torturas e assassinatos. Se ele impor a sua reeleição ilegal, não só a esmagadora maioria do povo o repudiará ainda mais (se possível). Todas as democracias lhe virarão as costas, especialmente a Europa, os Estados Unidos, o Canadá e a maioria dos países latino-americanos, incluindo aqueles governados por líderes de esquerda, como Gabriel Boric. É claro que não faltarão estados autoritários, totalitários ou teocráticos que se prestam à farsa. Claro que a China, a Rússia, o Irão e os seus satélites; Também a Nicarágua e Cuba, que não só não são democráticas como também mostram o seu carácter tirânico. E nessa trupe de ignomínia os governos do Brasil e do México (e certamente da Colômbia) incluirão um representante.

Mas outro ato poderia ocorrer a partir daquele dia. Sem que seja possível saber como – tão incerta é a figura da história – Edmundo González pôde ser empossado presidente da Venezuela. Talvez mudem as forças de pressão internacionais, políticas e financeiras, que deveriam ser pacíficas e negociadas, como foi o caso dos países orientais sequestrados pela URSS até 1989. Ou talvez ainda haja um soldado venezuelano que se reconhece na letra do hino nacional . e, dada a natureza ilegítima do regime, decidir homenagear, gloriosamente, as “pessoas corajosas que o jugo derrubou”. Certamente o povo marchará novamente em direção ao bunker de Miraflores. E o acaso, como sempre, jogará as suas cartas, que nem sempre favorecem o mal.

Seria o maior triunfo da democracia na história da América Latina. Não hesito em afirmar isso. O regresso da ordem democrática só ocorreu com ditadores de direita. Na Argentina isso foi conseguido em 1983 com a retirada dos militares criminosos, o mesmo que no Peru, Uruguai, Brasil e até no Chile, onde Pinochet, com toda a sua imprudência, não teve escolha senão aceitar o resultado do plebiscito que separou ele do poder em 1988.

Nada semelhante foi visto em ditaduras de esquerda. Em 1990, a transição fugaz de um regime revolucionário para um regime democrático ocorreu na Nicarágua, mas não demorou muito para que o líder máximo do sandinismo, Daniel Ortega, se declarasse líder vitalício e restaurasse práticas que o próprio Somoza aplaudiria. Quanto a Cuba, alguém alguma vez sonhou que Fidel Castro daria início a uma ordem republicana? Morreu na sua cama – como tantos tiranos – ainda aclamado pelo mito de uma Revolução que prometia ser de Martí e acabou stalinista. Mas esse mito já não sustenta os militares cubanos, donos daquela ilha de tristeza que morre de fome e de solidão diante dos nossos olhos. Por tudo isto, o regresso à democracia na Venezuela estabeleceria um precedente fundamental: provaria que os ditadores de esquerda também estão a abandonar o poder.

A Venezuela livre chegará. Voltarão os filhos e netos que migraram, voltarão os agricultores, trabalhadores, empresários, profissionais e técnicos espalhados pelo mundo, voltarão os laços diplomáticos e comerciais, voltará o capital, a PDVSA se reconstituirá como a empresa estatal exemplar que já foi e muitas empresas expropriadas ou arruinadas renascerão. A paz voltará às estradas, às praças e às consciências.

E os horrores? E as horríveis prisões e salas de tortura? E justiça? No seu exílio indeterminado, os déspotas gastarão os seus milhões, os seus milhares de milhões. Os venezuelanos curarão as suas feridas, honrarão os seus mártires, mas não terão tempo de olhar para trás. Eles reconstruirão a sua república, respirarão o ar da liberdade.

Enrique Krauze, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente pelo EL PAÍS, o diário global, em 07 de janeiro de 2025.

Pesquisas - Curiosidades do Maranhão

          No Maranhão, não tem governo fraco, todos são fortes. Aqui a Penitenciária de Pedrinhas foi matéria do Fantástico, tal as atrocidades ocorridas ali de cabeças decepadas, mas as pesquisas sempre apontaram índices de aprovação acima de qualquer bom senso. 

Pontes caem, pessoas perdem as vidas, mas o resultado das pesquisas não muda. Nem o mistério da Santíssima Trindade é tão complexo de explicar como os resultados dos escrutínios locais que envolvem desempenho de governos.                

Cerca de 61 famílias estão morando debaixo da Ponte José Sarney, conhecida como Ponte do São Francisco, em São Luís. Grande parte destas pessoas estão vivendo em condições precárias, sem acesso à água encanada, saneamento básico e alimentação. (Blog do Djair Prado)
                                     
Uma coisa que me chama atenção há bastante tempo são as pesquisas sobre desempenho dos governos aqui no Maranhão. Em geral, todos os governos recebem aprovação da população pesquisada acima de 70%. Não raro chegam a 90%, independentemente de como estão os índices sociais do estado se comparados aos demais, quase sempre na rabeira. Se o índice é o de pobreza pior ainda. Andam juntos, o aumento da pobreza e o da popularidade dos governantes. Que coisa engraçada, não fosse trágica.

Não importa o quão são deploráveis o desempenho dos governantes, como deixaram os índices sociais que medem a sua passagem pelo honroso cargo de governador, as pesquisas desmoralizam o trabalho censitário do IBGE. Chego a desconfiar que tais estatísticas oficiais valem para todos os estados, menos para o Maranhão.

Recentemente, viu-se uma pesquisa que teria sondado a opinião de mais de 22.000 entrevistados, nos 217 municípios do Estado, cujo resultado foi a aprovação do desempenho do atual governo de 70,9%. Não se tem notícias se a coleta das opiniões foi ao vivo ou por telefone, ou outro método qualquer que agora mais recentemente a inteligência artificial tenha produzido; também não se sabe quantos dias foram consumidos para a realização de tal façanha, se ela desceu ao campo ou foi feita no escritório. O que se sabe é que em São Luís a aprovação do nosso governo não passava de 40%. É de se estranhar, portanto, que a soma dos outros municípios tenha superado o peso da população da Capital e o resultado tenha ido a 70,9% de aprovação. Teria ocorrido uma revolução silenciosa na percepção pública?  (Dados e comentários do Diário 98).

A isso ser verdade, há que se parabenizar o governo pelo que está fazendo no interior do Maranhão, ainda que por aqui disso não se tenha notícias. Se você tenta analisar os dados, não encontra cruzamentos sólidos para ter uma ideia do mistério circundante. Alguém me falou que o Instituto Opinião, realizador da pesquisa, deve ter se esquecido das entrevistas e exibiu opinião própria acerca do objeto pesquisado.

No Maranhão, não tem governo fraco, todos são fortes. Aqui a Penitenciária de Pedrinhas foi matéria do Fantástico, tal as atrocidades ocorridas ali de cabeças decepadas, mas as pesquisas sempre apontaram índices de aprovação acima de qualquer bom senso. Pontes caem, pessoas perdem as vidas, mas o resultado das pesquisas não muda. Nem o mistério da Santíssima Trindade é tão complexo de explicar como os resultados dos escrutínios locais que envolvem desempenho de governos.  

Antigamente, tínhamos o IBOPE, que se consagrou entre nós pelas fraudes em pesquisas eleitorais, mormente quando se tratava de beneficiar o grupo Sarney. Agora, parece que tudo ficou ainda mais fácil de fraudar, pois não há vigilância da concorrência. Jornais de oposição desapareceram, emissoras de TV também, rádios tomaram o mesmo rumo, agora só existem diários oficiais ou panfletos de governo.

A grande verdade do Maranhão é que aqui não existe sociedade civil, ninguém reclama nada. Todos os absurdos que se cometem contra a população são tidos como normais. Um exemplo bem claro desta afirmação foi a cassação do governador Jackson Lago (costumo chamar de estupro judicial): nenhuma manifestação da sociedade civil sobre o assassinato que o TSE cometeu contra a população que elegeu democraticamente o governador, o mesmo Tribunal que, depois, decide diferentemente em Recurso Contra Expedição de Diploma mandando que o TRE seja ouvido em primeiro lugar, como deveria ter sido ouvido no caso do ex-governador.

A sociedade civil há tempos perdeu a voz, anda de joelhos perante os poderosos, de cabeça baixa, moralmente abatida, envergonhada da cabeça aos pés. Triste!

Aziz Santos, o autor deste artigo, é economista. Foi Secretário do Planejamento e Orçamento do Estado (Governo Jackson Lago - 2007-2009). Publicado originalmente no WhatsApp).

domingo, 5 de janeiro de 2025

Sempre será a economia, estúpido

Democratas têm de encontrar formas de se comunicar melhor com os americanos

Bolsa de NY: democratas precisam retomar narrativa econômica (Seth Wenig / AP).

Tenho 80 anos e posso ver claramente que caminhamos em direção a um ambiente de mídia não tradicional

Achei que Kamala Harris ganharia. Eu estava errado. Tenho certeza de que nós, democratas, podemos argumentar que a derrota não foi esmagadora ou encontrar um pequeno consolo em nosso desempenho na Câmara, mas o mais importante agora é encarar que estávamos errados e tomar uma atitude sobre o “porquê”.

Estive repassando isso na minha cabeça pelos últimos dois meses, todas as variáveis, todos os “e se”, todas as perguntas sobre as decisões de reeleição de Joe Biden, que tipo de democrata ou mensagem poderia ter funcionado contra Donald Trump. Continuo voltando para a mesma coisa. Perdemos por uma razão muito simples: era, é e sempre será a economia, estúpido! Precisamos começar 2025 com essa verdade como estrela-guia e não nos distrair com mais nada.

Embora a economia dos EUA permaneça a mais forte do mundo, com o PIB disparando e a inflação diminuindo, o povo americano não se contentou em estar melhor do que o restante ou em considerar isso como bom o suficiente.

