terça-feira, 22 de agosto de 2023

A tirania da mediocridade

A busca da eficiência e de resultados com visão de futuro, com uma nova liderança política e uma burocracia mais competente, é do que o Brasil precisa

Poucos pensam e discutem o Brasil acima de preocupações político-partidárias e de interesses pessoais. Não se trata de criticar a ação do governo de turno e de outros que o precederam. Hoje, na prática, o País está sem projeto de nação, que defina os rumos da economia; sem estratégia nacional de segurança, que defina o lugar do Brasil no mundo em rápida e profunda transformação; sem uma clara definição de objetivos modernos para a educação que dê base para a inovação e o desenvolvimento tecnológico; e sem saber como equacionar seus problemas sociais e ambientais no médio e no longo prazos.

Com forte influência populista, o País está dividido ideologicamente e politicamente. Ao não ousar, vê seu crescimento reduzido, as desigualdades aumentando, a violência crescendo, a base industrial se deteriorando e as vulnerabilidades econômicas, comerciais, sociais, militares e de defesa aumentarem. A segurança jurídica está abalada por decisões contraditórias e a competitividade da economia, paralisada pela ineficiência da burocracia e do tamanho do Estado.

A mediocridade da discussão e das ações burocráticas em grande parte explica esta situação de falta de perspectiva do País. A polarização política e a intolerância deixam a burocracia semiparalisada, com receio de assumir decisões que possam ser vistas como partidárias e que poderiam gerar consequência políticas ou mesmo jurídicas contrárias. 

A sociedade civil está sem liderança para propor a revisão de políticas institucionais de desenvolvimento e reforma política de interesse do País, e sem força para propor uma nova relação entre civis e militares, desgastados pelos envolvimentos recentes, para virar a página da histórica interferência militar na política. 

Os empresários, sobretudo no setor industrial, estão sem projetos e se acomodam aos governos de turno para defender seus interesses setoriais. O sistema político-partidário é disfuncional pelo número de partidos, sem uma clara ideologia, atuando na defesa de seus próprios interesses econômicos, comerciais e patrimoniais. 

O Congresso Nacional tem avançado o exame e a aprovação de algumas reformas, mas a percepção é de que, sem programas claros na defesa dos interesses maiores do País, fica enredado na discussão menor de privilégios e muitos de seus representantes aparecem envolvidos com corrupção. 

O Judiciário sofre desgaste com a judicialização de questões que o Legislativo e o Executivo não conseguem resolver. Em muitos casos, decisões são tomadas com forte viés político, alterando substancialmente decisões anteriores, ensejando a visão de que a política menor, e não a Constituição, prevalece em suas decisões.

Num mundo em que o conhecimento está na base das grandes mudanças, com os desafios da aplicação da Inteligência Artificial, o País não consegue superar as deficiências do sistema educacional. As escolas e universidades, com honrosas exceções, não respondem às necessidades dos novos tempos. Os recursos públicos são mal administrados e o Brasil está muito baixo nos índices internacionais.

As ONGs e os think tanks, com uma visão setorial em suas atuações, examinam e atuam com competência nas matérias que discutem, mas em raros casos têm força e poder para influir na definição de políticas públicas que possam ser avaliadas e tenham um sentido e uma visão de médio e longo prazos.

Nessa breve análise, que não pretende esgotar o assunto, mas chamar a atenção para as armadilhas de que a sociedade foi vítima, em todas as áreas mencionadas, o que se destaca, lamentavelmente, é o triunfo da mediocridade.

A mediocridade da classe dirigente historicamente refletida na incapacidade de aproveitar as potencialidades do Brasil para deixar de ser um país do futuro e transformá-lo numa força global, como ocorreu em Cingapura e na China.

Para superar essa situação, em que a mediocridade prevalece – inclusive pelo despreparo, pelo nepotismo, apadrinhamento, formas disfarçadas de corrupção, nas nomeações para o serviço público e para as filiações partidárias –, o Brasil teria de dar força à meritocracia, para buscar a eficiência e resultado nas políticas em todas as áreas. O termo meritocracia é um neologismo inventado nos anos 1950 pelo sociólogo britânico Michael Young. No romance The Rise of the Meritocracy (O surgimento da meritocracia), Young descreve uma sociedade em que os melhores e mais aptos detêm o poder. Ao morrer, em 2002, Young estava decepcionado com a vida pública estratificada na Inglaterra, mas tinha esperança na terceira via de Tony Blair.

O valor do mérito é atacado hoje no Brasil todos os dias e em todos os lugares: vejam como se desenvolve a carreira na classe política e o nivelamento por baixo, por muitos anos, nos principais setores do serviço público. Para muitos dos que o desprezam, o mérito seria uma vitrine enganosa, que dissimula mal a sobrevivência das elites. Os que atacam a meritocracia, com hipocrisia e cinismo, são os principais responsáveis pelos seus desvios.

A busca da eficiência e de resultados com visão de futuro, com uma nova liderança política e uma burocracia mais competente, é do que o Brasil precisa. O setor privado fará sua parte.

Abaixo a tirania da mediocridade.

Rubens Barbosa, o autor deste artigo, é Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004). Membro da Academia Paulista de Letras. Escreve mensalmente na seção Espaço Aberto d'O Estado de S. Paulo. Publicado originbalmente em 22.08.23


Democracia lotérica

Trocar eleições por sorteio para cargos públicos protegeria sistema de personalidades perigosas

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Sessão de posse dos deputados federais eleitos na Câmara, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress - Folhapress

Vamos acabar com as eleições? Calma, a ideia não é minha, mas de Adam Grant, que não é exatamente um golpista de quatro costados, mas um acadêmico, interessado em aprimorar a democracia. Ele expôs essa ideia em artigo que acaba de ser publicado no New York Times.

Grant é um psicólogo organizacional e, se há algo que psicólogos organizacionais temem, é a chamada tríade sombria, o nome dado à conjunção de altos teores de narcisismo, psicopatia e maquiavelismo numa mesma personalidade. Essa combinação é característica de líderes autoritários e bem mais comum entre políticos do que na população geral. Uma das razões para isso é que portadores da tríade tendem a ter ambição política e a ser bons manipuladores, o que lhes dá vantagem nas urnas.

O ponto de Grant é que é possível afastar a tríade mantendo-se nas quatro linhas da democracia. É só trocar as eleições, que geram essa seleção adversa, pelo sorteio, prática cujo pedigree democrático remonta à Atenas pós-Clístenes, na qual vários cargos públicos eram preenchidos por loteria. Há um resquício disso no instituto do júri, ainda presente em democracias modernas. O interessante no texto de Grant é como ele tenta desmontar as objeções que imediatamente nos vêm à mente.

Um exemplo? Ele cita trabalhos de Alexander Haslam que mostram que grupos tendem a tomar decisões melhores quando conduzidos por indivíduos escolhidos ao acaso do que por eleitos ou selecionados com base em testes de liderança. Ele admite, porém, que seria necessário submeter os "sorteáveis" a uma prova de conhecimentos básicos.

Ele também cita, e isso para mim é novidade, uma série de experimentos com democracia lotérica que estão em curso em países como Canadá, Holanda, França, Alemanha e Reino Unido.

O argumento central de Grant, com o qual concordo, é que às vezes a prioridade da democracia deve ser proteger-se da exposição a personalidades perigosas.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo, autor de "Pensando bem..." Publicado originalmente em 22.08.23

A volta da obrigatoriedade do imposto sindical no Brasil pode ser um gol a favor da ultradireita de Bolsonaro

A velha esquerda às vezes parece não ter entendido que o mundo está em trabalho de parto de algo novo.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante reunião com membros do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, em 29 de janeiro de 2022. (Foto - Crédito: Carla Carniel, Reuters)

A notícia da volta ao imposto sindical compulsório, que havia sido abolido em 2017 e que inclusive pretende ser três vezes maior do que então, pode acabar sendo um gol a favor do bolsonarismo ultraliberal que prega uma política com menos e menos estado.

É verdade que já em 2017 a eliminação da obrigatoriedade do imposto de um dia de trabalho para os cofres dos sindicatos foi um nó na garganta do sindicalista Lula, hoje presidente do país pela terceira vez. Daí a polêmica questão ressurgir agora com o aval do ex-sindicalista.

O problema é que nos últimos seis anos o mundo e o Brasil mudaram radicalmente e qualquer retorno ao passado implica o perigo de uma regressão democrática. Não é talvez por causa do bolsonarismo no Brasil que um possível governo de Milei na Argentina de cunho ultraliberal, inimigos do Estado, possa colocar em crise os velhos esquemas da esquerda clássica, a começar pelo sindicato.

A surpresa do ressurgimento neste momento de mudanças radicais no mundo do trabalho e, portanto, da crise dos sindicatos clássicos do passado, de um imposto obrigatório dos trabalhadores para os cofres sindicais, gera apreensão.

E não se trata mais de esquerda e direita, termos cada vez mais desgastados, mas das mudanças de época que o mundo vive e que a esquerda tradicional, a dos velhos e fortes sindicatos setoriais, tem dificuldade de entender e digerir.

Hoje os políticos que vêm da esquerda trabalhista do passado não podem ignorar que vivemos uma das maiores revoluções justamente no mundo do trabalho. A crise de dezenas de empregos consagrados do passado não é mais uma hipótese, mas uma realidade. Foram profissões que constituíram o cerne dos sindicatos clássicos e que hoje sofrem uma profunda transformação, ao mesmo tempo que vão surgindo novas profissões, ainda sem definição própria e sem apoio do Estado.

Assim, em vez de ressuscitar os antigos sindicatos que protegiam profissões que conferiam segurança e privilégios, o que os políticos e governantes precisam de compreender hoje é que aqueles que precisam de atenção especial são aquele rosário de novas profissões em formação abandonadas à sua sorte sem sindicatos que as protejam.

É verdade que Lula e seu partido, o PT, nasceram e se forjaram nas lutas sindicais no seio das grandes fábricas e que os sindicatos eram então a sua maior proteção. Eram sindicatos nascidos no seio da esquerda que ofereciam segurança aos trabalhadores. Hoje, pelo contrário, o denominador comum dos novos empregos é a insegurança para os quais não existem sindicatos que os protejam e são abandonados à sua sorte.

