quinta-feira, 6 de julho de 2023

Agora Bolsonaro tem que ir para a cadeia

Para o Brasil se curar de anos de ódio, a suspensão de oito anos deve ser apenas a primeira punição para o ex-presidente

Jair Bolosnaro, ao desembarcar no aeroporto de Brasília no dia 30 de junho. (Associated Press / Lapresse)

Só um país tão carente de justiça como o Brasil pode comemorar que Jair Bolsonaro está incapacitado até 2030 . O ex-presidente foi condenado na última sexta-feira por ter atacado o sistema eleitoral brasileiro em reunião com embaixadores estrangeiros em julho de 2022, quando buscava se perpetuar no poder. É pouco para um extremista de direita que, nos quatro anos em que governou o Brasil, executou um plano para disseminar o vírus da covid-19 e obter a “imunidade de rebanho” que, segundo epidemiologistas, foi responsável pela maior parte das infecções .mais de 700.000 mortes.Entre 2019 e 2022, Bolsonaro atacou vacinas, incentivou a invasão criminosa de terras indígenas, acelerou a destruição da Amazônia, lançou ataques contra instituições, tentou destruir a credibilidade das urnas eletrônicas e incentivou golpes de estado. Ficar oito anos fora da disputa eleitoral é pouco, muito pouco, para tantos crimes. Mas Bolsonaro é um monstro humano, fruto da impunidade, e para as instituições da democracia que tanto minou puni-lo por seus atos pela primeira vez é um marco histórico.

Bolsonaro começou sua carreira criminosa planejando explodir bombas em quartéis em 1987, como medida para pressionar por melhores salários para a força. A Justiça Militar o absolveu em processo vergonhoso, mas ele teve que deixar as Forças Armadas e iniciou a carreira de político profissional: passou quase três décadas como parlamentar defendendo os assassinatos cometidos pela ditadura empresarial-militar (1964-1985). e atacando negros, indígenas, mulheres e LGBT, até chegar à presidência. O capitão reformado tornou-se a síntese de um país em que agentes do Estado sequestraram, torturaram e assassinaram centenas de civis e mais de 8.000 indígenas e nunca foram punidos, ao contrário do que aconteceu em países vizinhos como a Argentina, que conseguiu colocar os generais em prisão e restaurar a dignidade da nação. Bolsonaro sempre acreditou que poderia dizer e fazer qualquer coisa e que nada lhe aconteceria. Ele acreditou porque era verdade. Até o histórico dia 30 de junho de 2023, quando foi punido pela primeira vez.

Agora o Brasil é governado pela terceira vez por Luiz Inácio Lula da Silva,mas a marca dos crimes de Bolsonaro é carregada por todos os brasileiros. Hoje somos um país de gente mais triste, de gente de luto, de gente com mais vontade de matar. Qualquer pretexto serve para que surtos de violência ocorram nas ruas, no trânsito, em espaços públicos. Os brasileiros não viveram uma pandemia como o resto do mundo, mas sim uma pandemia em que o presidente usou a máquina estatal para fazer o vírus matar mais rápido. Ninguém passa quatro anos refém de um tarado sem ser transformado pela experiência da submissão. Hoje os brasileiros odeiam os brasileiros, ódio é o ar que se respira no Brasil. Bolsonaro pode ter perdido as eleições e agora – temporariamente – o direito de concorrer novamente. Mas seu projeto de ódio continua ativo, por isso, mesmo perdendo as eleições, ele ganhou.

O que vai determinar a derrota do que ele representa e que vai muito além do indivíduo Bolsonaro é quanta justiça a democracia brasileira conseguirá. Se esta for a única punição para um criminoso de Estado, o Brasil assassino, racista, xenófobo, misógino, homofóbico, anti-indígena e negador do clima ficará ainda mais forte. Se esta for apenas a primeira e mais branda sanção, com muitas outras a seguir, o Brasil terá uma chance de se reconstruir. Colocar Bolsonaro na cadeia por genocídio tem que se tornar o objetivo de todo brasileiro que ainda consegue manter alguma sanidade em um país profundamente enojado pelo exercício do ódio.

Eliane Brum, a autora deste artigo é jornalista. Publicado originalmente no El País, em 05.07.23

'Posição de Lula sobre Venezuela é inadmissível a esta altura do jogo’, diz María Corina Machado, líder opositora inabilitada, ao GLOBO

Líder opositora inabilitada para ocupar cargos públicos por 15 anos afirma que o Brasil pode contribuir para uma transição pacífica na Venezuela, 'mas não botando panos quentes'


María Corina Machado, em Mérida, na Venezuela / Divulgação

Por Janaína Figueiredo — Buenos Aires

Um dia depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter evitado comentar sua inabilitação na semana passada na Venezuela, a líder opositora María Corina Machado, em campanha para se tornar candidata nas eleições presidenciais de 2024 (as primárias são em 22 de outubro deste ano), assegurou ao GLOBO que a atitude do presidente brasileiro prejudica a credibilidade do Brasil para eventualmente atuar como facilitador no processo de negociação entre Maduro e a oposição.

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María Corina foi inabilitada por 15 anos por supostas irregularidades durante seu mandato como deputada e já anunciou que apelará da decisão dentro e fora do país. Ela já recebeu o apoio dos EUA, Reino Unido, Canadá, Chile, União Europeia e mais de 30 ex-presidentes da região.

– Pediria [a Lula] que acompanhe as primárias como um exercício pacífico de canalização das tensões que existem na Venezuela… caso contrário, sua tentativa de ser relevante neste processo será um fracasso monumental – frisou María Corina.

Veja abaixo os principais trechos da entrevista concedida com exclusividade ao GLOBO:

A senhora esperava o apoio contundente dos presidentes do Paraguai e Uruguai no âmbito de uma cúpula de presidentes do Mercosul? Que reação espera, agora, do Brasil de Lula?

Não me surpreendeu porque, tanto Mario Abdo Benítez quanto Luis Lacalle Pou, foram consequentes defensores da democracia na região, em particular da luta pela liberdade da Venezuela. Ambas declarações tiveram enorme impacto internacional e também dentro da Venezuela. Acho que confirma que essa suposta inabilitação contra mim, que é absolutamente inconstitucional, absurda e que viola todas as leis de meu país, foi um grande erro do chavismo e de Maduro. O desespero não é bom conselheiro, e o que estamos vendo é um efeito bumerangue. Agora as primárias [da oposição] são um clamor e um desafio ao regime. As pessoas dizem 'eu habilito Maria Corina com meu voto'. Pessoas que tinham dúvidas sobre participar, agora estão decididas. Virou épica. Na comunidade internacional, a reação foi incrível. Houve um pronunciamento do Parlamento europeu, Nações Unidas, Canadá, Estados Unidos, França, União Europeia, várias chancelarias, o presidente Gustavo Petro da Colômbia, mais de 30 ex-presidentes. Gerou-se uma onda expansiva, que continua crescendo.

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Lula é o único presidente de peso da região que não se pronunciou?

Sim. Lula foi insistente em seu desejo de acompanhar um processo de transição democrática por meio de eleições limpas, transparentes e competitivas em 2024, mas na cúpula do Mercosul disse que não estava devidamente informado, imagino que a esta altura já o estará. Dada sua proximidade e amizade com Maduro, para os venezuelanos e para todos os democratas do mundo, deve ficar clara qual é a posição de Lula sobre essa aberração que cometeu Maduro.

O que a senhora sente quando o presidente brasileiro fala em narrativas, em não isolar Maduro ou em que o conceito de democracia é relativo, quando é perguntado sobre Venezuela?

Me preocupa muito, não apenas pela Venezuela. A influência do Brasil na região e fora dela é indiscutível. Mas também me preocupa pelo Brasil, porque não pode existir uma visão de dois pesos duas medidas. Ou seja, o que não aceitariam para o Brasil, não podem pretender impor à Venezuela. Sejam por razões de afinidade ideológica ou projetos em comum, a posição de Lula é inadmissível a esta altura do jogo, com 25% da sociedade venezuelana espalhados pelo mundo, milhares no Brasil; com uma investigação sobre crimes de lesa-Humanidade avançando no Tribunal Penal Internacional; quando existem acusações bem documentadas na Justiça internacional sobre corrupção, narcotráfico, lavagem de dólares e financiamento do terrorismo; Maduro é tóxico. Acho que o governo brasileiro pode contribuir de maneira significativa para uma transição pacífica na Venezuela, mas não botando panos quentes e justificando os crimes de Maduro. Assim, o Brasil perde autoridade moral frente aos demais atores democráticos para se tornar um interlocutor confiável. Não pode demonstrar esse nível de suposta ignorância.

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O governo Lula diz que quer contribuir para que a Venezuela tenha eleições competitivas em 2024. Sua inabilitação mostra que isso é pouco provável? A pressão da comunidade internacional é chave?

Efetivamente, o chavismo não está disposto hoje a fazer concessões substantivas. O governo percebeu que está emergindo um movimento popular, que vamos ganhar as primárias e que as primárias despertaram entusiasmo e esperança, inclusive nas bases do chavismo. Uma das coisas que mais me impactaram nos últimos tempos, em comícios com milhares de pessoas, é a presença de muitas pessoas vinculadas ao chavismo. Pessoas que recebem bonos, caixas de comida, que estão desencantadas. Os mecanismos de controle social se diluíram, e as pessoas me dizem que não funcionam mais com base a ameaças. São pessoas que já perderam tudo, cujos filhos saíram do país. Isso é muito poderoso, e o regime sabe e não está disposto a ceder em coisas que poderiam levá-los a perder o poder, por exemplo, disputar uma eleição comigo. O paradoxo é que, agora, ninguém na comunidade internacional poderá atuar com ingenuidade.

