terça-feira, 8 de agosto de 2023

O País é um só

Zema acerta quando aponta a sub-representação política do Sudeste, mas isso não é motivo para fomentar rixas. Grande bem para todos, a Federação deve ser preservada e fortalecida

A entrevista do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), ao Estadão, anunciando um consórcio dos governos estaduais das Regiões Sul e Sudeste para atuação política coordenada, suscitou reações fortes. O governador da Paraíba e presidente do Consórcio Nordeste, João Azevêdo (PSB), classificou de infeliz a declaração de Zema. “Estamos em um processo de reconstrução e aí vem alguém e faz uma declaração dessa”, disse Azevêdo. Nas redes sociais, o ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou que a extrema direita estaria “fomentando divisões regionais”.

Segundo o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), o Consórcio Sul-Sudeste está inspirado no que foi feito no Nordeste. “Nunca achamos que os Estados do Norte e Nordeste haviam se unido contra os demais Estados. Ao contrário: a união deles em torno de pautas de seus interesses serviu de inspiração para que, finalmente, possamos fazer o mesmo, nos unirmos em torno do que é pauta comum e importante aos Estados do Sul e Sudeste”, disse Leite.

À parte das polêmicas políticas, das quais cada lado tenta tirar proveito, o fato é que a entrevista de Romeu Zema joga luzes sobre um problema que não é de hoje: a sub-representação política dos Estados mais populosos na Câmara dos Deputados. De um total de 513 cadeiras, o Estado de São Paulo tem 70, numa evidente desproporção em relação ao tamanho de sua população.

Essa sub-representação tem origem na própria Constituição. Apesar de definir que a distribuição de cadeiras na Câmara dos Deputados deva ser proporcional à população, o texto constitucional estabelece que nenhuma unidade da Federação terá “menos de oito ou mais de setenta deputados”. As diferenças no tamanho da população de cada Estado são mais amplas do que o intervalo entre oito e setenta.

Ao criticar essa sub-representação, o governador de Minas Gerais também responsabilizou os próprios Estados do Sul e do Sudeste pela ausência de um peso político adequado. “Outras Regiões do Brasil, com Estados muito menores em termos de economia e população, se unem e conseguem votar e aprovar uma série de projetos em Brasília. E nós, que representamos 56% dos brasileiros, mas que sempre ficamos cada um por si, olhando só o seu quintal, perdemos”, avaliou.

A articulação política é elemento essencial de toda democracia. E não cabe recriminar, como se fosse algo negativo ou mesmo antidemocrático, essa nova organização dos Estados das Regiões Sul e Sudeste na defesa de seus interesses políticos. O que não pode haver, pois afrontaria os valores e os fins da Constituição, é uma articulação para nutrir conflitos ou fomentar divisões regionais. Ou que difundisse a ideia de que cada Estado deve atuar exclusivamente na defesa de seus interesses imediatos, indiferente à situação das outras unidades federativas. O País é um só.

A Constituição é expressa em seu art. 3.º. Um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é “reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Ou seja, uma das razões que fundamentam a existência e o funcionamento do Estado brasileiro é a diminuição das desigualdades entre as diferentes unidades da Federação. Ora, esse processo só é possível se os Estados com melhores condições contribuírem de forma efetiva com aqueles em piores condições, sem nenhum tipo de preconceito, sem nenhuma reclamação. De fato, se existe uma Federação, um problema do Nordeste é também um problema do Sudeste, e vice-versa. Há esferas de competência, mas isso não significa indiferença, desprezo ou alheamento.

Como reconheceu o governador de Minas Gerais, há também pobreza no Sul e no Sudeste. “Nós também precisamos de ações sociais”, disse. É simplista e muito equivocada a ideia de que o problema do País estaria lá no Nordeste, enquanto aqui estariam as soluções. O pertencimento à Federação, mesmo com todos os ônus e limitações correspondentes, é um grande bem para todos os Estados. No fim, todos saem ganhando. Articulação política sim; divisão, rixa ou sentimento de superioridade não.

Editorial \ Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 08.08.23

O exemplo Bukele

Ou as democracias percebem que não lhes basta existir e mostrar seu magnífico perfil helênico, ou os Bukeles deste mundo vão ficar com quase tudo

O presidente de El Salvador, Nayib Bukele, anuncia que concorrerá à reeleição em El Salvador. (Getty Images)

Não gostamos de saber, muito menos de dizer: sempre chega um momento em que o povo ama seus ditadores. Ou, dito de outra forma: é muito difícil se tornar um ditador se você não conseguiu que uma parte significativa do seu povo depositasse grandes expectativas em você. Depois tentamos esquecê-la, porque a memória nos humilha, mas é fácil saber que a barbárie do general Videla ou do general Pinochet ou do generalíssimo Franco ou do cabo Hitler foi reclamada por milhões, que levaram anos para deixar de vivê-la – ou nunca o fizeram. .

Esses milhões os amavam, em sua maioria, porque eles assumiam tarefas que achavam necessárias e que os governos cumpridores da lei não faziam: acabar com um guerrilheiro ou dois, acabar com todos os defensores dos trabalhadores ateus vermelhos, acabar com os judeus do mundo. , essas coisas. O Sr. Nayib Bukele, o jovem presidente de El Salvador, está nesse momento.

O contexto é muito claro: neste momento o mundo – boa parte do mundo – acredita que os políticos são inúteis. Ou pior: que servem para enriquecer, gozar do seu poder, fornicar outra coisa, enganar milhões com mentiras e promessas que nunca pensam concretizar. Os políticos são geralmente vistos como um mal necessário – e mais e mais pessoas estão se perguntando por que eles eram necessários. A democracia é definida como um sistema de impedimentos, onde os pactos e arranjos entre os favorecidos perpetuam os problemas reais. Nesse cenário que está chegando ao fundo do poço, surge um homem – digamos, por exemplo, em El Salvador – que faz o que duas ou três décadas de políticas não conseguiram. Ou, pior: o que os políticos dessas duas ou três décadas agravaram ao indizível.

El Salvador esteve por muito tempo submetido ao poder brutal de dois grandes grupos empresariais armados, organizados para obter o máximo benefício econômico a qualquer custo – sequestro, assassinato, extorsão, tráfico –, que eles chamam de maras ou bandos ou gangues. Seus governos tentaram limitar esse poder com vários métodos – repressão mais ou menos legal, vários pactos – e não conseguiram. E de repente esse homem aparece e consegue. Seu sistema é radical: impõe a violência ilimitada do Estado, constrói prisões gigantescas, detém cerca de 80.000 pessoas em poucos meses sem procurar provas de que são culpados, acumula a maior proporção de prisioneiros por habitante do mundo, exibe cruelmente as condições cruéis em que são empilhados, julga-os em julgamentos pré-arranjados - e , em Em poucas semanas, as ruas de seu país voltam a ser transitáveis ​​e milhões de pessoas que viviam com medo das gangues retomam vidas mais “normais”.

Muitos de nós estamos indignados, com razão: transformou El Salvador em uma sociedade de vigilância, onde seu governo pode reprimir quem quiser como bem entender, sob o pretexto de que poderia pertencer – ou “apoiar” – essas gangues. É intolerável, mas ele atingiu seu objetivo e milhões o agradecem e o apoiam.

Nayib Bukele agora tem um nível de aprovação que poucos presidentes tiveram: depois de quatro anos à frente de um dos países mais pobres do hemisfério, estima-se que ele tenha entre 80 e 90 por cento de entusiasmo. E, claro, pretende ser reeleito ainda que a Constituição do seu país não o permita, porque tantos assim o querem – e que tenha cada vez mais poderes, pois redundam no "bem geral -ser." E, claro, políticos que prometem políticas semelhantes e cidadãos que as pedem aparecem em outros países da região: o bukelismo avança.

Bukele se tornou um problema e um exemplo. As democracias não poderiam obter esses resultados sem quebrar suas próprias leis? Em geral, eles não têm. Então, quanto tempo eles podem sobreviver se não resolverem os problemas realmente urgentes? Em certos países pode ser violência, fome ou marginalização ou inflação em outros. Até quando poderão manter seu prestígio, a ilusão de sua necessidade, se não os remediarem? Quanto menos soluções as democracias alcançarem, mais sociedades reivindicarão personagens como Nayib Bukele. O perigo, na verdade, não é Bukele e El Salvador; somos todo o resto e nossas impotências. Com todo respeito aos ancestrais fundadores: já existem várias gerações de americanos que acreditam que a democracia é um meio, não um fim. Se esse meio não serve para chegar ao fim, procuram outros meios - porque, em última instância,

O que nos opomos a eles, o que discutimos? Que este método autoritário põe em risco todos os cidadãos, que qualquer um pode ser preso e principalmente quem se opõe ao Governo? É assim, sem dúvida – e é terrível – mas a maioria dos cidadãos imagina que isso não pode acontecer com eles porque eles não interferem, que o que eles querem é viver em paz e que com as gangues eles não podiam e agora eles fazem. E sim, é necessário denunciar os Bukeles quando avançam sobre as liberdades que deveríamos ter – mas é inútil. Essas liberdades devem ser usadas para resolver os problemas urgentes dos cidadãos – e não para cantar sobre sua indiscutível beleza. Ou as democracias percebem que não lhes basta existir e mostrar seu magnífico perfil helênico, ou os Bukeles deste mundo vão ficar com quase tudo.

Agora: importa começar agora. Talvez ainda tenhamos algum tempo – mas a palavra-chave é ainda.

Martin Caparros, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 08.08.23

domingo, 6 de agosto de 2023

A recessão democrática na América Latina

Ao constatar a precária percepção de benefício do Estado de Direito entre os cidadãos da região, a pesquisa Latinobarómetro expõe o risco de avanço do populismo e da via autoritária

Passadas quatro décadas de gradual reforço das instituições e do Estado Democrático de Direito na América Latina, soa no mínimo preocupante o fato de a região atravessar mais de dez anos de “recessão democrática”. A constatação apoia-se nos resultados de pesquisa realizada neste ano em 17 países pelo Latinobarómetro, organização sediada em Santiago, Chile. Não há conforto ao nos inteirarmos que menos da metade (48%) dos latino-americanos consideram a democracia como modelo preferível à via autoritária, apoiada por 17% – ou que, para 28%, pouco importa o regime político do país. O quadro traz grave alerta sobre a vulnerabilidade da região ao populismo e à ascensão de regimes autocráticos.

