domingo, 24 de setembro de 2023

María Corina Machado tem clara vantagem nas pesquisas na Venezuela um mês antes das primárias da oposição

As eleições, que serão realizadas no dia 22 de outubro, são objeto de um duro cerco institucional que incentiva deserções e gera incerteza

María Corina Machado em entrevista ao EL PAÍS via Zoom, em Caracas, no dia 6 de julho. (Crédito da Foto: Gaby Oraa)

Faltando um mês para as eleições primárias da oposição venezuelana – concordaram em escolher uma liderança unificada que possa ser apresentada como alternativa ao chavismo nas eleições presidenciais de 2024 – a direitista María Corina Machado aproveita todas as pesquisas de opinião para liderá- la . com conforto. A política conta com um percentual que oscila em torno de 40% de apoio, com tendência de alta, triplicando o de seu concorrente mais próximo, Henrique Capriles Radonski.

Como os demais candidatos, Machado realiza suas mensagens políticas sem acesso à televisão ou aos meios de comunicação de massa, lidando com atos periódicos de sabotagem. O crescimento da sua candidatura tem sido tão vertiginoso que os seus números sugerem que ele nem sequer teria de se preocupar em finalizar acordos unitários se a Venezuela organizasse consultas eleitorais verificáveis ​​com garantias.

“O crescimento de Machado é muito significativo”, afirma o consultor político Osvaldo Ramírez. “Tem vários motivos. Um contexto onde as pessoas se sentem desligadas da política e do partido do governo. As pessoas interpretam que poderá haver uma renovação da liderança da oposição. A liderança tradicional da Plataforma Unitária está a cobrar o seu preço aqui. Os esforços de María Corina para se diferenciar deles valeram a pena”, acrescenta.

Oito em cada dez venezuelanos, segundo Ramírez, querem mudanças políticas no país. Embora organizado e presente em todo o país, o chavismo é hoje um movimento em retrocesso. A estagnação económica deste ano colocou Nicolás Maduro num momento particularmente crítico de aceitação.

A fundadora do partido Vente Venezuela é recebida com veemência pelas vilas e cidades que visita, embora se saiba que está formalmente desqualificada para participar nas eleições presidenciais, tal como Capriles, graças a uma medida administrativa do Governo Chavista. Sem discutir os motivos ou a validade da inabilitação, Diosdado Cabello afirmou diversas vezes que será impossível a Machado se inscrever como candidato pela medida e afirma que “engana seus seguidores”.

O presidente do Conselho Nacional Eleitoral do país, Elvis Amoroso, autor das inabilitações, decidiu dar uma resposta tardia ao pedido de colaboração técnica feito pela Comissão Eleitoral Primária há dois meses à anterior directiva do Poder Eleitoral. A desqualificação de Machado e Capriles parece ser um critério inamovível no chavismo. Alguns partidos da oposição estão interessados ​​num acordo com a CNE. A resposta de Amoroso sugere que o chavismo está a manobrar com sucesso para dividir mais uma vez os seus adversários.

À medida que a liderança de Machado cresce, o cenário em que deveria ser legitimada, que é a própria organização primária, é objeto de um duro cerco político e institucional. Há muitas pessoas que temem que as eleições não possam ser realizadas. Todas as quartas-feiras, no seu programa de televisão, Diosdado Cabello, dirigente máximo do governista PSUV, intriga sobre as alegadas deficiências do evento e as divergências internas dos seus organizadores, prevendo que estes não serão organizados. Questionou a origem do financiamento das primárias e solicitou a investigação de José María Casal, presidente da Comissão Eleitoral.

Embora os candidatos continuem determinados, os prazos sejam cumpridos e os boletins eleitorais tenham até sido emitidos, o medo espalha-se. Alguns voluntários civis envolvidos no processo demitiram-se, alegando desculpas técnicas. Alguns centros de votação terão destinos complexos e estarão expostos aos ataques do chavismo ou às suas represálias legais. María Carolina Uzcátegui, principal membro da Comissão Eleitoral Primária, não só renunciou, mas agora realiza uma campanha insistente na qual afirma que as exigências logísticas não foram atendidas e que a consulta não é mais viável.

A Plataforma Unitária emitiu um comunicado no qual denuncia “o plano que Nicolás Maduro, através dos seus diferentes porta-vozes, empreendeu contra o direito do povo venezuelano de escolher o seu candidato unitário através de eleições democráticas”. Omar Barboza, de Nuevo Tiempo, secretário executivo da Plataforma, afirmou que existe um “plano perverso” orquestrado desde Miraflores, para enfraquecer vontades e “atrair porta-vozes” que desacreditam a eleição.

É muito óbvio que uma secção da oposição moderada tem uma oposição clara a Machado e estaria interessada em ver como ele a impede. Mais uma vez, proliferam rumores sobre soluções alternativas e fórmulas consensuais para chegar a um acordo sobre um candidato.

“A maioria do país vê as primárias com bons olhos e entende a sua importância, mas isso não significa que todos participarão”, afirma Félix Seijas, diretor do escritório Delphos. “A intenção de voto não é tão alta, e isso é normal, acontece com frequência neste tipo de eventos.” Seijas estima que 8% dos cadernos eleitorais – os mais comprometidos com a causa da mudança democrática – acabarão por participar no evento de 22 de outubro. A empresa de Osvaldo Ramírez calcula entre 12 e 14%.

“As primárias cumpriram a sua função de reconectar os partidos com os cidadãos, isso é fundamental, e María Corina Machado aproveitou muito bem esta circunstância”, afirma Eglée González Lobato, da Universidade Central da Venezuela. O analista destaca que este “mecanismo estratégico” coloca Machado numa contradição, já que no passado ele renegou tanto as negociações políticas como as consultas eleitorais. “Acho que ela tende a ficar isolada nesse contexto. Sua eventual vitória conspira muitas pessoas contra ele por causa de sua inflexibilidade.”

Alonso Moleiro, originalmente, de Caracas - Venezuela para O El País, em 24.09.23

O discurso foi bom. O discurso

O presidente pode falar em garantia dos territórios nacionais sem um reparo sequer à Rússia, notória invasora?

Lula discursa na ONU — Foto: AFP

O discurso do presidente Lula na Assembleia Geral da ONU foi sucesso de público e crítica. Como conseguiu?

Começa pela redação. Foi escrito por profissionais da diplomacia, que sabem colocar as palavras adequadas para agradar às plateias amigas e guardar neutralidade em relação às outras. Retórica, claro, mas a diplomacia se faz assim.

Não é preciso expor planos detalhados. Bastam intenções. E, sobretudo, não é o palco para brigas locais — aqui vai a grande diferença entre Lula e Bolsonaro. O ex-presidente comportou-se na mesma Assembleia Geral como se estivesse numa discussão de rua com desafetos. Lula não caiu nessa. Não improvisou, leu o discurso todo. Foi um alívio.

Mas não é apenas a comparação que favoreceu o presidente. A escolha dos temas caiu como uma luva. O que se discute hoje no mundo? Clima, crescimento econômico com mais igualdade, programas de resgate das populações vulneráveis, solução para conflitos regionais, desequilíbrios geopolíticos, governança global.

O discurso de Lula passeou por aí. À maneira diplomática: apontando o problema, indicando caminhos, reclamando dos outros, especialmente dos países ricos. Apareceram agendas alimentadas há décadas pela política externa brasileira, como a busca de um papel de equilíbrio entre as nações em desenvolvimento e as potências, econômicas e militares.

Muita gente por aqui entendeu que, assim, Lula se apresentou como liderança mundial – algo que ele busca ostensivamente. Aí fica mais difícil. Precisa ir além de um bom discurso. Precisa do exercício prático da liderança naqueles diversos assuntos, o que depende de como o presidente trata desses temas em seu próprio quintal.

Mudanças climáticas, por exemplo. O Brasil tem a Amazônia, um ativo e um enorme problema. Há um esforço de conter o desmatamento, mas não uma política de longo alcance.

O petróleo da Margem Equatorial. Os minérios enterrados em áreas amazônicas. Qual a política do governo? Explorar ou deixar tudo enterrado? Há visões totalmente opostas dentro do governo. E não se trata de questão local. O presidente não pode se apresentar ao mundo como campeão da energia renovável e, ao mesmo tempo, mandar explorar o petróleo da Foz do Amazonas.

Há até um argumento que tenta combinar as duas posições. Algo assim: precisamos do dinheiro do petróleo para usá-lo no financiamento de novas modalidades de energia. Muitos governantes pensam assim: sujar para limpar depois. Se descartada essa linha, resta outra questão: como promover a melhoria de vida das populações amazônicas? Moradia sustentável, renda, internet, escolas — como prover isso tudo? Se perguntarmos a Marina Silva, uma estrela na Assembleia da ONU, ela terá respostas. Mas nada, até agora pelo menos, garante que se tornarão políticas nacionais.

Parece mesmo que, no núcleo do governo, muita gente se dará por satisfeita com o controle do desmatamento e maior proteção aos povos indígenas. Mas, quando se olha para as políticas de desenvolvimento, tem muita coisa velha e geradora de carbono: refinarias de óleo e indústria automobilística. Há incentivos para aquela do motor a combustão, nada para os elétricos.

Geopolítica, agora. Lula até que disfarçou seu antiamericanismo endógeno, mas colocar o Sul global como um bloco? Não faz sentido. O presidente apresentou o Brics como modelo de nova organização mundial. Depois atacou as potências nucleares, cujo dinheiro aplicado em bombas é retirado de programas de desenvolvimento. Ora, três membros fundadores do Brics são nucleares, Rússia, China e Índia. Tudo bem?

Tem mais. O presidente pode falar em garantia dos territórios nacionais sem um reparo sequer à Rússia, notória invasora?

E democracia. O presidente se apresenta como o líder cuja eleição recuperou a democracia. Ok. Mas como pode, ao mesmo tempo, condenar os regimes arbitrários de direita e apoiar as notórias ditaduras ditas de esquerda?