Assim, a notícia do ressurgimento do antigo imposto sindical sobre trabalhadores permanentes, de alguma forma privilegiados, começa a preocupar, pois pode se tornar uma arma nas mãos do ultraliberal Bolsonaro, que proclama a morte do Estado e a política de proteção aos que sabem triunfar, deixando na vala os mais fracos que, segundo o referido ultraliberalismo, deveriam ser abandonados à própria sorte.

A última palavra sobre a ideia de ressuscitar o antigo imposto sindical obrigatório caberá agora ao Congresso, que foi quem o anulou em 2017 em meio a grande polêmica. Ao que tudo indica, não será fácil para o novo governo Lula voltar ao passado sindical porque não tem a maioria parlamentar que tenta conquistar palmo a palmo e à custa de entregar ministérios até para partidos abertamente bolsonaristas .

A polêmica em curso sobre o renascimento do antigo imposto sindical expõe a luta interna no novo governo Lula da velha guarda de seu PT. É a velha esquerda que às vezes parece não ter entendido que o mundo vive algo novo, inclusive no mundo do trabalho, e que se voltou ao poder foi graças às forças do centro que o sustentavam e que foram eles que lhe garantiram a vitória, ainda que por um punhado de votos, contra o raivoso e golpista Bolsonaro .

Lula começou bem sua nova aventura de governo, já alcançando 60% de consenso nacional e sangrando o Bolsonaro mais raivoso. A tentativa de reviver o antigo imposto sindical obrigatório não parece a melhor forma de demonstrar que ele entendeu que seu terceiro governo deve isso não apenas à força de seu partido, hoje em crise como toda a esquerda, mas ao apoio que teve de um centro democrático. Este centro foi o escudo contra a avalanche não só ultraliberal, mas também do golpe de Bolsonaro como revelam as investigações em andamento, os 17 processos judiciais contra ele, sua inabilitação política por oito anos, a possibilidade de impedi-lo de fugir para o exterior e uma não impossível. encarceramento nos próximos dias.

A política externa frenética de Lula , tentando colocar o Brasil no centro das atenções do mundo, deve ser aplaudida após o apagão de Bolsonaro que ofuscou a força real do quinto maior país do mundo. O que ele não pode esquecer ou deixar apenas nas mãos dos ex-colegas de sindicato é que o mundo, a começar pelo local de trabalho, sofre dores de parto e exige novas soluções para os imponderáveis ​​que o assolam.

Juan Arias, o autor deste artigo, é jornalista - correspondente do EL PAÍS no Brasil. Publicado originalmente em 22.08.23

Candidatura de Trump à Presidência dos EUA poderá ser questionada na Justiça

 Até a semana passada, o ex-presidente Donald Trump tinha muitas preocupações com os quatro processos criminais que responde na Justiça, mas nenhuma preocupação com a própria candidatura à Presidência dos Estados Unidos. 

Donald Trump pode ter de enfrentar batalha jurídica por candidatura à Presidência

Afinal, não há nada na Constituição americana que proíba um prisioneiro de se candidatar ao cargo. As únicas exigências constitucionais são as de que o candidato seja nascido nos EUA; tenha pelo menos 35 anos de idade; e seja residente no país nos últimos 14 anos.

Mas, então, um estudo de dois professores de Direito — William Baude, da Universidade de Chicago, e Michael Stokes Paulsen, da Universidade de St. Thomas — colocou a candidatura de Trump em 2024 na corda-bamba.

O estudo tem peso porque os dois professores são conservadores-republicanos, como Trump, e membros da poderosa Federalist Society, a organização que indicou os três últimos ministros escolhidos para a Suprema Corte. Eles afirmam, no trabalho de 126 páginas, que Trump é inelegível, com base na Seção 3 da 14ª Emenda da Constituição dos EUA, que diz: "Nenhuma pessoa poderá ser senador ou deputado, eleitor do presidente e vice-presidente ou ocupar qualquer cargo civil ou militar nos Estados Unidos ou em qualquer estado se, tendo previamente prestado juramento (...) de apoiar a Constituição (do país), tiver se envolvido em uma insurreição ou rebelião contra os Estados Unidos ou tenha dado ajuda ou conforto a inimigos do mesmo".

A questão a ser julgada é se Trump se envolveu em insurreição contra os Estados Unidos no episódio da invasão do Congresso, em 6 de janeiro de 2021, para tentar impedir a certificação pelos congressistas da vitória de Joe Biden nas eleições de 2020 — e por tudo o que aconteceu antes e depois da invasão.

Os democratas e uma parcela considerável dos republicanos acreditam que Trump promoveu a invasão do Congresso ao convocar seus eleitores fiéis para irem a Washington, D.C., e ao lhes pedir para marchar para o Capitólio e "lutar pra valer" ("fight like hell") para impedir a certificação da vitória de Biden.

Para os dois professores, isso caracteriza envolvimento em insurreição. Eles acrescentam que Trump tentou alterar a contagem de votos por fraude e intimidação, tentou convencer autoridades dos estados a nomear delegados para o Colégio Eleitoral a seu favor, pressionou o vice-presidente a violar a Constituição e ficou calado por horas durante a invasão do Congresso, antes de pedir aos invasores para irem para casa.

Antes disso, ele propagou a "Grande Mentira" — a de que ganhou as eleições por uma larga margem, mas não levou porque elas foram fraudadas. A defesa dele, nesse caso, é a de que seu discurso é protegido pela liberdade de expressão.

Para o professor de Direito Steven Calabresi, da Universidade de Yale e um dos fundadores da Federalist Society, as autoridades eleitorais dos estados — ou qualquer um com a responsabilidade de decidir quem é legalmente qualificado para ocupar cargo público — devem entender que Trump é inelegível e deixar seu nome fora da cédula de votação.

Se não o fizerem, poderão ser processadas por eleitores ou organizações. Se o fizerem, serão processadas por Trump. E isso vai disparar batalhas judiciais em cortes estaduais e federais, que vão aterrizar, finalmente, na Suprema Corte dos EUA. Os processos vão tramitar em regime de urgência e o tribunal não poderá evitar a responsabilidade de decidir a constitucionalidade da remoção de um candidato da cédula de votação.

A Seção 3 da 14ª Emenda da Constituição prevê que o Congresso pode reverter a inelegibilidade de candidatos acusados de insurreição contra o país por dois terços dos votos dos deputados e senadores. Com o Congresso dividido ao meio entre democratas e republicanos (com muitos republicanos contra Trump), isso nunca vai acontecer.

Nem todos os republicanos consultados pelos jornais acreditam que a análise dos dois professores é indiscutível. Para eles, uma insurreição no sentido coloquial ou político não é a mesma coisa de uma insurreição no sentido "constitucionalmente vinculante".

Segundo o Congressional Research Service, a lei sobre insurreição descreve uma situação em que "é impraticável executar as leis dos Estados Unidos em qualquer estado pelo curso normal dos procedimentos judiciais". Portanto, caberá à Suprema Corte decidir se Trump é ou não inelegível por violar um dispositivo constitucional. Com informações adicionais de New York Times, Washington Post, HaffPost e Newsweek.

João Ozorio de Melo, o autor desta matéria, é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos. Publicado originalmente em 21.08.23

Navio cargueiro 'movido a vento' estreia em viagem ao Brasil

Cargueiros movidos a energia eólica podem ajudar indústria a caminhar em direção a um futuro mais verde

Um navio de carga equipado com velas especiais gigantes movidas a vento partiu em sua viagem inaugural. (Crédito Cargill)

A empresa de transporte marítimo Cargill, que fretou a embarcação, diz esperar que a tecnologia ajude a indústria a caminhar em direção a um futuro mais verde.

O uso das grandes velas (ou "asas") WindWings, de design britânico, visa a reduzir o consumo de combustível e, portanto, a pegada de carbono do transporte marítimo.

Estima-se que a indústria seja responsável por cerca de 2,1% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2).

A primeira jornada do navio Pyxis Ocean será da China para o Brasil — e servirá como o primeiro teste da tecnologia no mundo real.

Dobradas quando o navio está no porto, as velas são abertas depois da embarcação zarpar. Elas têm 37,5 metros de altura e são construídas com o mesmo material das turbinas eólicas, o que as torna mais duráveis.

Permitir que uma embarcação seja levada pelo vento, em vez de depender apenas de seu motor, pode reduzir as emissões de um navio de carga em até 30%.

Jan Dieleman, presidente da Cargill Ocean Transportation, disse que a indústria está em uma "jornada para descarbonizar".

Ele admite não haver uma "bala de prata", mas disse que essa tecnologia demonstra a rapidez com que as coisas estão mudando.

"Cinco, seis anos atrás, se você perguntasse às pessoas sobre descarbonização, elas diriam 'bem, vai ser muito difícil, não vejo isso acontecendo tão cedo'", disse ele à BBC.

“Cinco anos depois, acho que a narrativa mudou completamente e todos estão realmente convencidos de que precisam fazer sua parte. O desafio para todos é um pouco entender como fazer isso acontecer."

"É por isso que assumimos o desafio de ser uma das maiores empresas a assumir parte do risco, experimentar coisas e levar o setor adiante."

Montagem sendo executada em um estaleiro na China (Crédito: Cargill)

O Pyxis Ocean vai demorar cerca de seis semanas para chegar ao Brasil, seu destino final.

A tecnologia usada na embarcação foi desenvolvida pela empresa britânica BAR Technologies, que surgiu da equipe do velejador britânico Ben Ainslie na Copa América de 2017, uma competição chamada por muitos de "Fórmula 1 dos mares".

"Este é um dos projetos mais lentos que já fizemos, mas sem dúvida com o maior impacto para o planeta", disse à BBC o chefe da equipe, John Cooper, que trabalhava para a McLaren, da Fórmula 1.

Ele acredita que esta viagem marcará uma virada para a indústria marítima.

"Prevejo que até 2025 metade dos novos navios serão encomendados com propulsão eólica", disse ele.

"A razão pela qual estou tão confiante é a economia - uma tonelada e meia de combustível por dia. Com quatro 'asas' em uma embarcação, são seis toneladas de combustível economizadas, ou seja, 20 toneladas de CO2 economizadas. Por dia. Os números são enormes."

