quinta-feira, 15 de junho de 2023

A inacreditável ‘TV PT’

A ideia de que o PT possa ter concessão pública de radiodifusão, esdrúxula, reforça a vocação anti-republicana do partido, incapaz de distinguir o público do privado


É evidente que o Ministério das Comunicações deve rejeitar, sem pestanejar, o inacreditável pedido do PT para operar seus próprios canais de rádio e TV com sinal aberto. Se o fará mesmo são outros quinhentos, posto que o governo é do PT e o presidente é Lula da Silva, aquele que nomeou o próprio advogado para o Supremo Tribunal Federal porque, ora vejam, é seu amigo do peito. Lula pode posar de democrata, mas a natureza antirrepublicana do lulopetismo sempre fala mais alto.

Ao encaminhar o pedido, a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, argumentou, em tom solene, que “o PT é grandioso”, “o maior partido de esquerda da América Latina”. Nada mais natural, portanto, que uma agremiação política formidável como essa tenha sua emissora de rádio e seu canal de TV para “difundir as ideias e propostas da militância”. E mais: tudo isso bancado com recursos públicos, porque ninguém ali é bobo.

É bastante improvável que o pedido petista prospere, mas não por ser absurdo e, no limite, inconstitucional, que fique claro. O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, já deu mostras suficientes de que não perde um minuto de sono preocupado com a separação entre os interesses público e privado. Acossado pela série de malfeitos revelados por este jornal, não é difícil imaginá-lo atendendo ao pleito do PT como forma de se sustentar na cadeira. Tampouco Lula faria essa distinção republicana. Basta ver a instrumentalização da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) como plataforma de suas lives, para citar apenas um exemplo recentíssimo de seu descompromisso com a impessoalidade.

O pedido petista não deverá ir adiante porque, ainda que passe pelo ministro das Comunicações e pelo presidente da República, dificilmente seria acolhido pelo Congresso. A Constituição, em seu artigo 223, diz que a outorga e a renovação de concessões de radiodifusão competem ao Poder Executivo, mas a decisão deverá ser apreciada pelo Legislativo em tempo hábil (§ 1.º). Mas admitamos, num exercício de reductio ad absurdum, que os parlamentares cheguem à conclusão de que não só o PT, mas todos os partidos deveriam ter seus canais de rádio e TV. Caberia, então, ao Supremo declarar a inconstitucionalidade da medida por violação do princípio da moralidade, sem falar no descumprimento da Lei de Licitações – ou seria aberta concorrência pública para cada uma das frequências pretendidas pelas legendas?

Ora, o PT quer é justamente instalar essa confusão no País. Partidos políticos não têm de ter concessões públicas de radiodifusão por uma razão elementar: já têm à disposição o discutível “horário gratuito” de propaganda de rádio e TV e ainda dispõem dos horários reservados às campanhas eleitorais a cada dois anos. E todas essas inserções, convém lembrar, a expensas dos contribuintes, seja por meio de isenções tributárias concedidas às emissoras de rádio e TV que veiculam as peças institucionais e publicitárias, seja pelos fundos públicos que financiam os partidos. Como o PT não se sustenta vendendo camisetas ou broches com a estrelinha do partido, é óbvio que a programação da tal “TV PT” seria produzida com recursos públicos.

Outro aspecto não menos importante a revelar o descalabro que seria a concessão pública à “TV PT” é a quebra da isonomia entre os partidos. Em qualquer democracia saudável, todas as siglas que representam as ideologias e os múltiplos interesses dos cidadãos, preenchidos os requisitos legais para sua criação, devem ter paridade de armas na conquista de eleitores. Como nem todos os partidos políticos no Brasil – mesmo entre os que estão representados no Congresso – haverão de ter um canal de TV para chamar de seu, o PT teria à disposição um poderoso instrumento de comunicação que desequilibraria a seu favor a disputa democrática pelo poder.

Por fim, é preciso reafirmar que a concessão de radiodifusão é um serviço público da maior relevância que não deve ser reduzido a instrumento de desinformação por um partido que, entre as fantasias e os fatos, há muito já fez sua escolha.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.06.23

Revelações da CPI antecipam batalha sangrenta no caso Americanas

Foram necessários seis meses e uma Comissão Parlamentar de Inquérito para a Americanas S.A. admitir publicamente o óbvio. O que houve na maior varejista do Brasil foi um esquema de proporções épicas, a maior fraude corporativa da História do Brasil.