Trump, pela primeira vez em sua carreira política, venceu decisivamente ao conquistar uma faixa de eleitores de classe média e de baixa renda focados na economia. Os democratas simplesmente perderam a narrativa econômica. A única via para a salvação eleitoral é retomá-la.

A percepção é tudo na política, e muitos americanos nos veem como alheios à economia – não sentindo a dor deles, ou então preocupados demais com outras coisas.

Para reconquistar a narrativa econômica, devemos nos concentrar em acelerar uma máquina de mensagens transformada para o novo paradigma político em que agora nos encontramos. Trata-se de encontrar maneiras de falar com os americanos sobre economia que sejam persuasivas. Repetitivas. Memoráveis. E totalmente focadas nas questões que afetam a vida cotidiana dos americanos.

OPOSIÇÃO. Isso começa com a maneira como formamos nossa oposição. Primeiro de tudo: temos de parar de fazer do próprio Trump nosso foco principal – ele não pode ser eleito novamente. Além disso, está claro que muitos americanos não estão nem aí para os indiciamentos de Trump – mesmo que sejam justificados – ou para seus impulsos antidemocráticos ou para questões sociais se eles não conseguirem sustentar a si mesmos ou a suas famílias.

Trump ganhou colocando a raiva econômica dos americanos em primeiro plano. Se focarmos em qualquer outra coisa, corremos o risco de cair ainda mais no abismo. Nossa máquina de mensagens deve se concentrar em se opor à impopular agenda econômica republicana que viverá além dele.

Oponha-se ao partido, não à pessoa ou ao extremismo de seu movimento. Não concordo sempre com Wall Street, mas Jamie Dimon estava certo quando disse que os democratas atacarem o trumpistas era insultante e politicamente insensato. Denunciar outros americanos ou seu líder como malfeitores não vai ganhar eleições; focar na dor econômica deles sim, assim como contestar a agenda econômica republicana.

Haverá muito a se opor. Nossa mensagem central deve girar em torno de se opor aos cortes de impostos dos republicanos para os mais ricos. É profundamente impopular, e sabemos que eles querem fazer isso novamente.

Então, atacamos o resto. Sabemos que os republicanos, provavelmente, farão os custos diários dispararem com tarifas desastradas; eles certamente tentarão cortar o Obamacare (programa de acesso à saúde), aumentando as mensalidades da classe trabalhadora; e provavelmente não farão quase nada para conter os custos dos medicamentos prescritos.

Em uma exibição verdadeiramente impressionante de desumanidade, o presidente da Câmara, Mike Johnson, já cortou o financiamento da saúde para os trabalhadores do 11 de Setembro e sobreviventes. Virá algo muito pior.

OFENSIVA. Mas, claro, a oposição é apenas metade da moeda. Enquanto os democratas têm quase nenhuma chance de passar uma agenda econômica progressista e ousada nos próximos quatro anos, o que podemos fazer é forçar os republicanos a se oporem a nós. Devemos estar na ofensiva com uma agenda econômica popular e populista que eles não podem apoiar.

Vamos começar forçando-os a se opor a um aumento do salário mínimo para US$ 15 por hora. Vamos fazer do Roe v. Wade (precedente legal que autoriza o aborto) uma questão de mensagens econômicas – e forçálos a bloquear nossas tentativas de codificá-lo em lei.

E vamos retomar a questão da imigração, tornando-a uma questão econômica – e forçar o Partido Republicano a negar uma reforma que acelere a entrada de talentos de alto desempenho e daqueles que trarão negócios para nossa nação.

Este ano, a liderança do Partido Democrata deve se reunir e publicar uma agenda econômica criativa, popular e ousada e retomar proativamente nosso território econômico. Seja ousado, seja populista, foque no progresso econômico – e force os republicanos a se oporem ao que não podem apoiar. Em uma só voz.

NOVAS MÍDIAS. Finalmente, os democratas devem avançar decididamente com essa agenda econômica no novo paradigma de mídia em que agora vivemos. Sou um homem de 80 anos e posso ver claramente que estamos avançando em direção a um ambiente de mídia não tradicional e descentralizado.

Podcasts são os novos jornais e revistas impressas. Plataformas sociais são uma consciência social. E influenciadores são os guardiões digitais dessa consciência. Nossa mensagem econômica deve ser afiada, clara e direta – e devemos levá-la diretamente ao povo.

Aos futuros presidenciáveis democratas, suas audições para 2028 devem ser baseadas em duas coisas: 1) O quão autênticos vocês são sobre a economia e 2) quão bem vocês transmitem as ideias em um podcast.

O caminho à frente não será fácil, mas não há duas estradas para escolher. O caminho a seguir não poderia ser mais certo: vivemos ou morremos pela vitória na percepção pública da economia. Assim foi, assim é e assim será para sempre. 

James Carville, o autor deste artigo, é Consultor de Campanhas Democratas, incluindo a de Bill Clinton, em 1992). Publicado originalmente no New York Times e reproduzido no Brasil n'O Estado de São Paulo, em 05 de janeiro de 2025.

A violência sem limites

Todas as dores originadas da violência perdem a magnitude, porém, quando comparadas aos registros da Bíblia relatando que Caim matou seu irmão Abel. 

O assassinato é crime sem paralelo, mas se agiganta quando a vítima é o próprio irmão. 

Tudo aí passa a ter uma sordidez absoluta que conduz necessariamente a outra indagação: seria esse o futuro da humanidade, em que a inveja é dominante e conduz ao assassinato, à fraude e ao roubo?


E ainda há quem, nessa extrema direita sádica, defenda hoje a volta da ditadura no Brasil. Parafraseando o Cristo, eles não sabem nada sobre o que falam e querem. (Foto de Evandro Teixeira, meu colega de trabalho no Jornal do Brasil.)

Completei 90 anos em meados de 2024. Na maior parte desse tempo convivi direta ou indiretamente coma violência. Tive ímpetos violentos também, e a tal ponto que me leva a indagar: o próprio viver será violento?

Talvez a ideia se origine porque me alfabetizei através dos jornais que descreviam os sangrentos combates da 2.ª Guerra Mundial e os horrores do nazismo. Até hoje, recordo os filmes documentários em que as vitoriosas tropas aliadas levavam os habitantes das cidades alemãs para conhecer os campos de concentração nos quais milhares (ou milhões) de pessoas, principalmente judias, foram torturadas e mortas pelos nazistas.

Em agosto de 1945, festejamos o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, matando a população civil elevando o Japão a render- se. Desconhecíamos o horror da expansão nuclear e aplaudíamos o fim da 2.ª Guerra Mundial.

Todas as dores originadas da violência perdem a magnitude, porém, quando comparadas aos registros da Bíblia relatando que Caim matou seu irmão Abel. O assassinato é crime sem paralelo, mas se agiganta quando a vítima é o próprio irmão. Tudo aí passa a ter uma sordidez absoluta que conduz necessariamente a outra indagação: seria esse o futuro da humanidade, em que a inveja é dominante e conduz ao assassinato, à fraude e ao roubo?

Talvez a pergunta seja exagerada e não tenha sentido, pois os que matam, fraudam e roubam são uma minoria que a sociedade repele, a polícia vigia ou combate e o Judiciário pune.

Em alguns casos, porém, a violência é tão brutal que foge a toda interpretação (até as mais ilógicas e absurdas) como sucedeu com Gisèle Pelicot, estuprada na França por mais de 50 homens levados pelo próprio marido numa requintada perversão absoluta. O marido a sedava antes de entregá-la à sanha dos estupradores, revelando-se um psicopata que supera todos os violadores e masoquistas da História.

Ou como ocorreu aqui em 2008, quando Alexandre Nardoni assassinou a filha Isabel e hoje cumpre pena de 30 anos de prisão em regime aberto.

A violência agigantou-se a tal ponto que, se nos assaltam de arma em punho para roubar, chegamos a agradecer aos criminosos por nos deixarem com vida. 

Amanhã, 4 de janeiro, este jornal completa 150 anos, e por suas páginas passaram os mais variados tipos de violência e, por outro, também atos de amor. Aí esteve a descrição de um tempo impossível de medir ou quantificar em dias ou horas. O Brasil e o mundo já não são os mesmos de 1875, o estilo de vida sofisticou-se e outras são as necessidades.

Também a violência é outra: agigantou-se a tal ponto que, se nos assaltam de arma em punho para roubar, chegamos até a agradecer aos criminosos por nos deixarem com vida.

No Brasil, não há pena de morte. Como já lembrei aqui, nenhum juiz pode condenar à morte o autor do crime mais brutal, mesmo com provas concretas. No entanto, a polícia mata diretamente ou pelas “balas perdidas” que atingem até crianças. Lembro um caso recente: em Osasco, na madrugada do Natal, um jovem de 24 anos foi baleado à queima-roupa por um policial ao filmar uma ação da Polícia Militar.

Nos anos 1960, morando em Brasília, vivi a angustiosa tristeza do golpe militar de 1.º de abril de 1964 e dele fui vítima. Conheci a tortura, que a ditadura transformou em método de interrogatório.

No entanto, existe outra violência que é cega e que é exercida pelas torcidas no desporto, especialmente no futebol. As competições desportivas exigem adversários, pois, sem a parte contrária, não existiria jogo e tudo seria amorfo e sem vencedor. Podem compreender-se até as jogadas violentas ou bruscas, nas quais se apoiam ambas as equipes, para derrotar o seu contrário. Aí busca-se a vitória que é a finalidade de toda competição. Mas sem a parte contrária – insisto – não existiria confronto desportivo.

As torcidas, porém, brigam além do arrebatamento típico de toda disputa. Algumas vezes chegam a matar-se num corpo a corpo que toma conta dos estádios e que nem a polícia consegue impedir. Ou, então, são apedrejados os ônibus que conduzem os torcedores da parte contrária. Em certas ocasiões, existem até casos de morte.