A inovação veio do Reino Unido, mas as "asas" (WindWings) são fabricadas na China. Cooper diz que a falta de apoio do governo para reduzir o custo do aço importado impede a empresa de fabricá-lo aqui.

"É uma pena, eu adoraria construir no Reino Unido", disse ele à BBC.

'Mergulhar de cabeça'

Especialistas dizem que a energia eólica para embarcações é uma área promissora, já que a indústria naval tenta reduzir os estimados 837 milhões de toneladas de CO2 que produz a cada ano.

Em julho, a indústria concordou em zerar a emissão de gases que aquecem o planeta "por volta de 2050" — uma promessa que os críticos disseram ser capenga.

"A energia eólica pode fazer uma grande diferença", diz Simon Bullock, pesquisador de navegação no Tyndall Centre, na Universidade de Manchester.

Ele disse que novos combustíveis mais limpos levarão tempo para surgir, "então temos que mergulhar de cabeça em medidas operacionais em navios existentes, como modernizar embarcações com velas, pipas e rotores".

"Em última análise, vamos precisar de combustíveis de carbono zero em todos os navios, mas, até lá, é urgente tornar cada viagem o mais eficiente possível. Velocidades mais lentas também são uma parte crítica da solução", disse ele à BBC.

Stephen Gordon, diretor administrativo da empresa de dados marítimos Clarksons Research, concorda que as tecnologias relacionadas ao vento estão "ganhando força".

“O número de navios que usam essa tecnologia dobrou nos últimos 12 meses”, disse.

"No entanto, a referência para esse dado é baixa. Na frota de transporte marítimo internacional e na carteira de pedidos de mais de 110.000 embarcações, temos registros de menos de 100 com tecnologia assistida pelo vento hoje."

Mesmo que esse número aumente drasticamente, a tecnologia eólica pode não ser adequada para todas as embarcações, por exemplo, onde as velas interferem no descarregamento de contêineres.

“A indústria naval ainda não tem um caminho claro para a descarbonização e, dada a escala, o desafio e a diversidade da frota naval mundial, é improvável que haja uma solução única para a indústria a curto ou médio prazo”, analisa Gordon.

John Cooper, da BAR Technologies, é mais otimista, porém, dizendo que o futuro das asas eólicas é "muito promissor".

Ele também admite certa satisfação com a ideia da indústria voltar às origens.

"Os engenheiros sempre odeiam, mas eu sempre digo que é uma volta para o futuro", disse ele. "A invenção dos grandes motores de combustão destruiu as rotas comerciais e marítimas e agora vamos tentar reverter essa tendência."

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 21.08.23

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Um golpe fora do lugar

 Os dados rocambolescos e a incompetência de golpistas não podem ser usados como atenuantes

Depoimento do hacker Walter Delgatti Neto, na CPMI do Dia 08 de Janeiro — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo

Na minha idade, é impossível falar de golpe de Estado no Brasil e se desvencilhar da memória. Ouço isso desde garoto. Quando comecei a trabalhar no Rio, conheci um repórter veterano chamado Redento Júnior. Ele cobria a Aeronáutica e estava sempre esperando algo: Aragarças, Jacareacanga, movimentos em que um grupo aterrissava na selva amazônica para derrubar o governo.

Era até um pouco romântico. Vi o capitão Lameirão andando pelas ruas de Juiz de Fora, carregava a memória de rebeliões fracassadas. Em 1961, aos 20 anos, no Rio, acompanhei eletrizado o sequestro do transatlântico Santa Maria pelo capitão português Henrique Galvão e pelo general Humberto Delgado. Era uma ação espetacular contra a ditadura salazarista.

Em 1964, cobri com uma dor no coração o golpe que derrubou Goulart. Entrevistei o general Mourão e me vinguei no primeiro parágrafo da matéria: o comandante da marcha militar contra o Rio sofreu um enfarte depois de andar alguns quilômetros em Copacabana.

Quando vejo o depoimento do hacker Walter Delgatti, observo como era correta a presunção de que havia um golpe em curso. Escrevi sobre isso no 8 de Janeiro. Mencionei a senha “festa da Selma” e, para mim, as invasões eram apenas um passo. A expectativa dos invasores era a entrada em cena ds Forças Armadas. O hacker de Araraquara, assim como o ET de Varginha, se entrelaça na minha imaginação. As cidades médias brasileiras não param de nos surpreender.

Por meio de Octavio Guedes, fiquei sabendo da ideia maluca de levar uma urna eletrônica para o palanque, digitar, diante do público, o número de Bolsonaro para aparecer o de Lula. Os adeptos do Mito gritariam: Caramuru. Escrevo assim porque vejo dessa maneira. Mas não significa que subestime os fatos. Tenho afirmado que golpes de Estado fracassados são precisamente os que dão cadeia para seus autores. Em caso de êxito, os democratas é que são presos.

Os dados rocambolescos e a incompetência de golpistas não podem ser usados como atenuantes. O lado mais preocupante de tudo foi a participação de militares. A comissão que investigaria as urnas usou o hacker de Araraquara como consultor. Estamos num momento da História em que as guerras são também cibernéticas. Imagine se fôssemos colhidos numa delas.

Aliás, Bolsonaro conseguiu, de uma certa forma, comprometer o prestígio das Forças Armadas. O episódio das joias, o mais reluzente, acabou envolvendo também um general. Ele aparece no reflexo de uma caixa que continha uma palmeira folheada a ouro. Isso talvez possa ser usado como atenuante . O general é primário: não percebeu sua imagem refletida na tampa da caixa.

Outro dia, dei um depoimento sobre a história do telefone celular. Está numa exposição do Museu do Amanhã. Falei da importância política e do potencial produtivo desse novo instrumento. Não me alonguei sobre o impacto que teve na fotografia. Milhões de pessoas passaram a fotografar, sobretudo a tirar selfies. Festas, encontros, viagens — tudo resulta em selfie. Algumas pessoas morreram fazendo selfie em lugares perigosos.

O general não fez uma selfie. O general fez um id. Na verdade, self, id e superego são categorias da psicanálise. O id é o inconsciente sobre o qual não temos controle. Está sempre nos traindo.

Enfim, sou favorável a que se faça justiça e tudo mais. Mas não estou conseguindo levar a sério todo o tempo o que se passou. É muito tosco. Os golpes de antigamente eram mais bem urdidos ou mesmo mais arrojados. Ou será que o tempo passou tão célere que não percebi que a própria ideia de um golpe é algo fora de lugar, que sempre parecerá ridiculo? Não é exatamente assim. A verdade é que a técnica do golpe de Estado se modernizou, e os golpistas brasileiros ainda não se atualizaram.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, jornalista e escritor, é colunista de O Globo. Publicado originalmente em 21.08.23

domingo, 20 de agosto de 2023

Jovens fartos de políticos e sem futuro, a terra fértil em que Milei criou raízes

O núcleo inicial de jovens foi ampliado para 30% dos eleitores nas primárias da Argentina. Eles estão unidos pela rejeição aos políticos tradicionais e uma moeda desvalorizada

Lucas e Jacqueline, de 27 e 24 anos, votaram no candidato presidencial Javier Milei nas primárias em 13 de agosto em seu bairro de Buenos Aires, Villa Lugano.

O direitista Javier Milei , candidato à presidência da Argentina, realiza sorteio mensal de seu salário como deputado desde que assumiu o cargo em 2021. No início de agosto, dias antes das eleições primárias em que ele, um economista ultraliberal, se firmou como o mais votado, mais de 2,7 milhões de pessoas se inscreveram online para tentar ganhar aquele salário de 702 mil pesos, cerca de 1.920 dólares (1.850 euros). 

Essa medida populista o tornou conhecido de grande público e, por sua vez, em meio à enésima crise econômica , tem sido o combustível que ele buscava para atiçar a indignação cidadã contra uma classe política da qual não se sente parte apesar de ser um legislador. Obteve 30% dos votos, dois pontos percentuais a mais que a coalizão de centro-direita juntos por el Cambio (JxC), liderada por Patricia Bullrich , e três a mais que o peronismo governista, cujo candidato, Sergio Massa, também é ministro da Economia .

Dos 7,1 milhões de votos que Milei recebeu, muitos vieram de bairros pobres e de classe média baixa de todo o país, os mais atingidos pela inflação que devora os salários. Os preços aumentaram 113% no ano passado; os salários dos trabalhadores não registrados, 82%. Milei promete um corte severo nos gastos públicos – ainda maior do que o exigido pelo Fundo Monetário Internacional – que reduzirá um estado de bem-estar social que oferece pensões, educação e saúde públicas gratuitas e ajuda estatal aos mais desfavorecidos. Para não assustar os eleitores, o candidato de extrema direita vende —sem explicar como— que o custo será pago por uma classe política que ele chama de "parasitária, estúpida (ladrão) e inútil".

"Eles ganham muito e nós nada"

Lucas, 27, e Jacqueline, 24, chegaram a Milei por meio desse sorteio e no dia 13 de agosto votaram nele. Eles residem em Villa Lugano, um dos bairros do sul empobrecido de Buenos Aires. Milei obteve o dobro de votos aqui do que nos bairros mais ricos do norte da cidade, onde seis em cada dez eleitores optaram pelo tradicional partido de direita Juntos pela Mudança (JxC). “Fiquei interessado na Milei quando ela disse que ia doar o salário. Me inscrevi e não me tocou, mas foi aí que comecei a ouvir e ver os salários dos deputados. Eles ganham muito e nós não ganhamos nada”, diz Lucas, que prefere não revelar o sobrenome, como a maioria dos entrevistados sobre suas preferências políticas.

Lucas e Jacqueline passam seis horas por dia vigiando o trânsito de Buenos Aires para contar quantos veículos passam e de que tipo são. Eles trabalham sem carteira assinada para uma empresa terceirizada pela prefeitura e ganham cerca de 50 mil pesos (US$ 138). Seus dois empregos, somados, mal dão para comprar comida e menos ainda roupas ou sapatos novos. Eles dizem estar cansados ​​de ver como os políticos "brigam entre si e nada fazem" para melhorar a situação. "Os pesos não valem nada", critica Lucas.