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Faltam 18 meses, e isso na Venezuela é uma eternidade. Sexta-feira passada anunciaram minha suposta inabilitação e hoje temos outro país. O erro cometido foi bom para a reorganização da estratégia da oposição sobre a comunidade internacional, incluindo o Brasil, para conseguir esse processo competitivo.

A senhora está conversando com lideranças políticas da região?

Sim, claro que sim, mas não posso revelar nomes.

Está prevista uma conversa virtual com senadores brasileiros, convocada pelo senador Sergio Moro. A senhora tem interesse em conversar com representes do Executivo?

Certamente, gostaria de poder explicar pessoalmente ao presidente Lula o que está acontecendo em meu país, e minha situação. Nenhum representante do governo brasileiro se comunicou comigo. Tivemos pronunciamentos dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Chile, Colômbia. Um pronunciamento do Brasil favoreceria uma eventual posição do governo de Lula como facilitador de um processo na Venezuela. O fato de o Brasil não se pronunciar afeta a confiança de setores no país.

Se a senhora encontrasse com Lula, o que diria ao presidente brasileiro?

Diria a Lula que, se quer que uma de suas conquistas de seu terceiro governo seja contribuir para superar o enorme conflito que existe na Venezuela, e facilitar uma reinstitucionalização democrática, deve entender que este é o momento de atuar. Lula deve entender que o regime cometeu um grave erro, deve dizer isso a Maduro. Pediria que acompanhe as primárias como exercício pacífico de canalização das tensões que existem na Venezuela. Assim se fortaleceria como interlocutor, com Maduro e com a sociedade venezuelana. Caso contrário, acho que sua tentativa de ser relevante neste processo será um fracasso monumental.

A senhora não participou de nenhuma negociação com o regime, nem do autoproclamado governo interino de Juan Guaidó. Por que agora diz que negociaria com Maduro?

Nosso fim é uma transição democrática. Houve momentos em que os protestos e denúncias eram mais eficientes. Nunca estive contra a negociação per se, mas sim contra negociações para manter um status quo. A falha esteve em não entender que não existiam incentivos reais para que o regime fizesse concessões. Essas negociações botaram panos quentes [na situação de autoritarismo] e deram tempo a Maduro. Agora estamos num cenário inédito, porque o regime tem uma enorme fraqueza em suas bases. Já roubaram tudo, agora temos enfrentamentos entre grupos mafiosos, e surgem riscos. Depois de todos os golpes e frustrações, temos aprendizados. Ir a uma negociação depois das primárias, com o respaldo do povo, é nossa oportunidade. Os que hoje estão na negociação não representam ninguém. Sobre o governo de Guaidó, o respaldei no começo, mas nunca fui parte dele e considero que foram cometidos erros, sobretudo de liderança.

Por que os venezuelanos deveriam acreditar que agora será diferente e a oposição conseguirá alcançar seus objetivos e, sobretudo, estar unida?

Tivemos um aprendizado brutal, de conquistas, fracassos e traições. Para muitos, esta é nossa última oportunidade. As pessoas me dizem que mais seis anos e vão morrer. Os jovens me dizem que não querem ir embora do país. Sobre a união da oposição, tivemos diferentes momentos. Quando tivemos um caminho genuíno, estivemos unidos. Mas houve grandes decepções. Por outro lado, esses tipos de regimes não têm escrúpulos, penetram, cooptam e destroem pessoas boas. Nós queremos unir a sociedade, não as cúpulas dos partidos. O chavismo buscou nos dividir, e a derrocada chavista voltou a nos unir. Até o Partido Comunista se pronunciou contra minha inabilitação. Esta é uma luta entre o bem e o mal. Temos de abrir os braços e reconhecer que todos erramos.

Publicado originalmente n'O Globo, em 05/07/2023 16h38  Atualizado 05/07/2023

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Os limites do Judiciário

Os chamados litígios estruturais podem e devem, sim, ser ajuizados, desde que neles se encontrem justos limites

Pode o Poder Judiciário alterar ou impor políticas públicas no País?

Por meio dos chamados litígios estruturais, essa questão já tem sido enfrentada pelos tribunais. O objetivo desses processos é obter uma reforma estrutural num ente ou instituição para restabelecer um direito fundamental e implantar ou corrigir uma política pública, como nos litígios decorrentes de grandes danos ecológicos (por exemplo, o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais).

De um lado, os reparos ambientais de enorme vulto e extrema complexidade desafiam as regras do processo civil tradicional, mas, de outro lado, despertam a dúvida: como poderia o Judiciário impor ao Estado providências fora das políticas públicas em vigor ou, mais ainda, fora dos limites orçamentários?

Pode ou não o juiz se imiscuir nessas questões? Investido para aplicar a Constituição e as leis, o juiz tem ou não legitimidade para criar ou alterar, do jeito que bem queira, as políticas públicas do País?

Os chamados litígios estruturais podem e devem, sim, ser ajuizados, desde que neles se encontrem justos limites, pois não cabe ao Judiciário administrar no lugar do administrador nem legislar no lugar do legislador. Identificando-se omissão ou desvio do ente público em tema de direitos fundamentais de caráter social, admite-se seja determinada a correção ou a implantação de políticas públicas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem exigido três requisitos para viabilizar a incursão judicial no campo dos litígios estruturais (RE n.º 440.028-SP):

a política pública reclamada deve ter natureza constitucional;

é necessária correlação entre a política pública reclamada e os direitos fundamentais; e

deve-se provar a omissão ou a prestação deficiente pela administração pública sem justificativa razoável.

Embora se devam flexibilizar os rigores processuais nos litígios estruturais e valorizar soluções consensuais com a participação das comunidades lesadas, em primeiro lugar o juiz tem de ater-se ao que foi pedido pelas partes, não podendo decidir fora daí.

Além disso, é preciso dizer que, por piores que sejam os membros do Poder Executivo e do Poder Legislativo – e muitas vezes o são –, o povo, titular da soberania, pode questionar suas políticas públicas e pô-los na rua de quatro em quatro anos. Mas, no tocante aos juízes, tudo o que se faça contra eles ou suas decisões depende deles mesmos. Por isso, o impeachment de membros do Judiciário é mais teoria do que prática, e, por sua vez, o controle do Conselho Nacional de Justiça tem caráter apenas administrativo, e não jurisdicional.

Não podemos deixar de impor limites à atuação do Judiciário, pois é o Poder menos democrático e menos sujeito a controle que temos, e já tem dado mostras de que, quando quer desviar-se, desvia-se sem emenda, como nossa maior Corte quando julga fora dos limites de sua competência constitucional.

É possível usar o processo estrutural para questionar políticas públicas, sim, mas com cuidados e limites, pois não se pode dar carta branca ao Judiciário, haja vista que, num suposto papel proativo, ele já vem tomando liberdades inaceitáveis, como no inquérito das fake news, que corre há anos, de ofício e sob sigilo (inquérito n.º 4.781/19-STF); está investigando diretamente, processando e mandando prender mesmo pessoas não sujeitas a foro constitucional por prerrogativa de função; está admitindo acordos de colaboração premiada tomados por órgãos outros que não o titular privativo da ação penal pública; está cassando decisão de indulto que a Constituição pôs na competência exclusiva do chefe do Executivo; fora dos casos autorizados pela Constituição, está criando normas abstratas que são verdadeiras leis materiais. Viola-se, assim, a separação de Poderes, descura-se a investidura democrática e põe-se a perder a imparcialidade dos magistrados e a segurança do sistema.

Em nosso sistema republicano, em tese todos os Poderes deveriam controlar-se reciprocamente, mas na prática o Judiciário controla os demais e não é por eles efetivamente controlado, pois, embora em teoria possível, jamais tivemos impeachment de magistrados do mais alto tribunal.

Não basta dizer que o processo estrutural é realidade com a qual temos de conviver e, com isso, tacitamente aceitar que o Judiciário faça o que bem queira, impondo ou alterando políticas públicas a seu talante. Não se trata apenas de questão acadêmica discutir a separação de Poderes. Basta ver as sucessivas decisões judiciais que invadem o campo da discricionariedade administrativa – e aqui, por óbvio, não estou falando das legítimas decisões que cassam atos administrativos ilegais. Estou falando, sim, do erro em substituir o juízo de conveniência do administrador pelo do juiz, em matérias que a Constituição e as leis deram discricionariedade ao administrador, que foi eleito para tomar essas decisões.

Não podemos aceitar um Judiciário como Poder deslegitimado e incontrolável, o que não se coaduna com os princípios democráticos e republicanos.

Hugo Nigro Mazzilli, o autor deste artigo, é advogado. Publicado originalmente, como colunista convidado, n'O Estado de S. Paulo, em 05.07.23

TSE cassa o ‘HC de Lula’, que agora será julgado pelo que fala e faz

Presidente não tem mais o conforto de ver Bolsonaro no seu retrovisor após seu adversário ficar inelegível por 8 anos


Lula recebeu o ditador Nicolás Maduro em Brasília, no dia 29 de maio; um mês depois, petista diz que conceito de democracia é relativo Foto: Wilton Junior/Estadão

O cientista político Francisco Weffort dizia que a democracia era o seu sonho, a sua ilusão, mas que ela tinha algo de realidade. “Não é pura loucura da minha parte.” O Brasil vivia os anos de Jair Bolsonaro na Presidência. Weffort, que ajudara a fundar o PT e depois se distanciara do partido, via na democracia uma espécie de destino. Mas sabia que ela era frágil. “Moralistas políticos têm tratado disso. O problema não é quem faz o mal, mas a preguiça de quem faz o bem e não se mexe.”