O CEO da Americanas, Leonardo Coelho Pereira, durante depoimento à CPI da Americanas da Câmara dos Deputados na última terça-feira (13) Brenno Carvalho/O Globo

O atual presidente da companhia, Leonardo Coelho, afirmou aos deputados que um rombo calculado em R$ 25,7 bilhões foi escamoteado nas demonstrações financeiras ao longo de vários anos. É uma enormidade, ainda mais considerando que o faturamento anual foi de R$ 32 bilhões em 2021.

Impressionaram, ainda, as evidências de que os antigos diretores trabalhavam ativamente e em equipe (ou talvez fosse melhor dizer em quadrilha) para transformar prejuízo em lucro, além de produzir uma contabilidade falsa para o conselho de administração e o mercado.

Havia duas planilhas: a “visão interna”, com os números reais, e a “visão conselho”, com dados inflados. Por e-mail, os executivos discutiam formas de perpetuar e esconder a enganação, pois do contrário seria “morte súbita”.

Segundo o CEO, eles negociavam com bancos e auditorias formas de retirar de documentos qualquer termo que pudesse ligar o alerta sobre as fraudes. O objetivo era um só: inflando o lucro, faziam subir o valor das ações na Bolsa e recebiam bônus milionários. Isso à custa de dezenas de milhares de investidores, fornecedores e trabalhadores.

Engana-se, porém, quem acha que esse relato bombástico encerra a história. Ao contrário, inaugura uma batalha pela distribuição de responsabilidades que promete ser sangrenta.

Para começo de conversa, em mais de quatro horas de sessão da CPI, mal se ouviram os nomes dos principais acionistas — Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, que até outro dia formavam o trio dourado do capitalismo brasileiro. Na versão meticulosamente apresentada pelo CEO — ao fim e ao cabo, um funcionário do trio —, os antigos diretores foram os únicos responsáveis pelos crimes.

Tudo era feito de forma a driblar o conselho, onde o próprio Sicupira tinha assento, além do filho de Lemann. “Era apresentado ao Conselho de Administração aquilo que a diretoria desejava que se tornasse público”, diz o relatório de 20 páginas entregue aos deputados. Não se trata de duvidar do que foi exibido. A questão é saber o que ainda não apareceu.

O próprio CEO admite que o documento, preparado por advogados da Americanas, “foi baseado nas informações, mas não são a conclusão do comitê independente [contratado pela companhia], que ainda está investigando”.

A reação dos ex-executivos fatalmente virá. Nos bastidores, eles se preparam para atirar. Quem conhece bem o 3G e a cultura corporativa forjada por eles duvida que pelo menos Sicupira, que participava da rotina da Americanas, não tivesse ideia do que se passava.

Além de ser do conselho, Beto se envolvia diretamente na contratação dos executivos, de quem exigia lealdade. Além disso, embora talvez não fosse possível identificar as fraudes específicas apontadas pelo CEO, não faltou quem percebesse furos no balanço.

De acordo com o sócio de uma gestora que acompanhou a empresa durante anos e vendeu suas ações por desconfiar dos números, era comum rubricas de gastos aparecerem e desaparecerem de uma demonstração financeira para outra sem que ninguém desse satisfação.

Era comum, também, anunciarem aquisições sem explicitar quanto havia sido pago ou o impacto sobre as finanças. “Eles se davam ao direito de não dar explicação a ninguém, porque eram o 3G. A gente aceitava, porque eram ícones da competência e do capitalismo.”

Aí reside o tema que deveria estar no cerne das preocupações do poder público. A Americanas não é a primeira empresa do 3G a ter problemas. Para ficar só no exemplo mais recente, em 2019, fraude semelhante foi descoberta por autoridades dos Estados Unidos na Kraft Heinz, que teve de corrigir o balanço em US$ 15,4 bilhões e pagar multa de US$ 62 milhões. Kraft e 3G ainda tiveram de pagar US$ 450 milhões para encerrar a ação movida pelos investidores.

Enquanto tudo isso acontecia lá fora, no Brasil os executivos da Americanas recebiam seus bônus, os bancos faturavam com as taxas de seus financiamentos, as auditorias recebiam sua remuneração, e os órgãos reguladores se mantinham alheios aos sinais de que algo poderia estar errado.

Sempre se poderá dizer, como fez o CEO na CPI, que “quem olha do lado de fora não consegue perceber essa fraude”. O nó está justamente em saber quem estava realmente de fora e quem estava dentro. Algo me diz que ainda vamos descobrir.