A base de dados do Latinobarómetro mostra ter havido melhores momentos para a democracia na região, como no início da década passada, quando a preferência por esse regime alcançava 63%. Desde então, segundo a organização, a percepção sobre seus benefícios foi desgastada por crises econômicas, escândalos de corrupção, demandas não atendidas pelos governos e fragilidade do sistema partidário. O estudo A recessão democrática da América Latina atribui boa parte desse descalabro à omissão das elites diante da erosão das instituições e de pressões pela mudança nas regras do jogo – ou a sua atuação intensa em prol desses resultados. Essa visão, obviamente, deve ser considerada, mas está longe de esgotar todos os alvos de responsabilização.

Expressiva é a insatisfação com a democracia, apontada por 69% das 19.205 pessoas consultadas. É certo que houve recuo de três pontos porcentuais nesse universo desde 2018, quando atingiu o recorde de 72%. Mas a magnitude dos insatisfeitos não dá margem para nenhum alento. Sinal menos ruim surge na aversão de 61% a golpes militares – 63% no Brasil. Novamente, não é possível ser otimista quando a pesquisa também mostra que 54% dos latinoamericanos não se importariam com um governo não democrático, desde que resolvesse os problemas nacionais

A preocupação cresce ao se observar o menor engajamento dos jovens na democracia. “Quanto menor a idade, mais autoritários são”, diz o estudo, ao alertar para a diluição dos valores democráticos entre os cidadãos que, na América Latina, enfrentam maiores taxas de desemprego e menores perspectivas de futuro. O apoio às instituições que sustentam o Estado de Direito é declarado por 43% dos latino-americanos de 16 a 25 anos. Nessa faixa, que não chegou a viver o período ditatorial, a opção autoritária tem a preferência de 20%.

No Brasil, a pesquisa foi realizada logo depois dos ataques às sedes dos Três Poderes por uma horda que defendia um golpe militar para derrubar o governo eleito de Lula da Silva. A preferência pelo Estado de Direito mantevese em 46%, pouco abaixo da média regional, e escalou seis pontos porcentuais em relação ao nível de 2020. Os dados indicam que a percepção foi mais afetada pelos quatro anos de investidas do governo de Jair Bolsonaro contra as instituições do que pelos eventos do 8 de Janeiro.

A opção pela via autoritária cresceu dois pontos porcentuais, para 13% – curiosamente, o mesmo que na Venezuela. O total de brasileiros indiferentes caiu seis pontos, para 30%, um porcentual nada confortável. A pesquisa, porém, traz outro dado preocupante: 43% dos brasileiros concordam com a possibilidade de o governo controlar os meios de comunicação – ou seja, romper um princípio basilar da Constituição.

O estudo do Latinobarómetro de 2023 teve o cuidado de não mergulhar na análise dos regimes ditatoriais da América Latina, embora tenha havido pesquisa na Venezuela. Nicarágua e Cuba foram evitados. Para a organização, o governo de Nayib Bukele, presidente de El Salvador, já rompeu a integridade democrática.

A escolha do termo “recessão”, mais afeito ao léxico econômico, está em linha com o déficit de percepção dos benefícios da democracia por parte expressiva da cidadania. Nada pode ser mais perturbador para a América Latina que as vozes populistas e os desmandos autoritários. É preciso, mais do que nunca, zelar pelo futuro das instituições.

Editorial \ Notas e Informações, O Estado d S. Paulo, em 06.08.23

sábado, 5 de agosto de 2023

Não é normal por ter sido sempre assim

A chantagem só será desfeita ao se colocar nos trilhos as relações entre Legislativo e Executivo, fundadas na cooperação na execução de plano de governo, e não na compra disfarçada de votos

O governo Lula conseguiu, na mesma semana, aprovar na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) modificativa de parte do sistema tributário e, também, que a determinação de empate no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) fosse favorável à União, e não ao contribuinte, redundando em aumento considerável da arrecadação.

O apoio da Câmara dos Deputados decorreu da liberação de mais de R$ 5 bilhões para pagamento das emendas parlamentares, que estavam represadas, enviando aos municípios numerário para obras e serviços definidos genericamente, indicando-se apenas destinarse ao atendimento da saúde, ou da educação, ou de obra viária. Os deputados, dessa maneira, demonstram prestígio e angariam créditos em seus redutos eleitorais, valendo a troca do voto pelo empreendimento conquistado na busca de reeleição.

A adesão dos parlamentares a projetos de emenda constitucional e de lei não se deu, portanto, para parcela considerável, por espírito público. Pesaram na decisão a liberação da verba de emenda parlamentar propiciadora da reeleição em 2026 e a promessa da nomeação de apaniguados dos partidos para cargos distribuidores de benefícios. É exemplo o compromisso de concessão da direção da Caixa Econômica Federal, que libera financiamentos do programa Minha Casa Minha Vida, e da Funasa, responsável pela execução do saneamento básico em pequenas cidades. A direção de ambas permite angariar votos.

Novamente, trata-se o público como se privado fosse. Gilberto Freyre apontou como elemento definidor da unidade nacional a estrutura patriarcal de nossa sociedade, que permitiu reunir o diverso e o contraditório sob um mesmo teto, graças a um denominador comum, um traço uniforme no comportamento do estamento governamental ao longo do tempo: a falta de distinção entre o público e o privado.

Esta supremacia dos interesses particulares sobre o interesse geral foi, para Gilberto Freyre, ostensiva na formação brasileira. Os poucos que dirigem o País não o fazem em favor da maioria. No Estado patrimonialista, que ainda remanesce, “a minoria exerce o governo em nome próprio” e o exercita não em prol da Nação, mas segundo sua conveniência. Assim, discórdias são superadas por meio de verbas, de loteamento de cargos e honrarias.

Ausente a dimensão do bem comum, o desfazimento de eventuais conflitos pode ser facilmente alcançado pela conciliação dos interesses, mediante a satisfação do maior número de correligionários, em acordo tácito entre os “donos do poder”, o que pereniza a desigualdade e a exclusão social.

Para Sérgio Buarque de Holanda, a “cordialidade” é característica essencial da brasilidade – para muitos, no sentido de composição entre setores divergentes da elite, que jamais levam a ferro e fogo as disputas, de forma a não comprometer o sistema de poder. Esta semana, reabriu-se o Congresso Nacional e a dança dos interesses voltou à baila.

Dois alicerces do sistema político não ajudam a governabilidade: 1) o sistema eleitoral proporcional, facilitador da guerra entre membros do mesmo partido, disputando cada um por si; 2) o sistema presidencialista, desenhado na Constituição, que criou o Executivo forte, graças à adoção de medidas provisórias, garantidoras do processo legislativo sem o Congresso, mas instaurou um presidente fraco, sujeito a todas as chantagens, por falta de fidelidade dos parlamentares a um programa de governo. O apoio é conquistado no varejo pelo atendimento a reivindicações individuais.

Assim, o Congresso é desmedidamente forte por não ter qualquer responsabilidade e nem ser sancionado com dissolução. Arthur Lira atua como um primeiro-ministro sem risco de moção de censura.

Há que reconhecer ser esta estrutura política uma facilitadora da corrupção de toda espécie, de que são exemplos recentes o mensalão e o petrolão, cuja realidade a farsa da narrativa negacionista não desfaz.

O malefício que contamina nossa política não está apenas no clientelismo, mas no corporativismo, a ver que a Câmara dos Deputados não se divide em partidos, mas em bancadas, reunidos os deputados de acordo com sua prioridade ideológica, ou seja, a bancada da bala, a da Bíblia, a do boi.

Enquanto não houver reforma política, será assim. Fundamental, portanto, instalar-se o sistema eleitoral distrital misto, que fortalece e dá conteúdo aos partidos políticos, permitindo às circunscrições representação no Parlamento, para se criar “o gosto pelo bem comum”.

Por fim, é de todo conveniente o sistema semipresidencialista, com instituição de governo em responsabilidade conjunta do Executivo e da Câmara dos Deputados, podendo esta, em crise de governabilidade, vir a ser dissolvida. A chantagem só será desfeita ao se colocar nos trilhos as relações entre Legislativo e Executivo, fundadas na cooperação na execução de plano de governo, e não na compra disfarçada de votos.

Do contrário, só resta recorrer à cegueira deliberada, fazendo de conta que é normal a extorsão dos parlamentares sobre o Executivo, por ter sido sempre assim. 

Miguel Reale Junior, o autor deste artigo, Advogado, é Professor Titular Sênior da Facudade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Foi Ministro da Justiça. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.08.23.

A iniciativa da Ucrânia de uma ampla coalizão de paz obtém sucesso com a participação da China nas negociações de Jeddah

Enviados de cerca de 40 países se reúnem neste fim de semana na cidade saudita em torno do roteiro de 10 pontos elaborado por Zelenski para alcançar uma saída da guerra

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky durante uma visita a Donetsk.

A Ucrânia não está apenas avançando – mesmo que seja pedaço por pedaço de terra – na frente de guerra no sul e no leste do país. Também o faz agora na batalha diplomática. A China, grande aliada da Rússia, anunciou nesta sexta-feira que o diplomata Li Hui, representante especial para assuntos eurasianos, viajará neste fim de semana à cidade saudita de Jeddah para participar das negociações sobre o plano de paz proposto pelo presidente da Ucrânia, Volodimir Zelensky . O chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, em declarações à Interfax-Ucrânia, saudou a ajuda de Pequim: "A notícia de que a China está enviando Li Hui para Jeddah é um grande passo adiante".

A delegação de Pequim junta-se assim a cerca de 40 outras delegações diplomáticas - entre elas, enviadas pelos Estados Unidos e países da UE - que, através de altos funcionários, se sentarão à mesa para tentar chegar a uma posição com base na paz de 10 pontos plano que Zelenski apresentou em novembro do ano passado, e com o qual trabalha desde então nas trincheiras políticas.

O objetivo de Kiev é estender a coalizão de países aliados para além do Ocidente e também reunir o chamado Sul Global, para o qual é essencial a assistência ao encontro de países como China, Índia, Brasil ou África do Sul. A aceitação por parte de Pequim do convite de Kiev é, no entanto, o grande impulso ao roteiro ucraniano.

"A China está disposta a trabalhar com a comunidade internacional", disse o porta-voz estrangeiro chinês, Wang Wenbin, em um comunicado, "para continuar a desempenhar um papel construtivo na promoção de uma solução política para a crise na Ucrânia". Li Hui, ex-embaixador em Moscou, é o diplomata escolhido pelo presidente chinês, Xi Jinping, para negociar com os governos da Ucrânia e da Rússia, com quem mantém canais de comunicação abertos. No final de maio, Li percorreu várias capitais europeias, nas quais também pôde se encontrar com o presidente Zelensky em Kiev e, em Moscou, com o chanceler russo, Sergei Lavrov. Entre as conclusões a que Li chegou após essa missão está a de que nenhum dos contendores estava disposto a sentar-se para falar sobre a paz .