Luiz Inácio Lula da Silva devia ler a obra do ex-companheiro. E prestar atenção ao espírito do tempo. Ele muda. E, às vezes, na velocidade com que um ex-presidente é condenado por uma Corte de Justiça. Na semana passada, foi a vez de Bolsonaro, o homem que acusavam de conspirar contra a democracia. O político que ia dar um jeito no STF, que tinha muita saliva – mas se revelou sem pólvora – tornou-se inelegível. E, assim, o fantasma que rondava o Planalto já não assusta mais.

Lula recebeu o ditador Nicolás Maduro em Brasília, no dia 29 de maio; um mês depois, petista diz que conceito de democracia é relativo

Lula recebeu o ditador Nicolás Maduro em Brasília, no dia 29 de maio; um mês depois, petista diz que conceito de democracia é relativo Foto: Wilton Junior/Estadão

Lula, que deixou o cárcere após a reviravolta de seu caso no Supremo, era, para muitos personagens da República, a opção viável para conter o capitão que contaminara as Forças Armadas de tal forma que o País chegou a assistir a um desfile de carros de combate no dia da rejeição da PEC do voto impresso. Até agora, muitos não indagavam quais seriam os arcana imperii de Lula ou quem seria o seu coronel Cid. Com Bolsonaro condenado pelo TSE, isso mudou.

Quando comparou o ditador Daniel Ortega a Angela Merkel, em 2021, Lula passou vergonha, mas não despertou as mesmas reações públicas de repúdio como agora, ao dizer que o conceito de democracia era relativo, ao tratar das eleições na Venezuela.

Exemplo disso foi a manifestação do ministro do STF Gilmar Mendes, figura importante na reviravolta da vida de Lula. Gilmar mantivera o silêncio em sua conta no Twitter não só sobre o episódio de 2021, mas também quando o petista equiparara o papel da Ucrânia ao da Rússia no conflito europeu, igualando a vítima ao seu agressor.

Já no dia 2, após Lula negar à democracia o valor universal, que faz dela um fundamento ético da ação na esfera pública, o ministro reagiu: “A Constituição de 1988 exige que não sejamos tolerantes com aqueles que pregam a sua destruição; e também demanda que não seja tripudiada a memória daqueles que morreram lutando pela democracia de hoje”.

Em tempos de democracia vigilante – como defendia Weffort – e militante, Lula deve estar atento à manifestação de Gilmar. Ela tem muitos significados. E um deles é este: o petista será julgado, a partir de agora, pelo que fala e faz. Não tem mais o conforto de ver Bolsonaro no retrovisor: seu HC foi cassado.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é colunista d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 04.07.23

04/07/2023 | 21h00

O eleitor não é um ‘bom juiz’ de governantes

Um presidencialismo multipartidário funcional requer uma Justiça forte

‘Eleitor, de fato, faz um julgamento: mas é um julgamento fundamentalmente político’; ex-presidente Jair Bolsonaro está inelegível por 8 anos Foto: WILTON JUNIOR

Após a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro pelo crime eleitoral de “prática ilegal de abuso de poder político” e torná-lo inelegível por oito anos, levantaram-se dúvidas sobre quem de fato deveria tomar essa decisão.

Foi alegado que, em vez do TSE, seria mais apropriado que o eleitor fosse o “juiz” do ex-presidente. Afinal de contas, em uma democracia o “verdadeiro soberano” é o eleitor e não o Judiciário.

O próprio presidente Lula, quando estava sendo julgado pelos crimes de “corrupção passiva e lavagem de dinheiro” na operação Lava Jato pelo ex-juiz e agora senador Sérgio Moro, disse: “Eu não quero ser apenas julgado pela Justiça. Quero antes ser julgado pelo povo brasileiro”.

‘Eleitor, de fato, faz um julgamento: mas é um julgamento fundamentalmente político’; ex-presidente Jair Bolsonaro está inelegível por 8 anos

O eleitor, entretanto, não é juiz criminal nem tampouco de ilícitos eleitorais. Assim como a reeleição de um governante supostamente criminoso não pode ser interpretada como uma absolvição dos seus crimes, sua eventual derrota eleitoral também não pode ser interpretada como uma condenação. Concretamente, assim como a eleição do presidente Lula em 2022 não foi uma absolvição do eleitor pelos seus crimes pregressos, a derrota do ex-presidente Bolsonaro não foi uma condenação pelos seus crimes de ameaças às instituições democráticas.

O eleitor, de fato, faz um julgamento; mas é um julgamento fundamentalmente político e retrospectivo da performance do governante. Se avalia positivamente seu governo, tende a reelegê-lo ou a eleger quem ele indica para ser seu sucessor. Por outro lado, se faz uma avaliação negativa da sua performance, o eleitor tende a considerar alternativas.

É natural que informações, evidências e processos criminais possam influenciar na avaliação que o eleitor faz da performance do governante e, consequentemente, interfiram na sua decisão de voto. Por exemplo, em artigo em colaboração com Marcus Melo e Carlos Maurício Figueiredo, mostramos que decisões de Tribunais de Contas Estaduais (TCEs) no sentido de rejeitar as contas de prefeituras de cidades brasileiras em ano eleitoral diminuem as chances de reeleição de seus prefeitos em cerca de 19%.

Entretanto, em artigo complementar com Marcus Melo, mostramos que quando controlamos pelo gasto da prefeitura em políticas públicas, o impacto negativo da decisão do TCE de rejeitar as constas da prefeitura na reeleição do prefeito simplesmente desaparece. Ou seja, embora eleitores sejam capazes de responsabilizar governantes por eventuais maus comportamentos, esses resultados sugerem que nem sempre o fazem ao ponto de puni-los eleitoralmente.

Além da oferta de políticas públicas, vários outros aspectos interferem no cálculo que o eleitor faz na sua decisão de voto que podem atenuar o impacto de maus comportamentos de governantes e/ou aumentar a tolerância do eleitor a comportamentos desviantes. Não raro, mesmo eleitores informados podem preferir “absolver” eleitoralmente um mau governante por afinidades ideológicas, identidades partidárias e/ou conexões afetivas com seu líder.

Daí porque democracias competitivas, especialmente com um presidente constitucionalmente poderoso, como é o caso do brasileiro, não podem prescindir de um sistema de justiça forte e independente capaz de impor perdas judiciais e eleitorais a governantes que venham a apresentar comportamentos desviantes. Ainda que o Judiciário possa agir motivado politicamente, de forma excessiva e/ou hiperbólica, vale a pena correr esse risco do que deixar esse julgamento a cargo do eleitor.

Carlos Pereira, o autor deste artigo, é cientista politico. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.07.23

terça-feira, 4 de julho de 2023

A distância segura entre juiz e seus parentes

Ação de associação de magistrados contra lei que tira juiz de casos cuja parte seja defendida por escritório de parente seu serve só aos interesses desses advogados; cabe ao STF rejeitá-la

O Supremo Tribunal Federal (STF) começou há alguns dias a julgar uma ação que pode liberar magistrados de todo o País para julgar casos em que as partes sejam clientes de escritórios de cônjuges, parceiros e parentes. A ação, movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pede que seja derrubado um trecho do Código de Processo Civil (CPC) que prevê impedimento nesses casos.

É peculiar que a AMB se insurja contra uma regra que protege a imparcialidade do juiz. Com a ação, essa entidade não está defendendo os juízes, e sim os interesses dos advogados que são parentes de juízes, de desembargadores e de ministros. Tudo isso em detrimento da autoridade e da isenção da magistratura.

O julgamento da ação da AMB foi suspenso por um pedido de vista do ministro Luiz Fux. Até o momento, há dois votos pela constitucionalidade do impedimento e um contrário. Segundo o ministro Gilmar Mendes, que votou pela procedência da ação, a imparcialidade do juiz já estaria resguardada por outras hipóteses de impedimento.

Não há como deixar de notar que, toda vez que o Congresso coloca de fato o dedo na ferida – no caso, identificando a causa da falta de isenção da magistratura e definindo um remédio para o problema –, surge a reação dizendo que a norma é desnecessária ou repetitiva. Na verdade, a ação da AMB só desvela o grande acerto da regra do CPC.

O CPC (Lei 13.105, de 2015) regulamenta o processo judicial civil e estabelece as regras de competência, os deveres de cada parte no processo, os procedimentos para a produção de provas e também as hipóteses de impedimento e de suspeição dos juízes. Sobre esse último tópico, o Congresso determinou que o juiz está impedido de julgar um processo “em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório” (art. 144, VIII).

Foi um avanço importante, que veio proteger a imparcialidade do juiz. Não é uma regra contra os magistrados nem faz uma presunção negativa sobre a atividade jurisdicional. Trata-se apenas do reconhecimento elementar de que, para preservar a isenção do juiz, ele não deve julgar uma causa cuja parte seja defendida por escritório de algum parente seu.

A rigor, mais do que uma completa inovação, a nova hipótese de impedimento é a concretização de um ponto fundamental do Estado Democrático de Direito: a Justiça deve ser imparcial. A Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, estabelece que “toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei”.