A retórica tem limites.

 Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 23.09.23


A esquerda e os impostos

A política fiscal desse governo é fechar as contas pelo lado da receita, simples assim

Reforma tributária e política fiscal são coisas diferentes.

A reforma tem a ver com quantos e quais são os impostos, e sua mecânica e eficiência.

Não é fácil para uma coletividade (ainda mais a nossa, uma federação) organizar racionalmente algo que ninguém gosta. O nome da coisa é imposto, e não voluntário, conforme o velho clichê. O nosso sistema está atolado de distorções e precisa de reforma. Várias delas.

Nessa etapa, trata-se de racionalizar e simplificar os impostos sobre o consumo, uma empreitada que está se revelando mais gigantesca do que se esperava.

Todos concordam, não obstante, que a reforma é para ser neutra do ponto de vista da arrecadação, ou seja, não é para ajudar nem atrapalhar o equilíbrio nas contas públicas. Esse princípio está em linha com a ideia de que a reforma tributária não se confunde com o problema fiscal, assunto da esfera do Orçamento, e pertinente à sustentabilidade da dívida pública e ao tamanho do Estado.

As definições do governo sobre esses temas, ultracomplexos e de enorme carga político-ideológica, compõem o que os livros-texto normalmente designam como política fiscal.

Reforma tributária e política fiscal não se misturam sem se atrapalhar mutuamente.

Dito isso, vamos a um fato da vida: esse governo parece inclinado a resolver o problema fiscal brasileiro aumentando os impostos e não reduzindo o gasto público e o tamanho do Estado. É uma escolha.

É uma opção perfeitamente legítima de um governo eleito, e não há razão para pudores, como o do ministro que gagueja ao reafirmar que não vai aumentar os impostos, apenas “corrigir distorções”.

A política fiscal desse governo é fechar as contas pelo lado da receita, simples assim. E todos os especialistas que se debruçaram sobre o “arcabouço” tiveram essa mesma impressão. Não há mistério sobre isso.

Não acho que seja a melhor opção, tampouco que vá funcionar. Mas isso não passa da minha modesta e minúscula opinião.

Outro fato da vida: antes do Plano Real a inflação era de esquerda. Pois era como se fechava as contas naqueles tempos doidos, pintar papel para fazer políticas sociais que corrigiam parcialmente os males que a própria inflação criava. Enxugar gelo.

A esquerda era inflacionista e populista. Depois abraçou a heterodoxia, quando descobriu o congelamento de preços, e combateu a estabilização baseada em disciplina fiscal. Isso e mais um keynesianismo que vinha das empreiteiras produziu uma hiper.

Mas as coisas mudaram. A esquerda busca um plano para a economia. Enquanto procura, uma coisa é clara: fechar as contas pela esquerda hoje significa aumentar os impostos.

Acostume-se.

 Gustavo Franco, o autor deste artigo, é economista. Participou da feitura e implantação do Plano Real. Publicado originalmente n'O Globo, em 24.09.23

O retrocesso das Forças Armadas

Se os militares que tramaram um golpe forem realmente punidos, será a primeira vez que isto acontecerá na história do país

Desfile militar de 7 de setembro em Brasília no ano passado — Foto: Isac Nóbrega/PR

Na noite da quinta-feira, 21, quando o ministro da Defesa, José Múcio, chegou na casa do almirante Marcos Olsen, comandante da Marinha, era o fim de um dia inteiro administrando a tensão entre o governo e as Forças Armadas pela revelação de que o ex-presidente Bolsonaro havia se reunido com os três comandantes e discutido um golpe de estado. O brigadeiro Marcelo Damasceno, comandante da Aeronáutica, foi à tarde ao seu gabinete. Com o general Tomás Paiva, comandante do Exército, o ministro falou por telefone. O general estava na Amazônia. Dos três ouviu a mesma coisa que disse aos jornalistas que o procuraram: as Forças Armadas, como instituição, não entraram no projeto autoritário, e é preciso saber quem individualmente praticou quais crimes.

A informação trazida pela jornalista Bela Megale, de O GLOBO, e por Aguirre Talento do Uol, na quinta, esclarece muita coisa. As movimentações e falas golpistas de Bolsonaro foram públicas, a ambiguidade das Forças Armadas também. Mas o tenente- coronel Mauro Cid agregou um dado concreto: a informação de que os comandantes militares e o então presidente tramaram juntos a interrupção do processo constitucional. Uma fonte informa que juridicamente não há atenuantes.

—Essa reunião – parece que houve mais de uma – indica cometimento de crime, porque o tipo penal envolvido é 'tentativa de golpe'. Eles podem dizer que apenas cogitaram e que cogitar não é crime. Mas eles foram além, fizeram reunião e foi elaborada uma minuta do golpe, portanto é um ato preparatório. É crime.

O governo Lula encontrou nas Forças Armadas “um mar de indisciplina” ao assumir, segundo definição de uma das fontes que ouvi nos últimos dias. Prova disso foi o fato de que os comandantes do governo Bolsonaro não queriam se reunir com o ministro indicado José Múcio. O almirante Garnier, como me disse o próprio ministro, nunca aceitou se encontrar com ele. É ato de indisciplina de um oficial, na época, na ativa.

Todos os absurdos vistos no governo Bolsonaro – notas ameaçadoras das Forças Armadas, desfile de tanques convocado pela Marinha para o dia de votação do voto impresso no Congresso, militares da ativa atacando candidatos nas redes sociais – foram o resultado do trabalho cotidiano de Bolsonaro de quebrar princípios, contaminar os militares, envolvê-los. Eles se deixaram enredar porque quiseram. Suas lideranças decidiram ter proveito naquele governo e receberam poder e dinheiro. A instituição, como um todo, enfrenta a ressaca de um enorme retrocesso. As Forças Armadas voltam a ser vistas como golpistas.

Eles lamentam hoje estar sob o manto da suspeição, mas o fato é que foi escolha envolver-se nesse novelo do qual não sabem sair. O que eu ouvi nas apurações que fiz é que o atual comando quer que sejam punidos todos os que se envolveram nessa trama, mas precisam que o Judiciário individualize as condutas. “Quem tiver culpa será expulso das Forças Armadas”, disse uma fonte. Se isso de fato acontecer será um avanço, porque a História do Brasil é repleta de movimentos golpistas dos militares e não tem registro de punições.

O almirante Almir Garnier, que teria aderido à ideia do golpe, assumiu em abril de 2021, quando Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, e todos os comandantes militares. Bolsonaro queria um ministro e comandantes mais submissos ao seu projeto autoritário. Conseguiu. Os escolhidos na época para as três Forças, general Paulo Sérgio Nogueira, brigadeiro Baptista Jr. e almirante Garnier, com maior ou menor intensidade, colaboraram para o ambiente de intimidação aos democratas que foi derrotado porque houve forte resistência das instituições e da sociedade. Não foi concessão. Não é correta a ideia de que eles “deixaram” a democracia permanecer. Ela é conquista do país.

O golpe de Bolsonaro se daria como? Intervenção direta no Tribunal Superior Eleitoral com afastamento dos ministros, quebra dos seus sigilos, anulação do resultado eleitoral. A Justiça Eleitoral seria a primeira vítima. É o que está escrito na minuta golpista. Por isso, é com espanto que se vê, no mesmo dia em que se revela essa reunião dos conspiradores em chefe, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, atacar a Justiça Eleitoral. No dia seguinte, ela disse ter sido mal compreendida. Suas palavras foram bem claras. Se o PT quer ser o estuário da luta democrática de todo o país, tem que pensar bem sobre que teses abraça.

Miriam Leitão, a autora deste artigo (Com Ana Carolina Diniz), é jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 24.09.23

Solidão

Soluções simples e baratas, como colocar bancos em corredores de blocos de apartamentos sociais, propiciam a prosa entre vizinhos

Pessoa sozinha em apartamento — Foto: Edilson Dantas

“All the lonely people/Where do they all come from?”, perguntava em 1961, com terna insistência, o refrão de “Eleanor Rigby”. Pois foi justamente uma chefe de governo britânica, a ultraconservadora Theresa May, que procurou responder à canção dos Beatles quase seis décadas depois. Para espanto e descrédito generalizado, em 2018 ela criou uma nova pasta — o Ministério da Solidão —, cujo nome oficial logo fez a festa em redes sociais e programas de humor.

— Isso soa a eufemismo vitoriano para gigolô — lançou o comediante Stephen Colbert.

— Poderia ser a criação literária de um José Saramago, Haruki Murakami ou Gabriel García Márquez — arriscou Carmen Graciela Díaz.

De lá para cá, a pasta já trocou de titular múltiplas vezes devido à óbvia dificuldade de pensar em estratégias de governo para um problema emocional e individual. Ainda assim, ao completar cinco anos de existência, o ministério já gerou filhotes no Japão e na Alemanha, criou demanda na Austrália e países escandinavos e integra definitivamente as preocupações do doutor Vivek Murthy, atual cirurgião-geral dos Estados Unidos, responsável pela saúde pública do país. Os argumentos de Murthy estão em recente relatório de 81 páginas: a solidão tem letalidade comparável à do cigarro para quem fuma 15 cigarros por dia e superior à do álcool pra quem consome seis doses diárias. Sem falar em possíveis desdobramentos numa série de doenças.

— Além de esmagar a alma, (...) a solidão quebra o coração, literal e figuradamente — resumiu o colunista do New York Times Nicholas Kristof.