É, então, o momento de recordar a visão do escritor francês Albert Camus ao dizer que “o conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol”.

Por sua vez, Hannah Arendt escreveu que há ocasiões em que até o pensar representa um perigo que nasce do desejo de encontrar resultados que tornem desnecessária toda visão crítica.

Indago: não será isso o que mostra o inquérito da Polícia Federal que, entre outros, apontou o general Braga Netto como um dos mentores da conspiração que levaria ao assassinato do presidente e do vice-presidente da República, além de um ministro do Supremo Tribunal Federal? Não se trata de um marginal, mas de general “quatro estrelas”, que foi ministro da Defesa no governo Bolsonaro e seu companheiro de chapa (como Vice - Presidente) na frustrada tentativa de reeleição.

O assassinato não se consumou, mas prepará-lo já define o perverso limite da violência sem limites.

Flávio Tavares, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor - Prêmio Jabuti de Literatura 2000 e 2005. Prêmio APCA 2004. Professor Aposentado da Universidade de Brasília. Publicado n'O Estado de São Paulo, em 05 de Janeiro de 2025. 

O custo do loteamento político

Queda de ponte sobre o Rio Tocantins reacende polêmica em torno do Dnit, gestor da infraestrutura de transportes terrestres e aquaviários há anos usado na distribuição política de cargos

O colapso da ponte sobre o Rio Tocantins, um desabamento que engoliu carros, motos e caminhões, fazendo 17 vítimas, entre mortos e desaparecidos, na divisa dos Estados do Maranhão e Tocantins, traz à tona uma questão tão antiga quanto revoltante: a serventia do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), que hoje se limita a funcionar como cabide de apadrinhados políticos em todo o território nacional.

Alvo, há anos, de investigações sistemáticas por denúncias de corrupção, superfaturamento de obras e outras irregularidades, o departamento, vinculado ao Ministério dos Transportes, administra um orçamento bilionário – foram R$ 16,62 bilhões em 2023 e R$ 14,72 bilhões em 2024, para citar apenas os últimos dois anos – para gerir a política de infraestrutura de transportes terrestres e aquaviários. Ou seja, contrata obras e serviços de manutenção de estradas (com suas pontes, viadutos e túneis), ferrovias, portos e vias navegáveis.

Conta com superintendências em cada Estado para atender todo o País e é justamente essa capilaridade, aliada ao orçamento do órgão, a principal fonte de atração numa disputa suprapartidária. Somente a formação da diretoria do Dnit já dá a dimensão da quantidade de cargos disponíveis no departamento. O colegiado é formado por sete membros, e cada um deles comanda uma diretoria específica que reúne entre 6 e – pasmem – 27 outros integrantes.

A queda do vão central da sexagenária ponte entre Aguiarnópolis (TO) e Estreito (MA) reúne elementos que sugerem má conservação. E o pior, o estado precário da via, com trânsito intenso e pesado de veículos de carga, foi denunciado inúmeras vezes por moradores e políticos. O próprio Dnit atestou a precariedade da ponte em 2019, dando a ela nota 2, numa escala de 1 a 5, sendo 1 o estado mais crítico. Depois da ruptura, o órgão informou que a licitação que havia lançado para a manutenção fracassou.

Não é desculpa para o gritante descaso, ainda mais quando se trata de uma usina de problemas como se apresenta há anos o Dnit. A autarquia foi criada em 2001 para reestruturar o sistema de transportes, substituindo o antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (Dner), de igual má fama. Como não basta trocar o nome para extinguir o imbróglio – embora seja este um expediente comum no País –, não demoraram a aparecer novas denúncias.

Em 2011, depois de assumir pela primeira vez a Presidência, Dilma Rousseff anunciou uma “faxina completa” no Dnit, após denúncias de superfaturamento em licitações. Afastou diretores e, para deixar claro a adoção de uma “linha dura”, nomeou oficiais do Exército para cargos de direção, numa aparente contradição da gestão petista. Reportagem do Estadão da época reproduziu um diálogo de Dilma com o então recém-empossado ministro dos Transportes, Paulo Sérgio Passos: “Paulo Sérgio, você tem de fazer uma ‘limpa’ nesse ministério e no Dnit. Todo dia a gente abre o jornal e tem uma crise. Não tem cabimento isso! Eu não quero mais saber de denúncia contra A, B ou C. Tem de tirar todo mundo de lá!”.

Pelo andar da carruagem, a faxina promovida por Dilma deve ter apenas varrido a sujeira para debaixo do tapete, como diz a expressão popular. O problema continuou ali, como um painel permanente do custo do loteamento político de cargos em órgãos de controle. Uma barganha, diga-se, feita às claras, como se fosse o expediente mais natural do exercício do poder político.

No governo de Jair Bolsonaro, o Dnit foi alvo de investigações da Operação Rolo Compressor, por desvio de recursos. Em novembro passado, a Fase 2 da operação, conduzida por CGU, Polícia Federal, Receita e Ministério Público Federal, relatou denúncias em obras que somam R$ 693,8 milhões no Paraná. Em janeiro de 2023, início do terceiro mandato de Lula da Silva, o governo informou que ouviria as bancadas estaduais na Câmara para definir os superintendentes regionais do Dnit. As imagens da ruptura da ponte do Rio Tocantins estão aí para confirmar, da forma mais cruel, quem acaba pagando a conta de tanta permuta política.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 03 Janeiro de 2025

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Luís XVI e Lula III

A Revolução Francesa nos ensinou que, quando a elite do país se ilude com governos corruptos, líderes populistas e um Estado antiliberal, ela perde o pescoço, seus negócios e propriedades

Na véspera da Revolução Francesa, o rei Luís XVI estava alienado da situação dramática da nação. A fome que assolava o país, o caos das finanças públicas e a existência de um governo que extorquia a população por meio de uma carga tributária brutal para financiar os privilégios e as mordomias de uma corte encastelada no Palácio de Versalhes desencadearam a Revolução Francesa, em meados de 1789. Lula III está cada vez mais parecido com Luís XVI. A lição que o presidente brasileiro deveria aprender com o rei da França é de que o povo não aguenta o desaforo de maus governantes por muito tempo.

O Brasil parece a França às vésperas da revolução. Um governo encastelado em Brasília, cujo único “programa” é arrecadar mais impostos para financiar um Estado caro, ineficiente e corrupto. Apesar de já pagarmos a carga tributária mais alta entre os países emergentes, o governo quer nos taxar mais para financiar um Estado que já consome 40% do PIB e presta serviço público de péssima qualidade, como atestam os indicadores de educação (60% das crianças não estão devidamente alfabetizadas) e de segurança pública (43 mil homicídios por ano, equivalentes a 10% dos homicídios do mundo). O crescimento exponencial do crime organizado e a incompetência do Estado em combatê-lo já mudaram o panorama econômico e político do País. O lucro do crime organizado é empregado para eleger políticos, financiar advogados e corromper juízes. Estamos a caminho de nos tornarmos um narcoestado em pouco tempo.

No mundo encantado de Brasília, a corte vive regada a privilégios – e o papel do povo é pagar a conta com o suor do seu trabalho. A gastança desenfreada do Poder Executivo e sua relutância em promover o ajuste fiscal contribuíram para o aumento da inflação, o desarranjo das contas públicas e o aumento recorde da taxa de juros. O Poder Judiciário tornou-se o propagador da insegurança jurídica. Além de ser o Judiciário mais caro do mundo e gastar 1,6% do PIB para financiar seus privilégios, supersalários e penduricalhos, as cortes tornaram-se antro de escândalo de venda de sentenças e o Supremo Tribunal Federal (STF) deixou de atuar como guardião da Constituição e tornou-se reduto do ativismo judicial, onde imperam decisões arbitrárias e o desrespeito ao devido processo legal. O Congresso Nacional tornou-se um balcão de negócios. Quando os recursos são liberados, votam-se propostas sem ler ou entender o que está em jogo, contribuindo para o aumento das despesas públicas e o agravamento da irresponsabilidade fiscal.

O populismo petista alimenta o nacional-estatismo. Assim como a corte de Versalhes de Luís XVI, a corte de Brasília cultiva sua clientela de nobres palacianos que dependem das benesses do Estado. A “Bolsa Empresário” – soma de benefícios fiscais, subsídios e regimes especiais – custa três vezes mais que o Bolsa Família. Esse capitalismo de Estado é uma vergonha que criou um país viciado em governo e transformou o Brasil no paraíso dos rentistas do Estado, onde o sonho é conquistar um privilégio ou uma meia entrada estatal. A existência de uma elite omissa, que abandonou a arena política e apoia líderes populistas, é corresponsável pela degeneração da democracia, da economia de mercado e da liberdade no Brasil.

A saída para livrarmos o País do populismo, do Estado ineficiente e do nacional-estatismo é a mobilização cívica. Precisamos nos mobilizar para lutar por três causas vitais: educação de qualidade, meio ambiente e abertura comercial. Temos de transformar a educação de qualidade na prioridade nacional para preparar as crianças e jovens para o mundo do conhecimento, garantir igualdade de oportunidade e impulsionar o ganho de produtividade. É imperioso transformar a vocação ambiental do Brasil numa potência global capaz de exercer um papel protagonista na agricultura sustentável, no desenvolvimento da bioeconomia e na transformação de áreas degradadas em florestas plantadas. A abertura comercial é vital para tirar o País da armadilha da renda média, gerar crescimento econômico sustentável, impulsionar a competitividade e a inovação para criarmos riqueza e prosperidade.

Por fim, precisamos combater os populistas na política, nas urnas, nos tribunais e nas redes sociais. Demagogos que pregam a salvação da democracia por meio de golpe, do aparelhamento das instituições e da propagação da censura e da arbitrariedade jurídica revelam sua descrença nas virtudes da liberdade de expressão, do livre mercado e da capacidade de fazermos as nossas próprias escolhas sem a tutela do Estado.