O peso argentino desvalorizou 18% na segunda-feira pós-eleitoral e acumula desvalorização de 50% em 2023. O câmbio oficial é de 365 pesos por dólar, mas nas ruas a moeda americana é vendida por mais que o dobro: 720 pesos. Em meio à incerteza, empresas, setor de construção, mercado imobiliário e postos de gasolina, entre outros, correram para aumentar os preços.

A queda desenfreada do peso e a inflação deram asas à promessa estrela de Milei, a dolarização. Muitos economistas alertam que é inviável , entre outros motivos porque o banco central não tem reservas suficientes e porque perderia um valioso instrumento de política monetária diante de crises como a causada pela última seca. Mas o candidato de extrema direita o mantém. Ele sabe que a sociedade argentina pensa em dólares, embora ganhe em pesos e que o único governo em 40 anos de democracia que venceu a batalha contra a inflação foi o do presidente neoliberal Carlos Menem, que impôs uma lei de conversibilidade que amarrou o valor do peso ao dólar . Nenhum argentino esqueceua crise de Corralito de 2001-2002 que desencadeou aquela política econômica , com recordes de pobreza e desemprego, mas alguns lembram nostalgicamente daquela época com um peso forte que lhes permitia viajar para o exterior e comprar mercadorias importadas.

Eloy, transportador, votou no candidato presidencial Javier Milei, mora no bairro de Lugano, Buenos Aires, Argentina, em 16 de agosto de 2023.

“Quero que Milei dolarize para que não haja mais inflação”, diz Eloy Rojas, 33, pai de dois filhos, a poucos metros da estação Villa Lugano, que liga Buenos Aires à periferia sul. Nascido na Bolívia, veio para Buenos Aires ainda bebê e hoje tem dupla cidadania. “Há um ano fui à Bolívia e os preços continuam quase os mesmos, mas aqui tudo aumenta, aumenta, aumenta. Precisamos de uma mudança, isso não existe mais", diz.

Eloy trabalha como transportador há alguns meses, depois de fechar uma quitanda que mantinha há oito anos: "Trabalhava das quatro da manhã às dez, dez e meia da noite e não conseguia".

Recorde de Abstenção

Ao lado dele, outro vizinho faz tortilhas em um velho tambor de óleo transformado em grelha. Ele ouve em silêncio por um tempo antes de explodir: "Milei me assusta, ela vai nos deixar sem nada." Ele teme perder a magra pensão por invalidez que recebe, de 40 mil pesos (cerca de US$ 110), mas mesmo assim não foi votar porque nenhum partido político o convence. Mais de 11 milhões de pessoas gostaram dele, 31% do eleitorado, um número recorde de abstenções para eleições primárias desde que foram implementadas, em 2011. Os principais rivais de Milei, a conservadora Patrícia Bullrich e o peronista Sergio Massa, buscam convocar para isso eleitorado em vista das eleições gerais de 22 de outubro. As alianças que eles representam - a oposição Juntos por el Cambio e a pró-governo União pela Pátria - ficaram a dois e três pontos, respectivamente, de Milei.

O cientista político Javier Caches considera uma interpretação insuficiente atribuir o triunfo da extrema direita ao descontentamento acumulado por dez anos de estagnação econômica e pelo fracasso de dois governos de signos diferentes, o do conservador Mauricio Macri entre 2015 e 2019 e a de seu sucessor, o peronista Alberto Fernández, desde então até o presente. “Não explica por que Milei capitaliza esse voto irado e não outros emergentes, como [o líder social] Juan Grabois”, diz ele.

Milei faz parte de um fenômeno global ligado a figuras como Donald Trump nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro no Brasil, José Antonio Kast no Chile, Santiago Abascal na Espanha e Giorgia Meloni na Itália, entre outros. Eles se parecem, mas cada cenário tem suas particularidades. Enquanto Trump, Abascal e Meloni concentram seus ataques aos imigrantes, o candidato argentino dirige seus dardos ao Estado e ao kirchnerismo.

Cultura online antiprogressista

A ascensão de Milei foi alimentada por uma cultura online antiprogressista , em clara disputa com os movimentos feministas. A Internet foi o solo fértil onde sua semente primeiro criou raízes. Durante a pandemia, cresceu entre os jovens , insatisfeitos com as restrições sanitárias e atraídos por seu discurso meritocrático, a favor do porte livre de armas e contrário às políticas de gênero. "Não vou me desculpar por ter pênis", é uma das frases polêmicas proferidas por um candidato que não se opõe à venda de órgãos e que antecipou que se for presidente fechará o Ministério da Mulher, o Ministério da Educação, Saúde, Ciência e Desenvolvimento Social, entre outros.

María Elena, aposentada, votou no candidato presidencial Javier Milei, mora no bairro de Lugano, Buenos Aires, Argentina, em 16 de agosto de 2023.

Em menos de três anos, Milei se ramificou para todas as esferas da vida, idades e gêneros. Venceu em 16 das 24 províncias do país. María Elena, aposentada de 61 anos, o conheceu por meio de seus netos e votou nele porque ele é a única esperança que ela vê para que seus filhos "não saiam do país"; Gabriela, também aposentada, responde que lhe dá um otimismo para o futuro que agora lhe falta: “Não quero um país derrotado, não quero um país triste, não quero um país onde tudo foi vendido. Nosso país é rico e eu quero vê-lo assim."

“Os eleitores do Miilei não compartilham do mesmo programa, é uma identidade em construção. Eles estão unidos pela raiva e pela esperança de uma mudança”, resume a pesquisadora Valéria Brusco, integrante da Rede de Politólogas. Brusco, que acompanha o crescimento de Milei desde 2021, destaca que, ao contrário da solução coletiva proposta pela esquerda, a extrema direita privilegia soluções individualistas: “Eu cuido da minha casa, da minha alimentação e que não arrombe”.

Na fórmula Libertad Avanza, Milei tem Victoria Villarruel como candidata à vice-presidência, negadora dos crimes contra a humanidade perpetrados pela ditadura argentina pela qual foram condenados mais de 1.100 repressores e defensora da revogação da legalização do aborto, um dos as mais recentes conquistas do feminismo na Argentina. “A rebelião virou para a direita, como escreveu [Pablo] Stefanoni, mas confiamos muito nos anticorpos democráticos da Argentina, achávamos que qualquer indício de projeto autoritário era uma linha vermelha intransponível”, diz Caches.

Faltam dois meses e meio para as eleições gerais de 22 de outubro. Se nenhum candidato obtiver mais de 45% dos votos ou pelo menos 40% e uma diferença de dez pontos em relação ao segundo, haverá um segundo turno entre os dois mais votados no dia 19 de novembro. A irrupção de Milei foi um terremoto que quebrou o sistema bipartidário da Argentina. Também obrigou os candidatos derrotados a mudar de estratégia para enfrentar uma ultradireita mais forte do que pensavam.

Publicado originalmente por EL PAÍS, em 20. 08.23. (Fotos de Enrique Garcia Medina).

Nave russa Luna-25 colide com a Lua

Lançamento no início deste mês foi o primeiro da Rússia desde 1976, quando fazia parte da União Soviética

Lançado a partir da base espacial de Vostochni, dispositivo deveria chegar à Lua por volta de 21 de agosto  Foto: Roscosmos State Space Corporation/AP

AP - O módulo de aterrissagem da Rússia, a nave espacial Luna-25, colidiu com a Lua depois de girar em uma órbita descontrolada, informou a agência espacial do país, a Roscosmos, neste domingo, 20.

“O aparelho entrou em uma órbita imprevisível e deixou de existir como resultado de uma colisão com a superfície lunar”, diz um comunicado da agência.

A Roscosmos disse que perdeu contato com a espaçonave no sábado, 19, depois que ela teve problemas enquanto se preparava para a órbita antes do pouso. “Durante a operação, ocorreu uma situação anormal a bordo da estação automática, que não permitiu que a manobra fosse realizada com os parâmetros especificados”, disse a Roscosmos em uma postagem do Telegram.

A espaçonave estava programada para pousar no polo sul da Lua na segunda-feira, 21. Os russos tentam chegar lá e se fixar antes que a agência espacial o faça - em 2019, ela também viu seu módulo colidir com a Lua.

O polo sul lunar é de particular interesse para os cientistas, que acreditam que as crateras polares permanentemente sombreadas podem conter água. A água congelada nas rochas poderia ser transformada por futuros exploradores em ar e combustível para foguetes.

O lançamento no início deste mês foi o primeiro da Rússia desde 1976, quando fazia parte da União Soviética.

Da Redação de O Estado de S. Paulo, originalmente, em 20.08.23

Supremo decide que juízes poderão julgar causas de clientes de escritórios de parentes

Seis ministros já votaram no plenário virtual para derrubar trecho do Código de Processo Civil sobre impedimento de magistrados

Julgamento vai até a próxima segunda (21) no plenário virtual. Foto: WILTON JUNIOR

O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria neste sábado, 19, para flexibilizar regras de impedimento de juízes e liberar magistrados a julgarem causas de clientes de escritórios de advocacia de seus familiares. O placar está em 6 a 3 no plenário virtual.

A decisão beneficia os próprios ministros do STF. Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes são casados com advogadas. Já os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Edson Fachin, por exemplo, são pais de advogados.

A restrição foi criada na reforma do Código de Processo Civil para garantir a imparcialidade nos julgamentos e valia inclusive para processos patrocinados por outras bancas de advogados. Isso quer dizer que, se o cliente tivesse alguma causa no escritório do parente do juiz, o magistrado estaria impedido de julgar qualquer ação dele.

O ministro Gilmar Mendes, decano do STF, apresentou o voto predominante. Ele defendeu que a restrição à atuação dos magistrados viola os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

O argumento é que não dá para exigir que os juízes conheçam a carteira de clientes dos escritórios de seus parentes. “O fato é que a lei simplesmente previu a causa de impedimento, sem dar ao juiz o poder ou os meios para pesquisar a carteira de clientes do escritório de seu familiar”, criticou.

O julgamento está em curso no plenário virtual do STF. Nesta modalidade, não há debate, reunião dos ministros ou transmissão pela TV Justiça. Os votos são registrados em uma plataforma online. A votação termina na segunda.

O economista Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional - Brasil, classifica como “lamentável” a decisão do STF. Na avaliação do especialista, a regra de impedimento contribuía para “aprimorar a integridade” da Justiça. “A decisão produz uma percepção na sociedade ainda pior por ter sido tomada por juízes cujas esposas e filhos advogados são sócios de escritórios diretamente afetados”, afirma.