Como as demais emoções, a solidão ou o sentimento de isolamento social são difíceis de mensurar. Em consequência, o êxito ou a inutilidade de intervenções destinadas a abrandá-los também são. A mera elaboração de um questionário capaz de captar o desalento íntimo de cidadãos já é complexa e exige dos recenseadores treinamento especial. Nesse quesito, o Office for National Statistics britânico (equivalente ao nosso IBGE) foi pioneiro, a ponto de captar o crescimento quase linear da solidão social entre jovens de 18 a 34 anos. Na Alemanha, é o inverso: o perigo ronda quem já ultrapassou a vida produtiva. O ambicioso programa interministerial A Connected Society, publicado com a criação do ministério de Theresa May, elencou mais de 50 estratégias para enfrentar a solidão nacional. Alocou fundos para pesquisa, contratou mais de mil funcionários públicos para conectar grupos comunitários, levou a Cruz Vermelha a instruir carteiros de todo o país a reportar sinais de isolamento social e muito mais.

Os resultados têm sido desiguais, claro. Soluções simples e baratas, como colocar bancos em corredores de blocos de apartamentos sociais, propiciam a prosa entre vizinhos. Abrir espaço, mesmo que mínimo, para pracinhas compartilhadas, instalar iluminação quente no lugar do branco hospitalar em estruturas públicas também. Médicos foram instruídos a prescrever atividades sociais, em vez de receitar remédios, e iniciativas locais receberam financiamento. Para a recente coroação do Rei Charles, o Ministério da Solidão organizou uma ação de voluntariado que fez sair da toca mais de 6 milhões de pessoas sem convívio social. Do outro lado do Atlântico, o cirurgião-geral adverte: se os Estados Unidos não tomarem medidas concretas, os que se sentem excluídos se retrairão ainda mais — e estarão mais zangados, mais doentes, mais à deriva. No Japão, onde uma conferência interministerial de emergência resultou dois anos atrás na criação do Ministério da Solidão e Isolamento, o enfrentamento da dor social é ainda mais difícil. Culturalmente enraizado na sociedade quase como virtude, o isolamento ainda é visto como algo estritamente pessoal, privado e de responsabilidade intransferível.

É de Julio Cortázar, na obra-prima “O jogo da amarelinha”, a descrição da “solidão absoluta que representa não contar sequer com a própria companhia, ter que entrar no cinema ou no prostíbulo ou na casa dos amigos ou numa profissão absorvente ou no matrimônio para estar pelo menos só-entre-os-demais”. É dela que devemos tentar arrancar quem está ao alcance de um esforço nosso. A sociedade como um todo agradece. Solidão não é solitude — a primeira corrói a alma, a outra, por opcional, pode ser linda.

Dorrit Harazim, a autora deste artigo, é jornalista e documentarista. Publicado originalmente n'O Globo, em 24.09.23

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Custo médio mensal dos tribunais com cada magistrado varia de R$ 37 mil a R$ 170 mil; veja o ranking por estado

A lista com os cinco vencimentos mais baixos traz Alagoas, Amazonas, Ceará, Amapá e Espírito Santo

A entrada do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) — Foto: Mirna de Moura/TJMG

O relatório "Justiça em números 2023", divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em setembro, evidencia a discrepância entre os valores pagos a magistrados de tribunais estaduais Brasil afora. De acordo com o documento, a remuneração média de juízes e desembargadores pode ser até cinco vezes maior na comparação entre as cortes.

A cifra mais alta é a do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), que paga pouco mais de R$ 170 mil para cada magistrado, em média. Na outra ponta, o menor montante se dá no TJ de Alagoas (TJ-AL), com cerca de R$ 37 mil pagos por mês aos operadores do Direito — na média, mais uma vez.

A lista com os cinco vencimentos médios mais baixos traz, além de Alagoas, as cortes de Amazonas, Ceará, Amapá e Espírito Santo (em ordem crescente, variando de R$ 37 mil a R$ 47 mil). No extremo oposto, os cinco tribunais estaduais que distribuem as melhores remunerações, a partir da maior, são: Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Goiás e Santa Catarina — os últimos quatro oscilando entre R$ 82 mil e R$ 83 mil mensais.

O documento elaborado pelo CNJ também mostra que cada juiz ou desembargador do país custa por mês, em média, R$ 69,8 mil aos seus respectivos tribunais. O montante equivale a 52 vezes o salário mínimo do país na atualidade, que é de R$ 1.320.

"É importante esclarecer que os valores incluem os pagamentos de remunerações, indenizações, encargos sociais, previdenciários, imposto de renda, despesas com viagens a serviço (passagens aéreas e diárias), o que não corresponde, portanto, aos salários", frisa o CNJ no documento. Por lei, o teto salarial da magistratura — e de servidores públicos em geral — equivale aos vencimentos de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), atualmente em R$ 41.650,92.

O mesmo relatório apontou que nenhum Tribunal de Justiça estadual do país tem sequer paridade de gênero — como o GLOBO mostrou nesta quarta-feira, os homens são maioria em todos, sem exceção. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) é o que tem maior presença feminina, com 48%, entre juízas do primeiro grau e desembargadoras. No Poder Judiciário, em geral, o percentual é de 38%, cerca de 6.853, entre todos os 18.035 magistrados.

Percepção dos magistrados

Outro levantamento do CNJ, o 2º Censo do Poder Judiciário, cujo relatório parcial foi publicado no site do órgão nesta terça-feira, aponta que 73,9% dos magistrados do país consideram que recebem remuneração abaixo da adequada. A pesquisa indica ainda que quatro em cada cinco juízes ou desembargadores brasileiros acreditam que têm um volume de trabalho maior do que o ideal.

Na pergunta sobre a "adequação da remuneração ao trabalho que executa", 39,6% dos entrevistados disseram "discordar totalmente" da premissa, enquanto outros 34,3% externaram somente discordância, totalizando 73,9%. Já os que "concordaram" ou "concordaram totalmente" foram 22% e 4,1%, respectivamente, ainda de acordo com o documento do CNJ.

A única área da magistratura na qual mais da metade dos integrantes acredita que os valores recebidos são suficientes foi na Justiça Militar — 51,7% de "concordo", e 13,8% de "concordo totalmente". No sentido oposto, a maior insatisfação deu-se na Justiça do Trabalho, com 60,7% de "discordo totalmente" e 29,2% de "discordo". Ou seja, nove em cada dez magistrados trabalhistas creem que deveriam ganhar mais.

Já no questionamento sobre a "a adequação do volume de trabalho à jornada regular de trabalho", 47,2% dos juízes e desembargadores discordaram totalmente da assertiva, e 32,5% discordaram, atingindo 79,7%. São 15,5% os que concordam e apenas 4,8% os que concordam totalmente.

Mais uma vez, a percepção mais positiva ocorre na Justiça Militar, onde somente 20,7% do que participaram da pesquisa acreditam, total ou parcialmente, que o volume de trabalho é inadequado. Neste caso, porém, o cenário é bem mais equilibrado nas outras esferas do Judiciário.

Publicado originalmente por O Globo, em 22.09.23

Ataque do PT ao TSE é cínico e oportunista

Justiça Eleitoral tem garantido a democracia e organizado os pleitos de forma exemplar

Plenário do Tribunal Superior Eleitoral — Foto: Alejandro Zambrana/TSE

Já era constrangedora a aliança pluripartidária — incluindo os rivais PT e PL — para chancelar a PEC da Anistia, que promove o maior perdão da História a partidos que tenham cometido toda sorte de irregularidade na última eleição. Pois agora, para desqualificar as multas aplicadas pela Justiça Eleitoral no estrito cumprimento da lei, o PT patrocina um ataque aos tribunais eleitorais, fiadores da lisura do último pleito e bastiões de resistência das instituições democráticas.

Antes, petistas se esmeravam em elogios ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pelo papel crítico na defesa das urnas eletrônicas e na realização de um pleito cujo resultado é inquestionável. Agora, em discurso na Câmara, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, chegou a questionar a própria existência da Justiça Eleitoral. “Não pode haver uma Justiça Eleitoral”, afirmou. “Isso já é um absurdo e custa três vezes mais do que o financiamento de campanha.” Não é uma declaração muito diferente das proferidas às vésperas das eleições por próceres bolsonaristas — à época criticados com razão pelo PT.

Em julho, depois que o TSE tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível até 2030, sob acusação de usar o cargo para disseminar desinformação sobre as urnas eletrônicas, Gleisi se desdobrou em elogios. Afirmou que a decisão era “pedagógica” por impor limites ao extremismo bolsonarista. Quer dizer: quando a Justiça Eleitoral toma decisões que agradam ao PT, é incensada. Quando não, sofre ataques.

Gleisi sustenta que as multas fixadas pelos tribunais eleitorais são inexequíveis e representam apenas a visão subjetiva da equipe técnica, “que sistematicamente entra na vida dos partidos políticos, querendo dar orientação, interpretando a vontade de dirigentes, a vontade de candidatos”. Para ela, isso torna as legendas inviáveis. Mas não diz uma só palavra sobre o dever que cabe a todo partido: respeitar a lei eleitoral e as decisões da Justiça.

Não faz sentido acusar a Justiça Eleitoral de inviabilizar os partidos. As legendas foram agraciadas no ano passado com quase R$ 6 bilhões dos fundos eleitoral e partidário. Dinheiro, não custa lembrar, dos cofres públicos. Por isso é natural que se olhe para onde vai. E o que se tem visto é preocupante. A análise das equipes técnicas revelou o uso do dinheiro em churrascadas, construção de piscina, aluguel de frotas milionárias e por aí vai. Quem inviabiliza os partidos, portanto, são os próprios partidos, com seus descaminhos.

Ainda que sempre se deva prestar atenção ao custo dos tribunais, o mais relevante é o papel da Justiça Eleitoral na democracia. Não se pode esquecer o que ocorreu há menos de um ano, com ataques às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral. Com o decorrer das apurações, um dia se conhecerá a extensão da trama golpista que pôs em risco a democracia, desaguando no 8 de Janeiro. Já se sabe, porém, que a firmeza do TSE nos momentos críticos foi fundamental para o país resistir à tormenta.