A Revolução Francesa nos ensinou uma lição importante: quando a elite do país se ilude com governos corruptos, líderes populistas e um Estado antiliberal, ela acaba perdendo o pescoço, suas propriedades e seus negócios. Se quisermos evitar o caminho da guilhotina, é bom acordarmos e começarmos a combater o populismo, defender a liberdade e nos preparamos para vencermos as eleições em 2026 e tirar a esquerda do poder. Feliz Natal e que Deus nos ilumine nesta travessia do deserto.

Luiz Felipe D'Avila, o autor deste artigo, é cientista político e autor do livro ‘10 Mandamentos – Do brasil que Somos para o País de Queremos’. Foi candidato à Presidência da República (2022). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.12.24

Uma história de resistência

A história do Natal é a afirmação de que a periferia sabe inverter o destino a ela designado por quem não a ama; de que recomeços são possíveis

Pintura sobre nascimento de Jesus - (Wikimedia commons)

O Natal é uma história da esperança humana e, nesse sentido, uma história de todos nós. O imaginário presente nas narrativas dos diferentes evangelhos articulam figuras simbólicas e miraculosas a fim de afirmar que a realidade, por mais crua que seja, pode se tornar surpreendente e inverter sua própria lógica e sentido.

Assim, transitam anjos e magos pela Belém periférica, cenário do refúgio de um casal sem casa e de uma criança sem lugar para nascer. A manjedoura, centro simbólico da vida excluída e desabrigada, carrega a força da inversão e a teimosia da resistência de quem ressurge dos escombros produzidos pelo sistema gerador de desigualdades e morte.

A criança nasce, e sobre ela cantam anjos e brilham estrelas. Visitantes longínquos caminham cerca de um ano na direção apontada pela estrela vista no oriente. A tradição os chama de magos e reis. Eles buscam uma presença tão intensa que seja capaz de iluminar a vida. Seguem o seu desejo profundo de encontrar graça e amor suficientemente amplos que abrigue a humanidade inteira.

A palavra "desejo" é linda! Vem do latim "desiderare" e é composta pela preposição "de" e "sider", "sidus", estrela. Assim, etimologicamente falando, "desejo" significa "o que procede de uma estrela". Não é surpreendente que, ao longo da história, nossos antepassados tenham escolhido situar a "casa" de Deus nos céus, no meio das estrelas, porque Deus é o nome do nosso desejo mais profundo. Quando pronunciamos a palavra "Deus" estamos nomeando a energia pulsante que está dentro de nós e, ao mesmo tempo, além de nós; estamos nominando nossos antigos anseios entranhados bem lá no fundo e, simultaneamente, dando asas a nós mesmos.

Os magos, que Heródoto diz ser originalmente uma tribo que habitava na região de Medes e se tornado uma casta sacerdotal entre os persas, são considerados pela tradição como sábios, observadores das estrelas; hoje seriam astrônomos.

Quando, de acordo com a narrativa, eles se encontram com Herodes indagando sobre o paradeiro da criança, dizem que "viram no oriente a sua estrela". A palavra grega para "oriente" é "anatolai", que está no plural. No singular, a palavra "anatolé" significa "nascente". "A sua estrela no oriente" significa "a sua estrela nascente", ou "a estrela que se levanta".

No mundo antigo era comum associar o nascimento de uma grande pessoa ou um grande evento ao aparecimento de estrelas ou sinais celestes. Estudiosos contemporâneos dizem que o que os reis magos viram não era uma estrela, mas o encontro dos planetas Vênus e Mercúrio, que acontece a cada 400 anos e dá a impressão de ser uma grande estrela no céu. Outros astrônomos pensam tratar-se do cometa Halley, que passa pela Terra a cada 70 anos. Independentemente do fenômeno cósmico que tenha ocorrido (ou não), essa história carrega em si muitas outras histórias.

Os poderosos do mundo que, estando em governos, empresas ou bancos, agem sem piedade. Nele estão os banqueiros que impõem taxas de juros excruciantes, tornando a vida insuportável; estão governos como o de Israel e seus parceiros, que matam indiscriminadamente mulheres e crianças palestinas numa guerra injustificável e cruel; estão os membros do governo passado que planejaram o assassinato do presidente e vice-presidente eleitos e do ministro da Corte Suprema. Nele estão todos aqueles e aquelas que naturalizam os mecanismos geradores de desigualdades, exclusões e mortes.

A história do Natal é uma história de resistência a esses poderes tortos. É a afirmação de que a periferia sabe inverter o destino a ela designado por quem não a ama. É o nosso desejo de uma humanidade mais humana e é a nossa esperança de que recomeços são possíveis.

Lusmarina Campos Garcia, a autora deste artigo, teóloga e pastora luterana, é doutora em direito (UFRJ). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 25.12.24 .

O governo dos milionários

Pela primeira vez, os donos de imensos monopólios, digitais ou não, chegaram diretamente ao poder político para defender os seus interesses

                                                                    Elon Musk por Eulogia Merle

Um. Há muitos anos, em meados do século XIX, o multifacetado pensador de Trier, um certo Karl Marx, levado pelo seu refinado espírito crítico, sustentava que os governos eram os conselhos de administração dos interesses da burguesia como um todo. . Talvez quando essa frase foi escrita respondesse ou refletisse boa parte da realidade, mas com o passar do tempo e a evolução das lutas sociais e políticas acabou perdendo a sua virtualidade. Basta pensar que em meados do século XIX não existia sufrágio universal - as mulheres eram proibidas de votar e o voto censitário ainda funcionava para os homens, ou seja, para os ricos. Os partidos operários não tinham nascido e as formações conservadoras e/ou liberais representavam apenas as classes proprietárias, pelo que o dizer ou a reflexão poderiam ter feito sentido. Depois, com a extensão do sufrágio após a Segunda Guerra Mundial, e o aparecimento de partidos de esquerda no final do século XIX, a situação começou a mudar, e, com o passar do tempo, estes partidos chegaram aos governos e já não conseguiam sustentar isso. eles representavam os interesses da burguesia.

Dois. A partir de então, os partidos políticos, embora personifiquem interesses económicos diferentes dependendo das classes e sectores em que a sociedade está dividida, não foram uma simples nomenclatura mimética dessas classes ou sectores, uma vez que as pessoas não pensam e agem apenas por desejos económicos. . Pelo contrário, são motivados por uma maior variedade de causas e impulsos: crenças religiosas e atitudes morais; concepções ideológicas; sentimentos de identidade; estruturas culturais ou costumes ancestrais. Assim, como assinala a nossa Constituição no seu artigo 6.º, “os partidos políticos expressam o pluralismo político, contribuem para a formação e manifestação da vontade popular e são um instrumento fundamental para a participação política”. Tão fundamentais que sem eles não há democracia ou algo parecido. É por isso que venho insistindo há muitos anos que os ataques sistemáticos, relevantes ou não, aos partidos, aos políticos, à política nada mais são do que ataques contra a democracia. É claro que a crítica concreta e fundamentada às decisões políticas ou ao comportamento individual acarreta uma atitude muito diferente da desqualificação genérica dos partidos ou dos políticos como se fossem uma “classe” ou “casta” com interesses próprios, versão que se tem difundido como a lepra com grandes danos à democracia.

Três. Agora, superada a representação de classe, típica do Antigo Regime, de base material agrária, e constituídas as nações após a Revolução Francesa, os partidos políticos começaram a emergir como a representação essencial das democracias como órgão intermediário entre os cidadãos. . e poder político. Ao mesmo tempo, foram criadas novas instituições, como as que compõem os diferentes poderes do Estado, os próprios meios de comunicação e, no calor da revolução industrial, as organizações sindicais e patronais. Todos eles com o propósito, entre outros, de evitar a concentração excessiva de poder nas suas diferentes formas e de alcançar um equilíbrio saudável no funcionamento do sistema. Um processo que tem vindo a desenvolver-se nas democracias mais ou menos avançadas que conhecemos até agora. A propósito, algumas democracias cuja base material ou física, móvel ou imóvel, têm sido essencialmente os objectos, as manufaturas típicas daquela revolução industrial com a sua correspondente “propriedade dos meios de produção”, apropriada ao capitalismo. No entanto, o que foi dito acima começa a mudar rapidamente como consequência dos efeitos da revolução digital se, por exemplo, estivermos conscientes de que esta mutação – inteligência artificial e outras – ainda está na sua primeira infância. E, no entanto, já está a ter consequências notáveis ​​no funcionamento da nossa vida política, uma vez que a sua matéria-prima não são os objetos, mas nós próprios e a pilhagem dos nossos dados.