Algumas semanas depois, no final de junho, uma primeira reunião sobre o processo de paz foi realizada em Copenhague. Esta foi a tentativa mais ambiciosa de promover o diálogo até agora, contando com a presença de enviados de, entre outros, UE, Estados Unidos, Brasil, África do Sul, Índia e Turquia - as mesmas delegações que deverão ir a Jeddah - . Fora alguns avanços, aquela reunião não contou com a participação da China, apesar do convite enviado por Kiev.

Na mesa de Jeddah estarão os 10 pontos traçados por Zelenski como plano de paz . Como prato principal, o mais espinhoso: Kiev exige a retirada das tropas russas de todo o seu território e a restauração da soberania e integração ucraniana. Além disso, Zelensky inclui em sua proposta a proteção do abastecimento de alimentos e energia, a segurança nuclear e a libertação de todos os prisioneiros, bem como a criação de um tribunal para julgar os crimes de guerra russos.

Os participantes da cidade saudita, muitos deles membros do Sul Global, devem passar parte das conversas falando sobre o bloqueio das exportações de grãos pelo Mar Negro após a retirada da Rússia do acordo de grãos. O governo ucraniano denunciou que os últimos bombardeios de Moscou contra a infraestrutura agrícola causaram a perda de mais de 40.000 toneladas de seus silos, que se destinavam aos países do sul.

Rússia relógios

"Na Arábia Saudita", disse o conselheiro do governo ucraniano Mikhailo Podoliak na sexta-feira, "os alicerces de uma nova arquitetura política global estão sendo lançados". "Essa arquitetura não terá mais a 'subjetividade agressiva da Federação Russa', que causou instabilidades importantes nos últimos 15 a 20 anos", acrescentou o assessor de Zelensky.

A Rússia não foi convidada para a reunião de Jeddah, assim como não foi convidada para a reunião de Copenhague. No entanto, Moscou indicou que continuará a reunião realizada sob os auspícios da Arábia Saudita. “Resta ver quais objetivos são definidos e como os organizadores realmente planejam falar”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, na segunda-feira. "Dissemos repetidamente que qualquer tentativa de contribuir de alguma forma para um acordo pacífico merece uma avaliação positiva", acrescentou.

Com exceção da Rússia, a expectativa é que os demais países do bloco BRICS, que inclui Brasil, Índia, China e África do Sul, enviem seus delegados ao país árabe neste fim de semana para falar sobre a paz na Ucrânia. Esse grupo, com influência crescente, tornou-se uma das novas bandeiras de Moscou diante das sanções ocidentais. A adesão da Índia às negociações de paz, também aliada do Kremlin e boa cliente do comércio de petróleo bruto da Rússia, também parece positiva para Kiev. E ainda mais se levarmos em conta que Nova Délhi presidirá a próxima reunião do G-20 em setembro.

Os BRICS realizarão sua próxima cúpula entre os dias 22 e 24 de agosto em Joanesburgo, à qual não comparecerá o presidente russo, Vladimir Putin, contra quem pesa um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional de Haia .

leste e sul da frente

Prestes a iniciar as negociações, a batalha continua na linha de frente. Quase 18 meses depois de Putin ter ordenado às suas forças militares a invasão do país vizinho, o exército ucraniano tenta avançar pelos flancos leste e sul da frente na contra-ofensiva lançada no final de maio. Conforme relatado em seus últimos relatórios pelo centro de análise Institute for the Study of War (ISW), com sede em Washington, os militares ucranianos concentraram seu ataque em três pontos no sudeste do país: Berdiansk, Melitopol e Bakhmut.

Enquanto isso, Moscou resiste e mantém bombardeios constantes contra áreas fora de seu controle, como nas províncias de Kharkov e Kherson ― dois ataques em 72 horas contra o mesmo hospital ―, bem como o assédio de seus drones na capital ucraniana, Kiev.

Zelenski estimou nesta quinta-feira em 1.961 dispositivos não tripulados Shahed, fabricados no Irã, lançados por Moscou contra o território ucraniano. "Um número significativo deles foi abatido", observou o presidente ucraniano em sua conta no Telegram, "mas infelizmente não todos". De fato, as defesas antiaéreas reduziram significativamente o alcance desses drones, embora Zelenski tenha aproveitado sua declaração para pedir a seus diplomatas que trabalhem mais para conseguir mais sistemas de defesa antiaérea.

Segundo os últimos números registrados pelo Escritório de Direitos Humanos da ONU, 9.369 pessoas perderam a vida e outras 16.646 ficaram feridas desde o início da invasão, em 24 de fevereiro de 2022.

Oscar Gutiérrez, o autor desta reportagem, enviado especial à Ucrânia, é Jornalista da seção Internacional do EL PAÍS desde 2011. É especialista em questões relacionadas ao terrorismo e conflito jihadista. Ele coordena as informações sobre o continente africano e está sempre de olho no Oriente Médio. É formado em Jornalismo e mestre em Relações Internacionais. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 04.08.23

O que fazer com a Rússia?

Durante anos, a União Europeia manteve uma política em relação a Moscou que pode, na melhor das hipóteses, ser descartada como inábil. A Letônia é um laboratório para aprender

Uma faixa de protesto contra Vladimir Putin foi desfraldada no centro de Riga em fevereiro passado para marcar o primeiro aniversário do início da invasão da Ucrânia pela Rússia. (ANDREY RUDAKOV (BLOOMBERG)

Ainda não é hora de falar de paz com a Rússia. A agressão não dá sinais de parar . A entrega à força dos territórios ucranianos ocupados agora não trará paz à Ucrânia, mas sim uma trégua que não sabemos como terminaria, porque serviria, seguramente, apenas para reforçar as posições do regime russo. Precisamos de outra Rússia para conversar. E precisamos de outras estratégias.

Durante anos, a União Europeia teve uma política em relação à Rússia que, na melhor das hipóteses, pode ser descartada como pouco qualificada. Por um lado, aceitando empedernidamente o rumo cada vez mais autoritário e imperialista de Vladimir Putin, pensando que tudo aconteceria quando ele percebesse as vantagens —econômicas— de cooperar com a Europa. Sem impor limites às agressões, mais que com boca pequena. Por outro lado, humilhando os russos – tanto adversários quanto o mundo putinista – por não saberem como interagir com a Rússia, deixando às vezes a política voltada para o Oriente nas mãos de políticos cheios de preconceitos anti-russos. E, sobretudo, sem ser capaz de oferecer uma alternativa europeia forte, clara e vinculativa que teria atraído tanto a Rússia como a Ucrânia para um conceito de segurança e cooperação. Sim, ao mesmo tempo. Isso poderia ter sido feito.a crise de Maidan foi extraordinariamente desajeitada . Mas deveria ter começado muito antes. E foi dito. Esteja avisado. Mas a política diária se arrastava demais.

Reconheço que é difícil unir direções tão divergentes de política externa. Mas pelo menos teria sido possível o desenho de um espaço que permitisse vencer as relutâncias russas, evitando a sensação de isolamento, que reforçou o regime vezes sem conta. Talvez a última possibilidade disso fosse, já escrevi sobre isso no EL PAÍS naquela época, durante a crise bielorrussa de 2020.

Quando um assunto dá muito o que falar, leia tudo o que tem a ser dito.

O que podemos fazer agora? Estamos claramente cientes de que a Ucrânia deve ser apoiada até o fim. Esta é a única chance para o regime russo mudar. Mas isto não é o suficiente. Também não é uma boa ideia deixar os Estados Unidos penetrar cada vez mais no desenho das políticas europeias para o Oriente. Seus interesses são muito diferentes dos nossos, mesmo em alguns aspectos até incompatíveis. Com os Estados Unidos, devemos ter unidade na construção das defesas militares europeias. Mas não na base do quadro político que os sustenta. Esse é, e deve ser, o nosso negócio. E você tem que encontrar alternativas.

Ultimamente tenho passado algum tempo em Riga, capital da Letônia. Aqui a guerra na Ucrânia está presente em todos os lugares - embora eu admita que foi há pouco menos de um ano. Há bandeiras ucranianas por toda parte, nos cafés há cofrinhos para arrecadar ajuda humanitária, também há —também em menor número— refugiados.

A Letônia é um lugar muito especial.Pelo menos um terço da população fala russo em suas vidas diárias. Em Riga, é possível entrar em quase qualquer café ou loja e fazer o pedido diretamente em russo. Muito provavelmente, você será respondido diretamente nesse idioma. Isso é algo que não é tão óbvio quanto parece: a Letônia tem uma longa história de domínio russo, mas até depois da Segunda Guerra Mundial a língua de prestígio era o alemão - os alemães bálticos, que fundaram Riga, foram a elite por séculos — e o da população em geral, o letão, uma língua não eslava. Durante o breve período de independência entre 1920 e 1940, o letão tornou-se a língua oficial, mas a reconquista soviética -aqui percebida como russa- após a guerra levou à imposição do russo como língua da Administração. Com a industrialização, Centenas de milhares de pessoas de outras partes da União Soviética imigraram para a Letônia, e a língua russa tornou-se dominante, pelo menos nas cidades. Durante os mais de 40 anos de controle soviético, a luta dos letões para preservar a língua foi incessante.

Quando a URSS desmoronou, algo em que os letões, como os outros bálticos, participaram ativamente, a população de língua russa — aquela que usava o russo como língua cotidiana — talvez surpreendentemente tenha apoiado a independência do país. E é que o movimento pela independência, que teve raízes muito diversas, soube desdobrar-se como busca da democracia, da prosperidade e de um “retorno” à Europa. Os milhares de russos étnicos na Letônia, mas também muitos outros russófonos não russos - ucranianos, bielorrussos... - entenderam que uma Letônia integrada à Europa e respeitando os direitos humanos poderia ser muito mais benéfica para eles e seus filhos do que uma Rússia renascida que , no fundo, ninguém confiava. Nesse sentido, eles se mostraram certos.