Graças ao TSE e à Justiça, o Brasil tem combatido ataques à democracia com mais eficácia que os Estados Unidos, país que enfrentou ameaça similar. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao ser diplomado, destacou a coragem do Supremo e do TSE, “que enfrentaram toda sorte de ameaças, ofensas e agressões para fazer valer a soberania do voto popular”.

Editorial d'O Globo, em 22.09.23

Defesa da democracia de ocasião

Ataque à Justiça Eleitoral por parte da presidente do PT mostra que apoio ao TSE só valeu contra o golpismo bolsonarista

Gleisi Hoffmann critica a Justiça Eleitoral durante sessão de comissão da Câmara — Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Faz pouco mais de um ano praticamente todos os políticos brasileiros, de petistas a bolsonaristas, se reuniram no majestoso auditório do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A inusual importância dada à posse de um presidente do TSE se devia às constantes investidas de Jair Bolsonaro, presente à mesa diretora da solenidade com cara de poucos amigos, contra a Justiça Eleitoral e contra o próprio processo eleitoral.

Na ocasião, Lula e Dilma Rousseff estavam na primeira fila, de frente para Alexandre de Moraes e Bolsonaro. Os demais caciques petistas, inclusive sua presidente, Gleisi Hoffmann, também estavam presentes e foram alguns dos mais efusivos em aplausos diante do duríssimo discurso de Moraes tendo Bolsonaro como destinatário.

Garantidas as eleições, com episódios dramáticos como a ação do presidente do TSE para desobstruir estradas diante de uma blitz ilegal promovida pela Polícia Rodoviária Federal no segundo turno, impedida a chicana golpista de Valdemar Costa Neto questionando a lisura apenas do segundo turno, com a aplicação de uma multa pesada de R$ 22 milhões por litigância de má-fé, e tornado Bolsonaro inelegível numa das muitas ações a respeito de seus ataques ao processo eleitoral, a mesma Gleisi Hoffmann vem a público para condenar as multas e a própria existência da Justiça Eleitoral.

Das duas uma: ou Gleisi e o partido que comanda foram hipócritas ao tecer loas ao TSE e a Moraes antes, ou são cínicos agora, uma vez debelada a ameaça golpista de Bolsonaro, ao entender que os mecanismos que serviram para punir o ex-presidente e seu partido devem ser desligados sob pena de atingir o próprio PT e as demais siglas.

Diante do que começa a aparecer das revelações da delação do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o papel firme da Justiça Eleitoral se mostra ainda mais fundamental para evitar o sucesso da intentona golpista. Vai se desenhando um quadro ainda mais sombrio, em que iniciativas que pareciam individuais, ou desconectadas umas das outras, se mostram como partes de um plano maior, arquitetado por Bolsonaro, para o qual foram convocados abertamente o Ministério da Justiça, suas instituições policiais e os comandantes das Forças Armadas.

Se o TSE não tivesse adotado uma postura firme, que começou na gestão de Luís Roberto Barroso à frente da Corte, seguiu-se no curto mandato de Edson Fachin e na decisiva passagem de Moraes, Bolsonaro teria tentado efetivamente colocar em xeque a própria realização das eleições ou melá-las depois.

Se Lula, seu governo e o seu partido querem defender a democracia de “aventureiros”, como fez o presidente na abertura da Assembleia Geral da ONU, investir com aleivosias contra a Justiça Eleitoral é um desserviço evidente.

Cabe a ela não apenas a já fundamental função de fiscalizar a aplicação do dinheiro público destinado aos partidos — o que explica a união de todos as grandes legendas, inclusive PL e PT de mãos dadas, contra sua atuação —, mas também, e sobretudo, zelar por uma sofisticada estrutura que permite a chegada das urnas eletrônicas — que se mostraram à prova de fraudes e de fake news — aos mais remotos locais do Brasil e a apuração em tempo recorde das eleições. O argumento de que ela só existe no Brasil, neste caso, fala a nosso favor. Um raro caso em que temos o que ensinar ao resto do mundo.

O avanço da PEC que anistia não apenas o mau uso de recursos dos fundos eleitoral e partidário, mas o descumprimento de regras mínimas adotadas nos últimos anos para assegurar maior representatividade política a grupos como mulheres e negros é um retrocesso vergonhoso patrocinado por Arthur Lira, Gleisi Hoffmann, Valdemar Costa Neto e demais grandes partidos.

Que a presidente do PT ainda encha a boca para achincalhar a instituição que assegura que a democracia ainda vigore no Brasil é sinal de que o apreço às instituições era conversa mole para o período eleitoral.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é jornalista. Escreve sobre os principais fatos da política, do Judiciário e da economia. ublicado originalmente n'O Globo, em 22.09.23

sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Avança a sem-vergonhice

Ao aprovar a tal ‘minirreforma’ eleitoral, Câmara revela que não liga para o interesse público quando o que está em jogo são a manutenção de poder e o acesso a gordas fatias do Orçamento

A Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira passada o texto-base do Projeto de Lei (PL) 4438/23, parte de um conjunto de medidas legislativas que, sorrateiramente, tem sido chamado de “minirreforma” eleitoral. Que o leitor não se engane: nada há de “mini” nessa reforma. Trata-se de alterações significativas no Código Eleitoral, na Lei das Eleições e na Lei dos Partidos Políticos para beneficiar, única e exclusivamente, os atuais detentores de mandato eletivo e os partidos políticos.

O PL 4438/23, de autoria da deputada Danielle Cunha (União-RJ), é uma licença para que os partidos disponham de recursos públicos praticamente sem controle, pois enfraquece sobremaneira os mecanismos que obrigam as legendas a dar a devida destinação ao dinheiro dos Fundos Partidário e Eleitoral. Não bastasse isso, o projeto ainda dificulta o aumento da participação de segmentos sub-representados da sociedade, como mulheres e negros, na vida política e eleitoral do País. Em suma, um rematado retrocesso.

Como o carnaval, a Lavagem do Bonfim e as Festas Juninas, é tradição no País que projetos dessa natureza apareçam no radar dos parlamentares em anos pré-eleitorais. Algumas dessas mudanças na legislação eleitoral vieram para melhorar o sistema político, como são os casos do fim das coligações partidárias para eleições proporcionais e o estabelecimento de uma cláusula de desempenho, conhecida como “cláusula de barreira”, para acesso aos fundos públicos. Outras vieram para piorá-lo. Raríssimas, porém, foram tão aviltantes ao interesse público como o projeto ora aprovado pela Câmara.

Caso o Senado chancele a sem-vergonhice e o PL 4438/23 seja sancionado pelo presidente Lula da Silva até o dia 6 de outubro – como espera o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), interessado que as mudanças estejam em vigor nas eleições de 2024 –, estará instalado no País um verdadeiro vale-tudo eleitoral. É disso que se trata. Se a vida dos parlamentares e dos dirigentes partidários já era extremamente confortável no Brasil, haja vista que, mesmo sendo organizações privadas, os partidos são mimados com dinheiro farto e fácil dos contribuintes, com a tal “minirreforma” eleitoral os mandatários serão praticamente inimputáveis no que concerne à malversação de recursos dos fundos públicos, desrespeito às cotas de candidaturas de mulheres e negros e falhas na prestação de contas à Justiça Eleitoral, entre outros desvios.

O placar de votação (367 votos favoráveis e 86 contrários), além da aliança entre as principais legendas do governo (PT) e da oposição (PL) – só o Novo, o Podemos e o PSOL votaram contra a dita “minirreforma” –, não deixa dúvida de que, quando se trata da proteção de seus interesses classistas, parlamentares que não raro podem chegar às vias de fato nos embates na Câmara são capazes de deixar os escrúpulos de lado, dar as mãos e caminhar juntos na desfaçatez.

O relator do projeto, Rubens Pereira Júnior (PT-MA), jura de pés juntos que a aprovação do PL 4438/23 é “indispensável” para simplificar o processo de prestação de contas dos partidos à Justiça Eleitoral. Por tornar “mais simples”, entenda-se enfraquecer os principais instrumentos à disposição do Judiciário para fiscalizar a utilização dos recursos públicos que alimentam os bilionários fundos que irrigam as contas das legendas e que nem sequer deveriam existir. Entre as medidas aprovadas está, por exemplo, a autorização para doações por meio de Pix sem a obrigatoriedade de usar o CPF como chave, uma avenida para a lavagem de dinheiro. Outro absurdo é a possibilidade de subcontratação de fornecedores sem a necessidade de os partidos informarem à Justiça quem, de fato, recebeu o dinheiro, o que torna a compra de votos muito mais difícil de ser detectada.

Ao aprovar esse rol de anomalias – e outras estão a caminho, inclusive a chamada PEC da Anistia –, a Câmara revela que a ampla maioria dos deputados não dá a mínima para o interesse público quando o que está em jogo é a manutenção de poder e o acesso a gordas fatias do Orçamento.

Editorial / Notas & Informações, O estado de S. Paulo, em 15.09.23

A democracia da América Latina, na voz de cinco mulheres no poder

No Dia da Democracia, as mulheres da região que alcançaram altos cargos na política e na justiça respondem sobre a saúde do sistema e os desafios que enfrentam

Carolina Giraldo, Patrícia Mercado, Norma Piña, Erika Hilton e Silvia Lospennato.

Esta sexta-feira marca o Dia da Democracia e cinco mulheres que alcançaram papéis poderosos na política e na justiça na Argentina, no Brasil, na Colômbia e no México respondem aos líderes da América Latina sobre como protegê-la e os desafios que enfrentam como mulheres. As questões eram as mesmas para todos eles, em torno da crise da democracia e de qual delas pode ser construída.

Como definiria o estado da democracia no seu país e qual é o principal desafio que as mulheres enfrentam?