Atualização às 8h07: O faturamento anual da Americanas é de R$ 32 bilhões e não de R$ 14 bi, como constava na versão anterior do texto. A informação foi corrigida. Da mesma forma, Beto Sicupira continua membro do conselho da companhia.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é jornalista especializada em politica e economia. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 15.06.23

Postura de Lula ameaça acordo já fechado com União Europeia

Ao tentar revogar compromissos já assumidos, presidente faz o jogo dos protecionistas europeus

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, com o presidente Lula em Brasília (Cristiano Mariz/Agência O Globo)

É do interesse do Brasil um acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia (UE). Por isso causam preocupação as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em Brasília em encontro com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Lula criticou exigências dos negociadores da UE na área ambiental e disse querer rever um mecanismo do texto já acordado sobre a participação de empresas europeias em compras governamentais. Não está claro se o objetivo é aparar arestas pontuais e firmar logo o acordo ou criar empecilhos, para assim reabrir a negociação iniciada em 1999 e concluída em 2019, adiando indefinidamente a implementação. A segunda possibilidade seria desastrosa para o Brasil, tanto do ponto de vista comercial como geopolítico.

O acordo firmado prevê a eliminação de impostos de importação para mais de 90% dos bens comerciados entre os dois blocos ao longo de um período de transição de 15 anos. Embora as vantagens comerciais para o setor industrial sejam menores, pois as tarifas europeias já são baixas, a implementação elevará os investimentos e favorecerá a integração brasileira a cadeias globais. Para o setor agrícola, o ganho advém do aumento das cotas para diversos produtos. Por tudo isso, não surpreende que entidades representativas de empresários industriais e do campo sejam favoráveis ao tratado.

O acordo é um primeiro passo para abrir a economia brasileira — ainda uma das mais fechadas do planeta — à competição. Negociações multilaterais envolvendo dezenas de países são consideradas impossíveis na atual conjuntura internacional. As grandes potências não mostram interesse nessa alternativa, e a Organização Mundial do Comércio (OMC) sofre há anos uma erosão de poder. O único caminho disponível para a liberalização comercial hoje é a assinatura de acordos entre países ou blocos.

Do ponto de vista geopolítico, também faz sentido estreitar a aproximação com os europeus. Num momento em que a disputa entre Estados Unidos e China só faz crescer, o Brasil precisa escapar das armadilhas dessa bipolaridade. Estreitar os laços com os europeus seria uma maneira salutar de evitar ser forçado a escolher um dos lados, ampliando as opções.

A crítica de Lula às exigências ambientais é válida. Apresentado no começo do ano, um adendo exige uma meta impraticável para o fim do desmatamento e prevê sanções em caso de descumprimento. O artifício parece uma maquiagem ambiental para o velho protecionismo. Reduzir o desmatamento é interesse também do Brasil e, com boa vontade, as exigências poderiam ser reformadas ou eliminadas.

O caso das compras governamentais é distinto. Obcecado pela ideia de política industrial, Lula quer barrar a participação dos europeus em licitações do governo, voltando atrás num compromisso já assumido pela diplomacia brasileira. Se insistir, dará oportunidade para que a UE apresente velhas e novas demandas. Já será difícil garantir todas as aprovações necessárias para que o texto do acordo entre em vigor (27 parlamentos nacionais, fora o Parlamento Europeu). Reabrir as negociações depois de fechado o texto só piora a situação. É tudo o que os protecionistas europeus querem para dinamitar o acordo. Será provavelmente o fim de um tratado fundamental para dinamizar a economia brasileira. Infelizmente, talvez seja esse o plano de Lula.

Editorial de O GLOBO, em 14.06.23

quarta-feira, 14 de junho de 2023

A chance do Brasil

Oferta da UE para investimento em hidrogênio verde no Brasil mostra o grande potencial do País na corrida pela produção de energia limpa e eficiente, que hoje mobiliza o planeta

O anúncio da presidente da União Europeia (UE), Ursula von der Leyen, de que o bloco investirá € 2 bilhões (R$ 10,5 bilhões) para incentivar a produção de hidrogênio verde no Brasil teve ares de afago ao presidente Lula da Silva, com vista a facilitar a assinatura do acordo com o Mercosul. Mas a intenção de investimento europeu, que a executiva trouxe na bagagem esta semana em sua visita oficial, não é um favor, e sim uma oportunidade de negócios. E das mais rentáveis.