As relações entre as duas comunidades não têm sido fáceis nos últimos anos. Os nacionalistas letões — ao contrário das promessas da época da luta comum contra a ditadura soviética — tendiam a reduzir os direitos dos russófonos. Uma lei desproporcional concedeu a cidadania apenas aos cidadãos da Letônia antes de 1940 ou a seus descendentes, privando centenas de milhares de pessoas, mesmo aquelas que já nasceram no país. Embora a pressão da União Europeia tenha conseguido uma revisão da lei, os obstáculos impostos levaram a que ainda hoje existam milhares de não cidadãos.(assim chamado). Isso se juntou ao canto da sereia da propaganda do regime de Putin. A verdadeira discriminação levou pessoas que antes não se sentiam “russas”, descobrindo repentinamente que a Federação Russa se tornou sua defensora, oferecendo-lhes passaporte, orgulho, resistência contra a opressão. A discriminação levou à consolidação de uma diferença étnica que não deveria existir.

Com o tempo, os nacionalistas russos conseguiram prosperar nas margens, valendo-se de queixas reais, mas também de uma agitação populista facilitada pelo fato de que as gerações russófonas mais velhas aprendem principalmente por meio da comunicação de massa controlada por Putin. A Letônia não conseguiu integrar boa parte dessa minoria em seu espaço de mídia – provavelmente devido à sua insistência em não usar o idioma russo. É interessante que o partido majoritário há muito tempo – mas que não conseguiu formar um governo – tenha sido uma formação, o Harmonia, considerado “russo”. De fato, há anos a capital tem – como agora – prefeitos “russos”, eleitos em eleições livres.

No entanto, falo com jovens letões. Alguns deles são russófonos, outros são filhos de casamentos mistos. Todo mundo sabe que é letão. E europeus.

A eclosão da agressão direta contra a Ucrânia tornou as coisas difíceis para os nacionalistas pró-Rússia. Os nacionalistas letões agora os olham com olhos piores, se possível. Mas também a situação representa um desafio para a minoria de língua russa. Além das afinidades culturais ou linguísticas, além dos sentimentos de ressentimento. Como enfrentar a polaridade dos laços que os unem ao mundo russo sem deixar de ser europeus? Algumas formações da minoria russa reiteraram uma visão: construir uma Letônia com base na cidadania, direitos cívicos, patriotismo constitucional, aceitação da língua letã, mas liberdade linguística para falantes de russo, sem preconceito ou discriminação. E se eles levantarem isso para a Letônia, também terão que pensar no que fazer com a Rússia. Para eles, parece não haver outra possibilidade senão uma mudança de regime. Faça com que seus parentes ou conhecidos na Rússia percebam a situação real. Não se isole do mundo.

Isto é muito difícil. Para isso são necessárias muitas coisas: não ceder um centímetro de terra ucraniana, mas levar a sério os temores russos e oferecer soluções concretas — sim, já, hoje, durante a guerra. Dar uma guinada em sentido europeísta, reforçando nossos interesses acima dos da atual beligerante América, atolada em sua já longa crise política. Aumente — massivamente — informações para a Rússia em russo. Fazer compreender que só a defesa dos direitos e liberdades cívicas garante a soberania nacional e a prosperidade mútua. Reforçar e recuperar a ideia europeia na Rússia. Para isso, a Letônia é um laboratório para aprender.

Conseguir isso requer muito esforço, ideias claras. Mas acima de tudo uma coisa: um propósito e uma visão da Europa. Não é por acaso que os nacional-populistas de direita e de esquerda olham com bons olhos para a Rússia de Putin. Acabar com a Europa é seu objetivo comum.

José María Faraldo, o autor deste artigo, é historiador, autor de "Contra Hitler e Stalin" (Aliança). Publicado originalmente no EL PAÍS, em 28.07.23

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

A roupa nova do hacker

Tem algo de pequeno, de tacanho, nesse arco dos últimos dez anos da política brasileira

Hacker de araque passou a perna em Zambelli e expôs o ridículo da política brasileira

Gente como Nelson Rodrigues ou Dias Gomes faz falta, sabe? Eles tinham essa habilidade de olhar para aquilo que há de ridículo, na vida brasileira, e ressaltar. Sublinhar, nos expor. Esse personagem que não vai embora da vida pública, o hacker de Araraquara, talvez fosse apresentado de forma muito diferente por um ou por outro. Mas ambos mostrariam o que devia estar evidente. Tem algo de pequeno, de tacanho, em essência de ridículo nesse arco dos últimos dez anos da política brasileira.

Não temos mais um Nelson ou um Dias porque não seria possível com os humores correntes.

Hoje, tudo é muito sério, tudo muito grave, tudo precisa ser denunciado. Ninguém é ridículo. As pessoas podem ser violentas, criminosas, intolerantes, racistas, misóginas, até fascistas. Mas nunca são ridículas. A ridiculez nunca é perigosa. É quando o menino grita que o rei está nu que aquilo muito grave se mostra pelo que realmente é. Não grave, pois ridículo.

Nada envolvendo o hacker de Araraquara tem como ser grave. Porque ele não é um hacker. É um estelionatário que aprendeu uns truques na internet. Walter Delgatti tentou acessar mensagens de meia República. Conseguiu fazer isso num só caso, o do então procurador Deltan Dallagnol. Conseguiu porque o procurador responsável pelo caso mais delicado da história da Nova República foi irresponsável. Jamais ocorreu a Deltan que ele deveria se preocupar com segurança digital. Um hacker de meia tigela foi lá e pegou tudo, precisando apenas saber seu número de telefone.

O fato de que, a partir daí, mostrou-se que na Lava Jato havia conluio entre juiz e Ministério Público só acentua o ridículo. Deltan, Bíblia numa mão, PowerPoint na outra e todo o moralismo do planeta sobre os ombros, foi completamente irresponsável. Ter sido exposto por um hacker de araque sublinha o ridículo. Afinal, ilumina a frouxidão dos métodos.

Se a Polícia Federal estiver certa e a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) tiver pedido não só que ele quebrasse a urna eletrônica, como atacasse ministros do Supremo, violando a segurança digital de seus servidores, será um espanto. Quer dizer que Zambelli e outros, dentro do bolsonarismo, olharam para Delgatti e realmente o confundiram com um hacker. O sujeito deve ter cobrado um bom dinheiro para fazer o que não seria capaz de entregar. Porque, diferentemente do Telegram do procurador, a urna eletrônica é séria e emitir mandado de busca ou de prisão, como queria a deputada, não é coisa para amadores.

Zambelli, como Dallagnol, não é séria. Como Bolsonaro não é sério. O vigarista do interior passou a perna neles todos. Isso diz tanto sobre um Brasil que se acha sério demais.

Pedro Dória, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.08.23. (E-mail: coluna@pedrodoria.com.br; Twitter: @pedrodoria JORNALISTA)

Bolsonarismo de manual

O caso da deputada Carla Zambelli é exemplar da mentalidade essencialmente golpista dessa turma

Não diz grande coisa o número de votos que elegeram a sra. Carla Zambelli para a Câmara, porque São Paulo já votou em massa numa rinoceronte há algumas décadas. Mas a referida senhora não é tão desimportante quanto parece. Afinal, se alguém encarna fielmente o ethos bolsonarista, algo que pode ser descrito, de forma sucinta, como uma busca incessante pela instabilidade do País pela via da mentira, da desinformação e do golpismo, é ela.

A cassação de seu mandato, portanto, é ação profilática que se impõe à Casa de representação política da sociedade. A sra. Zambelli é um corpo estranho na democracia, razão pela qual deve ser expelida por seus pares por meio do mecanismo criado pela própria democracia para se proteger de ameaças como ela.

Porém, mais importante para o País do que o destino político – ou jurídico – da sra. Zambelli é entender como ela representa a mentalidade do bolsonarismo. Nesse sentido, a operação deflagrada pela Polícia Federal há poucos dias contra a parlamentar e um desqualificado a ela associado não poderia ser mais elucidativa.

A sra. Zambelli é suspeita de ter contratado Walter Delgatti Neto para “hackear” a urna eletrônica. Por trás dessas ações insidiosas estaria o intuito de “provar” a estapafúrdia tese de Jair Bolsonaro segundo a qual o sistema eleitoral brasileiro estaria sujeito a fraudes.

Evidentemente, a trama golpista foi um fiasco. Como o próprio “hacker” admitiu aos policiais depois de ser preso, a urna eletrônica é inexpugnável, pois, como a Justiça Eleitoral já cansou de explicar, o aparelho não está conectado à internet.

Diante desse revés eminentemente técnico – o único capaz de parar bolsonaristas como a sra. Zambelli, pois barreiras morais há muito já foram obliteradas –, a deputada, então, teria pedido ao tal “hacker” para que “invadisse” o celular do ministro Alexandre de Moraes, a fim de bisbilhotar mensagens que pudessem desaboná-lo e, assim, minar sua credibilidade e isenção como membro do Supremo e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, além de instalar no País o caos em que vicejam esses inimigos da democracia.

Ainda que apenas metade dessa história seja verdadeira, ela basta para servir de exemplo do manual clássico do bolsonarismo. Uma das regras não escritas desse movimento, se assim pode ser chamado, é jamais se dar por vencido quando uma tentativa de abalar a paz social ou subverter a ordem democrática der errado.

Incapaz de operar dentro das regras do jogo democrático, o bolsonarismo apenas se serve de seus instrumentos, tal como um parasita, para minar suas forças. Seus representantes, a começar por Bolsonaro, claro, jamais se ocuparam de projetos sérios para o País. Suas ações são conduzidas, já dissemos, sob o signo de Tânatos, o deus da morte na mitologia grega, não raro flertando com a delinquência.

A política, como meio civilizado de concertação em torno dos muitos interesses da sociedade, há de ser saneada pela vida constitucional. Isso passa pelo expurgo de políticos que não vivem bem sob a luz das liberdades democráticas.l

Editorial d'O Estado de S. Paulo, em 04.08.23

Por que existem tão poucos partidos dispostos a ser oposição no Brasil?

Com o objetivo de atingir uma maioria numérica confortável no Legislativo, suficiente para aprovar reformas constitucionais, o presidente Lula convidou mais dois partidos para sua coalizão: PP e Republicanos. Vale salientar que esses partidos do Centrão eram, até recentemente, leais fiadores do governo de Jair Bolsonaro no Congresso.

Se as negociações se confirmarem, serão agora 16 partidos, além dos 14 (PT, PV, PCdoB, MDB, PSB, PSD, PDT, Rede, PSOL, União Brasil, Podemos, Avante, Solidariedade e PROS), que farão parte da coalizão do governo Lula 3.