A Constituição de 1988 também protege a imparcialidade do magistrado, por exemplo, ao prever o princípio do juiz natural, ao proibir tribunais de exceção e ao fixar vedações aos magistrados – atividades que, se exercidas por um juiz, diminuiriam sua isenção. E, como estabelece a Lei 13.105/2015, “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição”. Não podia ser diferente. De que serviria um conjunto sofisticado de regras sobre o processo, se a Constituição não fosse respeitada? Se o juiz da causa estivesse numa situação de maior proximidade com alguma das partes?

Tudo isso é cristalino, mas não para a AMB. Na opinião da associação dos magistrados, seria impossível cumprir a norma, o que feriria o princípio da proporcionalidade. Eis aí como se expressa agora a resistência contra melhorias promovidas pelo Congresso. Sem argumentos e sem provas, alega-se que não é possível implementar a norma aprovada. A mesma tática tem sido usada contra a figura do juiz de garantias.

Dito tudo isso, é preciso também respeitar as competências. Cabe ao Congresso, e não ao STF, legislar sobre as hipóteses de impedimento.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 04.07.23

segunda-feira, 3 de julho de 2023

A coisa pública

A busca incessante pelos favores do erário reflete a fraqueza das nossas instituições republicanas, ainda mais seus agricultores. A conta, no final, fica com o contribuinte. Mas não é só isso.

O IBGE divulgou recentemente o desempenho do PIB no primeiro trimestre de 2023. O grande destaque foi a agropecuária, que cresceu nada menos que 18,8% em relação ao mesmo período do ano passado. Os mais entusiasmados (e menos afeitos à matemática) dizem que o setor carrega a economia brasileira nas costas. Não é assim, mas não deixa de ser um crescimento exuberante. A estimativa é de uma safra de 305 milhões de toneladas, 16% maior que em 2022.

Na semana passada, o presidente Lula anunciou em grande estilo o financiamento do Plano Safra 2023/2024. Serão R$ 364,2 bilhões apenas para médios e grandes produtores, 27% a mais que no ano passado. Mais de R$ 100 bilhões serão oferecidos a taxas de juros subsidiadas, que podem chegar a 7% ao ano. Sim, o Tesouro arca com benefícios para que a agricultura pague juros mais baixos. Prevê-se um custo de R$ 5,1 bilhões apenas para a agricultura empresarial. O setor pedia muito mais. É preciso? Talvez não, mas o setor alega que outros países subsidiam

Foi aprovada no Senado a prorrogação da desoneração da folha de salários para 17 setores da economia, supostamente os que mais empregam. Decerto o 18.º se lembrará de uma das famosas leis de Murphy (“na minha vez, muda”). O subsídio, que começou no governo Dilma Rousseff em 2011, custa bilhões por ano e não há nenhuma evidência de que tenha impacto relevante sobre o nível de emprego. É só mais um benefício. O contribuinte, constrito, paga.

Também tivemos o recente apanágio aos carros que são populares entre as pessoas ricas. Aqui a agravante é que foi uma iniciativa espontânea do governo petista, apenas uma homenagem à íntima relação que mantém com o setor automobilístico desde priscas eras (lembremos que um ex-presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) foi ministro da Indústria do presidente Lula da Silva em 2007). Sem nenhuma cerimônia, a Volkswagen, ingrata, anunciou a paralisação de suas linhas de produção. O subsídio aos carros confronta os esforços do ministro Fernando Haddad para equilibrar as contas públicas e em nada contribuirá para a retomada sustentável do crescimento. Serve apenas para colocar o rico no Orçamento.

Assim vamos, de sinecura em sinecura. Há muitos outros exemplos. Todos os apaniguados têm teses meritórias para justificar o que lhes parece um direito absoluto, inquestionável. São distorções de um capitalismo poroso, onde a distinção entre público e privado é fosca e a busca incessante pelos favores do erário reflete a fraqueza das nossas instituições republicanas. 

Luís Eduardo Assis, o autor deste artigo, é  economista, foi diretor de Política Monetária do Banco Central e professor de Economia da PUC-SP e FGV-SP. Escreveu 'O Poder das Ideias Erradas' (ed. Almedina). E-mail: luiseduardoassis@gmail.com. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.07.23

Decepção

Para quem se compara a Nelson Mandela e pretende o Nobel da Paz, a tarja do jornal francês seguramente não é bom sinal.

Após quatro anos de isolamento internacional, Lula movimenta-se no modo recuperação do tempo perdido. Mas um jornal francês de centro-esquerda refere-se a ele como “decepção”, após ter classificado o sofrimento do povo venezuelano de mera “narrativa”, ao receber com salamaleques o ditador Nicolás Maduro. Para quem se compara a Mandela e pretende o Nobel da Paz, a tarja francesa seguramente não é bom sinal.

Diante do nocaute de Bolsonaro pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), agora a dureza do jogo obstrutivo político e seus preços fica mais evidente e Lula frustra expectativas em relação à sua capacidade para superar os previsíveis desafios deste terceiro mandato. Até onde deve ceder para governar? Que valores serão sacrificados em nome da governabilidade? Há limites para o realismo político?

Pior do que não cumprir promessas, o que lamentavelmente já se naturalizou no Brasil, é a perda gradual e contínua de identidade política do petismo, para cuja construção Lula foi referência na fundação do partido, há 43 anos. Foi protagonista, lastreando-se na proteção da dignidade humana, dos direitos sociais, dos direitos das mulheres, na luta pela integridade e transparência.

O Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos posicionou-se com veemência publicamente contra a PEC 9/23, a maior virada de mesa da história dos partidos, a quarta anistia, que propõe simplesmente que eles não se sujeitem à lei como todos os mortais, destruindo regras garantidoras de direitos de mulheres e negros. Mas o partido político do presidente e sua base de apoio, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, desprezaram todas as políticas públicas historicamente construídas pelo partido, todas as ações afirmativas que encharcam a Constituição, e preferiram assumir a posição diametralmente oposta, votando a favor da anistia, de braços dados com os bolsonaristas.

Se isso se repetir na Comissão Especial, no plenário e pelo próprio presidente da República, ficará difícil de manter a versão de que este grupo político ainda defende mulheres e negros, pois os terá abandonado à própria sorte em nome de outros interesses de ocasião.

Por outro lado, ainda que tenha havido anulações processuais e reconhecimento de parcialidade jurisdicional, no que diz respeito ao presidente, nos quatro mandatos (de Lula e Dilma) o Brasil aderiu e subscreveu o Pacto dos Governos Abertos, aprovou a Lei de Acesso à Informação e foi instituída a prática política de indicar o procurador-geral da República (PGR) dentro da lista tríplice da Associação Nacional dos Procuradores da República.

Foi a forma encontrada pelo PT de reverenciar a democracia e de prestigiar a autonomia do Ministério Público Federal. Afinal, o presidente fiscalizado está escolhendo o próprio fiscal. Isso se rompeu no governo passado, que indicou e reconduziu um PGR fora da lista, e este acaba, inclusive, de inaugurar, de forma surpreendente e inédita, seu próprio retrato na galeria do Conselho Nacional do Ministério Público, três meses antes do fim de seu mandato.

Observe-se: houve intenso debate público, no início do atual mandato, a partir da revelação dos gastos com cartões corporativos de Bolsonaro, que se apresentava como gestor austero e que gastaria em patamares supostamente franciscanos. Mas, diante da abertura das informações, foram revelados gastos milionários no cartão corporativo. Chamaram a atenção as despesas, no que diz respeito aos valores absolutos, mas também em relação aos grandes volumes de recursos financeiros para o mesmo beneficiário. Percebeu-se que se tratava de refeições servidas a centenas de pessoas no contexto de uma daquelas famigeradas motociatas, em movimentos preparatórios da campanha à reeleição do ex-presidente.

Acertadamente, então, o governo federal publicou minuta de decreto para colher sugestões da sociedade civil, com o objetivo de construir uma nova regulamentação limitativa, visando à moralização do uso do cartão corporativo. Ao fim, o decreto foi publicado, mas lamentavelmente não temos experimentado tempos de contenção.

Em quatro meses, conforme amplamente divulgado, foram gastos por meio do cartão corporativo presidencial R$ 12 milhões, o que significa uma média de R$ 4 milhões mensais, projetando-se R$ 48 milhões anuais – valores superiores aos que vinham sendo gastos pelo governo anterior.

Mas o pior é deixar de instituir a transparência como política de Estado, sendo o Brasil um dos oito celebrantes mundiais do Pacto dos Governos Abertos. O Instituto Não Aceito Corrupção e outras organizações da sociedade civil requereram à Controladoria-Geral da União (CGU) que todos os comprovantes de despesas presidenciais fossem digitalizados e lançados no Portal da Transparência, para permitir controle social amplo. Não foram os pedido atendidos.

Lula acredita ser favorito ao Nobel da Paz, mas a verdade nua e crua é que, à medida que seu mandato avança, a sociedade precisa se esquecer do contexto do salvacionismo democrático que o elegeu, recebendo um choque de realidade de Brasil real, do populismo da decepção, como alertam os franceses.

Em matéria de enfrentamento à corrupção, seja pela direita, seja pela esquerda, a agenda parece estar fadada a não evoluir um milímetro sequer no País. Simplesmente, o assunto não interessa (ou interessa) aos detentores do poder. 