Na jornada mundial em busca de uma matriz energética mais limpa e sustentável, o hidrogênio verde vem se firmando como uma das alternativas mais potentes de substituição aos combustíveis fósseis, como gasolina, diesel e óleo combustível. Em recente relatório distribuído a investidores, o Boston Consulting Group (BCG), uma das três maiores consultorias estratégicas do mundo, estimou que, entre 2025 e 2050, governos e empresas devem destinar entre US$ 6 trilhões e US$ 12 trilhões na produção e transporte de hidrogênio com baixo teor de carbono.

É uma realidade que está batendo à porta e com pesquisas avançadas, que vêm reduzindo custos de produção. Com a vantagem de contar com uma matriz energética diversificada e já bastante limpa, com farta geração de energia hídrica, além da solar e eólica, o Brasil é um parceiro cobiçado para projetos de transição energética. Ao contrário de países que precisam se amparar predominantemente na eletrificação dos carros para cumprir o compromisso de zerar a emissão de gases do efeito estufa, como é o caso dos membros da União Europeia, temos outras portas de saída.

Como disse, em entrevista ao Estadão, Gastón Diaz Perez, CEO da Bosch na América Latina, o centro das discussões ambientais é a descarbonização, e não a eletrificação. Ele ressaltou que, com o uso do etanol e carros flex, o Brasil já reduziu em 60% as emissões de carbono, comparativamente à utilização de motores a gasolina. “Há várias opções para descarbonização”, disse. “Cada uma delas é uma carta. Muitos países têm uma só carta. O Brasil tem o baralho completo.”

Obtido por meio da eletrólise da água – um processo químico que utiliza a corrente elétrica para separar as moléculas de oxigênio e hidrogênio – com o uso da energia renovável de hidrelétricas, usinas eólicas, solares ou ainda de biomassa e biogás, o hidrogênio verde vem sendo pesquisado e desenvolvido há duas décadas. Mas os recursos orçamentários para acelerar a formação do mercado no País ainda são escassos. Há apenas um ano o BNDES lançou linhas específicas de financiamento para o setor. Neste caso, uma política pública consistente de subsídios refletiria uma visão de futuro, ao contrário de apostas antiquadas nos incentivos setoriais à indústria para fomentar o desenvolvimento.

Enquanto o governo engatinha, empresas estrangeiras, como o grupo francês Qair, a mineradora australiana Fortescue e o grupo alemão Linde, controlador da White Martins, já estão investindo bilhões de reais no ganho de escala na produção de hidrogênio verde no Brasil, para uso tanto no transporte quanto na indústria. A primeira planta em larga escala está prevista para 2027, em Camaçari, na Bahia, num investimento da fabricante de fertitilizantes Unigel.

O estudo Building the Green Hydrogen Economy (Construindo a Economia do Hidrogênio Verde), do BCG, destaca que esse combustível terá papel fundamental na descarbonização de indústrias com maior dificuldade de reduzir suas emissões, como a siderúrgica, a química e aviação, por exemplo. Por tudo isso, prevê uma explosão de demanda, passando dos 94 milhões de toneladas de 2021 para mais de 350 milhões de toneladas/ano a partir de 2025, devendo chegar a 2050 em 530 milhões de toneladas/ano.

Como se vê, trata-se de um mercado rentável e promissor que está apenas começando. Portanto, a oferta de Ursula von der Leyen, que não tem nada de desinteressada, mostra como o Brasil tem tudo para ser a grande usina de energia limpa para o mundo. Logo, deve concentrar suas atenções na matriz energética do futuro, abandonando, o mais rápido possível, os investimentos em energia poluente do século passado.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.06.23

As acusações que podem impedir Bolsonaro de disputar eleições

A intensa campanha do então presidente Jair Bolsonaro (PL) contra a credibilidade da Justiça Eleitoral e da urna eletrônica pode causar agora seu afastamento das eleições por oito anos.

Para entrevistados, é alta a probabilidade de Jair Bolsonaro ser condenado em julgamento do TSE (Crédito da foto: Isaac Fontana / EFE, Rex, Shutersstock)

Para especialistas em direito eleitoral ouvidos pela BBC News Brasil, é alta a probabilidade de o ex-presidente ser condenado em um julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) previsto para começar no próximo dia 22. Caso isso se confirme, Bolsonaro ficará inelegível.

O ex-presidente enfrenta 16 ações na Corte. No caso mais avançado, que será julgado na próxima semana, é acusado de ter cometido abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social quando reuniu em julho de 2022 dezenas de diplomatas no Palácio da Alvorada para apresentar falsas teorias sobre a insegurança das urnas e atacar ministros do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF).