Norma Piña, presidente da Suprema Corte de Justiça do México:

- A democracia e a igualdade são vividas todos os dias. É neste sentido que surgem desafios específicos para as mulheres. Quando pensamos no patriarcado, podemos encontrar uma semelhança com os ataques à democracia que sofre a nossa região: ambos souberam se adaptar às mudanças sociais para preservar o poder nas mãos de poucos. Infelizmente, a perpetuação da desigualdade conseguiu estabelecer-se sem maiores questionamentos na nossa vida quotidiana.

Um Estado onde as mulheres continuam a viver com medo, enfrentando todos os dias a violência que coloca as suas vidas em risco ou acaba com elas; onde continuam a recair sobre elas papéis e estereótipos que invisibilizam o papel fundamental da sua participação na vida quotidiana, como ocorre com o cuidado, sem o qual a sociedade não existiria e que é desempenhado principalmente pelas mulheres. Um Estado em que o piso não é igualitário para as mulheres, pois cada passo e conquista em direção à igualdade nos custa desproporcional ou desnecessariamente. Um Estado como este não pode apresentar-se nem acreditar-se democrático.

Nesse sentido, a Suprema Corte de Justiça do México decidiu que, para garantir o acesso efetivo à justiça para mulheres, meninas e adolescentes, esta deve ser sempre julgada desde uma perspectiva de gênero , ou seja, partindo do reconhecimento dos impactos diferenciados em cada caso. que uma mulher pode estar vivenciando, pelo fato de ser uma. A justiça sem uma perspectiva de género não pode ser chamada de justiça. A democracia, quando persistem a desigualdade e a violência baseada no género, não pode ser chamada de democracia. A violência contra as mulheres e a desigualdade de género são antónimos de um Estado democrático e do Estado de direito. Bem desse jeito.

A ministra presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Norma Piña, em novembro de 2022.


Carolina Giraldo, deputada colombiana e presidente da Comissão para a Igualdade da Mulher:

- Devemos construir uma democracia mais igualitária. Mais mulheres significa mais democracia, porque enfatizamos uma agenda de oportunidades, saúde pública, cuidados ambientais e não discriminação. Embora o número de mulheres na política e de pessoas diversas tenha aumentado, ainda vemos uma lacuna significativa nos cargos de tomada de decisão, tradicionalmente liderados por homens. Uma democracia com maior equidade permitiria a transformação social e uma mudança nas políticas públicas.

É muito importante que, ao chegarmos a estes espaços, a participação seja substantiva e não uma simulação em que tentam continuar a cancelar as nossas vozes. Isto significa enfrentar uma das raízes mais fortes e falsas do sistema patriarcal: que os homens – e apenas certos tipos de homens – são os únicos que podem tomar decisões e ocupar o espaço público.

Para as mulheres, o desafio da violência baseada no género persiste. Os números de feminicídios e violência sexual são alarmantes. Outro desafio para as mulheres e as pessoas LGBTIQ+, particularmente para aquelas que participam na política, é deixar de ser considerado uma quota de género e exigir o desenvolvimento de estratégias que promovam a participação política e a entrada na vida pública das mulheres e das pessoas LGBTIQ+. Na Colômbia existe uma “cota de gênero” nas empresas públicas de 30%. O país avançou no sentido da paridade em espaços como os conselhos de administração, mas a paridade ainda não foi alcançada na construção de listas de empresas públicas.

Carolina Giraldo.

Patricia Mercado, senadora do México pelo Movimento Cidadão e ex-candidata à Presidência do seu país em 2006. 

- O maior problema que as democracias da América Latina enfrentam é a profunda desigualdade. Este desencanto de milhões de pessoas é aproveitado por certos líderes para atacar e desmantelar as instituições democráticas. É por isso que teríamos de dar prioridade à construção de Estados-providência que garantam a prometida igualdade de oportunidades.

A democracia não terminou de se consolidar no México. Governos divididos têm sido uma experiência positiva para gerar acordos nas diferenças. Por exemplo, as reformas político-eleitorais foram adoptadas por consenso geral nos últimos 27 anos, pelo menos. Neste momento, há uma pausa neste processo de consolidação democrática, pois abundam as ações contra a divisão de poderes, contra órgãos autónomos e contra a separação entre função pública e vida partidária.

Patricia Mercado, em 13 de junho de 2022 em Toluca (Estado do México).

Erika Hilton, legisladora transexual brasileira. 

- É um dos dois primeiros na história do seu país. O Brasil passou por uma crise democrática significativa e desafiadora nos últimos quatro anos, com inúmeras tentativas de ruptura com o Estado democrático de direito, notadamente a tentativa de golpe de estado de 8 de janeiro de 2023.

Agora conseguimos, com a eleição do presidente Lula, deter o processo de deterioração democrática que estava em curso com Jair Bolsonaro, mas mudar esse rumo depois de tantos ataques e propaganda ideológica antidemocrática é um longo caminho a percorrer.

Para as maiorias sociais minoritárias, como mulheres, LGBTQI+, negros, indígenas, a batalha é ainda mais árdua, uma vez que a democracia nunca chegou plenamente para essas populações, vítimas de violência, preconceitos e ausência de políticas públicas. Acredito que os nossos desafios são precisamente quebrar este ciclo histórico de marginalização obrigatória, falta de direitos básicos e alcançar a realização da nossa cidadania. Aumentar a nossa representação política é essencial, mas a organização popular será a chave para lutar na opinião pública em defesa dos nossos direitos.

Silvia Lospennato, representante nacional da Argentina no interbloco Juntos pela Mudança. Na Argentina celebraremos nos próximos meses 40 anos de democracia, um longo período de estabilidade política e de respeito irrestrito pelos direitos humanos. Uma estabilidade política que não foi acompanhada pelo mesmo nível de estabilidade económica porque nestes 40 anos atravessamos grandes crises económicas com as suas consequências sociais que deterioraram a qualidade de vida de milhões de argentinos. No entanto, mesmo nos momentos mais críticos, as instituições democráticas foram fundamentais para processar as crises no quadro da Constituição Nacional.

Também nestes anos houve enormes avanços em termos de reconhecimento dos direitos das mulheres e das diversidades, que são fruto desse pacto democrático. Muitos destes direitos foram garantidos através de leis que não só tiveram um amplo consenso no momento da sua promulgação, mas também foram acompanhadas por políticas públicas para garantir o acesso a esses direitos. Atualmente, a crise económica e social que atravessa a Argentina aumentou os níveis de insatisfação com a democracia. É isso que reflectem os inquéritos, especialmente entre os jovens, e é claro que nos preocupa. Contudo, estou otimista quanto à resiliência do nosso pacto democrático para persistir na defesa de todos os direitos conquistados nestes anos.

O que é necessário para melhorar a representação e a participação das mulheres e das pessoas LGBTIQ+ nos espaços de poder?

Norma Piña: 

- Uma das conquistas mais representativas do movimento de mulheres e pessoas LGBTIQ+ é ocupar cargos de poder. O caminho foi longo, mas os resultados gerais foram bons. No México, a paridade foi construída desde 1997 e só em 2019 é que, a nível constitucional, alcançamos a chamada “paridade em tudo”. Por sua vez, até às eleições de 2021, os partidos políticos tinham de garantir candidaturas de pessoas LGBTIQ+, entre outros grupos historicamente discriminados, como os indígenas, os afrodescendentes e as pessoas com deficiência.

Contudo, a realidade social ainda não consegue acompanhar o que as leis estabelecem. Embora haja cada vez mais mulheres e pessoas LGBTIQ+ em posições de poder, o progresso tem sido lento e requer muita vontade política, cidadãos e consciência para que se torne uma realidade. Podemos ver a paridade no Congresso e até espaços importantes ocupados por mulheres, como o Ministério do Interior e o Ministério das Relações Exteriores – Ministérios do Interior e das Relações Exteriores, respectivamente – mas a transversalidade em todos os espaços continua a ser percebida como distante.

Vejamos o caso da própria Suprema Corte do México. Em quase 200 anos de existência, apenas 14 mulheres foram ministras, e só em 2023 é que este Supremo Tribunal teve a sua primeira mulher presidente. É claro que isso não foi repentino. Fui juiz e depois magistrado. E em 2015, quase 20 anos depois de iniciar a minha carreira judicial, fui eleita ministra do Supremo Tribunal de Justiça da Nação, numa lista que foi decidida que deveria ser composta exclusivamente por mulheres. Hoje temos a maior presença de mulheres na Corte em toda a sua história: 4 dos seus 11 membros. Mas ainda temos um longo caminho a percorrer para alcançar a paridade.

Carolina Giraldo. No caso de diversas pessoas, as eleições legislativas de março de 2022 marcaram um marco crucial na história da participação política das pessoas LGBTI+ na Colômbia. Atualmente, no Congresso da República há sete parlamentares abertamente diversos. Este é um facto histórico num país onde a discriminação ainda é evidente e ceifa vidas, e numa instituição onde os debates sobre os direitos da população LGBTI+ têm sido tradicionalmente evitados.

Precisamos que o sistema educativo responda às exigências da paridade de género. Embora as quotas de género tenham sido uma estratégia que visa aumentar a representação das mulheres na política, elas não são suficientes por si só. Os Estados devem acrescentar espaços de discussão e reconhecimento da diversidade para eliminar práticas que geram discriminação e impedem que mulheres e pessoas diversas tenham acesso a posições de influência.

Os partidos políticos e o Estado devem promover muito mais escolas de participação política e formação para mulheres, bem como garantir que as campanhas políticas sejam financiadas numa perspectiva de equidade de género.

Patrícia Mercado: 

Embora tenhamos conseguido instituir a paridade, que aponta para a igualdade de participação entre mulheres e homens, a discriminação ainda persiste. As regras de promoção e promoção dentro dos partidos são claras. As mulheres que entram na política frequentemente não têm as redes de contactos e alianças que os homens têm, e também enfrentam situações de violência baseada no género que impedem o seu desenvolvimento político.