Quatro. Um destes efeitos, que atinge o cerne da democracia, é que forças muito poderosas compreendem, em virtude do controlo que têm sobre estas tecnologias, que as suas instituições – partidos, sindicatos, elementos do próprio Estado ou dos meios de comunicação social – são um obstáculo, o que tenho chamado de jibarização da democracia. Um exemplo do que estou expondo está acontecendo nos Estados Unidos, desde o triunfo de Trump/Musk. Uma primeira manifestação consistiu no facto de, pela primeira vez de forma tão obscena, grandes proprietários ou gestores de imensos monopólios, digitais ou não, terem acedido diretamente ao poder político e a partir daí manifestarem claramente os seus interesses particulares. Se observarmos as nomeações de Trump, podemos certificar que muitas delas foram para milionários que pertencem aos mesmos sectores económicos que devem assumir politicamente, a começar por Musk. Com efeito, as principais linhas que emergem das intenções destes poderosos milionários poderiam ser resumidas nos seguintes títulos: para começar, estamos perante uma Administração Trump/Musk e não o Partido Republicano, que foi raptado pelo magnata e pelos seus amigos e família, sem necessidade de partidos ou Conselhos de Ministros, pois são a fusão, osmose ou acoplamento da economia e da política. Uma deriva muito perigosa cujo antecedente europeu, numa escala muito menor, foi a Itália de Berlusconi e já vemos como terminou. Depois, na mesma linha, aquele slogan que Musk, ou Sr. X, lançou no dia em que venceram as eleições, dirigindo-se ao público: “Agora vocês são os meios de comunicação”; Ou seja, sou a opinião, já que todos os meios de comunicação tradicionais - jornais, rádios ou televisões - são supérfluos, porque as redes sociais e os algoritmos que eu e os meus comparsas controlamos são as pessoas e temos bastante todo o resto. Se o exemplo se espalhar, passaremos da propriedade privada dos meios de produção para a propriedade privada das consciências e opiniões, através do X, Google ou TikTok. Assim, pretende-se também reduzir o Estado à sua expressão mínima, tarefa a que Musk e outro milionário se dedicarão no futuro quando declararem que há milhões de funcionários públicos e todos os órgãos estatais que se dedicam aos poucos tarefas sociais que existem nos EUA. Se estivessem na Europa, calçariam as botas. No fundo, uma manifestação de anarco-liberalismo-niilismo, que permite uma redução radical dos impostos que põe fim ao que resta do Estado social, um artefacto que, na opinião dos seus mais ilustres teóricos como Milei e companhia,É um roubo. Para finalizar o trabalho, uma passagem pelo negacionismo ambiental, pois não há necessidade de se preocupar se nosso planeta vai para o inferno, pois segundo a tese criacionista do prefeito Oreja e outros, algum Criador beneficente irá substituí-lo para nós ou mesmo nos fornecer com um novo. A conclusão final de tudo isto não é outra senão que, se estas teorias e políticas triunfassem, isso significaria a evaporação da social-democracia que conhecemos e, claro, não seria aconselhável tentar a sorte e acreditar nestas bobagens criacionistas, para que não sejam uma farsa e só sejam salvos aqueles que puderem ir a Marte com Musk e seus amigos.

Nicolás Sartorius, o autor deste artigo, é advogado e escritor. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 25.12.24. Seu último livro é "Expansive Democracy" (Anagrama). 

O que prova que Jesus existiu?

Entre historiadores é praticamente consenso que Jesus foi um personagem real. Sem evidências arqueológicas, sua existência pode ser comprovada em antigos relatos não ligados ao cristianismo.

Quadro de Leonardo da Vinci, "A última Ceia", retrata Jesus e apóstolos comendo à mesa (Foto: World History Archive/picture alliance)

Para a maior parte dos historiadores contemporâneos, a existência de um homem chamado Jesus, que viveu há cerca de 2 mil anos na região da Galileia, ficou conhecido por suas pregações e acabou executado pelo poder romano, é tida como verdade. E isto não é uma questão de fé — até porque essas pesquisas se limitam a buscar evidências daquilo que é história e não do mito criado depois em torno da figura deste ser humano.

Mas não há nenhum objeto, nenhum artefato, nenhum resquício palpável de sua vida.

"Jesus fazia parte de um campo socioeconômico de pessoas simples e comuns, subalternos que viviam no limite da sobrevivência. A arqueologia não tem condições de identificar [vestígios de] pessoas comuns e anônimas, de mapeá-las. E nem por isso elas deixaram de existir", pontua o historiador André Leonardo Chevitarese, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de, entre outros, Jesus Histórico: Uma Brevíssima Introdução.

"Precisamos lembrar que Jesus não era um personagem importante no tempo em que ele viveu, então não esperamos encontrar um monumento feito para ele em sua época", exemplifica o historiador Alex Fernandes Bohrer, professor do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e autor do livro Jesus: Um Breve Roteiro Histórico Para Curiosos.

Aquele homem pobre, de origem camponesa, provavelmente analfabeto, monoglota no aramaico, que passou a maior parte da vida numa minúscula cidade — Nazaré — localizada na periferia do império romano, até arrebanhou alguns seguidores. Contudo, sua relevância só ganharia corpo tempos depois de sua morte, quando seus seguidores — e os seguidores desses seguidores — acabariam fazendo uma religião do seu legado.

Relíquias supostamente ligadas à crucificação e morte dele, como a coroa de espinhos guardada na Catedral de Notre-Dame, em Paris, e o tecido de linho que teria envolvido seu cadáver, conhecido como Santo Sudário e exposto na Catedral de Turim, na Itália, não têm autenticidade comprovada por pesquisas científicas — há suspeitas de que seriam peças forjadas ao longo da Idade Média.

Historiadores antigos

Para os estudiosos, contudo, a existência do Jesus histórico se comprova por textos de historiadores antigos que o citam e evidências arqueológicas indiretas que confirmam o contexto descrito em passagens bíblicas sobre ele.

Autor da obra Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus, o padre e biblista John Paulo Meier (1942-2022) entendia ser importante buscar referências extrabíblicas sobre o Jesus histórico, já que "as evidências bíblicas são tendenciosas, encapsuladas em um texto teológico escrito por crentes comprometidos".

O nome de Jesus aparece entre autores romanos e judaicos. O historiador romano Cornélio Tácito (56 d.C. – 118 d.C.), que notoriamente desprezava os cristãos, mencionou-o em seu relato sobre o famoso incêndio de Roma ocorrido no ano de 64. No texto, ele diz que o imperador Nero (37-68), para "acabar com o boato" de que teria sido ele o mandante do ato, "substituiu como culpados e puniu das formas mais incomuns aqueles odiados por seus atos vergonhosos, a quem a multidão chamava de cristãos". "O fundador deste nome, Cristo, havia sido executado no reinado de Tibério pelo procurador Pôncio Pilatos", escreve Tácito.

"Tácito, como autores clássicos em geral, não revela as fontes que usou. Mas isso não deve diminuir nossa confiança em suas afirmações", avalia o historiador Lawrence Mykytiuk, professor na Universidade de Purdue, nos Estados Unidos, em artigo publicado em 2015. Em sua avaliação, Tácito "estava entre os melhores historiadores de Roma" e "nunca era dado a escrever descuidadamente".

Santo Sudário está em Turim (Foto: Godong/robertharding/picture alliance)

Outro autor comumente citado é Flávio Josefo (37 d.C. – 100 d.C.), historiador judaico-romano. Ele menciona Jesus duas vezes em sua obra Antiguidades Judaicas.  O livro A Guerra dos Judeus também cita o personagem em algumas versões, mas não há consenso se tais trechos são autênticos ou interpolações posteriores de autores cristãos.

Em Antiguidades Judaicas, há uma menção incidental quando ele está identificando Tiago, líder da igreja em Jerusalém — o autor o define como "irmão de Jesus que é chamado Messias". Mykytiuk comenta que ao usar Jesus para identificar claramente "Tiago, o assunto da discussão", o historiador acaba deixando claro que Jesus havia sido "uma pessoa real".

O outro trecho, mais longo, é envolto em polêmica. Porque a versão que se conhece traz algumas colocações claramente cristãs, sugerindo que houve deturpações ao longo dos séculos. Contudo, pela análise textual comparativa com outros escritos de Josefo e a comparação com uma tradução árabe descoberta no século 20, a maior parte dos historiadores concorda que parte do texto é autêntica — ou seja: sobre um relato não religioso acerca da figura histórica, cristãos acrescentaram elementos teológicos.

Assim, extrai-se que "por volta dessa época vivia Jesus, um homem sábio", "um mestre de pessoas" que "conquistou muitos judeus e muitos gregos". Diz ainda que morreu crucificado, mas que "a tribo dos cristãos, assim chamada após ele, não está extinta até hoje".

Outros historiadores abordaram Jesus. Por exemplo, Plínio, o Jovem (61 d.C. – 114 d.C.), que registrou a existência de uma adoração primitiva a ele.

Na época, ninguém contestou sua existência

Há ainda evidências documentais indiretas da existência de Jesus. O teólogo Robert Van Voorst, autor de Jesus Outside The New Testament: An Introduction to the Ancient Evidence olha para os documentos produzidos por rabinos da época para afirmar que "nenhum judeu [daquele período] que se opôs ao cristianismo negou ou questionou a historicidade de Jesus".

Em seu livro, ele lembra que "se alguém no mundo no mundo antigo tinha uma razão para não gostar da fé cristã, eram os rabinos". Portanto, "argumentar que Jesus nunca existiu, mas foi uma criação dos primeiros cristãos, teria sido a polêmica mais eficaz contra o cristianismo". "Todas as fontes judaicas trataram Jesus como uma pessoa totalmente histórica. Os rabinos usaram os eventos reais da vida de Jesus contra ele", aponta Van Voorst.

Por ser um cidadão comum, não foram construídos monumentos para Jesus enquanto ele viveu (Foto: Carl De Souza/AFP)

Na arqueologia, são evidências indiretas que também atestariam, no entendimento de pesquisadores, a existência do Jesus real. "De uma figura sem muita expressividade no primeiro século, que era importante apenas para aqueles que o conheciam, não esperamos encontrar vestígios diretos. Mas há os indiretos", diz Bohrer. "Que, somados e colocados num prisma histórico, permitem tecer um panorama geral."

Ele cita túmulos "de pessoas ligadas à história de Jesus", como o ossário de Caifás, descoberto em 1990 e que pode ser do sumo-sacerdote de mesmo nome — embora não haja consenso entre os pesquisadores. E também do anel atribuído ao governador romano Pôncio Pilatos, descoberto em 1968 e analisado em 2018. "Existe uma série de elementos que demonstram que aquele contexto existiu", comenta o historiador.