Roberto Livianu, o autor deste artigo, é Procurador de Justiça no Ministério Público de S. Paulo, doutor em Direito pela USP, escritor, professor, palestrante e idealizador do Instituto Não Aceito Corrupção. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.07.23

Os fundamentos das decisões do Supremo

É oportuna a iniciativa do STF de apresentar, de forma acessível, sua jurisprudência sobre temas sensíveis, como a liberdade de expressão. País não pode ficar refém da desinformação

Há muita crítica contra o Supremo Tribunal Federal (STF). E há também muita incompreensão sobre o funcionamento da Corte. Quase sempre, as críticas ignoram o fundamento dos votos, bem como a própria jurisprudência anterior do Supremo, limitando-se a expressar contrariedade com a decisão da qual se discorda. Sob essa ótica, a atuação do Supremo ganha um caráter casuístico, quase arbitrário, como se as decisões dependessem unicamente das idiossincrasias de cada ministro. É um cenário desafiador para o Supremo, cuja autoridade é necessária para que possa desempenhar seu papel institucional contramajoritário de defesa da Constituição.

Junto a isso, como parte do mesmo fenômeno, há muita desinformação sobre as liberdades e garantias fundamentais, disseminando graves incompreensões sobre temas fundamentais do Estado Democrático de Direito. Frequentemente, o debate público é tomado por visões simplistas, cujo único objetivo é manipular, dificultando ou mesmo impossibilitando uma discussão serena e madura dos temas.

Nesse contexto, é muito oportuna a iniciativa do STF de lançar a linha editorial Supremo Contemporâneo, com publicações que reúnem de forma acessível a jurisprudência da Corte sobre diferentes temas. O objetivo é apresentar um resumo de precedentes especialmente relevantes, com os fundamentos utilizados e trechos dos votos dos ministros. Agrupar essas decisões, proferidas em diferentes momentos, ajuda a dar sentido e contexto ao trabalho do STF em defesa da Constituição ao longo do tempo.

Com 29 julgados de 2007 a 2022, o primeiro volume da série é dedicado à liberdade de expressão. Há processos famosos, como a não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição (2009), o fim da exigência de diploma para o exercício do jornalismo (2009), a liberação das biografias não autorizadas (2015) e o pretenso direito ao esquecimento (2021). “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento”, disse o STF.

O precedente mais recente citado no livro afirma que “a liberdade de expressão não pode ser usada para a prática de atividades ilícitas ou discursos de ódio, contra a democracia ou contra as instituições” (2022). O mais antigo, de 2007, é a declaração de inconstitucionalidade de decreto distrital de 1999 proibindo a realização de manifestações públicas na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios, Praça do Buriti e vias adjacentes.

Segundo o STF, a restrição ao direito de reunião estabelecida no decreto “é inadequada, desnecessária e desproporcional”, confrontando “com a vontade da Constituição, que é permitir a reunião pacífica para fins lícitos”. O STF não disse que o governo do Distrito Federal não pode proibir uma manifestação violenta. Apenas afirmou que não se pode, sob pretexto da segurança pública, impedir toda e qualquer manifestação.

Precedente especialmente interessante para o debate atual é a decisão de que as marchas da maconha, com manifestantes defendendo a descriminalização da droga, não constituem crime. O debate pela abolição penal de uma conduta punível “não se confunde com incitação à prática de delito, nem se identifica com apologia de fato criminoso”. Segundo o STF, o Estado não pode reprimir o debate “ainda que as ideias propostas possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis, extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis, sendo inadmissível a proibição estatal do dissenso”.

O livro traz decisões que aparentemente não dizem respeito à liberdade de expressão, mas cuja fundamentação remete ao tema. Por exemplo, ao declarar a constitucionalidade do fim da contribuição sindical obrigatória, o STF afirmou que, com o engajamento político de entidades sindicais, fixar contribuições compulsórias de quem não concorda com tais posicionamentos configura “violação à garantia fundamental da liberdade de expressão”.

A defesa da Constituição inclui enfrentar a desinformação. É preciso expor de forma acessível a jurisprudência do STF e seus fundamentos. Assim, muitos fantasmas desaparecem. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 03.07.23

A reinvenção da direita brasileira

Para aproveitar as oportunidades da inelegibilidade de Bolsonaro, a direita civilizada precisa depurar valores conservadores e liberais e concretizá-los em um movimento cívico

Ante a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, a única coisa maior que a janela de oportunidades aberta à direita é a montanha de desafios que precisa superar. Bolsonaro é um feroz antiesquerdista, mas nunca foi conservador nem liberal, só um demagogo nostálgico da ditadura e hostil ao ecossistema democrático da Constituição de 88.

Em todo o mundo as democracias liberais estão na defensiva. Fora, o aventurismo militar da Rússia e o expansionismo diplomático da China buscam reconstruir uma ordem mundial adaptada às suas ambições autocráticas. No Ocidente, eles despertam medo, mas também seduzem esquerdas e direitas abastardadas, pela suposta eficiência de seus “modelos” de crescimento ou defesa das tradições. Dentro, há uma crise de identidade, evidente nas próprias distorções do termo “liberalismo”: nos EUA, ele está associado à “nova esquerda” e seu identitarismo divisivo e autoritário; em outras democracias, a propaganda esquerdista o desfigurou, associando-o ao espantalho “neoliberal”, que nada mais é que um darwinismo social. Ao mesmo tempo, cresce o falso conservadorismo da extrema direita hostil à globalização e a minorias.

Em sua história do liberalismo, Edmund Fawcett divisou quatro valoreschave da identidade liberal. Primeiro, que a sociedade deve ser plural; um espaço de conflitos politicamente canalizados a uma competição de ideias frutuosa. Segundo, que é preciso progredir por reformas, não rupturas. Terceiro, a desconfiança da concentração do poder. Quarto, a defesa dos direitos pessoais, políticos e de propriedade. A renovação não passa por desconstruir esses valores, mas empregá-los como alicerces na construção de um contrato social liberal adaptado ao século 21.

A direita precisa fazer um exame de consciência, reconhecer sua complacência com as desigualdades sociais e energizar seus compromissos com a responsabilidade individual, a liberdade econômica e a distribuição do poder para demonstrar convincentemente que estes são os meios mais eficazes para construir uma sociedade inclusiva, justa e próspera.

O desafio no Brasil é o mesmo, mas mais profundo, porque aqui, mais do que se reinventar, a direita precisa se inventar. Na redemocratização, as expressões do liberalismo se restringiram ou a farsas deletérias (como Fernando Collor ou Bolsonaro) ou a soluções de compromisso de uma socialdemocracia esclarecida (FHC). Com curtos estoques de tempo e popularidade, Michel Temer sanou excessos desastrosos do estatismo petista – se teria energia ou convicção para edificar instituições liberais, é algo que fica no campo da especulação. Ao redor dessas ilhas liberais, há um conservadorismo difuso na sociedade, que com o movimento evangélico ganha força (mas também toques de obscurantismo), e um conservadorismo amorfo na arena política (que muitas vezes só serve à conservação de privilégios elitistas e paroquiais).

Não se trata só de depurar essa massa crítica para esculpir no ideário político valores conservadores e liberais. É preciso concretizá-los articulando um partidarismo de direita no melhor sentido do termo. Isso implica reverter a lógica do populismo. Não oferecendo programas tecnocráticos de cima para baixo, muito menos se embrenhando na disputa por um novo “salvador da pátria”, ou seja, jogando o jogo do culto à personalidade caro ao lulopetismo e ao bolsonarismo. Como cravou William Waack no Estadão, “falta de nomes não é o maior problema da direita pós-Bolsonaro; falta projeto de País”. O erro seria insistir na estratégia de desmoralização dos eleitores de Lula ou Bolsonaro. Ao contrário, é preciso humildemente ouvi-los, construir com eles compromissos de baixo para cima e comunicá-los com paixão, a fim de dinamizar uma mobilização cívica inspirada nas grandes articulações políticas que edificaram a Nova República nas “Diretas Já” e superaram suas crises com os impeachments de Collor e Dilma. Esse é o caminho para a reinvenção da direita. A menos que o trilhe, ela continuará a agonizar pelas mãos de seus adversários ou usurpadores. 

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 03.07.23

Melhor já ir se acostumando

 O enredo malufista guarda ainda poucos paralelos com o ocaso de Bolsonaro


O então deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) em reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em novembro de 2015 Nilson Bastian/Infoglobo

O então deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) em reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em novembro de 2015O então deputado federal Paulo Maluf (PP-SP) em reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em novembro de 2015 Nilson Bastian/Infoglobo

Se eu postar uma foto de Luan Santana, Gabigol e Paulo Maluf e perguntar quem ali seria um político mal-afamado, o acerto viria por exclusão. Pois bem. Maluf, por anos, foi um miasma a assustar a boa família brasileira. Desalmado como seu descendente Jair, cunhou a clássica frase de espírito bolsonarista:

— Estrupa (sic), mas não mata.

A falta de votos nas urnas e a Justiça o jogaram no ostracismo — e, por vários anos, cumpriu prisão domiciliar. Há pouco devolveu alguns milhões de dólares desviados de uma obra pública paulistana. A quantia roubada dava para construir vários outros túneis e viadutos. Mesmo enredado, com suas digitais sangrentas na cena no crime, negava as suspeitas em ríctus indignado. Mentia sem Rivotril.