É necessário estabelecer que o Estado é responsável pelo cuidado das pessoas dependentes. Entretanto, não alcançaremos níveis igualitários e equitativos de inserção laboral e participação política. Para as pessoas LGBTIQ+, houve avanços nas diretrizes do instituto eleitoral para ações afirmativas em candidaturas. Isso deve continuar e se tornar lei.

Érika Hilton: 

-Vários fatores, mas um bom começo é os partidos políticos realmente investirem nesses candidatos com apoio financeiro, jurídico, político, visibilidade, e não usarem apenas mulheres, negros, indígenas e pessoas LGBTQI+ como tokens, numa fachada representativa e diversificada , quando o poder político continua concentrado nas mãos de homens brancos ricos, herdeiros de décadas de domínio político em todo o mundo.

Erika Hilton, moradora de São Paulo, durante entrevista em 19 de novembro de 2020.

Sílvia Lospennato:- 

Temos garantidos direitos formais e, no caso das mulheres, uma lei de paridade que garante a igualdade de participação em cargos públicos eletivos e nos partidos políticos. Temos também quotas para o financiamento dos partidos políticos que devem ser aplicadas às mulheres. Contudo, o aumento da participação das mulheres em cargos parlamentares não tem a mesma correlação nos cargos executivos onde governadores e prefeitos continuam a ser quase uma exceção.

O mesmo acontece com outros espaços de poder, como o acesso a conselhos de empresas públicas ou a cargos de chefia no Judiciário. Na verdade, na Argentina temos um Supremo Tribunal de Justiça sem mulheres. Isto mostra que os sistemas de quotas continuam a ser uma ferramenta necessária, pelo menos a curto prazo, para garantir a participação das mulheres nos espaços de tomada de decisão. Mas o poder não é exercido apenas na esfera pública; Devemos também continuar lutando para quebrar os tetos de vidro do mercado de trabalho, acompanhados de políticas públicas e também de uma mudança cultural no setor privado para acompanhar as trajetórias das mulheres.

Silvia Lospennato, representante nacional da Argentina.

Catalina Oquendo, de Bogotá - Colômbia para o EL PAÍS, em 15.09.23

Sempre é possível fazer melhor

Todos os finais de temporada Guardiola analisa suas equipes e resolve o que deve ser mantido e o que deve ser mudado

Guardiola é perfeccionista — Foto: Paul ELLIS / AFP

No centrinho de Vieil Antibes, no Sul da França, existe uma livraria chamada Antibes Books, especializada em livros sobre a região e seus grandes personagens. O diferencial dessa pequena livraria francesa é que todos os livros que ela vende foram escritos em inglês ou traduzidos para o idioma de Oscar Wilde. Outro dia comprei nessa livraria, que eu considero uma joalheria, o livro “French Riviera and its artists”, do escritor australiano John Baxter.

O livro analisa a pintura de Cézanne e Renoir, comenta os visuais que inspiraram Matisse, as cores que mudaram o trabalho de Chagall, os lugares onde Picasso viveu suas maiores paixões, o estilo de vida que influenciou a literatura de F. Scott Fitzgerald, a constante preocupação estética de Coco Chanel e o surgimento de Brigitte Bardot.

Além dessas figuras notáveis, outros grandes nomes fazem parte do livro, todos com enorme talento, grande capacidade de trabalho e a crença de que sempre dá para fazer melhor. Bom exemplo disso é um famoso diálogo de Oscar Wilde.

— Como foi sua manhã, senhor Wilde?

— Exaustiva — respondeu ele. — O tempo todo revisando meu novo poema.

— E o resultado?

— Muito importante — disse Wilde. — Tirei uma vírgula.

— Mas só isso?

— De jeito nenhum. Depois de uma reflexão mais amadurecida sobre a questão, eu a coloquei de volta.

A verdade é que sempre dá para fazer melhor, em qualquer tempo e em qualquer área.

No final do século XIX, os móveis escolares eram de madeira, as salas de aula eram escuras, e o leiaute dos ambientes exigia que os alunos ficassem virados para o professor. Existia a tradicional separação entre meninos e meninas.

A partir dos anos 1920, arquitetos como Walter Gropius passaram a voltar sua atenção para projetos de escolas. Elas começaram a se caracterizar por ter mais descontração, ar fresco, luz do dia e espaços integrados para aprendizado externo. Prova de que dava para fazer melhor.

No dia 4 de setembro de 1922, foi fundada na Inglaterra a SS Cars Limited, que, em 1945, por causa dos nazistas, mudou seu nome para Jaguar. Nesses quase 80 anos de atuação, essa empresa produziu um dos mais tradicionais automóveis do planeta, sem nuncater perdido de vista a ideia de que dava para fazer melhor. Tanto que agora, em 2023, a Jaguar já anunciou que, a partir de 2030, todos os seus carros serão elétricos, o que é fundamental para o futuro da humanidade.

No ano de 1987, a chef Ruth Rogers e sua sócia Rose Gray montaram o restaurante River Café. Naquela época, Londres ainda não era a capital mundial da gastronomia que se tornou hoje, mas o River, com sua magnífica comida, num ambiente projetado pelo marido de Ruth, o consagrado arquiteto Richard Rogers, foi imediatamente um sucesso.

Parecia que não dava para fazer melhor, mas dava. Pouco tempo depois da inauguração, Ruth resolveu que seu restaurante teria diferentes cardápios a cada estação: primavera, verão, outono e inverno. A ideia deu tão certo que permanece até hoje.

Desde 2008, Pepe Guardiola acumula vitórias, mas jamais se acomoda. Todos os finais de temporada analisa suas equipes e resolve o que deve ser mantido e o que deve ser mudado. Guardiola escolhe sempre futebolistas que atuem bem em mais de uma posição, porque prefere trabalhar com elencos curtos. Acredita que, com menos gente e de maior talento, dá para fazer melhor.

Nos anos 1990, a W/Brasil era a agência de publicidade que ganhava a maioria dos clientes e a maioria dos prêmios, porque tinha os melhores profissionais. Mas, se surgisse algum jovem fora de série no mercado, nós contratávamos mesmo sem precisar. Sabíamos que, com esse reforço, dava para fazer ainda melhor.

Desde 1959, o Ronnie Scott’s é um clube de jazz perfeito. Está para Londres como o Village Vanguard para Nova York. Apresenta os melhores músicos e vive sempre lotado. Teoricamente, não tem o que melhorar, mas acaba de comunicar aos seus integrantes que comprou um órgão Hammond B3, instrumento preferido dos ouvidos absolutos. Comprou esse órgão por um motivo simples: até aquilo que já é perfeito pode ser aperfeiçoado.

Pense nisso toda vez que for fazer alguma coisa.

 Washington Olivetto, o autor deste artigo, é Publicitário. Publicado n'O Globo, em 11.09.23

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Saiba quem é Daniela Teixeira, advogada do DF indicada por Lula ao STJ

Advogada deve ser a primeira brasiliense a integrar a Corte; ela tem o apoio do PT e já discutiu com o ex-presidente Jair Bolsonaro no plenário da Câmara

Daniela Teixeira foi indicada pelo presidente Lula para vaga no STJ Foto: Reprodução/Instagram

Indicada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nesta terça-feira, 29, para uma vaga no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a advogada Daniela Teixeira, de 51 anos, teve o apoio de petistas próximos ao presidente para garantir a preferência dele. Candidata mais votada para integrar a lista sêxtupla definida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Daniela já era a favorita para assumir o posto, que foi aberto após a aposentadoria do ministro Felix Fischer.

Ela ocupará no STJ uma cadeira da Ordem. Na instituição, foi vice-presidente da seccional do Distrito Federal entre os anos de 2016 e 2019. Atualmente, é integrante do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e conselheira do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Nascida no Distrito Federal, Daniela Teixeira será, se nomeada, a primeira brasiliense a integrar a Corte.

Ela passará por sabatina na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado. Se aprovada pela CCJ e pelo plenário da Casa, será nomeada e empossada como ministra.

Daniela Teixeira é graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), tem especialização em Direito Econômico e Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), e é mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Em 2013, foi condecorada no grau de comendadora da Ordem do Mérito Dom Bosco pelo Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10). Em 2016, recebeu a Medalha do Mérito Eleitoral do Distrito Federal pelo Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF), devido à experiência com julgamentos eleitorais. No ano de 2017, recebeu o Diploma Mulher-Cidadã Carlota Pereira de Queirós, destinado a agraciar mulheres que tenham contribuído para o pleno exercício da cidadania, na defesa dos direitos da mulher e em questões do gênero.

Um dos motivos da premiação pelo Congresso foi por conta de uma lei de sua autoria aprovada em 2016, que modificou o Código de Processo Civil e o Estatuto da Advocacia para garantir direitos às advogadas grávidas e mães. A nova legislação dispensou gestantes e lactantes de passarem em aparelhos de raio-x na entrada dos fóruns e tribunais. Um dos problemas relatados pelas advogadas grávidas era o risco que provocavam para os bebês com a exposição excessiva à radiação, pois chegam a fazer a inspeção 30 vezes por semana. A revista passou a ser manual.

Advogada militante desde 1996, Daniela Teixeira é integrante do Grupo Prerrogativas, que reúne advogados e surgiu para defender os direitos dos profissionais em relação às decisões classificadas por eles como arbitrárias na Operação Lava Jato e da atuação do ex-juiz e atual senador Sérgio Moro (União-PR).

Indicada ao TSE, ela não teve a nomeação de Bolsonaro

Em 2019, Teixeira figurou a lista tríplice para vaga de ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em uma votação feita por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo sendo a favorita para assumir o cargo, com o apoio da ministra do STF Rosa Weber, ela não foi nomeada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que preferiu o nome do atual ministro Carlos Velloso Filho.

A sua relação com o ex-presidente é turbulenta. Em 2016, ela discutiu com Bolsonaro no Congresso, quando ele ainda era deputado federal. O bate-boca ocorreu em audiência pública para discutir a cultura do estupro. Daniela Teixeira disse que os criminosos deveriam ser punidos, independentemente de quem fosse, inclusive “um deputado que é réu numa ação já recebida no STF”.