A cidadezinha de Jesus

Chevitarese lembra de outro trabalho recente, o realizado pelo arqueólogo Ken Dark, professor do King's College, de Londres, e autor do livro Archaelogy of Jesus' Nazareth. Ao longo de 14 anos, Dark realizou um extenso trabalho arqueológico em busca dos resquícios da cidade de Nazaré dos tempos de Jesus — inclusive para provar que o povoado existia naquela época.

"Ele constatou, do ponto de vista estratigráfico, que Nazaré existia desde a segunda metade do século 2º antes da Era Comum", pontua Chevitarese. Na análise do arqueólogo, a cidade onde Jesus morou era paupérrima e tinha de 300 a 500 habitantes.

"Portanto, a arqueologia demonstra, do ponto de vista de um cenário histórico, que é plenamente coerente a existência de Nazaré, de Jesus e de tantos outros camponeses daquela primeira metade do primeiro século", conclui o professor da UFRJ.

Edison Veiga, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente em Deutsche Welle / A Voz da Alemanha, em 25.12.24

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

O gabinete petista da desinformação

Numa ofensiva claramente coordenada, o governo petista inventa que o País está sob ‘ataque especulativo’ dos inimigos do Brasil e de Lula, tudo para desviar a atenção de suas lambanças

Incapaz de reconhecer o real motivo da crise de confiança no Brasil e tomar providências para reduzir as incertezas com as contas públicas do País, o governo do presidente Lula da Silva recorreu a uma operação tipicamente lulopetista para explicar a escalada do dólar e as turbulências no mercado financeiro: de maneira claramente organizada, liderada de dentro do Palácio do Planalto, difundiu a “narrativa” de que tudo não passa de um ataque especulativo contra a moeda brasileira, contra o governo e contra o Brasil. Segundo tal lógica, usada por porta-vozes do governo e do Partido dos Trabalhadores (PT) como quem enfrenta inimigos do povo, os recordes sucessivos da cotação do dólar, cuja disparada só arrefeceu depois da injeção de bilhões de dólares pelo Banco Central (BC), foram resultado de uma espécie de complô malévolo em escala internacional. Os especuladores, representados pela “Faria Lima”, estariam mobilizados para arruinar Lula e, por extensão, o povo brasileiro.

A tese, evidentemente, não se sustenta – como, aliás, afirmou o futuro presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, nome indicado por Lula para suceder a Roberto Campos Neto. Galípolo demonstrou discordar da ideia de que o País está sob ataque especulativo e lembrou o óbvio: o mercado não é “algo monolítico, tem compra e venda, vencedores e perdedores”. Para ele, “ataque especulativo como algo coordenado não representa bem”. Lula e seus sabujos não pensam da mesma forma. Apesar dessa clareza solar de Galípolo, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, mais uma vez reafirmou suas teses persecutórias, seguida de nomes como o deputado federal Zeca Dirceu (PT-PR) – que pediu à Polícia Federal para abrir um inquérito contra a “Faria Lima” –; o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA); o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE); e o presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Ricardo Cappelli.

Ficou indisfarçável a ideia de que a estratégia foi forjada não apenas nas hostes do partido – que, como se sabe, se impôs à equipe econômica do governo e quer mandar mais na economia do que o ministro Fernando Haddad –, e sim do Palácio do Planalto. A artimanha ficou patente quando o ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom), Paulo Pimenta, foi às redes sociais na quarta-feira (18/12) para difundir a tese, com a ênfase de quem denuncia um golpe de Estado. Definindo o tal “ataque especulativo” como “crime de lesa-pátria”, Pimenta afirmou que “a indústria das fake news está trabalhando mais uma vez contra o Brasil, e nós precisamos agir”, informando que o governo acionou autoridades para identificar autores de frases mentirosas atribuídas a Galípolo – e que tais frases espalhadas pelo mundo livre da internet, e não as lambanças do governo no plano fiscal, teriam produzido as oscilações no câmbio. É o estado da arte do lulopetismo.

O Brasil ainda tem fresca na memória a atuação do chamado “gabinete do ódio” dos tempos bolsonaristas – quando havia uma estrutura de comunicação dentro do governo de Jair Bolsonaro destinada a difundir mentiras e atacar opositores na internet. Mas esse gabinete do ódio, malgrado muito competente em seu mister, foi apenas um aprendiz dos infames “blogs sujos”, que nos primeiros governos petistas recebiam generoso financiamento público para atacar sistematicamente os desafetos do partido. Ou seja, os petistas são a vanguarda veterana na arte de destruir reputações e inventar conspirações e estão sempre a postos para agir quando a coisa aperta, o que costuma acontecer com frequência.

Os atuais inquilinos do Palácio do Planalto, portanto, estão fazendo exatamente o que deles se esperava: contaminam o debate público com bobagens paranoicas que desviam a atenção do País do que realmente importa, difundindo teorias conspiratórias e apontando o dedo para inimigos ocultos sem resolver nenhum dos problemas reais. São métodos característicos de governos populistas e autoritários.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 23.12.24

Uma usina de corrupção

Corrupção é só a mais aviltante das muitas formas de corrosão democrática resultantes das emendas parlamentares, cuja opacidade faz delas terreno fértil para desvio de recursos

No dia 10 passado, uma força-tarefa da Polícia Federal (PF), do Ministério Público e da Controladoria-Geral da União (CGU) deflagrou uma operação para desarticular um suposto esquema de fraudes licitatórias e desvios de recursos relacionado ao Departamento Nacional de Obras contra as Secas. Segundo a PF, a organização criminosa sob suspeita movimentou cerca de R$ 1,4 bilhão, incluindo R$ 825 milhões em contratos com órgãos públicos só em 2024. Foram cumpridos mandados de prisão preventiva e busca e apreensão em cinco Estados. As investigações apontam superfaturamento em obras para empresas e indivíduos ligados a administrações municipais. Para a surpresa de rigorosamente ninguém, os recursos são oriundos de emendas parlamentares.

As emendas, ou seja, recursos do Orçamento público manejados por parlamentares, são um instrumento legítimo empregado nas democracias e previsto na Constituição Federal com o objetivo de atender a demandas das comunidades representadas pelos congressistas. No Brasil, contudo, desde 2015 seu volume vem crescendo para níveis exorbitantes, sem paralelo no mundo, ao mesmo tempo que mecanismos de alocação técnica, transparente e equânime foram desmantelados.

Utilizadas pelos congressistas para atender à sua clientela paroquial, as emendas corroem a democracia e a coisa pública de diversas maneiras, seja distorcendo a competição eleitoral, seja pulverizando gastos sem eficiência nem isonomia. Mas, além dessa corrupção em sentido amplo, a falta de transparência e controle incentiva a corrupção em sentido estrito, de desvio de recursos públicos para enriquecimento privado.

A corrupção patrocinada com emendas não é novidade. Já em 1993, estourou o escândalo dos Anões do Orçamento, que desviavam recursos para organizações sociais fantasmas e empreiteiras. A diferença é que à época as emendas constituíam uma fração marginal do Orçamento.

Só entre 2020 e 2024 as chamadas “transferências especiais”, criadas em 2019, cresceram de R$ 600 milhões para R$ 8,2 bilhões. Apelidadas de “emendas Pix”, na prática funcionam como doações aos Estados e municípios, que podem empregá-las como bem entenderem, sem que a União tenha qualquer controle sobre a sua execução. Ou seja, um verdadeiro convite à corrupção. Operações como a da PF oferecem uma pequena brecha para vislumbrar uma estrutura que tem tudo para ser uma usina de escândalos pronta a explodir.

Auditorias recentes realizadas pela CGU com pequenas amostragens de municípios beneficiados com esses repasses indicam toda sorte de irregularidades: ONGs sem capacidade para realizar os serviços contratados, obras paradas ou nem iniciadas e muitas vezes supérfluas, indícios de superfaturamento, concentração de recursos em algumas localidades enquanto outras restam completamente desatendidas, suspeitas de propinas e extorsão, incapacidade dos municípios de prestar contas e mais um longo et cetera.

Sanear este estado de coisas calamitoso exigiria mecanismos que responsabilizassem os congressistas que fizeram os repasses, ampliassem a transparência na execução orçamentária, exigissem garantias de governança por parte dos receptores e garantissem aos órgãos da União, como o Tribunal de Contas, prerrogativas de fiscalização sobre os gastos.

Após o Supremo Tribunal Federal suspender o pagamento das emendas até que atendessem a “critérios técnicos de eficiência, transparência e rastreabilidade”, os chefes dos Três Poderes fizeram um acordo prevendo uma série de determinações que se orientavam para a implementação de mecanismos como esses. Para as emendas Pix, por exemplo, previram-se critérios técnicos de priorização, seleção e execução dos projetos, apresentação prévia de plano de trabalho ou prestação de contas a órgãos de fiscalização da União. Mas nada disso foi satisfatoriamente atendido na Lei Complementar aprovada pelo Congresso.

À base de chantagens e arranjos improvisados, congressistas tentam forçar a liberação das emendas, enquanto se negam a prestar informações sobre repasses passados e se esforçam por manter os futuros na penumbra. Operações como as realizadas pela CGU ou pela PF mostram a razão disso.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 23.12.24

sábado, 21 de dezembro de 2024

O Congresso afronta o Brasil

Diante de um presidente incapaz de sinalizar preocupação com o equilíbrio das contas, deputados e senadores desidratam ajuste fiscal e fazem a farra com emendas e verbas partidárias


Deputados e senadores cercam mesa diretora da sessão conjunta do Congresso que aprovou a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025

A esta altura, é ocioso afirmar que o Congresso não dá a mínima para o Brasil e para os contribuintes. No entanto, não deixa de espantar a sem-cerimônia com que os senhores deputados e senadores ignoraram olimpicamente as agruras fiscais do País e enfraqueceram o já esquálido pacote de ajuste fiscal apresentado pelo governo. Além disso, aproveitaram o ensejo e, na votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2025, deixaram em aberto a possibilidade de aumentar a verba do Fundo Partidário de R$ 1,3 bilhão para R$ 1,7 bilhão e proibiram o corte de emendas impositivas ao Orçamento caso haja aumento de despesas obrigatórias. A tesourada só poderá ocorrer na improvável hipótese de haver queda na arrecadação federal.