Em tempos mais pretéritos, promotores de Justiça avançaram sobre as espertezas de Orestes Quércia. A política da época congelou as investigações. Descobriu-se, para pouco espanto da plateia, que o preço do quilômetro do metrô paulistano era o dobro do cobrado no túnel sob o Canal da Mancha, entre França e Inglaterra. Se levantado o tapete roto, estariam ali as mesmas construtoras logo flagradas nos dutos da Petrobras.

Parece ser um ciclo vicioso, ora à direita, ora à esquerda. No caso, os dois espectros políticos de braços dados. Para qualquer grande obra pública, necessita-se de comprovada capacidade técnica. Não há no país mais de uma dezena de empresas com currículo para construir uma linha de metrô. Acontece, como já foi verificado pelos promotores paulistas, a formação de cartel — e, assim, sobem os preços combinados.

A saída? Abrir às empresas estrangeiras a participação nas concorrências. Bem, aí os sindicatos de trabalhadores, nas mãos do PT e de outros afamados, são contra a presença internacional. Alegam que defendem seus empregos. Curiosamente, empresas como a Odebrecht, com financiamento brasileiro, fizeram obras em países da América do Sul. Assim caminham amasiadas a direita oportunista e a esquerda corporativa. A turma do Dallagnol, conhecida como os santinhos de Curitiba, não queria ficar com a grana recuperada da Petrobras para uma fundação administrada por eles? Mesmo assim, ele recebeu mais de 300 mil votos de patriotas paranaenses.

Maluf, Quércia, Marin (este puxando cana nos Estados Unidos), entre outros, são muitos os nomes da direita agora no ocaso, mas antes vistos como líderes messiânicos. Por eles, seus seguidores pegariam resfriado. Falou-se em malufismo, como ainda também em quercismo. Na essência, eram a mesma coisa: um modo ou mau hábito operante do dinheiro público e do lupanarinato político. Nunca se falou de um malufismo sem Maluf, porque a falta de voto deixou inanimada qualquer descendência. Depois das derrotas, a Justiça, sem a pressão política de seus cargos, andou até colocá-lo na prisão.

O enredo malufista acima guarda ainda poucos paralelos com o ocaso de Bolsonaro — por enquanto, pessoal. Ao menos Maluf, a despeito das lentes bifocais, era um tipo simpático e desafinou o coro da ditadura apoiada pelo capitão. Mas ambos, em vários momentos, se transformaram na esperança da direita e da extrema direita. Só que os dois foram abatidos pelas circunstâncias venais; seus truques logo cansaram as plateias e os patriotas de sempre.

O caso de Bolsonaro se mostra ainda mais trágico. Perdeu a eleição apesar de estar no cargo, do uso indiscriminado dos instrumentos de Estado em benefício próprio — quem pagou aquelas motociatas? não foi o Valdemar... — e da distribuição de verbas sob critérios escusos. Grande parte do Centrão eleito deve-se aos recursos do orçamento secreto.

Bolsonaro como cabo eleitoral? Bolsonarismo sem Bolsonaro? Com a ajuda do aparato estatal se viu derrotado. Assim como muitos taparam o nariz ao votar em Lula, outros muitos esconderam as joias ao escolher Bolsonaro. Tal episódio histórico jamais ocorrerá novamente. Basta acompanhar a fé indelével dos evangélicos no futuro do capitão. Em breve, Lula será o líder deles, nada lhes faltará, apostam. Dízimo não tem ideologia.

No pós-Bolsonaro, a caminho de ele ser um corretor de imóveis, especula-se sobre herdeiros. Assim como, na ditadura, também pensou-se numa direita de terno em lugar da farda. Uma direita proativa, empreendedora, do tipo que joga tênis. E que faz obras e combate a corrupção. Sempre em defesa dos pés descalços. Deu em Collor cassado e transformado num político municipal. Depois no Maluf em prisão domiciliar. Ao contrário de magnatas russos, que suspeitamente despencam de prédios, tal direita teve um pouco mais de sorte.

Miguel de Almeida, o autor deste artigo, é editor e diretor de cinema. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 03.07.23

domingo, 2 de julho de 2023

José Paulo Sepúlveda Pertence

 Mais de 40 anos de amizade pessoal e convivência profissional

@EdsonVidigal

Morreu o Pertence nesta madrugada num hospital aqui em BSB. Minha 1a. causa no STF foi em parceria com ele. Deixou comigo a sustentação oral no Pleno. Ganhamos. Estou arrasado. Éramos muito próximos. Segue a fila da travessia da ponte para além do horizonte.


José Paulo SEPÚLVEDA PERTENCE
Presente!
O maior da história!
Único a transformar em verdade fática o sentido de silêncio eloquente. Quando votava todos se calavam, ouviam e admiravam sua infinita capacidade.
Inteligência e humor que nunca o deixou!
Dono de uma gargalhada inesquecível! Que escuto agora do céu de sua infinitude!
O Brasil e a democracia muito devem a ele.
Eu,
Que ocupo sua cadeira no STF, sempre e hoje mais ainda.
Peço: Sua benção!
José Antonio Dias Toffoli

Sarney lamenta morte de ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence

Ex-presidente foi o responsável por indicar jurista ao cargo na Corte e também por nomeá-lo procurador-geral da República

Sepúlveda Pertence, quando era ministro do STF, em 2007Sepúlveda Pertence, quando era ministro do STF, em 2007 (Roberto Stuckert Filho / Agência O Globo)

O ex-presidente do Brasil José Sarney lamentou a morte ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Sepúlveda Pertence, aos 85 anos. Em nota, ele afirmou que o magistrado, classificado como "um amigo de longos anos", foi "um dos maiores juristas da História". Sarney foi o responsável por nomear Pertence como ministro do STF e também ao cargo de procurador-geral da república.

"Foi com intensa comoção que recebi a notícia do falecimento de José Paulo Sepúlveda Pertence. Perde o Brasil um dos maiores juristas de sua História, um dos maiores magistrados que já passaram pelo Supremo Tribunal Federal, o consolidador do Ministério Público Federal, o brilhante advogado, o defensor do direito; perdemos, eu, minha mulher, minha família, um amigo de longos anos, uma extraordinária criatura humana, o observador arguto da vida pública, o intelectual completo, o caráter sem jaça, o exemplo de integridade moral", diz o ex-presidente no texto.

O jurista estava internado havia cerca de uma semana no Hospital Sírio Libanês, em Brasília, e sofreu falência múltipla dos órgãos. Pertence tinha problemas pulmonares por ter fumado durante toda a vida, inclusive cachimbo, hábito que ele abandonou com o nascimento da neta, em março de 2010.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ministros do Supremo e outras autoridades lamentaram neste domingo a morte do jurista. Em seu texto, o petista afirmou que Pertence foi um dos "maiores juristas da história do Brasil" e que foi um privilégio tê-lo como "amigo e advogado".

"Sempre atuou pela defesa da democracia e do Estado de Direito, como advogado e também como ministro do Supremo Tribunal Federal. Por isso, era respeitado por todos. Neste momento de perda, meus sentimentos aos seus familiares, em especial aos seus filhos, aos amigos e admiradores", escreveu o presidente.

O corpo do ministro aposentado será velado no Salão Branco do STF a partir das 10h desta segunda-feira. O magistrado era tido com uma unanimidade nos meios jurídico e político do Brasil.

Leia na íntegra a nota de José Sarney

Foi com intensa comoção que recebi a notícia do falecimento de José Paulo Sepúlveda Pertence. Perde o Brasil um dos maiores juristas de sua História, um dos maiores magistrados que já passaram pelo Supremo Tribunal Federal, o consolidador do Ministério Público Federal, o brilhante advogado, o defensor do direito; perdemos, eu, minha mulher, minha família, um amigo de longos anos, uma extraordinária criatura humana, o observador arguto da vida pública, o intelectual completo, o caráter sem jaça, o exemplo de integridade moral.

Deus me deu a oportunidade de nomeá-lo, não por amigo, mas por mérito indiscutível, para dois dos principais cargos do Estado: Procurador-Geral da República e Ministro do Supremo Tribunal Federal. Em ambos sua presença está registrada como dos pontos mais altos destas instituições.

Nos conhecemos quando era muito moço, por amigos comuns como Carlos Castello Branco e José Aparecido de Oliveira; e ao mesmo tempo por sua ligação com Victor Nunes Leal, com quem trabalhou e por quem eu tinha grande estima e admiração.

Inconsoláveis, Marly, meus filhos e eu partilhamos com seus filhos Evandro, Eduardo e Pedro Paulo e toda a família a tristeza dessa ausência, mas sabendo que teremos para sempre a presença de sua inteligência e sua amizade.

JOSÉ SARNEY

Publicado n'O GLOBO online, em 02.07.23, às 15h56

A teoria da relatividade de Lula

Para o Einstein petista, democracia é conceito ‘relativo’, e a Venezuela é uma democracia porque realiza ‘mais eleições que o Brasil’. É um deboche com os que sofrem sob o tacão de Maduro


O genial Einstein petista e a sua relatividade

A Venezuela realiza “mais eleições que o Brasil”, logo é um país democrático. Eis o postulado da esdrúxula “teoria da relatividade democrática” formulada pelo presidente Lula da Silva.

Relativizando as barbaridades perpetradas pelo ditador Nicolás Maduro e debochando do sofrimento do povo venezuelano, há décadas privado de tudo sob o tacão do regime chavista, nosso genial Einstein petista afirmou, em entrevista à Rádio Gaúcha, no dia 29 passado, que “o conceito de democracia”, ora vejam, “é relativo”.