Bolsonaro rebateu fora dos microfones e gritou: “Aponta o nome dele”. Teixeira respondeu: “É o senhor, Jair Bolsonaro, réu no inquérito já admitido pelo STF”. A resposta da advogada provocou tumulto, com Bolsonaro exigindo direito de resposta para a deputada Maria do Rosário (PT-RS), que presidia a sessão. Alguns deputados tiveram que segurar Bolsonaro, e Maria Rosário pediu à segurança que se dirigisse ao local. A advogada saiu da Câmara sob escolta.

O caso citado por Bolsonaro foi por conta da abertura de um inquérito pelo STF para apurar uma suposta prática dos delitos de incitação ao crime de estupro e injúria contra a deputada Maria do Rosário em 2014. Em um discurso no Plenário da Câmara, o ex-presidente disse que Rosário “não merecia ser estuprada”.

Em junho deste ano, o ministro Dias Toffoli remeteu os processos do STF ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), após Bolsonaro deixar o cargo de presidente. Em julho, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) pediu o arquivamento da ação, por prescrição, o que foi atendido pela Justiça da capital federal.

Gabriel de Sousa para O Estado de S. Paulo, em 29.08.23, às 18h45

A nova pedalada moral de Lula

Ao distorcer o conteúdo de decisão judicial para reeditar a historieta do golpe, Lula ofende o Congresso e o Judiciário – e alimenta a ideia de que só é democrático o que lhe agrada

O presidente Lula acha que o Brasil deve desculpas e reparações a Dilma Rousseff. Em entrevista durante sua passagem por Angola, referindo-se à decisão do Tribunal Regional da 1.ª Região (TRF-1) de arquivar uma ação de improbidade pelas “pedaladas fiscais”, Lula disse: “A Justiça Federal absolveu a companheira Dilma da acusação da pedalada”. A afirmação do presidente petista é mais uma tentativa de desinformar e confundir os brasileiros. O TRF-1 nem sequer avaliou o mérito da acusação, tampouco desautorizou a sentença do Congresso que condenou Dilma Rousseff por crime de responsabilidade em função das pedaladas fiscais.

A decisão do TRF-1 foi proferida em ação de improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) contra Dilma e integrantes de seu governo por valerem-se “dos altos cargos que ocupavam na direção do governo federal para maquiar as estatísticas fiscais com evidente propósito de melhorar a percepção da performance governamental e ocultar uma crise fiscal e econômica iminente, ao tempo em que comprometiam ainda mais a saúde financeira do Estado”. A acusação baseia-se em irregularidades identificadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que depois, por unanimidade, reprovou o governo, determinando que 17 autoridades explicassem as práticas ilegais.

Como se sabe, o pedido de impeachment contra Dilma Rousseff refere-se a esses mesmos fatos, em particular à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização do Congresso e ao atraso nos repasses de recursos do Tesouro a bancos públicos para o pagamento de programas sociais. Autorizada sua abertura pela Câmara, o processo foi julgado pelo Senado, que condenou Dilma Rousseff por crime de responsabilidade.

Em 2022, a ação de improbidade foi arquivada pelo juízo de primeira instância. Ele não contestou a decisão do Congresso, antes reconheceu que a presidente Dilma já havia sido condenada por aqueles mesmos fatos no âmbito do processo de impeachment. Não cabia, portanto, uma dupla responsabilização, agora por meio da Lei de Improbidade Administrativa.

“Houve uma extinção da ação, sem resolução do mérito”, disse ao Estado a advogada Vera Chemim, mestre em Direito Público Administrativo pela Fundação Getulio Vargas. “Não é uma questão de inocentar, e sim de caráter formal e processual.” A decisão do TRF-1 simplesmente rejeitou o recurso do MPF que havia questionado o arquivamento em primeira instância.

Em vez de respeitar os fatos, Lula e o PT querem, no entanto, confundir a população, dando a entender que a Justiça teria declarado agora que as pedaladas fiscais não existiram. No conto petista, a decisão do TRF-1 seria a grande prova do golpe. “Entendo que cabe um projeto de resolução nesse sentido com base na decisão do TRF-1, que deixa claro que o impeachment foi uma grande farsa, que a história das pedaladas foi uma armação, literalmente um golpe”, disse a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, ao jornal Folha de S.Paulo. “O Brasil deve desculpas à presidente Dilma, porque ela foi cassada de forma leviana”, afirmou Lula.

A rigor, essa tentativa de distorção de uma decisão judicial por parte do PT é uma agressão às instituições democráticas. No processo de impeachment de Dilma Rousseff, não houve nenhum golpe. O Congresso aplicou a Constituição e as leis do País. E justamente porque foi uma condenação perfeitamente válida, a Justiça reconheceu agora que não cabia instaurar um novo processo pelos mesmos fatos.

Em vez de acolherem o conteúdo da decisão do TRF-1, Lula e seu partido preferem fabricar desinformação. E essa manobra não consiste meramente na invenção de uma versão irreal dos fatos, o que por si só é muito grave: afinal, Lula está usando um cargo público para distorcer a compreensão por parte da população de uma decisão da Justiça. Com a reedição da historieta do golpe, Lula e o PT desautorizam uma vez mais o exercício de uma atribuição constitucional do Congresso. Alimentam, assim, a equivocada ideia de que só é democrático o que lhes agrada. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.08.23

O custo da democracia – o Poder Legislativo

O momento exige responsabilidade fiscal. É hora de lutarmos por maior eficiência nos gastos públicos. Que tal começarmos pelo Poder Legislativo?

É grande o poder legislativo brasileiro. São 513 deputados federais, 81 senadores, 1.059 deputados estaduais e 58.208 vereadores. É poderoso o Poder Legislativo, especialmente o federal. Só de emendas parlamentares foram empenhados, em 2022, R$ 25,4 bilhões. É caro o Poder Legislativo. Considerados a União, os Estados e os municípios, o custo anual é de cerca de R$ 40 bilhões; destes R$ 13 bilhões correspondem ao Congresso Nacional.

Os partidos políticos têm acesso a dois fundos – o Fundo Partidário (oficialmente Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos) e o Fundo Eleitoral (oficialmente Fundo Especial de Financiamento de Campanha). O Fundo Partidário foi criado em 1995 e custa cerca de R$ 400 milhões anuais ao contribuinte. O Fundo Eleitoral, criado em 2017 e mais generoso, é dividido entre os partidos políticos: foram cerca de R$ 5,4 bilhões em 2022.

O orçamento do Congresso Nacional o torna o segundo mais caro do mundo, atrás apenas do norte-americano. O custo do Congresso Nacional dos outros países representa 1/3, ou menos, do brasileiro. Uma das razões é o portentoso contingente que assessora os parlamentares: são quase 14 mil funcionários na Câmara dos Deputados e 6 mil no Senado Federal.

As emendas parlamentares, mecanismo legítimo de captura por senadores e deputados de demandas da população, pedem uma profunda revisão, em razão da falta de critérios técnicos na sua seleção e da absoluta falta de transparência em sua aplicação. São emendas individuais, de bancada, de comissões e de relator. Em 2022 foram 6.101 emendas; as individuais e de bancada (que somam 58% do total, em valor) são de aplicação impositiva, ou seja, o Poder Executivo não pode exercer qualquer limitação à sua implementação.

O Brasil é, também, um dos poucos países que dispõem de uma Justiça Eleitoral apartada, que custa R$ 10 bilhões por ano.

É pacífica a relevância do Poder Legislativo na democracia brasileira. É reconhecida a eficiência da nossa Justiça Eleitoral. Mas será que o custo total do sistema se justifica? Será que é possível fazer o mesmo por menos, destinando a fins mais nobres – como educação, saúde, ciência e tecnologia, investimentos sociais – parte desses recursos? É razoável que se destinem tantos recursos, via emendas parlamentares, a projetos muitas vezes sem méritos e com riscos de destinação espúria e corrupção?

É razoável a forma de distribuição dos assentos da Câmara dos Deputados – proporcional à população, mas com um mínimo de 8 cadeiras para os Estados menores e um teto de 70 cadeiras para o maior Estado? Será que todos se dão conta de que Estados como Acre, Amapá e Roraima, com populações entre 630 mil e 830 mil habitantes, elegem um deputado federal para cada 80 mil habitantes, enquanto os paulistas elegem um deputado federal para cada 630 mil habitantes?

O próprio sistema eleitoral brasileiro poderia ser mais equilibrado – em termos de distribuição das cadeiras pelos Estados –, assegurando um vínculo continuado entre representado e representante; algo na direção de um sistema distrital misto, há muito recomendado por especialistas. Não há, aqui, um julgamento de valor da representação popular nos nossos Parlamentos, mas tão somente um alerta quanto às possibilidades de melhoria da relação custo/benefício da atual estrutura. A reforma política avançou muito na gestão Rodrigo Maia; falta, ainda, acabar com as coligações em eleições majoritárias.

Mais do que nunca, a harmonia entre os Poderes brasileiros (Executivo, Legislativo e Judiciário) se faz necessária, depois dos anos recentes de ataques políticos e eleitoreiros que afetaram essas relações de maneira perigosa. A percepção da melhoria nesta área já parece estar traduzida na recente revisão da nota do Brasil feita pela agência de classificação de risco Fitch, sugerindo o arrefecimento das relações políticas e as aprovações – ainda que parciais até agora – da reforma tributária e do arcabouço fiscal como pontos positivos ao País.

Ainda não voltamos a ser grau de investimento – ou seja, o Brasil ter o selo de “bom pagador” e ver seus custos de crédito, por exemplo, reduzidos –, mas estamos a apenas dois degraus de alcançar novamente essa posição, que perdemos no final de 2015. Não que a tarefa seja fácil, muito menos tranquila, mas é praticamente consenso quais são os pontos que precisam ser atacados de forma incisiva. Reduzir e otimizar gastos públicos é, certamente, um deles.