Será a coalizão com o maior número de siglas e ideologicamente mais heterogênea da história do presidencialismo multipartidário brasileiro. Nessa salada partidária, tem legendas de extrema esquerda, de centro e de direita. A fonte de agregação não é ideológica nem programática, mas fundamentalmente busca pela sobrevivência.

Os únicos partidos que, até o momento, ficaram de fora da supercoalizão governista de Lula 3 foram PL, Novo, PSC, Patriota e a federação PSDBCidadania. Por que existem tão poucos partidos dispostos a ser oposição no Brasil?

Ser oposição não é para qualquer um. Seus legisladores têm de estar preparados, pelo período que durar essa condição, para “comer o pão que o diabo amassou”. Terão menos acesso a recursos de poder e financeiros controlados e alocados de forma discricionária pelo governo. Tais recursos serão primordialmente direcionados para os partidos aliados como uma espécie de bônus de ser governo.

Isso tornará os partidos de oposição menos competitivos no curto prazo e com mais dificuldades para sobreviver eleitoralmente. Por outro lado, pode ser também interpretado como um investimento. Por exemplo, o PT jogou o jogo de oposição de forma consistente por mais de 20 anos: desde sua fundação, em 1980, até 2003, quando finalmente ocupou a Presidência pela primeira vez. O investimento parece ter valido a pena, afinal já vão no 5.º mandato presidencial.

No presidencialismo multipartidário brasileiro, só tem incentivo para ser oposição o partido que tem ambições e condições de lançar um candidato competitivo à Presidência nas próximas eleições. Do contrário, vale muito mais a pena aceitar a oferta do presidente de plantão. Todos os incentivos, portanto, são para ser governo e não oposição.

Ainda não há certeza se essa supercoalizão de Lula 3 vai funcionar de forma coesa e disciplinada e se vai ser estável e sustentável ao longo do governo. De qualquer forma, o jogo do presidencialismo multipartidário voltou ao “business as usual”.l

Carlos Pereira, o autor deste artigo, é cientista político. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.08.23

quarta-feira, 19 de julho de 2023

O perigoso encanto da indignação

Se o Brasil for apenas o país da indignação, ele continuará a ser exatamente isto: um país com muitos motivos para indignar-se

Por suas desigualdades, preconceitos, privilégios, incertezas e injustiças, o Brasil oferece muitíssimas ocasiões de indignação. E, verdade seja dita, nós sabemos aproveitar as oportunidades. Não temos receio de expor nossa revolta e perplexidade diante dos variados absurdos que testemunhamos frequentemente.

A proficiência brasileira na indignação é refletida em expressões famosas, que fazem parte de nossa identidade nacional. O Brasil não é para amadores. No Brasil, até o passado é incerto.

Podemos ser sinceros? Indignar-se é muito bom. Quando nos indignamos, sentimo-nos valentes, corajosos, despertos, responsáveis, comprometidos com o interesse público, não ingênuos, não manipulados. De alguma forma, indignar-se é colocar-se num lugar superior. Significa dizer: nesta situação, eu faria diferente. Se tivesse poder, se ocupasse aquele cargo, eu atuaria de modo muito melhor, mais digno, mais assertivo. A mensagem é unívoca. Se dependesse de mim, o Brasil seria bem melhor.

Mas a indignação é sentimento complexo, não é só superioridade. Com frequência, ela também representa o reconhecimento de que não fomos capazes de vislumbrar sentido em determinada situação. É o absurdo – o fato sem sentido – o que nos indigna. Certamente, isso diz muito sobre o que suscitou nossa indignação, mas também sobre nossa própria percepção. Parece-nos impossível que aquilo seja de determinada maneira e, por isso, nos indignamos. A indignação pode, portanto, representar certo desconhecimento sobre o tema em questão.

Eis um primeiro ponto que gostaria de destacar. Se diariamente mais coisas nos indignam – por exemplo, no Congresso, no Supremo Tribunal Federal, na Presidência da República –, isso pode ser sintoma da situação do País, como também pode sinalizar nossa dificuldade de entender muitos temas. Podemos nos indignar com assuntos de que temos inteiro domínio, mas o fato é que, quanto menos compreendemos, mais assuntos são capazes de despertar nossa indignação.

No mundo da advocacia – especialmente na esfera do contencioso –, é muito comum a reação de indignação. Pelo tempo que os processos demoram. Pelas petições que a outra parte escreve. Pelas decisões que os juízes proferem. Muitas sentenças parecem-nos absurdas, desconectadas dos fatos e à revelia da lei.

São muitas as decisões judiciais que afrontam profundamente nossa percepção do que deveria ser a Justiça, mas – e aqui está um segundo ponto a ser destacado – só com indignação não se faz um recurso. A mera revolta é incapaz de expor o erro contido na sentença que nos parece absurda. É preciso identificar as causas que levaram o juiz àquela decisão. É preciso entender os argumentos e os motivos que moldaram a compreensão do magistrado. Por mais absurda que seja, a decisão judicial tem de se tornar absolutamente compreensível aos nossos olhos. Só assim será possível refutar bem os seus erros.

A mesma dinâmica aplica-se aos outros campos da vida pública, também ao político. A indignação é necessária, mas é insuficiente por si só para transformar a realidade. Ela pode ser uma boa e justa reação inicial, mas é um engano satisfazer-se com ela. É necessário ir além. A indignação é uma resposta emocional e, para detectar as causas da situação revoltante, a reflexão é imprescindível.

Trata-se de um dos grandes desafios contemporâneos. Temos muitos espaços para expressar indignação. As redes sociais são especialmente propícias para isso. No entanto, há carência de âmbitos de reflexão, onde sejamos incentivados não somente a julgar, a condenar e a lacrar, mas a entender os processos, as dinâmicas, as perspectivas.

Às vezes, o ponto de vista inicial já é um empecilho. Ver de cara o outro lado político-ideológico como um completo absurdo é dificultar, ou mesmo impedir, a compreensão sobre os fatores que o tornam socialmente relevante ou eleitoralmente competitivo, por exemplo. Nesse sentido, um ambiente cultural que estimula aprioristicamente a indignação prejudica a reflexão, diminuindo paradoxalmente as possibilidades de transformação e de melhora.

O jornalismo tem papel fundamental, como espaço de compreensão qualificada do tempo presente, sem cair na mera incitação à indignação. Infelizmente, não raro, o que se vê é a busca pelo engajamento a partir do escândalo. O jornalismo de denúncia é importante, mas, se se contentasse com a denúncia, contribuiria para manter as coisas como estão. Um bom jornal leva-nos a ver mais coisas – mais aspectos e mais perspectivas – do que, a princípio, gostaríamos de ver. A realidade é mais rica do que as cores binárias de nossa cólera.

Se o Brasil for apenas o país da indignação, ele continuará a ser exatamente isto: um país com muitos motivos para indignar-se. A realidade que nos revolta deve conduzir também à reflexão, ao estudo, ao diálogo. Só assim poderemos ter um diagnóstico maduro e realista dos problemas que tanto nos incomodam para, de fato, enfrentá-los. A indignação, faísca genuinamente humana, deve desencadear soluções, e não apenas nos ruborizar.

Nicolau Da Rocha Cavalcanti, o autor deste artigo, é Advogado e Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 19.07.23

Russos em fuga da guerra na Ucrânia

Na Rússia, cada vez mais homens escapam para outros países, temendo ter que matar e morrer por ordem de Putin. Mesmo no exterior, porém, impressiona e cárcere os ameaçam. A Deutsche Welle entrevistou dois dos milhares de desertores.

Treinar para o front muitas vezes se resume a atirar uma vez (Foto: AP/dpa/imagem aliança)

De roupa discreta, capuz abaixado, o jovem russo olha em torno de si. Ele tem medo de ser descoberto, um sentimento com que vive há alguns meses na capital da Geórgia, Tiblíssi. Por isso evite divulgar seu nome real, pedindo para ser chamado Nikita.

Até fevereiro, ele frequentava a universidade em Moscou. Como não é incomum no país, tinha um contrato com as Forças Armadas: o Ministério da Defesa pagava por seu estudo e garantia a vaga na casa de estudantes. Em contrapartida, ele se comprometeu a servir o Exército, após concluídos os estudos.

"Na época assinei o contrato por burrice. Várias coisas não estavam claras para mim. Pensei: 'OK, vou perder três anos no Exército, em compensação saio com o meu curso superior."

Ao receber a ordem de convocação, Nikita quis dar baixa no serviço militar, mas a instituição rejeitou seu pedido e recebeu um acordo: "Eles me transferiram para um departamento de liderança, onde eu ajudaria o comandante com a papelada. Aí em setembro me deram um outro posto: eu observei com tecnologia militar para repelir o inimigo, no caso de uma ofensiva."

Compreendendo que poderia ser enviado para a Ucrânia a qualquer momento, o rapaz decidiu deixar o país e fugir para a vizinha Geórgia. "Eu não queria ir para a guerra. Desertar era a minha única chance."

Ele está consciente dos riscos, "que vou ter que me esconder da Rússia pelo resto da vida, que não vou poder voltar nunca mais": "Não tenho medo de morrer ou de acabar na prisão. Mas simplesmente não quero ter que matar ninguém" , justifica-se.

Russos refugiados aguardam para se registrar como imigrantes no Cazaquistão (Foto: Madija Torebaewa/DW)

Uma loteria chamada guerra

Nikita não é um caso isolado: ativistas dos direitos humanos registram mais de mil processos por suposta deserção, mas o número real dos desertores deve ser bem mais elevado, relata Grigory Swerdlin, da Idite Lesom, uma ONG russa – cujo nome pode ser traduzido como "Se manda" – que ajuda objetos do serviço militar a escaparem para o estrangeiro.

Alguns temem a mobilização, outros já estavam na frente de combate e não querem mais lutar, explica Swerdlin: "Escutamos muitos relatos sobre o caos que impera no front. Às vezes ninguém sabe onde os comandantes estão. Outros contam que foram simplesmente depositados em campo aberto, sem qualquer noção nem comando. Quer dizer: ninguém ensina nada aos recrutas, o treinamento é só atirar uma vez com metralhadora."

Principalmente no terceiro trimestre de 2022, quando a mobilização começou, vários recrutas informados nas redes sociais como irregularidades nos campos de treinamento e no front. Algo que Igor Sandzhiev conhece em primeira mão.

O operário russo de 46 anos, que vive atualmente em Uralsk, no oeste do Cazaquistão, faz questão de divulgar seu nome verdadeiro, pois quer que sua história seja conhecida. Tudo começou quando foi convocado pelo Exército, supostamente para uma conferência de seus dados pessoais.