Para Lula, a bem da verdade, deve ser mesmo. Afinal, gente da estirpe de Maduro, Hugo Chávez, Daniel Ortega e Fidel Castro, por exemplo, é tida pelo petista, há tempos, como a quintessência do democrata, pois eles encarnam, em sua visão autoritária, as legítimas aspirações do “povo”. Nesse sentido, democracia, para Lula, pode ser qualquer regime que se coadune com seus valores e dogmas ideológicos, ainda que uma prisão ilegal aqui, um fechamento de jornal ali ou uma execução sumária de opositor acolá sejam inevitáveis, fatos da vida.

Entretanto, para qualquer democrata genuíno, em qualquer lugar do mundo, a democracia é o que é – sem relativismos. É a supremacia da vontade popular; é a liberdade de ser e agir nos limites da lei, que vale para todos; é a intransigência com qualquer forma de arbítrio. Mas, como não é nem nunca foi um democrata genuíno, Lula segue o manual da esquerda retrógrada, aquela que considera “democratas” todos os tiranos que se apresentam como adversários do “imperialismo estadunidense” – impostura em nome da qual se justifica toda sorte de repressão interna. Aos pobres habitantes dos países comandados pelos ditadores companheiros de Lula, resta apenas o direito de votar em eleições fajutas.

Não há que falar em democracia, de fato, quando aos cidadãos é vedado o direito de influenciar os rumos de seu país por meio do sufrágio universal, com voto direto e secreto. Mas há outras garantias e liberdades democráticas tão fundamentais quanto essa, como, por exemplo, as liberdades de expressão, a liberdade de imprensa e a existência de meios legais que permitam a participação da oposição na disputa eleitoral, com paridade de armas. Nada disso, contudo, existe na Venezuela.

Menos de 24 horas depois de Lula classificar a Venezuela como um país “democrático”, o regime de Maduro proibiu Maria Corina Machado de registrar sua pré-candidatura à eleição de 2024. Se a eleição fosse limpa, Maria Corina seria, segundo todos os prognósticos, a mais forte ameaça à permanência de Maduro na presidência. Como a eleição não será limpa, Maduro não teria com o que se preocupar – mas o ditador venezuelano, zeloso quando se trata de se aferrar ao poder, parece que não quer dar a menor chance para o azar.

Com um misto de desfaçatez e escárnio, Lula desafiou os que chamam o governo da Venezuela pelo que é – uma ditadura implacável – a visitar o país e “fiscalizar” as eleições. “Se não tiver eleição honesta, a gente fala”, disse o petista. Ora, essa fiscalização já foi feita por organismos internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), e por instituições independentes da sociedade civil de uma série de países verdadeiramente democráticos, inclusive o Brasil. Até a ONU, por meio de seu Conselho de Direitos Humanos, já atestou que a ditadura do “companheiro” Maduro “não cumpre, de maneira nenhuma, as condições mínimas para a realização de eleições livres e confiáveis” na Venezuela.

É lamentável, triste até, que o presidente da República submeta o Brasil à vergonha de condescender com um regime tão nefasto quanto o comandado por Nicolás Maduro, sobretudo no contexto em que um ex-presidente, Jair Bolsonaro, acaba de ser condenado à inelegibilidade por oito anos justamente por seus desabridos ataques à democracia brasileira. Mas Lula é irremediável. Resta aos verdadeiros democratas do País conviver com sua retórica de botequim até que um presidente que nutra lídimo apreço pelos valores democráticos volte, enfim, a despachar no Palácio do Planalto.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 02.07.23

Justiça tardia

Bolsonaro deveria ser apenas um pé de página nessa história, ou ter sido barrado ao longo dos 30 anos de vida parlamentar em diversas ocasiões


                                                     Jair Bolsonaro (Douglas Magno/AFP)

O Brasil é um país em que tudo pode acontecer, até mesmo um político medíocre e nefasto como Jair Bolsonaro chegar a presidente da República. A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de torná-lo inelegível é um fato histórico, embora o personagem não merecesse tão alta distinção. Deveria ser apenas um pé de página nessa história, ou ter sido barrado ao longo dos 30 anos de vida parlamentar em diversas ocasiões, como quando ameaçou uma colega de estupro, quando declarou-se disposto a fuzilar um presidente da República, quando homenageou um torturador notório ao votar pelo impeachment da presidente Dilma, e assim por diante.

Mesmo assim, a inelegibilidade do ex-presidente Bolsonaro é um fato marcante da nossa história política recente, que conta com várias crises, impeachments, tentativas de golpe, ou golpes propriamente ditos. Depois de 8 de janeiro, ficou difícil alguém duvidar de que o que estava em curso era um golpe de Estado tradicional, com as Forças Armadas aderindo ao presidente rebelado, uma varredura no Legislativo e no Judiciário, que passariam a ser subordinados ao Executivo, como acontece nas ditaduras de esquerda e de direita no mundo.

Os argumentos dos ministros Raul Araújo e Kassio Nunes Marques a favor do ex-presidente Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) refletem uma atitude leniente em relação ao seu comportamento político nos últimos 35 anos, entre parlamentar do baixo clero e presidente da República da mesma extração que, se prevalecesse agora, permitiria que Bolsonaro continuasse sua carreira destruidora.

Assim como passou 30 anos como vereador, deputado estadual e deputado federal cometendo barbaridades sem que fosse punido, porque era considerado um membro desimportante do baixo clero, agora seria absolvido pelo TSE porque seus crimes não deram certo: o golpe fracassou, a TV Brasil não tem audiência, sua opinião pessoal quanto às urnas foi derrotada no Congresso. O fato de ter cometido crime de abuso do poder político sendo presidente da República seria o de menos para seus defensores, como se Bolsonaro fosse apenas mais um qualquer entre muitos aloprados inconsequentes espalhados por aí.

Quando Bolsonaro diz que é ridículo achar que um bando de “senhorinhas e senhorinhos” queriam dar um golpe no dia 8 de janeiro, ele tenta minimizar a rebelião que incentivou durante todo o seu governo. Além do mais, como é seu hábito, abandona os que passaram dias e meses acampados em frente aos quartéis, acreditando que Bolsonaro tinha apoio para o golpe. Era o que ele queria que acreditassem quando falava de “meu Exercito” e ninguém das corporações o contestava.

Era o que queria que acreditassem quando reuniu embaixadores para ouvir suas diatribes contra as urnas eletrônicas. Nas redes sociais, a pós-verdade dizia que Bolsonaro tinha apoio até no exterior. Bolsonaro manipulou os militares, parte com cargos e mordomias, parte pelo constrangimento, pois uma contestação formal poderia causar, ai sim, uma crise institucional.

Constrangeu a todos os militares a ponto de permitirem os acampamentos de onde saíram os planos de explodir uma bomba no aeroporto de Brasília ou a marcha sobre a Praça dos Três Poderes, escoltados pela policia, para depredarem prédios públicos. Uma tergiversação hoje lamentada por muitos oficiais graduados.

Invadir o Supremo, o Congresso, o Palácio do Planalto não acontece do nada, é preciso fomentar essa raiva contra as instituições para obter o resultado infame. Se nada mais aconteceu, é porque a cúpula das Forças Armadas nunca aderiu aos chamados de Bolsonaro, embora oficiais de alta patente estivessem envolvidos na tentativa de golpe. Uma condenação como essa, rigorosa como necessário, é fundamental para que o estado democrático seja cada vez menos relativizado entre nós. ( Íntegra do texto publicado ontem no Globo)

Merval Pereira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Comentarista político de O GLOBO e Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente em 01.07.23.

Inelegibilidade é castigo modesto para conjunto da obra de Bolsonaro

Ex-Presidente prometeu ressurgir como "cabo eleitoral de luxo", mas ainda tem contas a prestar com a Justiça

O ex-presidente Jair Bolsonaro após ser declarado inelegível pelo TSEO ex-presidente Jair Bolsonaro após ser declarado inelegível pelo TSE Douglas Magno/AFP

No voto que selou a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, a ministra Cármen Lúcia afirmou que os atos do capitão expuseram uma “consciência de perverter”. A expressão foi cunhada pelo jurista italiano Francesco Carnelutti (1879-1965). Define a conduta de quem sabe não ter razão, mas age como se a tivesse.

Bolsonaro sabia que as urnas eletrônicas eram confiáveis e podiam ser auditadas. Sabia que seu código-fonte estava aberto a partidos e entidades fiscalizadoras. Sabia que a Justiça Eleitoral não tinha lado — e jamais se prestaria a participar de um complô para prejudicá-lo.

Apesar de saber disso tudo, o capitão tentou convencer os eleitores do contrário. De forma consciente, usou a estrutura da Presidência para propagar mentiras e teorias conspiratórias.

As urnas não foram o único alvo das fake news bolsonaristas. Enquanto esteve no poder, o ex-presidente recorreu ao mesmo expediente para fustigar as universidades, desacreditar a imprensa, acuar os defensores dos direitos humanos e do meio ambiente. A cada passo, buscou fabricar um novo inimigo. Assim manteve viva a aura de político antissistema, mesmo depois de subir a rampa e se instalar no centro do poder.

Foi na pandemia que a consciência de perverter produziu seus danos mais nocivos. Na contramão da ciência, o capitão sabotou as medidas de distanciamento, boicotou o uso de máscaras e liderou uma campanha de desinformação contra as vacinas.