O momento exige responsabilidade fiscal que garanta a estabilidade macroeconômica, essencial para o desenvolvimento, o que demanda que o Estado revisite com determinação os seus custos, enfrentando áreas que têm permanecido intocadas por décadas e que parecem agir com indiferença às necessidades do País.

É hora de estes assuntos entrarem de maneira mais forte no debate nacional. É hora de lutarmos por maior eficiência nos gastos públicos. Que tal começarmos pelo Poder Legislativo? 

Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski, os autores dete artigo, são empresários. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.08.23

A ‘neutralidade’ do Poder Judiciário é realista?

A noção adequada ao atual estágio do conhecimento que pode ser ‘exigida’ do Poder Judiciário é que seja ‘imparcial’

A ideia de jurisdição, como atualmente se concebe, tem raiz no século 18 e decorre, principalmente, da amplamente difundida teoria da separação dos poderes de Montesquieu, segundo a qual, grosso modo, dos três tipos de poder existentes nos Estados caberia ao Judiciário “julgar os crimes e as querelas entre particulares”, restando para o Legislativo e o Executivo a criação das leis e a garantia da paz, respectivamente.

Sob a premissa de que somente o poder é capaz de limitar o poder, sustentava o célebre filósofo francês que o poder em causa serviria para a limitação dos demais, devendo aplicar as leis elaboradas pelo Legislativo, com a participação do Executivo, mas sem subordinação a eles, haja vista tal autonomia ser indispensável para a liberdade individual, na medida em que, “se estivesse unido ao Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador”, e, “se estivesse unido ao Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor”.

Desde sua gênese, portanto, ao mesmo tempo que se pretende a sua independência, espera-se de seu exercício um agir limitado pelo texto da lei (que advém de outro Poder) e neutro, fruto do conhecimento da época, de predomínio da razão moderna. Daí a ideia de um juiz “boca da lei” e a associação entre jurisdição e neutralidade.

Passados mais de três séculos de evolução do conhecimento, com um avanço considerável da compreensão da complexidade da mente humana, tal neutralidade do homem racional não mais se sustenta cientificamente, emergindo a falibilidade da razão humana como princípio, dentre outros fatores, ante as influências da razão pela emoção e da subjetividade individual pelo contexto social.

Resulta desse progresso – no que aqui interessa – a substituição de tal neutralidade da jurisdição pela noção de imparcialidade, construção jurídica voltada à manutenção da legitimidade jurisdicional, que com a anterior não se confunde, ainda que não raras vezes se observe a confusão, inclusive por seus próprios representantes.

A partir da nova noção, ao invés da utópica expectativa de que um juiz se possa desvencilhar das suas experiências passadas, suas preferências ideológicas, etc., para exercer a judicatura, aceita-se que, como ser humano comum, jamais conseguirá afastar a sua subjetividade para julgar um processo, sendo tal constatação o simples reconhecimento da sua condição humana. Afinal, seja por ser fruto do contexto social em que habita, seja por possuir um sistema psíquico complexo, cujo consciente representa somente um dos processos, invariavelmente seu pensar e agir serão reflexos de tais fatores, tal como de qualquer pessoa, insista-se, comum.

Não à toa, Cesare Beccaria, para citar também um célebre jurista, preocupava-se tanto com a interpretação do “espírito da lei” pelos juízes, já que tal corresponderá “à boa ou má lógica do juiz, e isso dependerá de sua boa ou má digestão, da violência de seus interesses, (...) das relações com o acusado e todas aquelas pequenas circunstâncias que alteram a aparência de cada objeto, na flutuante mente humana”, o que inclusive explica vermos “o destino de um cidadão alterado várias vezes ao passar por diferentes tribunais e sua vida ser vítima de falsas ideias ou do mau humor do juiz, que confunde a legítima interpretação das leis com o vago resultado de toda aquela confusa série de noções que lhe move a mente”.

Não sendo, por certo, o juiz exceção aos demais seres humanos nem possuindo qualquer dom de se desvincular de suas experiências passadas e preconceitos, é inevitável que sua atuação seja dirigida por sua visão de mundo e dos fenômenos que nele acontecem, de modo que qualquer ato judicial, em maior ou menor grau, refletirá o olhar particular do seu responsável, jamais neutro.

Consequentemente, fatalmente irrealista a expectativa de neutralidade da atividade jurisdicional, devendo-se adotar, nesse lugar, o critério da imparcialidade, limite possível aos prejuízos que a subjetividade individual pode impor ao seu exercício.

É essa a noção adequada ao atual estágio do conhecimento que pode ser exigida do Poder Judiciário. Que seja imparcial. Que, reconhecendo as idiossincrasias de seus representantes, compreenda que seu exercício somente atenderá a tal requisito de validade se levado a efeito de forma desinteressada (alheia) aos interesses das partes, mas comprometida com a apreciação de suas versões, proporcionando sempre igualdade de tratamento e oportunidades aos envolvidos, para que nenhuma parte seja beneficiada em detrimento da outra, mesmo involuntariamente.

Eis as condições de imparcialidade para a atividade jurisdicional, que inclusive permitem identificar envolvimentos indevidos do juiz em situações nas quais sua subjetividade será o critério preponderante na condução dos seus atos. Como nos lembra Francesco Carnelutti, “a justiça humana não pode ser mais do que uma justiça parcial; (...) Tudo o que se pode fazer é tentar diminuir essa parcialidade”. 

Ruiz Ritter, o autor deste artigo, é advogado criminalista, doutorando e mestre em ciências criminais pela PUC-RS. Autor do livro "Imparcialidade no Processo Penal - Reflexões a Partir da Teoria da Dissonância Cognitiva". / e-mail: ruiz@ritterlinhares.com.br. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.08.23

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Freio de arrumação militar

Malgrado a platitude, ordem do general Tomás para despolitizar o Exército é muito bem-vinda por relembrar aos militares seu papel e suas responsabilidades à luz da Constituição

Uma ordem burocrática do comandante do Exército não despertaria atenção não estivessem as Forças Armadas tão contaminadas pelo vírus do golpismo inoculado pelo bolsonarismo. Nesse sentido, é muito bem-vinda a Ordem Fragmentária n.º 1/2023, que o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva fez publicar no Boletim do Exército no dia 18 passado. A ordem reitera à sociedade o compromisso do comandante de afastar o Exército da nefasta polarização política, movimento estimulado com esmero por Jair Bolsonaro desde antes de o mau militar chegar à Presidência. Passa da hora de virar essa triste página da história republicana

É péssimo para o País conviver com suas Forças Armadas abaladas por uma crise de confiança. É ocioso elaborar a respeito da centralidade do papel dos militares na defesa do interesse nacional em múltiplas frentes – sendo a de batalha a mais distante da realidade brasileira. E esse papel, é evidente, só pode ser bem exercido quando não pairam dúvidas sobre o Exército, a Marinha e a Aeronáutica quanto à sua credibilidade institucional e ao profissionalismo de seus integrantes. Noutras palavras: quando não se observa na atuação dos militares qualquer desvio de suas atribuições constitucionais.

A crise, contudo, aí está e não há como negá-la; como também é inescapável a conclusão de que alguns dos responsáveis pelo desgaste do prestígio das Três Armas perante a sociedade nos últimos anos envergam ou envergaram a mesma farda que passaram a desonrar por uma escolha livre e consciente de se afastar dos ditames da Constituição para se imiscuir na política. Se, por um lado, a ordem do general Tomás nada traz de novo, por outro, serve como uma espécie de “freio de arrumação”, vale dizer, é um lembrete à tropa dos papéis e responsabilidades dos militares no Estado Democrático de Direito à luz da Lei Maior.

No documento, entre outras providências, o comandante do Exército reafirma que a Força “é uma instituição de Estado, apartidária, coesa, integrada à sociedade e em permanente estado de prontidão”. Nada diferente, como se vê, do que diz a Constituição e do que dissera o próprio general Tomás em janeiro, quando, à frente do Comando Militar do Sudeste, ordenou que seus subordinados respeitassem o resultado da eleição passada. Em outras palavras, tratava-se de lembrar que este país não é uma republiqueta de bananas.

Lida friamente, a ordem do general Tomás é uma reafirmação de que a vida castrense em nada toca a política, própria da vida civil. São como água e óleo. O documento, pois, não passa de uma compilação de determinações que seriam desnecessárias e soariam apenas como as platitudes que são não fosse o momento delicado por que passam as Forças Armadas, em especial o Exército, como decorrência da ligação antirrepublicana de alguns militares, inclusive da ativa, ao bolsonarismo e das graves suspeitas que recaem sobre eles na preparação e execução dos atos golpistas do 8 de Janeiro e no suposto esquema de venda ilegal de joias da União no exterior.

Porém, justamente pelo desassombro com que se comportaram esses maus militares que, em nome de um desqualificado como Bolsonaro, expuseram a risco não só suas biografias, como a reputação institucional das Forças Armadas, certas obviedades precisam ser ditas – e, sobretudo, por quem as têm dito.

Há poucos dias, durante um seminário promovido pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara sobre os limites constitucionais à atuação dos militares, o general da reserva Sérgio Etchegoyen se uniu ao comandante do Exército na defesa do afastamento de servidores de carreiras de Estado, inclusive militares, caso queiram participar de eleições. De fato, as coisas não se misturam, pois não pode haver uma névoa de suspeição sobre quem exerce funções típicas de Estado de que suas motivações funcionais possam ser outras além do interesse público.

A sociedade só perde a confiança nas instituições quando os cidadãos percebem que seus membros se desvirtuam de seus desígnios originários. Logo, o resgate dessa confiança passa, necessariamente, pelo retorno dessas instituições aos trilhos das leis e da Constituição. Nada há de mistério.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.08.23