Ao comparar na repartição, no entanto, Sandzhiev foi imediatamente listado: na mesma noite deveria se apresentar num campo de treinamento das Forças Armadas, algumas semanas mais tarde já estaria no front. Sentindo-se como preso numa armadilha, fugir fugir.

"Para mim, era uma questão de tudo ou nada. Pensei: 'Ou eu vou para a prisão por vários anos por ter abandonado o destacamento, ou morro em alguma parte da Ucrânia. Prefiro ir preso, não quero correr risco, não quero jogar nessa loteria chamando guerra que o presidente Putin está promovendo.'"

Recrutas se deslocam de trem na região de Volgogrado (Foto: dpa/AP/picture Alliance)

Serviço militar como tábua de salvação financeira

Uma loteria mortal: segundo informações (não verificáveis) da mídia, a invasão do país vizinho já custou as vidas de dezenas de milhares de russos. Muitos mobilizados pelo decreto do presidente Vladimir Putin em 2022 eram pais de família; muitos contavam com soldos generosos, sobretudo os homens das regiões mais pobres.

Sandzhiev, que é natural da República da Calmúquia, no sul da Rússia, confirma esse fato: "As nossas possibilidades financeiras são limitadas, os tratamentos não são pagos. Ir para a guerra é para muitos a única possibilidade de dar um reforço no orçamento: um tem uma filha prestes a ir para a universidade, outro assumiu uma hipoteca, um terceiro está precisando de um carro."

O Cazaquistão já é seu segundo refúgio: primeiro ele acadêmico para Belarus , mas foi apanhado pela polícia e enviado de volta para o campo de treinamento perto de Volgogrado. Escapou uma segunda vez, agora para Uralsk, onde entrou com um pedido de asilo. Mas foi recusado por não preencher os requisitos: segundo a sentença.

Além disso, o operário foi condenado a seis meses em liberdade condicional por travessia ilegal de fronteira. Apresentou recurso, que foi indeferido. Agora ele está ameaçado de deportação para a Rússia.

"Para mim, vai ser prisão ou guerra"

Denis Zhivago, vice-diretor da Agência Internacional de Direitos Humanos do Cazaquistão, afirma que não se trata de um caso isolado: mais de 20 russos aguardam o exame de seus requerimentos de asilo.

"Esses indivíduos não atravessam a fronteira clandestinamente, eles estão no Cazaquistão de forma totalmente legal, mas alguns são procurados [na Rússia], sobre outros pesam restrições de deslocamento. Eles procuram outros meios de chegar a países terceiros."

Igor Sandzhiev não se ilude quanto ao próprio futuro: "O que me espera é ou prisão ou a guerra na Ucrânia. Agora mesmo, a mídia estatal está comunicando aos russos que falta pessoal no front, e que os homens habilitados devem ir lutar."

Quanto ao jovem Nikita, além de seu futuro na Geórgia ser incerto, ele não se sente seguro no país, "não porque as pessoas aqui sejam ruínas, ou coisa assim": "Os georgianos não me tratam mal, como um russo. Mas aqui eu continuo tendo medo do Estado russo. Às vezes tenho pesadelos em que o meu antigo chefe bate à porta e diz: 'Vem comigo, eu te consegui.'"

Apesar de tudo, Igor e Nikita querem tentar permanecer no exterior – enquanto podem.

Mirko Fuchs, o autor deste texto, é jornalista. Publicado originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 19.07.23

terça-feira, 18 de julho de 2023

PF faz buscas em residência de casal suspeito de hostilizar Alexandre de Moraes no Aeroporto de Roma

Por ordem da ministra Rosa Weber, do Supremo, agentes federais vasculharam endereços de Santa Bárbara D’Oeste, no interior de São Paulo, e também o carro do casal Andréia e Roberto Mantovani, no pátio da Delegacia de Piracicaba

Andreia Mantovani, Alex Zanatta Bignotto e Roberto Mantovani Filho no aeroporto Internacional de Guarulhos em São Paulo Foto: Reprodução TV Globo

A Polícia Federal cumpriu nesta terça-feira, 18, mandados de busca e apreensão em dois endereços ligados aos suspeitos de terem hostilizado o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e seus familiares no Aeroporto de Roma, na Itália. As ordens foram autorizadas pela presidente da Corte máxima, ministra Rosa Weber.

As diligências foram cumpridas em Santa Bárbara d’Oeste no bojo do inquérito sobre supostos crimes de injúria, perseguição e desacato. Os alvos principais da investigação são Andréia Mantovani e Roberto Mantovani Filho.

Eles prestaram depoimento nesta terça, 18. Enquanto o casal era ouvido pelos investigadores, agentes da Delegacia da PF em Piracicaba, vizinha à Santa Bárbara D’Oeste, vasculharam o carro dos Mantovani, estacionado no pátio.

A corporação já pediu as imagens do aeroporto de Roma para abastecer as apurações. As gravações foram solicitadas via cooperação internacional, com apoio da Diretoria Executiva da PF. A expectativa é a de que sejam fornecidas ainda nesta semana e sejam usadas para confrontar a versão dos suspeitos sobre o ocorrido.

Como mostrou o Estadão, o inquérito deve se debruçar sobre possíveis crimes contra a honra de Alexandre de Moraes, eventual lesão corporal e até tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. Os crimes podem ser investigados e punidos no Brasil em razão do chamado princípio da extraterritorialidade.

Segundo PF, Andréia Mantovani xingou o ministro de ‘bandido e comprado’. Na sequência, o marido dela, o empresário Roberto Mantovani Filho, reforçou os xingamentos e chegou a agredir fisicamente o filho do ministro, um advogado de 27 anos. Além disso, Alex Zanatta Bignotto, genro de Roberto, teria disparado palavras de baixo calão contra a família do ministro. Ele depôs à PF na manhã deste domingo, 16.

Em meio à confusão, uma pessoa próxima ao ministro Alexandre de Moraes fotografou os supostos agressores. Os registros chegaram à Polícia Federal em São Paulo, que abordou grupo de suspeitos no aeroporto de Guarulhos.

O Estado de S. Paulo - Blog do Fausto Macedo / Por Pepita Ortega e Isabella Alonso Panho, em 18/07/2023 | 16h45 / Atualização: 18/07/2023 | 18h40

segunda-feira, 10 de julho de 2023

A direita civilizada não é uma utopia

A votação da PEC 45 revelou o contraste entre os verdadeiros liberais e os conservadores de fancaria. A concertação de interesses em bases civilizadas, alinhadas à Constituição, move o País


Tarcísio de Freitas, Governador de S. Paulo, lidera o coro dos desafinados da truculência de Jair Bolsonaro

A histórica aprovação da reforma tributária pela Câmara mostrou quão longe o Brasil pode avançar quando forças políticas adversárias são capazes de superar divergências para debater, civilizada e democraticamente, projetos de interesse de toda a sociedade. Foi exemplar, nesse sentido, o diálogo republicano estabelecido entre o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e parlamentares de diferentes afiliações ideológico-partidárias a fim de destravar as negociações que, ao fim e ao cabo, levaram à construção dos termos finais da reforma.

A votação confortável da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, com mais de 370 votos favoráveis nos dois turnos, revelou, ainda, que uma direita civilizada, liberal e propositiva – a direita que este jornal tanto tem conclamado a se organizar e se distanciar de qualquer associação com essa extrema direita selvagem encabeçada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro – não é uma utopia. Ela existe e, como se viu, mostrou seu grande valor para a construção democrática de consensos em prol do País. Nos dias que antecederam a votação da PEC 45, ficou evidente o contraste entre os verdadeiros liberais democratas e os conservadores de fancaria.

Imbuído da missão de conciliar o apoio a uma proposta de interesse nacional e a defesa dos interesses de São Paulo, Tarcísio foi a Brasília para negociar ajustes nos termos da reforma tributária com membros do governo federal e do Congresso. Foi o que bastou para ser hostilizado por Bolsonaro e pela malta que ainda o acompanha no PL. Para os bolsonaristas, Tarcísio cometeu o pecado mortal de fazer a boa política, vale dizer, a política que produz bons resultados para o País, independentemente de eventuais concessões programáticas ou ideológicas que possam ser feitas com vistas ao interesse público.

Não surpreendem, portanto, os apupos ao governador paulista, não só humilhado pela bancada do PL, como jogado por Bolsonaro aos cães das redes sociais, numa tentativa patética do ex-presidente de demonstrar um poder que, hoje, só existe na sua imaginação. Essa direita raivosa e destrutiva privilegia a polarização, a intolerância e a recusa ao diálogo como instrumentos de ação política. Nada tem a oferecer ao País, como restou demonstrado.

A direita selvagem é infensa à cooperação com adversários. Não reconhece a necessidade de concertações políticas nem é capaz de firmar compromissos para impulsionar o desenvolvimento do País. Os verdadeiros conservadores, ao contrário, como genuínos democratas que são, são plenamente capazes de sentar-se à mesa com adversários políticos para discutir reformas do Estado por meio da negociação democrática, não da ruptura. Foi o que se viu na aprovação da PEC 45. É dessa direita que o País precisa e, como se viu, deu um passo à frente para reafirmar sua importância para o desenvolvimento do País.

Mas, paralisados pela ideia de fazer uma oposição irracional ao governo do petista Lula da Silva, os bolsonaristas ditos “liberais” não têm esse alcance. Tanto que tiveram de ouvir o óbvio do governador de São Paulo. A Bolsonaro e à bancada do PL, Tarcísio teve de relembrar que “a direita não pode perder a narrativa de ser favorável a uma reforma tributária” – e por razões óbvias: uma reforma que modernize o sistema tributário, reduzindo a capacidade do Estado de infernizar a vida dos empreendedores, obviamente deve ser apoiada e liderada por quem se diz liberal.

Como mostraram as bem-sucedidas negociações para a aprovação da PEC 45, o Brasil só tem a ganhar quando adversários políticos se dispõem a debater projetos de interesse nacional de forma madura e civilizada.