Sua irresponsabilidade favoreceu o vírus e produziu milhares de mortes evitáveis. Esses crimes permanecem impunes graças à inércia da Procuradoria-Geral da República, que engavetou provas e se negou a denunciá-lo.

Ao condenar Bolsonaro, o TSE passou a mensagem de que todo poder tem limites. Um presidente que concorre à reeleição larga em vantagem, mas não pode ignorar a lei e achincalhar as instituições para se perpetuar na cadeira. O mandato não é salvo-conduto para desrespeitar as regras do jogo e conspirar contra a democracia.

A inelegibilidade é um castigo modesto para o conjunto da obra de Bolsonaro. Após o julgamento, o ex-presidente anunciou que seguirá na política como “cabo eleitoral de luxo”. Faltou lembrar que ele ainda responde a uma série de investigações criminais. O desfecho dos casos mostrará se o ministro Alexandre de Moraes estava certo quando disse que a Justiça pode ser cega, mas não é tola.

Partido Militar

O TSE absolveu o general Braga Netto, candidato a vice na chapa derrotada em 2022. Ele também estava na cena do crime eleitoral que motivou a condenação do aliado. Agora está livre para disputar as próximas eleições.

Além de Braga Netto, outros quatro generais participaram do comício no Alvorada. Três eram ministros do capitão: Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Paulo Sérgio Nogueira. O quarto, Luis Carlos Gomes Mattos, presidia o Superior Tribunal Militar.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é comentarista de política de O GLOBO. Publicado originalmente em 02.07.23

sábado, 1 de julho de 2023

Bolsonaro, enfim, é punido

O ex-presidente passou décadas desafiando a democracia impunemente, o que deu ares de legitimidade a seu golpismo; sua inelegibilidade é só o começo de um processo de saneamento


O ex-presidente Jair Bolsonaro foi declarado inelegível até 2030 (Foto: Douglas Magno / AFP)

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tornou Jair Bolsonaro inelegível pelos próximos oito anos. Trata-se de punição constitucional e necessária. Desde a redemocratização do País, ninguém havia tido o despautério de fazer o que Bolsonaro irresponsavelmente fez durante o mandato. De forma reiterada e ignorando seu compromisso de respeitar a Constituição, ele se valeu do cargo de presidente para tumultuar o processo eleitoral.

Bolsonaro nunca teve a intenção de aprimorar o sistema de votação, como alega. Se isso fosse verdade, ele teria, em primeiro lugar, que respeitar a competência do Congresso sobre o tema, e não desautorizar as instituições democráticas legitimamente constituídas, caso da Justiça Eleitoral. Como se sabe, ele fez o oposto, atacando insistentemente o processo eleitoral. O ápice foi a infame reunião de 18 de julho de 2022 com embaixadores estrangeiros.

Alega-se que, no limite, se tratou de genuíno exercício de liberdade de expressão. Ora, como já afirmamos diversas vezes nesta página, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, sobretudo quando o propósito de quem se expressa não é o de dar uma opinião, e sim o de violentar a democracia. O leitmotiv evidente de Bolsonaro, coerente com toda a sua trajetória política, era o de disseminar a desconfiança nas urnas e gerar instabilidade no País, criando as condições para um eventual golpe. Felizmente, as instituições reagiram e, dentro da mais rigorosa legalidade, declararam o óbvio: quem afronta a democracia de tal forma deve ser impedido de se candidatar a cargo eletivo.

A inelegibilidade de Bolsonaro é medida justa e necessária, mas é preciso reconhecer: ela deveria ter vindo muitos anos antes. Há décadas o sr. Bolsonaro viola as regras básicas do regime democrático. Como deputado federal, ele quebrou várias vezes o decoro parlamentar e nunca respeitou a diversidade de opinião. Em um de seus arroubos, chegou a defender o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, ocasião em que este jornal exigiu sua cassação (ver o editorial Dejetos da democracia, de 8/1/2000).

A Constituição de 1988 fixou o critério: “É incompatível com o decoro parlamentar (...) o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional”. Sob pretexto da inviolabilidade civil e penal por opiniões, palavras e votos do art. 53 da Constituição, Bolsonaro falou durante anos as maiores barbaridades, sem a mínima consideração pelos limites da lei, o respeito ao outro ou os parâmetros da civilidade. Infelizmente, o Congresso omitiu-se em seu dever constitucional de retirar seu mandato. Ante a impunidade, Bolsonaro julgou-se autorizado a abusos cada vez maiores.

A inelegibilidade de Bolsonaro, portanto, se presta a proteger o regime democrático, mas as mais de três décadas de bolsonarismo impune deixaram como sua principal herança maldita a transformação do golpismo em discurso supostamente legítimo. Antes da ascensão de Bolsonaro ao poder, eram marginais e inexpressivas as manifestações públicas em defesa da volta das Forças Armadas ao poder, fantasma autoritário que parecia bem enterrado pela Constituição de 1988. No entanto, os quatro anos de Bolsonaro na Presidência deram verniz de legitimidade à hermenêutica golpista da Constituição, aquela que vê como legal a convocação de militares para intervir no Estado. A agitação sediciosa na frente dos quartéis e o assalto às sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro, bem como a eleição de muitos parlamentares simpáticos a uma ruptura democrática, são a prova incontestável do retrocesso causado pelo bolsonarismo.

Assim, a inelegibilidade de Bolsonaro, obviamente tardia, é apenas o começo de um longo processo de saneamento da política, absolutamente necessário diante da constatação de que o ex-presidente, malgrado ter sido um mau militar e um mau político, continua a ser considerado por muita gente como um potente cabo eleitoral. Ou seja, para evitar a recidiva autoritária, que costuma ser muito pior que a doença, a democracia precisa ter a capacidade de expurgar quem pretende destruí-la – e para isso nada mais poderoso do que seguir rigorosamente o que está na lei.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 01.07.23

Bolsonaro cavou a inelegibilidade com seus erros, Lula não pode cavar a volta de Bolsonaro

Não é prudente agir como se o ex-presidente estivesse morto politicamente com o afastamento das urnas por 8 anos


Presidente Lula na abertura do 26.º Encontro do Foro de São Paulo na noite de quinta-feira, 29 Foto: Wilton Junior/Estadão

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva está brincando com fogo, ao esquecer que na política, como na vida, nada como um dia atrás do outro. Assim como ele saiu da prisão, venceu as eleições e assumiu o terceiro mandato, não é prudente agir como se Jair Bolsonaro estivesse morto politicamente com a inelegibilidade por oito anos. Pode ser, pode não ser. E depende diretamente do próprio Lula.

A política, já diziam as velhas raposas mineiras, “é como as nuvens, você olha e ela está de um jeito, olha de novo e ela já mudou”. Com a asfixia do centro democrático e a polarização entre esquerda e direita, Lula empurrou o centro para Bolsonaro em 2018 e Bolsonaro empurrou para Lula em 2022. Agora, Lula corre o risco de jogá-lo de volta, ou para a “nova direita” pós-Bolsonaro, ou para o próprio Bolsonaro.

Com a asfixia do centro democrático e a polarização entre esquerda e direita, Lula empurrou o centro para Bolsonaro em 2018 e Bolsonaro empurrou para Lula em 2022

Com a asfixia do centro democrático e a polarização entre esquerda e direita, Lula empurrou o centro para Bolsonaro em 2018 e Bolsonaro empurrou para Lula em 2022 Foto: Werther Santana/Estadão

É incompreensível que Lula repita o general Ernesto Geisel e diga que “a democracia é relativa”, ache lindo ser rotulado como comunista, insista em elogiar o regime criminoso da Venezuela, faça reverências a Fidel Castro, Hugo Chávez e Nicolás Maduro e dê sinais a favor dos regimes autoritários de China e Rússia e contra as maiores democracias ocidentais, EUA e Europa. O que ele ganha com isso? E o Brasil?

O debate no Congresso, acompanhado com lupa pelos setores produtivo e financeiro, agronegócio e estudiosos da política é se Bolsonaro terá ou não condições de ser o que ele chama de “cabo eleitoral de luxo”. Sem mandato, caneta, verbas e sem projetar poder? Provavelmente, não. E suas motociatas não farão tanto barulho. Em 2022, ele tinha tudo isso, usou ao extremo e foi o primeiro presidente derrotado na reeleição.

Não há dúvida, porém, quanto a força da direita que emergiu com Bolsonaro e lhe deu 58 milhões de votos, depois de tudo: negação da Covid, educação, cultura, ciência, estatísticas, Amazônia, parcerias internacionais – e da própria democracia. Um fenômeno. Lula não pode desprezar.

Ao radicalizar, Lula trabalha contra ele e a favor do adversário, fortalecendo as versões de que vai implantar o comunismo e o Brasil vai virar uma Venezuela. É gol contra, tiro no pé, autoengano, seja o que for, mas o problema não é exclusivo de Lula e sim do País e dos democratas, que cobram responsabilidade e juízo para não alimentar os fantasmas que embalam autoritarismo, retrocesso, negacionismo.

No primeiro mandato, Lula disse que “não tinha o direito de errar”. Hoje, ele tem muito menos ainda, porque o inimigo é forte, veio para ficar e é uma ameaça para o País. Bolsonaro cavou a inelegibilidade com seus próprios erros, Lula não pode cavar a volta de Bolsonaro.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é Jornalista e comentarista de politica no telejornal EmPauta da Globo News. Publicado originalmente no O Estado de S. Paulo, em 01.07.23