Tudo isso sob o olhar complacente de um governo que parece ter perdido completamente a iniciativa política. Que a base do presidente Lula da Silva é volátil, para dizer o mínimo, todos sabem, mas, num regime presidencialista, é do Executivo que deve partir a sinalização dos rumos do País. E a sinalização dada por Lula, com clareza cada vez maior, é que os limites fiscais já não existem mais, se é que um dia existiram.

Se Lula quisesse, ou tivesse vocação para isso, poderia articular melhor a base para aprovar medidas de contenção de gastos mais duras. Recorde-se que os governos de Michel Temer e de Fernando Henrique Cardoso conseguiram aprovar reformas destinadas a conter o endividamento com um Congresso não muito diferente do atual. A diferença de Temer e FHC para Lula é que os primeiros tinham genuíno interesse em equilibrar as contas públicas, pois sabiam que disso dependia a prosperidade do País, ao passo que o petista sempre foi adepto da tese de que é o Estado quem deve promover o crescimento, por meio de gastos públicos – chamados eufemisticamente por Lula de “investimentos”.

Na ausência de convicção do governo, os parlamentares foram cirúrgicos ao analisar as propostas de ajuste fiscal e, diante de um plano de revisão de despesas que já chegara esvaziado, atuaram para enfraquecê-lo ainda mais. Assim, os deputados rejeitaram as alterações no Benefício de Prestação Continuada (BPC), mantendo apenas o pente-fino para reduzir fraudes. Além disso, abriram brechas para que os penduricalhos que permitem que o teto remuneratório seja ignorado possam ser mantidos. Os privilegiados do Judiciário e do Ministério Público certamente agradecem.

As emendas de comissão, herdeiras das antigas emendas de relator, base do chamado orçamento secreto, até poderão ser bloqueadas, segundo o projeto de lei do pacote fiscal, mas somente se os gastos obrigatórios superarem o teto definido pelo arcabouço fiscal, e no limite de 15% do valor total. Para garantir que tudo isso ocorra sem intercorrências, deputados e senadores autorizaram o Executivo, na LDO, a perseguir o limite inferior da meta fiscal do ano que vem, como fez neste ano.

Seria fácil, mas injusto, culpar apenas o Congresso por toda essa farra. Se é verdade que os presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), têm sido fundamentais para garantir a aprovação dessas medidas, também é verdade que ninguém menos que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, afirmou recentemente que o Judiciário “não tem nenhuma participação nem responsabilidade sobre a crise fiscal brasileira”.

Os parlamentares são fisiológicos, mas dançam conforme a música. A maioria não quer comprar brigas com o Executivo. Se o governo atua em favor das reformas, o Congresso tende a aprová-las. Se o governo atua contra essas propostas, não há por que se desgastar com elas.

Tudo isso é reflexo da atitude de Lula da Silva. O presidente deveria dar o exemplo e defender seu pacote fiscal, mas vê no dólar a R$ 6,00 e nos juros futuros a 15% apenas um “ataque especulativo” do mercado financeiro contra seu governo.

Se há cegueira ou convicção na avaliação de Lula da Silva, pouco importa. Se o presidente da República, que em tese é o maior interessado, não acha que há um problema fiscal, não há razão para o Congresso se preocupar com o tema.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo. em 20.12.24 20 

Emendas parlamentares, a grande jabuticaba

O Brasil fragmenta o uso de seus recursos orçamentários, reduzindo a eficiência, produzindo redundâncias e estimulando a corrupção

Neste corre-corre de final de ano, deputados podem votar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para turbinar emendas individuais. Hoje, elas têm um limite de 2% da Receita Corrente Líquida. Esse limite já foi de 1,2%. Agora, pode crescer de novo, para 2,9%. Hoje, os parlamentares já dispõem de R$ 49 bilhões do Orçamento.

Isso é uma jabuticaba brasileira, uma anomalia nacional, se comparamos com outras democracias. Nos outros países, o Congresso tem um grande poder sobre o Orçamento, debatendo cada item, como o fazem os comitês orçamentários nos EUA. Na Inglaterra, o Orçamento preparado pelo Tesouro é apresentado pelo primeiro-ministro. Os parlamentares têm o direito de questionar os gastos, mas não de controlar sua aplicação.

Essa anomalia brasileira significa uma perda de poder do Executivo e, na verdade, interfere na separação de Poderes.

As eleições presidenciais não colocam o problema com a seriedade que tem. Lula da Silva prometeu acabar com o orçamento secreto, mas o fim dessa modalidade é apenas o fim de uma grande aberração inconstitucional. Se o orçamento secreto for superado, o que nunca é pelas inúmeras artimanhas para fugir à transparência, apenas será retirado um bode da sala.

O problema continuará de pé: que sentido terá um projeto presidencial, se o vencedor não tem condições de manejar os recursos orçamentários para realizar um programa aprovado pela maioria?

Uma saída pseudorrealista é estourar o Orçamento. Mas as consequências desse estouro se refletem na inflação e acabam inviabilizando o próprio programa, por meio de instabilidade econômica.

O argumento para as emendas parlamentares é o de que os deputados conhecem em detalhes as necessidades de suas regiões. Isso pressupõe que o governo central as ignora. Não haveria a possibilidade de trocar informações, de criar nos ministérios uma comissão de escuta dessas necessidades?

Da mesma forma, as chamadas emendas de comissões são uma espécie de redundância. Elas podem alcançar o limite de 1% da Receita Corrente Líquida. Mas as comissões no Congresso são uma réplica dos ministérios, elas atuam numa área em que o governo federal tem responsabilidade. Por que duplicar a administração de recursos? Por que o Ministério da Educação, por exemplo, não pode incluir em seus gastos as aspirações da comissão do Congresso?

Outra dificuldade são as chamadas emendas de bancada. São propostas pelo conjunto dos deputados de um Estado. Seu argumento é oposto ao das emendas individuais: são destinadas às grandes obras no Estado, às obras estruturais. Se os deputados partem do pressuposto de que pequenas obras escapam ao governo, aqui admitem que ele ignora as obras estruturais.

Na verdade, as chamadas emendas de bancadas acabam sendo divididas entre os deputados, uma espécie de rachadinha para que cada um destine sua parte do recurso.

A proposta que circula agora na Câmara acaba com a emenda de comissão e torna tudo emenda individual. É uma forma de se aproximar da verdade. No fundo, todos querem usar as emendas nos seus redutos individuais.

Mas a jabuticaba continua brilhando no pé. O Brasil, ao contrário das grandes democracias, fragmenta o uso de seus recursos orçamentários, reduzindo a eficiência, produzindo redundâncias e, por último, algo muito importante, estimulando a corrupção.

É um país em que aviões repletos de dinheiro são apreendidos pela Polícia Federal, em que vereadores jogam fortunas pela janela, na chegada da polícia – enfim, o País em que algumas cidades recebem por radiografias feitas em todos os seus habitantes, como se houvesse uma fratura unânime em seus limites territoriais.

A superação desse problema é muito difícil. Parece quase impossível fazer o gênio voltar para a lâmpada. Mas o primeiro passo, nas eleições de 2026, é não encarar as eleições presidenciais com tanta exclusividade, não montar frentes apenas com uma vaga visão democrática, mas tentar reduzir o desequilíbrio entre Executivo e Legislativo num campo tão decisivo como o da aplicação dos recursos orçamentários.

A batalha pela transparência e rastreabilidade das emendas parlamentares toca apenas na ponta do iceberg, apesar da sua enorme importância.

Não só o desequilíbrio continuaria a existir com a transparência. A própria ideia de controlar as emendas através de planos de trabalho é de difícil execução. Quem faria isso, com que regularidade e eficácia num país tão vasto?

A jabuticaba é insustentável se quisermos, como outras democracias, administrar com seriedade nossos recursos, que aliás não são nem do Executivo nem do Legislativo, mas frutos do trabalho da sociedade.

Não é sonhar muito com um país onde as coisas andam com regularidade e as pressões e contrapressões do processo se deem pelo confronto de ideias. Hoje o ritmo do trabalho parlamentar é primordialmente decidido pelo pagamento das emendas. Há dinheiro, trabalha-se; faltou dinheiro, boicotam-se as votações. A jabuticaba torna nossa democracia vulgar e desalentadora.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 19.12.24

Congresso atua como sindicato dos ricos e trava ajuste fiscal de que Brasil precisa, diz especialista em desigualdade

Desde que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou o pacote de corte de gastos públicos planejado pelo governo, na última quarta-feira de novembro, o país vive as consequências das reações à proposta.

Congresso 'atua como um empecilho à economia do país' (Getty)

O dólar ultrapassou a casa dos R$ 6 pela primeira vez na história no dia seguinte ao anúncio e lá ficou como expressão da insatisfação do mercado – que diz que esperava por medidas mais rígidas de redução fiscal. Na terça-feira (17), o dólar fechou em R$ 6,09.

No Congresso, a bancada governista também torceu o nariz, mas por outra razão: deputados estavam preocupados com as implicações nos programas sociais, sobretudo no Benefício de Prestação Continuada (BPC), mas também no salário mínimo.

Ao final, o Planalto precisou negociar com seu próprio partido, o PT, por votações favoráveis aos projetos.

Um dos maiores especialistas em desigualdades do país, o sociólogo Marcelo Medeiros, evita fazer críticas diretas ao ministro e seu pacote, mas deixa claro que, para ele, as medidas são ruins — e por vários motivos.