A sociedade tem muito a refletir a partir da aprovação da reforma tributária, uma conquista de todos; não de um governo, de um partido ou de indivíduos. Dessa compreensão advirá a constatação de que o melhor interesse público, perene, sempre se sobrepõe às disputas político-ideológicas de ocasião; e a concertação de interesses em bases civilizadas, alinhadas à Constituição, é o que move o País.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 10.07.23

sábado, 8 de julho de 2023

O presidente que acreditou na força de sua milícia e acabou sozinho no mato

Na História do Brasil, quem confundiu a força de fiéis seguidores com o poder do Estado ou minimizou a negociação política terminou fora do jogo

Artur Bernardes, presidente do Brasil entre 1922 e 1926; fora do poder, convocou seus seguidores a se insurgirem e foi facilmente derrotado pela tropa legal. (Foto: ARQUIVO NACIONAL)

Presidentes que pregam a intolerância, desqualificam adversários e rejeitam o diálogo costumam pagar um preço alto mais tarde. A faixa presidencial e, sobretudo, o séquito de bajuladores podem inebriar chefes do Executivo, levá-los a acreditar que o poder não é efêmero. Fora do cargo, restam para eles a decepção, a mágoa e o sentimento de traição.

Muitos são os casos de governantes que abusaram de práticas autoritárias e depois não conseguiram se manter no jogo político. Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca foram os primeiros nomes dessa tradição tão antiga quanto à República.

Houve o caso de um ex-presidente que chegou a imaginar que sua milícia era capaz de derrotar até a força do Estado. Ao assumir o poder em 1922, o mineiro Artur Bernardes, do Partido Republicano Mineiro, já pegou o País em estado de sítio, mas aumentou o ambiente de violência. Mandou prender adversários, bombardeou São Paulo para atacar opositores e buscou a aprovação da censura contra jornalistas. O Brasil virou um pária. O país se afastou da Liga das Nações.

Em 1926, o paulista Washington Luiz foi eleito presidente. Bernardes, então, foi para Minas reorganizar sua ala no PRM – e sua milícia. Quatro anos depois, a aliança entre oligarquias políticas de Minas, do Rio Grande do Sul e da Paraíba levaria Getúlio ao poder, após um golpe.

Quando a oligarquia de São Paulo se revoltou contra Getúlio, em 1932, os mineiros ficaram a favor do presidente. Mas Artur Bernardes, na época senador, era quase um outsider na política mineira e decidiu enfrentar o governo central. O apoio de Bernardes aos paulistas tinha características de guerra pessoal, ainda que ele levantasse a mesma bandeira dos revoltosos do Estado vizinho. Aliás, esteve na trincheira oposta a dos paulistas nos conflitos de 1924 e 1930, sempre do lado legal - era presidente no primeiro e senador no segundo.

Em 1932, ele transformou sua casa em Viçosa num bunker contra as tropas de Getúlio e do interventor de Minas, Olegário Maciel. O ex-presidente reuniu prefeitos e fazendeiros e organizou uma campanha de recrutamento e compra de armas, fardas e alimentos. Agricultores pobres que nunca calçaram um sapato colocaram os pés dentro de pesadas botinas. Mulheres se reuniram nas ruas dos povoados em mutirões de costura de fardas. O clima era de festa.

O governo mineiro temia que os bernardistas tomassem Belo Horizonte. Mas Olegário Maciel tinha a caneta de governador e a polícia. O Judiciário não se envolveu na querela que só interessava ao ex-presidente. Os chefes políticos locais também não quiseram entrar nessa briga que não era deles. Os fazendeiros ligados a Bernardes, por sua vez, tinham dívidas com bancos federais e estaduais e precisavam pensar na lavoura do ano seguinte.

No Rio, a imprensa não esquecera os anos de terror do governo Bernardes e pediu uma caçada sem tréguas à “jagunçada”. Viçosa foi cercada pela tropa oficial. Os milicianos se renderam, um a um. Num confronto direto 20 deles morreram. Os bernardistas presos foram colocados num vagão de trem, em Viçosa, e levados à capital federal.

Artur Bernardes viu que não tinha força o suficiente para reagir à máquina repressiva do Estado que antes dominara. Também percebeu a necessidade de articulações amplas para enfrentar governo não eleito - era o caso - ou eleito. Mesmo revoluções e quarteladas dependiam de negociações.

Os mais próximos do ex-presidente foram rendidos ou fugiram. Sozinho, ele começou a passar uma noite em cada fazenda, na tentativa de escapar.

Passados alguns dias, o governo enviou a Viçosa uma equipe de investigadores para caçar o ex-presidente. Os agentes chegaram a uma fazenda de um bernardista radical. Pressionados, o fazendeiro e seus filhos contaram que Bernardes dormira na casa e, pela manhã, seguira no rumo de uma choupana na mata, depois do canavial.

Os agentes encontraram um homem pálido, exausto, com roupas rasgadas e um revólver Colt na cintura. Artur Bernardes não reagiu à prisão, mas pediu que não fosse levado escoltado a Belo Horizonte e pudesse passar três dias em Viçosa. Ao fazer um terceiro pedido, ouviu que não era mais uma “autoridade maior”. Ali, era apenas um chefe miliciano. Também foi embarcado num trem para o Rio, onde amargou a prisão na Ilha das Cobras, local onde havia trancafiado seus adversários. Finalmente foi mandado para o exílio em Portugal, para alívio de muitos bernardistas. Anos depois, retornou ao Brasil e moderou o discurso. Afinal, tinha filho disposto a disputar eleição.

Alguém poderá lembrar uma exceção: Getúlio Vargas comandou uma ditadura sangrenta, de 1937 a 1945. Após sofrer um golpe, se recolheu num primeiro momento em sua fazenda em São Borja, no Rio Grande do Sul, mas depois de quatro anos voltou ao Palácio do Catete, pelo voto. Não quis saber quem estava no governo nem de armas. Se preocupou apenas em fazer alianças políticas e discursos em defesa do bem-estar e da industrialização.

O líder trabalhista, porém, cairia mais tarde no canto da milícia. Em seu governo democrático, a partir de 1951, pôs capatazes de sua fazenda na sua segurança pessoal. Os homens se envolveram em denúncias de corrupção e, num atentado contra Carlos Lacerda, mataram o tenente Rubens Vaz, que acompanhava o jornalista. A guarda presidencial alimentou uma crise que resultou no fim do mandato e da vida do chefe. A tensão econômica e política era mais forte que a milícia.

Na História do Brasil, quem confundiu a força de uma legião de fiéis seguidores, armados ou dispostos a tudo, com o poder do Estado ou minimizou a negociação política se deu mal.

Leonencio Nossa, o autor deste artigo, é editor de materias especiais d'O Estado de S. Paulo, mestre em história e política, autor dos livros "As guerras da independencia do Brasil", "Roberto Marinho, o poder está no ar". Escreve aos sábados. Publicado originalmente em 08.07.23

Ligeiramente democrático

Com Bolsonaro inelegível e a terceira via em extinção, Lula parece cada vez mais empenhado em liderar a oposição a si mesmo

Maduro chega ao Palácio do Planalto e é recebido pelo presidente Lula (Brenno Carvalho/Agência O Globo)

Em 1985, ano da redemocratização, a banda O Espírito da Coisa fez sucesso com uma canção em que a personagem anunciava:

— Mamãe, eu acho que estou/Ligeiramente grávida.

Cinco anos antes, Kleiton e Kledir já tinham flexibilizado a virgindade:

— A mãe da moça me garantiu/É virgem, só que morou no Rio.

Fecundação, ruptura do hímen e — sabemos agora — democracia, tudo é relativo. Absoluto, só o 0 K (-273,16 °C) ou o desprezo do presidente Lula por sua história e pela inteligência de quem, por três vezes, o elegeu presidente.

Seu conceito de democracia anti-Denorex (que não parece, mas é) ou democracia feijoada (que tem tudo de porco, mas não é porco) veio para justificar o apoio à ditadura de Nicolás Maduro, que promove a maior tragédia humanitária da América do Sul. Isso enquanto metade do Brasil ainda respira aliviada por ter se livrado dos arroubos autoritários de Bolsonaro, e outra metade acha que agora é que a democracia corre mais riscos.

Estando Bolsonaro inelegível e a terceira via em via de extinção (só o Ibama na causa!), Lula parece cada vez mais empenhado em ser o líder da oposição a si mesmo. Com tanta coisa a fazer por aqui, atravessou o Equador para ir escorregar em casca de banana na Ucrânia. Em vez de criar um Ministério da Compliance e garantir que fraudes não voltem a prosperar, insiste que elas não ocorreram — seja nos estádios da Copa de 2014, seja na Petrobras (só falta dizer que a Odebrecht se dedicava à filantropia). E afirma ter orgulho de ser chamado de comunista (os camaradas Stálin, Mao, Pol Pot, Ceausescu, Hoxha e Fidel agradecem a deferência).

Lula não está sozinho no elogio da democracia líquida. A China (do massacre da Praça da Paz Celestial, da ocupação do Tibete, do controle da informação, da perseguição aos uigures) se diz uma “ditadura democrática do povo”. A Rússia de 1917 seria uma “ditadura democrática operário-camponesa”, segundo Lênin. A finada Alemanha Oriental (da Stasi, do muro) se chamava, oficialmente, República Democrática Alemã. A Coreia do Norte, propriedade privada da dinastia Kim, atende por República Popular Democrática da Coreia. No “Índice da democracia” da Economist, a República Democrática do Congo ocupa a 162ª posição entre 167 países (o Brasil, com sua “democracia imperfeita”, é o 51º).

Mas há momentos em que Lula dá uma folga à fantasia. É quando tuíta que, “se o Brasil tivesse continuado com o ritmo de crescimento que tínhamos quando deixei a Presidência, poderíamos ser a 4ª economia do mundo” (à frente, portanto, de Alemanha, Reino Unido, França, Índia e Itália). É a primeira vez que faz uma crítica tão direta a sua sucessora, hoje presidenta do Banco do Brics.

Se o conceito de democracia é relativo, por que não seria também o de ditadura? Será que Bolsonaro e seus “patriotas” não tinham em mente apenas uma pós-democracia, à sua maneira? Afinal, não lutavam contra a “ditadura da toga”, e seu maior bicho-papão não era a “ditadura do proletariado”?

Lula parece querer que acreditemos que a Venezuela esteja ligeiramente democrática. (Eleição fraudada não deixa de ser eleição, né?) E que o regime que tem em mente para o Brasil não seja o preconizado pelo Foro de São Paulo, mas democracia pura — só que morou em Caracas.

Eduardo Affonso, o autor deste artigo, é arquiteto e cronista. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 08.07.23

sexta-feira, 7 de julho de 2023

O que ainda pesa contra Bolsonaro na Justiça

Declarado inelegível pelo TSE, ex-presidente enfrenta acusações que envolvem desde incitação a um golpe de Estado a genocídio dos povos indígenas e apologia ao estupro.