Brandão discorda do argumento de que os juízes não têm instrumentos para controlar se estão julgando causas de clientes de parentes. “O argumento de que a medida é inexequível é altamente questionável, considerando as possibilidades atuais dos processos digitais. Empresas privadas fazem, há anos, esse tipo de checagem de vínculos societários, de maneira automatizada, para detectar riscos de compliance”, explica.

Impedimento

O Código de Processo Civil determina que os magistrados devem se declarar impedidos para o julgamento dos clientes das bancas de seus maridos, esposas e parentes de até terceiro grau.

A regra de impedimento se aplica mesmo para processos que estiverem a cargo de outros escritórios, ou seja, o juiz não podia analisar nenhuma ação de quem tivesse contratado serviços de advocacia com bancas de seus familiares.

A ação em julgamento no STF é movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). A entidade de classe afirma que os juízes precisariam exigir dos parentes uma lista diária da relação de seus clientes e poderiam ser penalizados por “informações que estão com terceiros”.

“O dispositivo ora impugnado se presta apenas para enxovalhar alguns magistrados, pois quando há o interesse de atingi-los ou maculá-los, certamente para constrangê-lo em razão de já ter proferido decisão(ões) contrária(s) aos seus eventuais detratores, esses se prestam a fazer pesquisas extra-autos para obter a informação necessária a apontar o impedimento que o magistrado desconhece”, argumentou a AMB ao dar entrada no processo em 2018.

‘Desproporcional’

Ao votar para derrubar a regra, Gilmar também argumentou que, na prática, a restrição é “inviável”, por causa da rotatividade entre os escritórios de advocacia.

“Sociedades de advogados são formadas, desmembradas e dissolvidas. Advogados empregados são contratados e demitidos”, afirmou. “Para observar a regra de impedimento, não basta verificar o nome do advogado constante da atuação. É indispensável verificar as peças do processo, checando o papel timbrado no qual são veiculadas as petições.”

O voto afirma ainda que a distribuição dos processos é aleatória e que o impedimento deve ser “excepcional”. “O trabalho do juiz é julgar. Aceitar que as partes usem a recusa como meio para manchar a reputação do julgador é diminuir não só a pessoa do juiz, mas a imagem do Poder Judiciário”, acrescentou.

O decano foi acompanhado por Cristiano Zanin, Luiz Fux, Dias Toffoli, Kassio Nunes Marques e Alexandre de Moraes.

Em seu voto, Zanin afirmou que o controle das partes do processo é “praticamente impossível” e que a regra poderia prejudicar parentes de magistrados. “Tanto os clientes quanto os advogados não são obrigados a permanecer no mesmo escritório. É a regra da iniciativa privada. Os vínculos se alteram tanto entre os advogados e os escritórios como entre os escritórios e os seus clientes”, defendeu.

Relator

O ministro Edson Fachin, relator do processo, votou para manter a regra de impedimento. Ele defendeu que ela foi criada para “garantir um julgamento justo e imparcial”. “Ainda que em alguns casos possa ser difícil identificar a lista de clientes do escritório de advocacia, a regra prevista no Código de Processo Civil está longe de ser de impossível cumprimento”, rebateu. Ele foi seguido por Rosa Weber e Luís Roberto Barroso.

Rayssa Motta -  Blog do Fausto Macedo, publicado no O Estado de S. Paulo, em 19.08.23

Deu ruim

Hoje, à luz dos múltiplos desdobramentos das operações em curso pela PF, o capitão-ex-presidente já parece saber que sua casa caiu

Bolsonaro com o advogado Frederick Wassef - Foto: Foto: Cristiano Mariz / Agência O Globo

Domingo passado, neste mesmo espaço, o texto sobre o intrigante périplo das joias presenteadas ao Estado brasileiro, e dele subtraídas por Jair Bolsonaro, terminava assim: “Daqui para a frente são só notícias amargas para o capitão... é possível que logo mais seu passaporte seja retido; provável que venha a ser indiciado, denunciado, julgado, quiçá condenado — não só pelo rastro de ladroagem deixado. Talvez ainda não saiba, mas sua casa já caiu”.

Hoje, à luz dos múltiplos desdobramentos das operações em curso pela Polícia Federal (PF), o capitão-ex-presidente já parece saber. E os demais envolvidos também. Com todos juntos e embolados no inquérito sobre milícias digitais e atos golpistas do 8 de Janeiro, a investigação sob a regência de Alexandre de Moraes dá até a impressão de já conhecer o final do enredo. Apenas não atropela. Deixa decantar cada novo pacote de buscas e apreensões, para só então avançar ao patamar seguinte. E é bom que assim seja. Qualquer estrelismo, precipitação nas acusações ou atropelo à lei e às garantias constitucionais seria simplesmente desastroso.

A semana não deu sossego. Em embate (ou conluio) travado por meio de entrevistas à imprensa, os advogados de Bolsonaro e do seu malfadado ajudante de ordens, tenente-coronel da ativa Mauro Cid, dedicaram-se a nada esclarecer. Por ora, a disputa de versões ainda gira em torno das joias manuseadas pelos respectivos clientes. Mas o campo a ser defendido é vasto. Ainda não houve tempo para rastrear o estranho aparecimento de R$ 17 milhões em depósitos Pix no cofrinho do ex-presidente.

Na CPI dos Ataques Golpistas, o depoimento fluvial do hacker Walter Delgatti sugou todas as atenções, tamanho o detalhamento de revelações por ele feitas. Com a tranquilidade de um delinquente profissional que se encontra preso, Delgatti discorreu com fartura sobre ordens recebidas de Bolsonaro e coligados para, assim disse ele, cometer uma variedade de ilícitos. A tarefa mais espetaculosa teria lhe custado seis meses de labuta: programar uma urna eletrônica fake que demonstrasse ser possível falsear o resultado do pleito de 2022. Ao digitar o número 22 (de Bolsonaro), a urna registraria o 13, de Lula. A engenhoca seria apresentada à nação na festa do 7 de Setembro e “comprovaria” a inconfiabilidade das urnas eletrônicas a menos de um mês do pleito. O plano só não foi concretizado por ter vazado antes da exibição.

Triste asterisco da história republicana, Bolsonaro mentiu tanto e enxovalhou de tal forma o cargo antes, durante e depois de seus quatro distópicos anos no poder, que a palavra do ex-presidente, aposta à de um hacker de ficha policial corrida, acaba merecendo grau de suspeição maior.

Por mais exótica que seja a destrambelhada traficância de joias presidenciais, e a revelação das liaisons dangereuses de militares e do chefe da nação com o hacker-bomba, foi o estamento da Polícia Militar do Distrito Federal que acordou mais sobressaltado na sexta-feira. Em operação deflagrada com base em investigação conjunta da PF e da Procuradoria-Geral da República, sete oficiais da corporação foram presos preventivamente sob acusação de envolvimento nos ataques antidemocráticos. Todos graúdos: o atual comandante-geral da corporação, coronel Klepter Gonçalves, seu antecessor, coronel Fábio Vieira, três outros coronéis, um tenente e um major. Não é todo dia que cai nas redes da Justiça a cúpula inteira de uma PM do porte e importância da que atua no centro do poder da República.

As trocas de mensagens e fake news entre os integrantes de corporação, liberadas pela Justiça, assombram pelo tom explicitamente conspiratório — e chulo. Um dos áudios compartilhados prega que a “ordem” seja restabelecida para impedir a confirmação da eleição de Lula à Presidência. O “afastamento” de Alexandre de Moraes é tido como prioritário. Não apenas Xandão, mas também “esses vagabundo tudinho e ladrão, safado, dessa quadrilha... não admito que o Brasil vai deixar um vagabundo, marginal, criminoso e bandido como o Lula voltar ao poder”. Em 28 de outubro, portanto dois dias antes do segundo turno, foi a vez de o atual comandante-geral se dirigir ao coronel Fábio Vieira, que à época chefiava a corporação, nos seguintes termos:

— Rapaz, vocês têm que entender o seguinte: o Bolsonaro, ele está preparado com o Exército, com as Forças... as Forças Armadas, aí, para fazer a mesma coisa que aconteceu em 64. O povo vai pras ruas, que ninguém vai aceitar Lula ser... ganhar a Presidência, porque não tem sentido, o povo vai pedir a intervenção e, aí, meu amigo, eles vão nos livrar do comunismo novamente.

Deu ruim. O povo brasileiro não foi para as ruas. O povo não pediu intervenção militar. O Brasil votou. E, por isso mesmo, quer poder acompanhar sem medo as investigações em curso.

Dorrit Harazim, a autora deste artigo, é jornalista - colunista de O Globo - e documentarista. Publicado originalmente em 20.08.23 

Se os telefones deles falarem

A investigação da PF e da CPMI descortina o nível de contaminação das Forças Armadas e o risco que o Brasil correu no governo anterior

Mauro Cid tira celular do bolso de Jair Bolsonaro no Aeroporto de Guarulhos, em 2022 — Foto: Caio Rocha/iShoot/Agência O Globo

Muitos telefones apreendidos estão sobre a mesa da Polícia Federal sendo periciados. São os quatro aparelhos do advogado Frederick Wassef, o de Mauro Cid e os do pai dele e do ex-ministro da Justiça Anderson Torres. Isso estatisticamente aumenta a chance de se encontrar informações relevantes. Há ainda o sigilo fiscal e bancário de Jair e Michelle Bolsonaro, quebrados pelo ministro Alexandre de Moraes. A CPMI pediu ao Coaf os RIFs, relatórios de investigação financeira, do casal. Tudo isso manterá viva a investigação sobre o que aconteceu no Brasil naquele tempo estranho em que o presidente mandava vender joias e presentes do governo e liderava a trama por um golpe de Estado. O dia 8 de janeiro não terminará tão cedo e a prisão de Jair Bolsonaro é uma possibilidade cada vez mais concreta.