"É que é mais fácil cortar de quem é pobre do que de quem é rico. Também é mais imoral", resume.

Para Medeiros, é um erro político e moral mexer no salário mínimo

À BBC News Brasil, Medeiros, que está pesquisando neste ano na Universidade Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos, e ainda é ligado à Universidade de Brasília (UnB), argumenta que o ajuste fiscal deveria focar em tributação no topo da renda, e não na base.

Estendendo essa análise, a decisão de isentar do Imposto de Renda (IR) uma classe média que ganha até R$ 5 mil por mês é uma "gotinha no oceano" perto do que deveria ser, para ele, realmente feito: revisar o grosso dos subsídios fiscais para diferentes setores produtivos.

Por causa desses subsídios, em 2022, o país renunciou a um montante de R$ 581 bilhões – ou mais de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) – em impostos, segundo dados oficiais.

Mas esse ajuste fiscal, que ele considera o pacote que deveria ser feito, de fato, não avança no Brasil por causa do Congresso, "que está atuando como um empecilho à economia do país" ao se comportar como um "sindicato dos ricos".

Porém, na leitura de Medeiros, o erro político — e moral — mais grave está em mexer no salário mínimo, que terá um teto de 2,5% de reajuste anual.

"Do Plano Real para cá, o principal mecanismo de redução de pobreza no Brasil tem sido o salário mínimo, e não Bolsa Família ou qualquer outro programa de assistência", diz Medeiros.

Sociólogo aponta limitações e problemas em pacote de ajuste fiscal anunciado pelo ministro Fernando Haddad.

Vinícius Mendes, Jornalista, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 18.12.24

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Lula, imorrível ou a cavalo como El Cid

O bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro, irá em frente. Já o lulismo não tem nenhum sucessor à vista

Lula fala à imprensa após receber alta no Hospital Sírio-Libanês - Zanone Fraissat - 15.dez.24/Folhapress

As ziquiziras de saúde de Lula acordaram os últimos distraídos para uma preocupação: a falta de opções no espectro democrático na vacância do titular. Há uma carência de nomes na esquerda, na centro-esquerda e até no campo liberal. A direita e a extrema direita, ao contrário, apesar do rabo entre as pernas pelos processos de golpismo contra Bolsonaro e asseclas, tornarão competitivo qualquer um que apresentem no lugar de seu inelegível e, em breve, condenado mito. O bolsonarismo, com ou sem Bolsonaro, irá em frente. O resto do Brasil terá de contar com Lula. Não há opções viáveis nas suas proximidades.

Já foi diferente. Um jovem eleitor de hoje achará difícil de acreditar, mas, na primeira eleição pós-democratização para presidente, em 1989, tínhamos um largo arco de escolhas. Eram 22 candidatos. Metade só visava um brilhareco junto aos familiares, mas os demais eram para valer e representavam vários pensamentos políticos. E, sem carbonários à direita ou à esquerda, ninguém chegava sequer perto das extremidades do arco.

De um lado, o sindicalista Lula, o trabalhista Leonel Brizola, o social-democrata Mario Covas, o liberal Ulysses Guimarães, o comunista Roberto Freire e o ambientalista Fernando Gabeira. Cada qual com seu programa, mas todos respeitáveis e comprometidos com o Brasil. Nenhum eleitor poderia ser crucificado por pender para qualquer deles. Lula, Brizola e Mario Covas perderam, mas foram bem. Ulysses fracassou e Freire e Gabeira tiveram os votos que esperavam, os dos amigos.

Do outro lado, Paulo Maluf, Guilherme Afif, Aureliano Chaves, Ronaldo Caiado e Fernando Collor. Todos beneficiários ou ex-funcionários da ditadura, mas que, se deixados por conta de seus interesses pessoais, não ameaçariam as liberdades básicas.

Hoje essa ameaça é palpável e com nuances sombrias para a democracia. O PT empurrou todos os partidos para a direita e formou uma poderosa frente contra si próprio. E seu líder, homem de fé, está convencido de que é imorrível. Em último caso, à falta de melhor, irá às eleições em 2026 amarrado ao cavalo, como El Cid.

Ruy Castro, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor; autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues. é membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 19.12.24

Con­gresso, o dinheiro aca­bou!

A falta de republicanismo é flagrante. Mas não é só um problema ético, moral e que ameaça a democracia, no sentido de abalar o processo orçamentário típico. 
É também o sintoma de um sistema político doente e cada vez mais distante das reais necessidades do povo brasileiro. 


Onde no Brasil o diabo mais gosta

A festa acabou, o povo sumiu e anoite esfriou, parafraseando Carlos Drummond de Andrade. Entretanto, o Congresso Nacional continua coma faca no pescoço do ministro da Fazenda, na busca por mais e mais emendas parlamentares e benesses. É preciso aprovar as ações de ajuste fiscal e retomar a responsabilidade com o dinheiro público.

A farra com as emendas parlamentares chegou ao limite de ensejara atuação do próprio Supremo Tribunal Federal( STF ), a partir da correta decisão do ministro Flávio Dino. Ela obriga à transparência e delimita os parâmetros para organizar o coreto. Contudo, em plena votação do pacote de ajuste fiscal, as lideranças do Congresso partilham na penumbra vultosos recursos públicos – antes, vale dizer, bloqueados pela atuação do STF.

A falta de republicanismo é flagrante. Mas não é só um problema ético, moral e que ameaça a democracia, no sentido de abalar o processo orçamentário típico. É também o sintoma de um sistema político doente e cada vez mais distante das reais necessidades do povo brasileiro. Veja-se, por exemplo, a matéria do programa Fantástico, da TV Globo, que mostrou orecapeamento asfáltico financiado por emendas, em determinadas localidades, em condições mais parecidas com um “chiclete”. Para onde foi o dinheiro?

A lambança promovida pelo Congresso tem consequências sobre a economia, para além do mau uso do recurso público, cada vez mais escasso em um contexto de dívida pública crescente. O mercado precifica a irresponsabilidade fiscal nos juros e dólar mais caros. Não tem nada a ver com o maquiavelismo do mercado sugerido por lideranças petistas nos últimos dias. Ora, vejam, não temos hoje no Banco Central diversos diretores apontados pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Como vão culpar, agora, o competente Roberto Campos Neto? Sinuca de bico para a retórica de boteco adotada por esse setor da política que, aliás, compõe a própria base governista.

O País precisa urgentemente de um choque fiscal. A dívida pública vai alcançar os 80% do Produto Interno Bruto (PIB), rapidamente, e a tarefa de estabilizar esse indicador poderá transformar-se em missão impossível. Tudo depende da elite política do País e de sua consciência. O dinheiro acabou, nobres parlamentares. Já rasparam o tacho, já distorceram a reforma tributária do consumo

Até quando o País aguentará que certas saúvas sigam trabalhando para acabar com o crescimento econômico e a normalidade dos mercados?

enfiando mais benefícios para a Zona Franca de Manaus e diversos setores amigos do rei. O que mais os senhores pretendem?

Agora, desidratam os projetos e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enviada pelo Executivo para providenciar um ajuste fiscal mínimo. Atuam como se Brasília fosse uma espécie de bolha apartada da sociedade brasileira e da economia. Enquanto a pobreza e a miséria ainda envergonham a Nação, o Congresso dá-se ao luxo de praticar o proselitismo, mas não por ele mesmo; pior, tendo em vista mascarar seus reais objetivos de disparar mais e mais recursos por meio de emendas, descumprindo a decisão do STF.

Até quando o País aguentará que certas saúvas sigam trabalhando para acabar com a prosperidade, o crescimento econômico e a normalidade dos mercados? Estamos chegando a um limite preocupante. O ministro da Fazenda parece voz isolada. O presidente da República tem de entrar no jogo e mostrar de que lado está: do populismo barato, com medidas impensadas para ampliar a isenção do Imposto de Renda, ou do ajuste das contas e da responsabilidade que ele mesmo chegou a defender e a praticar?

Deixar nas mãos do Banco Central a tarefa de restabelecer a normalidade na economia nacional vai significar juros nas alturas e crescimento econômico no chão. A elevação da Selic é o instrumento de que a autoridade monetária dispõe, bem como as intervenções no mercado de dólar. Mas o uso dessa caixa de ferramentas não servirá para muita coisa se o Congresso não avançar na direção do ajuste fiscal proposto pelo governo.

É hora de apoiar o programa de contenção de gastos. Mais do que isso, de aprimorá-lo e de ampliá-lo. A dívida pública não vai se estabilizar apenas com as ações anunciadas. Sobretudo, não estacionará na presença de juros ainda mais elevados, já contratados em 14,25% ao ano após a última decisão do Comitê de Política Monetária (Copom).

Para ter claro, o déficit primário projetado para o ano que vem, mesmo sob os efeitos do novo pacote, tende a ficar acima de R$ 90 bilhões. A meta zero, como se vê, está muito distante. Pior, para estabilizar a dívida/PIB, é preciso produzir superávit primário. Com juros reais de 10%, nível para o qual estamos caminhando sem atalhos, mesmo que a economia cresça em torno de 3%, seria preciso gerar superávit primário de mais de 5,5% do PIB. É impraticável. A conta evidencia o tamanho do pesadelo em que nos metemos por pura inépcia.

O governo tem culpa na demora para enviar as medidas de ajuste, na contratação de gastos desnecessários desde o início do mandato atual e na falta de foco na tesoura. Entretanto, tomou uma decisão correta, agora, ao enviar um pacote de contenção de gastos. O Congresso tem de acordar para a realidade e deixar de lado a mesquinharia que parece ter dominado o Plenário Ulysses Guimarães. 

Felipe Salto, o autor deste artigo, é o economista - chefe e sócio da Warren Investimentos. Foi Secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de S. Paulo (2022). Publicado n'O Estado de S. Paulo, m 19.12.24