Bolsonaro é alvo de 15 ações no TSE e cinco inquéritos que tramitam no STFFoto: Evaristo Sa/AFP

Após o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declarar Jair Bolsonaro inelegível por abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, o ex-presidente ainda enfrenta uma ampla lista de acusações em diferentes esferas judiciais, relacionadas a diversos supostos crimes atribuídos ao seu comportamento e decisões que tomou como chefe de Estado.

A seguir, a DW reuniu algumas das principais acusações e possíveis reveses judiciais que Bolsonaro pode enfrentar.

TCU pode aumentar inelegibilidade

Segundo a decisão do TSE na semana passada, o prazo de oito anos em que o ex-presidente ficará inelegível começa a contar a partir das eleições de 2022, o que significa que Bolsonaro só poderá voltar a disputar eleições em 2030. Há, no entanto, a possibilidade de que o Tribunal de Contas da União (TCU) estenda a inelegibilidade.

O Ministério Público encaminhou ao TCU uma representação pedindo que a Corte apure o dano causado aos cofres públicos pela reunião com embaixadores que motivou a condenação no TSE. No encontro, realizado em julho de 2022 no Palácio da Alvorada e transmitido na íntegra pela TV Brasil, que é pública, Bolsonaro fez uma série de acusações mentirosas e sem provas contra o sistema eleitoral brasileiro.

O subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, Lucas Rocha Furtado, pediu a apuração de "dano ao erário decorrente do abuso de poder político e do uso indevido dos meios de comunicação, especialmente por meio de canal público, por parte do ex-presidente da República Jair Bolsonaro, no contexto da decisão tomada pelo TSE quanto à inelegibilidade".

Em vez das eleições de 2022, uma eventual condenação pelo TCU determinaria como data de início da inelegibilidade o momento do fim da ação ou trânsito em julgado. Dependendo do momento da decisão, a inelegibilidade poderia ser estendida também para as eleições de 2030 e até para as de 2032.

Segundo a Folha de S.Paulo, nos bastidores do TCU é visto como improvável que o tribunal não condene o ex-presidente.

Outras 15 ações no TSE

No TSE, Bolsonaro é alvo de 15 ações além da que já foi julgada e que ainda podem resultar em consequências para o ex-presidente na esfera eleitoral.

Entre os temas a serem analisados pelo TSE está a concessão de benefícios sociais no contexto da eleição presidencial de 2022. Entre o primeiro e o segundo turno, o governo incluiu milhares de famílias no Auxílio Brasil e no auxílio gás, liberou empréstimo consignado para beneficiários do programa e criou financiamento com FGTS futuro, entre outras medidas.

O TSE também deve se debruçar sobre o suposto desvio de finalidade de eventos oficiais como a comemoração dos 200 anos da Independência, a viagem a Londres para o funeral da rainha Elizabeth 2ª e o discurso de Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU para obter vantagens eleitorais.

Há ainda, entre outras, ações relativas a supostos atos de campanha realizados por Bolsonaro em prédios públicos como o Palácio do Planalto. 

8 de Janeiro

Na esfera criminal, Bolsonaro foi incluído no rol de investigados em inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) que apura a responsabilidade pelos atos antidemocráticos do 8 de Janeiro. O inquérito 4.921, que apura a invasão das sedes dos Três Poderes, é considerado o que pode ter as consequências mais graves para o ex-presidente.

Bolsonaro entrou no rol de investigados a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). O pedido foi assinado por membros do Ministério Público Federal, e não pelo procurador-geral Augusto Aras, que foi nomeado ao cargo pelo ex-presidente.

Na visão do grupo de procuradores, Bolsonaro fez incitação pública à prática de crime ao postar vídeo no dia 10 de janeiro questionando a regularidade das eleições presidenciais de 2022. A postagem foi apagada no dia 11 de janeiro. Em depoimento prestado à Polícia Federal em abril, Bolsonaro alegou ter publicado o conteúdo por engano, quando estava sob efeito de medicamentos.

Para os procuradores, apesar de o vídeo ter sido postado depois dos atos golpistas, é preciso apurar a eventual conexão probatória com o ocorrido e investigar atos relacionados do ex-presidente antes do 8 de Janeiro.

Há uma série de outros inquéritos no STF para apurar as responsabilidades pelos ataques e atos de violência do 8 de Janeiro que podem eventualmente vir a abarcar condutas de Bolsonaro.

Milícias digitais, pandemia, interferência na PF

O ex-presidente ainda é alvo de cinco inquéritos que tramitam no Supremo, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes, que ainda não decidiu se os enviará à primeira instância. 

Além do inquérito sobre o 8 de Janeiro, Bolsonaro é investigado em inquéritos do STF que apuram vazamento de dados de investigação sigilosa da PF sobre ataque cibernético ao Tribunal Superior Eleitoral, associação falsa entre a vacina contra a covid-19 e o risco de contrair o vírus da aids, tentativa de interferência indevida na PF e vínculo com organizações para difusão de fake news sobre o processo eleitoral (milícias digitais e atos antidemocráticos).

No âmbito do inquérito das milícias digitais, o STF autorizou a PF a investigar a introdução de dados falsos de vacinação em sistemas do Ministério da Saúde para gerar comprovantes falsos de imunização para Bolsonaro, sua filha Laura e para seu ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid Barbosa. De acordo com o jornal O Globo, a investigação, que pode implicar Bolsonaro, tramita de forma sigilosa e ainda não foi formalizada como inquérito.

A gestão do ex-presidente durante a pandemia também pode vir a ser objeto de condenações. Ele pode ser investigado no âmbito da Justiça Federal (sem prerrogativa de foro) pelos crimes referentes a omissão, emprego irregular de verbas orçamentárias e charlatanismo no combate à pandemia de covid-19, conforme apontou o relatório final da CPI da Pandemia.

Apologia ao estupro

Como Bolsonaro não tem mais foro privilegiado, o ministro Dias Toffoli, do STF, encaminhou em junho deste ano para instâncias judiciais inferiores duas ações em que o ex-presidente é réu desde 2016. Trata-se dos processos por apologia ao estupro e injúria contra a deputada Maria do Rosário (PT-RS), a qual Bolsonaro disse que não merecia ser estuprada por ser "muito feia".


A tramitação das duas ações havia sido interrompida durante o mandato presidencial. O crime de incitação prevê de três a seis meses e o de injúria de um a seis meses de detenção.

Joias sauditas

Desde março deste ano, a Polícia Federal (PF) investiga se houve crime no caso envolvendo joias recebidas pelo então presidente Bolsonaro da Arábia Saudita. Seu governo teria tentado trazer ao Brasil de forma ilegal joias inicialmente avaliadas em cerca de R$ 16,5 milhões - valor que foi posteriormente corrigido pela própria Receita Federal para R$ 5 milhões.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, pediu à PF que o caso fosse investigado, afirmando que os fatos revelados pela imprensa "podem configurar crimes contra a administração pública".

Sete de Setembro, vacina sem licitação

No início deste ano, a ministra Cármen Lúcia, do STF, determinou o envio de oito pedidos de investigação contra Bolsonaro para serem avaliados pela primeira instância do Judiciário. A maioria diz respeito à atuação o ex-presidente no ato em 7 de setembro de 2022 no qual ele repetiu sua retórica antidemocrática e afirmou que não acataria decisões do STF.

Os ministros Edson Fachin e Luiz Fux também enviaram outros dois pedidos de investigação de Bolsonaro à primeira instância. Um é uma queixa-crime do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), por difamação – Bolsonaro disse que o parlamentar negociou compras de vacina sem licitação. Outro é uma queixa-crime da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) contra Bolsonaro, por injúria, e diz respeito aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.

Genocídio indígena

A eventual responsabilidade de Bolsonaro e de ações de seu governo pela tragédia yanomami também está sob apuração. A pedido do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, a Procuradoria-Geral da República, o Ministério Público Militar, o Ministério da Justiça e a Polícia Federal (PF) apuram se agentes do governo Bolsonaro e o então presidente teriam praticado crimes de genocídio e delitos ambientais que colocaram sob ameaça a vida, saúde a segurança diversas comunidades de povos originários.

Na petição 9.585, que tramita em sigilo no STF, Barroso determinou que sejam coletados documentos relacionados ao quadro de "absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos, bem como a ocorrência de ação ou omissão, parcial ou total, por parte de autoridades federais, agravando tal situação", e que possam apontar eventual conivência do governo federal com o garimpo ilegal em áreas indígenas.

Denúncias em Haia

No total, tramitam no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, seis denúncias contra Bolsonaro. A primeira foi protocolada em novembro de 2019, pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, por "crimes contra a humanidade" e "incitação ao genocídio dos povos indígenas". O coletivo lista 33 medidas adotadas na administração Bolsonaro que teriam facilitado o genocídio de indígenas.

A segunda denúncia é de abril de 2020, apresentada ao TPI pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, que busca responsabilizar Bolsonaro por "atitudes absolutamente irresponsáveis” na gestão da pandemia de covid-19 e pede que ele seja enquadrado em crime contra a humanidade por expor a vida de cidadãos brasileiros.

Também em 2020, o PDT apresentou outra denúncia contra Bolsonaro ao TPI, acusando-o de crime contra humanidade por contrariar determinações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotar uma postura negacionista que agravou a curva de óbitos e infectados no país.

A quarta denúncia também aborda o genocídio indígena e foi apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O governo Bolsonaro é acusado de tomar ações deliberadas para exterminar etnias indígenas, com aval ao garimpo ilegal e total negligência à saúde indígena.

Até o Movimento Brasil Livre, cujos integrantes chegaram a apoiar Bolsonaro, recorreu a Haia no final de 2021, pedindo que ele seja julgado pelo crime de genocídio por causa das ações na pandemia. Essa foi a quinta denúncia.

A última delas foi protocolada em maio passado, por entidades internacionais – Deutsche Umwelthilfe, Avaaz, Bourdon & Associates e AllRise –, que aponta uma suposta responsabilidade de Bolsonaro pelo aumento do desmatamento na Amazônia, elevação da emissão de CO2 no planeta e do número de incêndios na floresta.

O TPI atua em casos relacionados a quatro crimes: genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade (crimes ocorridos contra a população civil num contexto sistemático) e crime de agressão (o ato de usar a força armada contra outro Estado). Mas é um tribunal subsidiário, que atua somente caso as instituições nacionais não julguem potenciais acusações sobre esses crimes.

lf (DW, ots)

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 05.07.23