Os militares estão em aparente silêncio. Dentro dos quartéis, a conversa é intensa. O general Tomás Ribeiro Paiva, comandante do Exército, segundo as apurações que eu fiz, tem até agora se mantido firme na convicção de que quem cometeu os crimes que responda por eles. “Tomás impede qualquer reação”, me disse uma autoridade. Muitos oficiais estavam, até recentemente, reclamando muito do “método da investigação”, dizendo que as Forças Armadas estavam sendo muito expostas. Na realidade, elas foram expostas pelos líderes que se envolveram no complô contra a democracia.

Um general que protestava pelo peso que recaiu sobre o tenente-coronel Mauro Cid ouviu de uma autoridade civil que fizesse as contas de quantos anos de prisão o ex-ajudante de ordens pode ter que enfrentar. “Formação de quadrilha, peculato, evasão de divisas, lavagem de dinheiro. Isso dá pelo menos 15 anos”, disse o interlocutor do general. O tenente-coronel preso trocou de advogado e ensaiou uma defesa sob o argumento de que seu cliente cumprira ordens. Pelo artigo 22 do Código Penal, há “excludente de culpabilidade” a quem age por “coação irresistível ou obediência hierárquica”. Uma fonte que acompanha o caso me disse: “essa é única linha de defesa dele”. O advogado Cezar Bitencourt disse que ele confessaria e depois se desdisse, num comportamento estranho.

Uma autoridade, que há duas semanas descartava a possibilidade de prisão de Jair Bolsonaro, depois do depoimento do hacker Walter Delgatti Neto na CPMI dos atos golpistas, disse que agora a considera “plausível”. Se houver qualquer sinal de que ele usa a sua influência para interferir nas muitas investigações em andamento, Bolsonaro irá para a cadeia.

O problema brasileiro, contudo, é mais grave. Como fazer para descontaminar os militares e as forças de segurança do país, das ideias golpistas? A se confirmar o que disse Delgatti sobre as suas cinco idas ao Ministério da Defesa, a situação fica muito mais grave. O grupo das Forças Armadas que participava da Comissão de Transparência do TSE foi um fator de perturbação das eleições, sempre querendo desacreditar as urnas eletrônicas. Mas o que o hacker relatou foi uma tentativa de sabotar a urna. O crime sobe muito de patamar.

Os diálogos entre os coronéis e majores da Polícia Militar do Distrito Federal, presos na sexta-feira, são estarrecedores, mesmo para quem nunca duvidou que eles participaram da conspiração. Tudo é dito descaradamente, como no diálogo do major Flávio de Alencar com o coronel Marcelo Casimiro. “Se eu estiver amanhã no comando da… manifestação, como estarei, não vou permitir a atuação da Força Nacional na nossa Esplanada, viu? Não vou autorizar.” E, apesar desse aviso prévio de sublevação e impedimento da atuação das forças do Estado, foi mantido no comando pelo coronel Casimiro.

Bolsonaro trabalhou durante todo o seu mandato contra a ordem constitucional. Ele alimentou uma explosão como a que houve em 8 de janeiro. Foi a cada festividade militar ou policial, difundiu a ideia de que os fardados eram superiores, espalhou mentira sobre as urnas, atacou pessoas que representavam os poderes constituídos, estimulou a desordem, cooptou para o seu propósito subversivo quadros de comando e da alta hierarquia das Forças Armadas, da Polícia Militar e da Polícia Rodoviária Federal. Essa contaminação só agora começa a ser dimensionada. Os próximos dias e semanas continuarão intensos no Brasil. Para a democracia se proteger, é preciso conhecer todos os fatos e punir todos os culpados.

Míriam Leitão, a autora deste artigo, (Com Ana Carolina Diniz), é jornalista - colunista de O Globo. Publicado originalmente em 20.08.23.

Advogados complicam Bolsonaro e Cid

Para integrantes das investigações, defensores de ex-presidente e ex-ajudante de ordens fizeram "confissões" em entrevistas cheias de contradições e lacunas

Depoimento para CPMI do golpe do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante-de-ordens do então presidente Jair Bolsonaro. — Foto: Lula Marques/ Agência Brasil

Na cena final do filme O Advogado do Diabo, de 1997, o personagem de Al Pacino diz: "A vaidade é, definitivamente, meu pecado favorito!". É difícil entender se foi a vaidade que levou dois advogados, Cezar Bittencourt, que representa o tenente-coronel Mauro Cid há poucos dias, e Paulo Cunha Bueno, defensor de Jair Bolsonaro, a passarem horas dando entrevistas à GloboNews nesta sexta-feira expondo contradições e lacunas nas suas teses de defesa e, muitas vezes, confirmando aspectos que certamente serão usados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal para fechar as conclusões do caso das joias ofertadas ao ex-presidente como chefe de Estado e que foram levadas para seu acervo pessoal, vendidas e recompradas no exterior.

"Eles confessaram tudo", disse ao blog um integrante das investigações. "Não que precisasse. A prova documental é mortal. Mas facilitaram", concluiu a fonte.

Não foram poucas as contradições de um e de outro. Bittencourt, que afirmou ter se encontrado uma única vez com seu cliente e não conhecer o teor dos muitos processos a que ele responde, não só tem falado com todos os veículos nos últimos dias como tem se permitido tecer considerações a respeito da inexperiência dos advogados que o antecederam. Na entrevista ao programa Estúdio I, da GloboNews, admitiu ter conversado com o advogado de Bolsonaro.

Deixou, portanto, a brecha para que se especule se foi isso que o fez ir e voltar nas versões que deu a respeito da conduta do cliente no caso da venda e posterior recompra do relógio Rolex ofertado a Bolsonaro pelo governo saudita. Na mesma entrevista, ele disse pretender blindar o pai de Cid, o general Lourena Cid, de culpa, e temer por ameaças que poderiam recair sobre a mulher do ex-ajudante de ordens.

Já o advogado de Bolsonaro expôs logo de cara uma contradição entre sua principal linha de defesa -- a lei permitiria que o ex-presidente se apossasse de joias dadas como presentes a um chefe de Estado e, inclusive, revendê-las -- e suas próprias orientações ao cliente, além das declarações recentes do próprio Bolsonaro.

Se era permitido, por que toda a epopeia para vender escondido no exterior, não depositar o produto da venda em contas bancárias, envolver um general no transporte dos recursos e, depois, ele mesmo orientar Bolsonaro a devolver as joias? O que, aliás, suscitou a corrida para recomprar o relógio por um valor maior que o da venda, e usando o indefectível Frederick Wassef na operação, de novo sem declarar nada à Receita?

Os jornalistas trataram de desnudar, uma a uma, todas as fragilidades da defesa de ambos. Diante das evidentes lacunas, eles fingiam um ar blasé como se aquilo não fosse relevante, ou como se não houvesse buracos.

Se esquecem que, na ponta da linha dessa investigação, estará Alexandre de Moraes, que não é alguém exatamente fácil de enrolar. As recentes ações da PF, do MPF e da Justiça mostram que não haverá trégua nos dois fronts em que Bolsonaro está implicado judicialmente, sobre os quais tratei na coluna desta sexta-feira em O GLOBO: o dos ataques à democracia e o dos crimes contra o patrimônio público.

A respeito da concomitância dessas duas linhas, ouvi da mesma fonte que considerou um desastre para a defesa o rally de entrevista dos advogados a seguinte avaliação: os ataques à democracia, como o 8 de Janeiro e as andanças do hacker Walter Delgatti, são mais grave e têm mais potencial punitivo, mas o caso das joias já estaria "sacramentado". Depois de hoje, ainda mai.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é jronalista - colunista de O Globo. Publicado originalmente em 18.08.23

Falta governança

Se não se sabe para que ministério vai o deputado, como discutir capacidades e programas de governo?

O deputado federal André Fufuca (PP-AP) — Foto: Givaldo Barbosa/Agência O Globo

Da reforma ministerial em andamento, sabe-se de certo mesmo apenas o nome dos dois deputados do Centrão que serão ministros: Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) e André Fufuca (PP-MA). Para que ministérios, há informações e não informações circulando nos bastidores. Também há incerteza sobre os empregos dados aos ministros atuais que perderão seus postos.

Há, pois, intensas negociações, mas procurará em vão quem tentar encontrar algum debate, sequer uma menção à capacidade dos indicados e às políticas que desenvolverão nos cargos. Qual o problema? — se poderia dizer. Se não se sabe para que ministério vai o deputado, como discutir capacidades e programas de governo? E assim ficamos: primeiro escolhe-se o nome, depois o cargo, e aí se vai ver o que ele poderá fazer. Governança zero, mas — quer saber? — não é isso que importa nesse sistema. As negociações envolvem verbas e cargos incluídos nos ministérios, além da capacidade do indicado de conseguir, no Congresso, verbas e votos para o governo.

Há países em que o nome do ministro importa pouco. São, em geral, aqueles com sistema parlamentarista e uma administração pública profissional, que funciona na base de regras, e não conforme a simples vontade do ministro. Claro que o ministro leva para o cargo a orientação política e ideológica de seu partido, vencedor das eleições: gastar mais em educação ou em obras; ampliar ou não a rede pública de saúde; subsidiar ou não carros elétricos; explorar petróleo ou não; e assim por diante. Mas os programas são tocados por profissionais de carreira. Em poucas palavras: o primeiro-ministro e seus ministros nomeiam poucas dezenas de assessores diretos.

Aqui, são milhares de nomeações. O que até facilita as negociações, não é mesmo? O partido tal indica o ministro, mas o secretário executivo vai para outro, o diretor financeiro para um terceiro, e assim segue. De novo, a preocupação com governança passa longe. Alguns partidos mais poderosos levam o ministério inteiro — de porteira fechada, se diz, quando o novo ministro indica toda a cadeia de administração. Claro, não é por capacidade e por programas, mas pela quantidade de apoio que pode assim arranjar para o presidente.

Se determinado político pode ir para qualquer ministério, seguem-se duas possibilidades: ou ele sabe tudo de governo, e pode tocar qualquer parada, ou não sabe nada, e aí não importa mesmo onde esteja. Dá nisto: acontece um apagão, técnicos desaparecem, e ministros políticos ocupam espaços para apresentar especulações. Ou nisto: o governo anuncia um PAC e depois vai procurar recursos para tocar as obras e programas. E nesse PAC há políticas contraditórias, como acontece no caso da exploração de petróleo.

O Brasil precisa de muitas mudanças para se tornar um país rico, de renda per capita elevada. Por exemplo: reforma tributária, de modo a simplificar o sistema; educação pública de qualidade; abrir a economia para os negócios privados, nacionais e estrangeiros; aumentar o financiamento do SUS. Mas precisa também diminuir o tamanho do governo para torná-lo mais eficiente — capaz de fazer mais, melhor com menos gente. Boa governança já ajudaria bastante.

Petróleo verde

Por falar em governança: a Noruega vive um dilema parecido com o nosso. Tem uma agenda ambiental — é o maior financiador do Fundo Amazônia — e produz petróleo. Garante a segurança energética da Europa. E a empresa produtora é estatal. Exporta cerca de US$ 180 bilhões por ano. Uma contradição, mas há governança no modo como lidam com isso. Parte-se de um ponto: o mundo ainda se move e produz com petróleo. Só que isso vai destruindo o meio ambiente. A proposta deles: aplica-se o dinheiro do petróleo nas políticas de transição para energias verdes. Por exemplo: o governo subsidia os veículos elétricos. São isentos de impostos e não pagam pedágio. Hoje, 80% dos carros novos vendidos são elétricos. Em dois anos, serão todos. É só um exemplo. Pode-se discordar, mas tem lógica aí.

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é Jornalista - colunista de O Globo. Publicado originalmente em 19.08.23.

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

PF prende comandante da PM no DF, coronéis e tenente por omissão ante 8 de janeiro; veja os alvos

Klepter Rosa Gonçalves e mais quatro oficiais foram detidos no bojo da Operação Incúria após serem denunciados por se ‘omitirem no cumprimento do dever funcional de agir’ diante dos atos golpistas

Grupos de radicais invadiram as sedes dos três Poderes em Brasilia. Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO

A Polícia Federal abriu na manhã desta sexta-feira, 18, uma operação contra a cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal no bojo de investigação sobre suposta omissão ante os atos golpistas de 8 de janeiro. Agentes foram às ruas para cumprir sete mandados de prisão preventiva, além de ordens de busca e apreensão, bloqueio de bens e afastamento das funções públicas. Entre os detidos está o comandante da PM em Brasília Klepter Rosa Gonçalves.

As diligências foram autorizadas pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito sobre suposta omissão de autoridades ante o levante antidemocrático, e foram requeridas quando a Procuradoria-Geral da República denunciou oficiais ao STF. São alvos da acusação:

coronel Fábio Augusto Vieira, ex-comandante-geral da PMDF (preso preventivamente nesta sexta, 18);

coronel Klepter Rosa Gonçalves, ex-subcomandante da PMDF, que foi nomeado comandante-geral no dia15 de fevereiro (preso preventivamente nesta sexta, 18);

coronel Jorge Eduardo Naime Barreto, ex-comandante do Departamento de Operações, que saiu de licença (já estava preso);

coronel Paulo José Ferreira de Sousa Bezerra, que substituiu Naime no 8 de janeiro (preso preventivamente nesta sexta, 18);

coronel Marcelo Casimiro Vasconcelos Rodrigues, ex-chefe do 1º Comando de Policiamento Regional da PMDF (preso preventivamente nesta sexta, 18);

major Flávio Silvestre de Alencar (já preso);

tenente Rafael Pereira Martins (preso preventivamente nesta sexta, 18);

Na acusação levada à Corte máxima, a PGR narra que provas colhidas no bojo do inquérito apontam para a omissão dos oficiais. O órgão diz que ‘havia profunda contaminação ideológica de parte dos oficiais da Polícia Militar do DF que se mostrou adepta de teorias conspiratórias sobre fraudes eleitorais e de teorias golpistas’.

“Há ainda menção a provas de que os agentes - que ocupavam cargos de comando da corporação - receberam, antes de 8 de janeiro de 2023, diversas informações de inteligência que indicavam as intenções golpistas do movimento e o risco iminente da efetiva invasão às sedes dos Três Poderes”, indicou a PGR em nota.

A avaliação do Ministério Público Federal é a de que os oficiais ‘conheciam previamente os riscos e aderiram de forma dolosa ao resultado criminoso previsível, omitindo-se no cumprimento do dever funcional de agir’

A denúncia versa sobre supostos crimes de omissão, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano qualificado, deterioração de patrimônio tombado, com violação de deveres e ingerência da norma.

COM A PALAVRA, A DEFESA DO CORNEL FÁBIO VIEIRA

A defesa do Coronel Fabio Vieira manifesta absoluta preocupação quanto à incorreção conceitual e a aplicação metodológica equivocada da teoria da omissão imprópria, bem como pelo manejo destoante das cautelares penais, apartado da racionalidade judicial e da construção interpretativa historicamente adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Não se deve prescindir da fundamentação e dos pressupostos corretos da prisão e do controle do Estado pelo Direito. A defesa técnica anseia a análise criteriosa da prisão pelo Supremo Tribunal Federal, por sua composição colegiada, reforçando a crença de que haverá observância ao desenvolvimento dogmático já estruturado e a aplicação da interpretação judicial amparada por critérios racionais. A Democracia defensiva exige respostas institucionais sustentadas pela correção teórica e pela racionalidade judicial.

Publicado originalmente pelo Blog do Fausto Macedo n'O Estado de S. Paulo, em 18.08.23, às 07h57


Alto Comando do Exército não esperava confissão do coronel Cid, mas já não duvida das provas da PF

Generais acompanharam sem surpresa a decisão anunciada pelo advogado do militar de reconhecer a prática de condutas questionadas pela Polícia Federal envolvendo o ex-presidente Bolsonaro

Mauro Cesar Barbosa Cid e Mauro Cesar Lourena Cid; pai e filho são alvo de caso das joias envolvendo o ex-presidente Foto: EFE/Andre Borges e Roberto Oliveira/Alesp

Eram 20 horas de ontem quando começaram a circular nos telefones dos generais do Alto Comando do Exército e do gabinete do comandante da Força Terrestre, general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, a informação de que o tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, segundo seu novíssimo advogado, o criminalista Cezar Bitencourt, ia confessar as condutas imputadas a ele pela investigação da Polícia Federal (PF) e envolver o ex-presidente Jair Bolsonaro nos delitos investigados.

Uma hora depois, um dos generais não tinha mais dúvida do que estava testemunhando. Disse que quando os fins justificam os meios, tudo é possível. A história humana nos ensinaria. Desta vez, quem se gabava de combater o comunismo passara a adotar a mesma atitude da nomenklatura, a burocracia soviética que afirmava lutar por um mundo novo, sem a opressão do trabalhador, mas que desfilava pelas ruas de Moscou com sua limusines ZIL, enquanto suas mulheres desfilavam casacos de pele pela Rua Arbat.

A desilusão é definitiva. A notícia da futura confissão do coronel Cid era o que faltava para os incrédulos que ainda viam no caso mais supostos excessos na conduta do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), do que os ilícitos cometidos pelo entourage de Bolsonaro e pelo próprio ex-presidente. Até sexta-feira passada, os generais que conheciam a família Cid consideravam que o novo movimento do coronel, chefe da Ajudância de Ordens da Presidência, era uma impossibilidade.

São várias as razões para isso, mas a principal era a antiga relação entre Bolsonaro e os Cid. O avô do coronel preso por ordem do STF, o também coronel Antonio Carlos Cid, era um artilheiro da turma de 1955 da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) que trabalhou na Casa Militar sob as ordens do general Bayma Denys, durante o governo de José Sarney.

Anos antes, ele ajudara o então cadete Bolsonaro em um momento importante da vida do futuro presidente. Conta um general ouvido pela coluna que o Cavalão, como Bolsonaro era chamado na Academia, indispôs-se com um oficial médico na Aman. E o episódio só não teve consequências mais graves porque o avô do ajudante de ordens interveio. É que Bolsonaro era colega de turma de um dos filhos militares do coronel Antônio Carlos – o futuro general Mauro Cesar Lorena Cid, pai do assessor do presidente.

O general e o chefe do Executivo pertencem à mesma turma – a de 1977 – da Aman. Ambos são artilheiros, paraquedistas e serviram no 8.º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista. Mauro pai e Mauro filho pertenceram às “forças especiais”. Em 2008, o pai comandava a 9.ª Brigada de Infantaria Motorizada quando apresentou, em nome da Força, desculpas às famílias de três jovens do Morro da Providência, no Rio, entregues por militares da brigada a traficantes do Morro da Mineira, que os mataram. Seu último cargo na ativa foi a chefia do Departamento de Educação e Cultura do Exército.

Ao passar para a reserva em 2019, em vez de ocupar um lugar na Esplanada, o general Cid ganhou uma sinecura em Miami (EUA) – representante da Agência de Promoção das Exportações (Apex), com salário pago em dólar (US$ 9,6 mil). Ao todo, o general acumulara vencimentos de cerca de R$ 80 mil (R$ 50,8 mil da Apex e R$ 30 mil como militar). A ligação entre eles foi o que levou o tenente-coronel Mauro Cid a ser nomeado ajudante de ordens de Bolsonaro, em 2019. E depois virar o faz-tudo do presidente.

O que a PF revelou é que o general ajudava na alienação de joias e outros bens preciosos, levados, segundo a PF, para os EUA, a fim de serem vendidos. E as pessoas ligadas a esse grupo eram ligadas aos promotores da campanha de difamação contra integrantes do Alto Comando do Exército, apresentados em redes sociais como traidores, melancias e oportunistas

A boutade de Millôr Fernandes (Quer dizer que aquilo tudo não era ideologia, era investimento?) circulou entre os generais como a mostrar aos leitores de O Soldado e o Estado, de Samuel Huntington, que o caminho dos que se desviaram do chamado controle civil objetivo é restabelecer o muro que separa a política partidária da caserna onde os soldados profissionais cuidam em silêncio dos seus afazeres. A volta da política do Exército em vez da política no Exército é tudo o que o general Tomás procura.

O atual comandante da Força Terrestre tem feito exercício físico com a tropa nos comandos que visita. Busca mostrar que nas organizações militares a prontidão e o profissionalismo ficam; a tempestade e as CPIs, passam. A tarefa é difícil. Por mais que o Exército tente se concentrar em sua faina, toda sexta-feira parece trazer o dia 13, revelando uma nova operação da Polícia Federal e novas condutas ilícitas investigadas. E tudo parece estar longe do fim. Cada novo celular apreendido revela um pouco mais dessa barafunda. Ou de opera bufa. A depender do ponto de vista do general entrevistado pela coluna.

Marcelo Godoy, o autor desta reportagem, é repórter especial d'O Estado de S. Paulo para as relações entre o Poder Civil e o poder Militar. Publicado originalmente em 18.08.23

Classificados bolsonaristas

Anúncios que vão muito além de joias, relógios e calendários

Ilustração de Débora Gonzales para coluna de Renato Terra de 17 de agosto de 2023 - Folhapress

Vendo faixa presidencial original em perfeito estado. Não foi repassada ao sucessor, mas por quantia a negociar pode ser repassada a você. Item de colecionador.

Compro cobre, compro chumbo, compro metal extraído da invasão de 8 de janeiro em Brasília. Relógio velho, estofamento de cadeira do STF, maçaneta, reboco de gesso.

Vendo estoque de cloroquina. Mais de 5 milhões de comprimidos encaixotados em perfeito estado. Escolha entre a entrega rápida em qualquer lugar do Brasil realizada num avião da FAB ou entrega com data surpresa coordenada pelo general Pazuello.

Procuro apartamento funcional para comer gente. Homem idoso, discreto, soturno, desamparado, mas imbrochável. Pagamento em dinheiro vivo.

Sobre um fundo branco cheio de dingbats pretos há uma lupa preta ampliando um dingbat de um presente.

Vendo minuta de golpe militar impressa e auditável. Interessado enviar e-mail. Garantimos sigilo, pois os emails serão enviados para a lixeira.

Passo ponto de lojinha de açaí nos arredores de Angra dos Reis. Tratar com Pluft, o fantasminha, em Brasília.

Vendo ursinho felpudo com etiqueta recortada pelo Teatro das Tesouras numa singela madrugada em que a túnica dos atônicos tornou-se água tônica. Não negocio com isentões, prostitutas do sistema ou gulosinhos biografados. Não insistam!

Compro e vendo seu carro usado com discrição, lucro garantido e escolta armada, mermão. Eu sei fazer dinheiro. Tô te falando. Chega aqui em Rio das Pedras e procura pelo Tony Montana. Garanto fidelidade até o fim. Aceito cheque.

Passo ponto de franquia da Kopenhagen na Barra da Tijuca. Não garanto nota fiscal.

O Capitão das Bijuterias. Os melhores anéis, colares, brincos, abotoaduras. Negócio das Arábias. Veja as fotografias dos nossos produtos e conheça as peças (e, no reflexo, os vendedores).

Vendo marreco criado a pão de ló em Curitba. Preço promocional.

Compro capinha para tornozeleira eletrônica. Favor entregar no condomínio Vivendas da Barra.

Vendo calendário com idoso em fotos sem camisa, sem vergonha e sem joias.

Aviso: este classificado bolsonarista está a cargo de vendedores bolsonaristas e tem como público-alvo compradores bolsonaristas que não mantêm nenhum vínculo com Jair Bolsonaro e sua família bolsonarista.

Os pagamentos podem ser feitos apenas em dinheiro vivo. Há possibilidade de parcelamento em 48 vezes em transações feitas diretamente em caixas eletrônicos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Renato Terra, o autor deste artigo. é roteirista e autor de “Diário da Dilma”. Dirigiu o documentário “Uma Noite em 67”. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.08.23

Hacker diz à CPI que Bolsonaro pediu invasão de urnas; veja 3 pontos do depoimento

Conhecido como “hacker da Vaza Jato", o programador Walter Delgatti Neto afirmou que o então presidente Jair Bolsonaro pediu que ele invadisse as urnas eletrônicas em 2022 e ofereceu indulto caso o hacker fosse preso ou condenado.

Delgatti presta depoimento à CPI dos atos golpistas de 8 de janeiro (Crédito - Geraldo Magela / Ag. Senado)

A declaração de Delgatti ocorreu durante seu depoimento à CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dos atos golpistas de 8 de janeiro nesta quinta-feira (17/8).

Delgatti foi apelidado de “hacker da Vaza Jato” em 2019, após ter acesso a mensagens da Operação Lava Jato.

Bolsonaro não havia se pronunciado sobre a fala de Delgatti até a publicação desta reportagem.

A seguir, veja os principais pontos da fala de Delgatti, que continua nesta tarde.

1. Pedido de invasão de urnas e oferta de indulto

Segundo Delgatti, a oferta de indulto do presidente aconteceu durante uma reunião no Palácio do Planalto em 2022, antes das eleições. A reunião teria sido intermediada pela deputada Carla Zambelli (PL-SP).

De acordo com o depoimento de Delgatti, Bolsonaro perguntou se ele conseguiria invadir as urnas eletrônicas para “testar a lisura das eleições”.

"Apareceu a oportunidade da deputada Carla Zambelli, de um encontro com o Bolsonaro, que foi no ano de 2022, antes da campanha. Ele queria que eu autenticasse a lisura das eleições, das urnas. E por ser o presidente da República, eu acabei indo ao encontro”, disse o hacker, que afirmou que aceitou pois estava “desamparado” e “sem emprego”.

Delgatti afirmou que cuidava das redes sociais da deputada Carla Zambelli e que ela teria oferecido um emprego na campanha de Bolsonaro.

Questionado pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA) se recebeu alguma garantia de proteção do presidente pelo pedido de que cometesse um crime, o hacker disse que sim.

“Sim, recebi. Inclusive, a ideia ali era que eu receberia um indulto do presidente. Ele havia concedido um indulto a um deputado federal. E como eu estava com o processo da (operação) Spoofing (da Polícia Federal) à época, e com as (medidas) cautelares que me proibiam de acessar a internet e trabalhar, eu visava a esse indulto. E foi oferecido no dia”, afirmou Delgatti.

Ele disse ainda que o ex-presidente mandou o general Marcelo Câmara colocá-lo em contato com técnicos do Ministério da Defesa para obter ajuda na missão. Segundo Delgatti, Câmara teria hesitado, mas acabou cumprindo a ordem.

Os servidores do ministério, disse, explicaram que ele não poderia inspecionar o código-fonte das urnas porque ele ficava somente no TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

Então os servidores do ministério iam ao TSE, "decoravam" parte do código e repassavam as informações a ele, que não teve acesso à íntegra do código-fonte.

Delgatti disse que sabia que estava cometendo um crime, mas que obedeceu por medo e por ser uma ordem do presidente da República. Além disso, disse ele, o presidente ofereceu o indulto caso ele fosse preso ou condenado.

"Ele (Bolsonaro) me deu carta branca para fazer o que eu quisesse relacionado às urnas. Então, eu poderia, segundo ele, cometer um ilícito, que seria anistiado, perdoado", afirmou.

Segundo Delgatti, o contato dele com o ministério da Defesa não parou por aí: ele afirmou que "orientou" o relatório oficial do ministério entregue ao TSE em 2020. O relatório do órgão foi diferente de todas as outras entidades de fiscalização das urnas, que apontavam que as máquinas são seguras e confiáveis. Embora não tenha encontrado fraude, o ministério disse que era impossível garantir que haveria isenção nas eleições.

"Tudo que eu repassei a eles consta no relatório que foi entregue ao TSE. Eu posso dizer hoje que, de forma integral, aquele relatório tem exatamente o que eu disse, não tem nada menos e nada mais", disse Delgatti.

2. Código-fonte fake

Delgatti disse também que o marqueteiro de Bolsonaro, Duda Lima, pediu que ele obtivesse um “código-fonte falso” para acusar as urnas eletrônicas de serem frágeis.

O pedido teria sido feito durante uma reunião em que estavam presentes também Zambelli e o presidente do PL, Valdemar Costa Neto. Duda Lima soltou uma nota negando todas as afirmações.

Segundo Delgatti, a ideia era que ele criasse um código-fonte falso que permitisse mostrar alguém apertando um voto e a urna registrando outro.

"O código-fonte da urna, eu faria o meu, não o do TSE”, disse ele. "No dia 7 de setembro, (a ideia era) eles pegarem uma urna emprestada da OAB, acredito. E que eu colocasse um aplicativo meu lá e mostrasse à população que é possível apertar um voto e sair outro."

Zambelli e Valdemar da Costa Neto ainda não se pronunciaram sobre o caso.

3. Assumir grampo contra Alexandre de Moraes

Delgatti também disse à CPI que Bolsonaro afirmou que o governo já tinha conseguido grampear o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes e que o presidente pediu que o hacker assumisse a autoria do grampo.

"E, segundo ele [Bolsonaro], eles haviam conseguido um grampo, que era tão esperado à época, do ministro Alexandre de Moraes. Que teria conversas comprometedoras do ministro, e ele precisava que eu assumisse a autoria desse grampo", afirmou Delgatti.

Segundo o hacker, ele teria sido escolhido para evitar questionamentos da esquerda. Walter Delgatti Neto chamou a atenção pela primeira vez em 2019 por ter invadido celulares e divulgado mensagens atribuídas a integrantes da força tarefa da operação Lava Jato e ao ex-juiz Sergio Moro que mostravam irregularidades.

"Lembrando que, à época, eu era o hacker da Lava Jato”, disse Delgatti. “Então, seria difícil a esquerda questionar essa autoria, porque lá atrás eu teria assumido a 'Vaza-Jato', que eu fui, e eles apoiaram. Então, a ideia seria um garoto da esquerda assumir esse grampo (contra Moraes)."

A ação do hacker na Lava Jato rendeu também um bate-boca com Moro (que hoje é senador) durante a CPI.

O senador citou processos criminais enfrentados por Delgatti, que respondeu dizendo que Moro é um criminoso e que ele soube disso lendo as mensagens que obteve após invadir celulares.

"Li a parte privada e posso dizer que o senhor é um criminoso contumaz, cometeu diversas irregularidades e crimes", afirmou.

Moro respondou afirmando que Delgatti é quem foi preso e que ele é um "bandido".

O hacker então respondeu que Moro só não foi preso porque "apelou" para a prerrogativa de função (de ser julgado apenas pelo STF).

O vice-presidente da CPI, Cid Gomes (PDT-CE) pediu que os dois se respeitassem para que a seção pudesse continuar.

Publicado originalmente por BBC News brasil, em 17.08.23