O encontro ocorreu pouco antes do início da campanha eleitoral, em que Bolsonaro foi derrotado pelo atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A defesa do ex-presidente, por sua vez, argumenta que o evento não tinha caráter eleitoral e que o então presidente usou sua liberdade de expressão para manifestar preocupações legítimas sobre a integridade das eleições brasileiras.

A ação apresentada pelo PDT, partido que disputou a campanha presidencial com o candidato Ciro Gomes, pede a inelegibilidade de Bolsonaro e do general Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil que concorreu como candidato à vice-presidente. A Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) se manifestou a favor apenas da condenação de Bolsonaro.

Entenda a seguir, em quatro pontos, os argumentos da acusação e da defesa, por que especialistas acham provável uma condenação e quais ministros julgarão o ex-presidente.

1. Quais são as acusações?

Segundo a Constituição Federal e a legislação eleitoral brasileira, um político pode ser declarado inelegível caso tenha atuado contra a normalidade e a legitimidade das eleições. Isso pode ocorrer por meio de três ilegalidades:

Abuso do poder político — ou seja, quando um governante usa seu cargo atual para favorecer a si próprio ou a aliados na eleição;

Abuso de poder econômico — que ocorre, por exemplo, quando o candidato usa recursos ilegais na sua campanha ou realiza compra de votos;

Uso indevido de meios de comunicação — como no caso de um canal de televisão usar sua programação para favorecer algum concorrente ou um candidato usar suas redes sociais para propagar informações falsas.

Na ação que será julgada no dia 22, o ex-presidente está sendo acusado de ter cometido abuso de poder político por ter usado a estrutura da Presidência da República para convocar diplomatas para uma reunião de caráter eleitoral, com ataques infundados ao sistema de votação.

A suposta irregularidade teria sido agravada pelo fato de o evento ter sido transmitido ao vivo pela EBC, empresa pública de comunicação, e pelas redes sociais do presidente, configurando também o uso indevido de meios de comunicação.

Bolsonaro em foto de 18 de julho de 2022, quando ocorreu encontro com diplomatas (Crédito da foto: Clauber Cleber Caetano / PR)

O PDT argumenta ainda, na ação, que a reunião com os diplomatas não se tratou de um episódio isolado, mas se inseriu numa estratégia de campanha de Bolsonaro para questionar o resultado em caso de derrota.

Para o partido, a reunião visava “buscar adesão dos países estrangeiros para que, se porventura um golpe de Estado fosse instaurado, obtivesse apoio, já que o processo de votação não seria confiável e estaria eivado de fraude”.

“Esse (apoio para um golpe) foi o objetivo da reunião. Não existiu nenhum interesse público subjacente à estruturação do evento”, reforçou.

Para convencer o TSE sobre a gravidade dos atos de Bolsonaro, o partido cita como consequência de suas falas os ataques antidemocráticos de 8 de janeiro.

“O discurso proferido na reunião com embaixadores converge com dizeres apropriados por eleitores e apoiadores do candidato, em uma cruzada antidemocrática com a instalação de acampamentos em frente aos QG’s do Exército em todos os rincões do Brasil, centrada em uma suposta existência de fraude nas urnas, bem como também no sistema eleitoral, de modo que bradavam por intervenção militar e por um ‘processo eleitoral transparente’”, disse o partido nas alegações finais da ação.

“A consequência da perpetração, pelo Senhor Jair Messias Bolsonaro, dessas condutas acintosas ao Estado Democrático de Direito e à integridade do processo eleitoral foi o intenso ataque de vândalos e golpistas contra as sedes do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto, em 08 (oito) de janeiro de 2023”, afirma o PDT em outro trecho da manifestação.

O PDT cita ainda a “minuta do golpe” — documento encontrado pela Polícia Federal no dia 12 de janeiro na casa de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro —, que serviria para decretar um estado de defesa no Brasil, possibilitando a revisão do resultado das eleições de 2022, vencida por Luiz Inácio Lula da Silva.

Ao longo do processo, o TSE autorizou que essa minuta fosse incorporada como prova na ação.

2. O que diz a defesa de Bolsonaro?

O ex-presidente argumenta, na ação, que o evento não teve caráter eleitoral, destacando que não houve pedido de votos e que o público-alvo (diplomatas estrangeiros) não votam no Brasil. Segundo sua defesa, a reunião foi um “ato de governo” e, por isso, contou com a transmissão da EBC.

Os advogados de Bolsonaro disseram ainda, em manifestação ao TSE, que "a má-fé de determinados setores da imprensa" levou a cobertura do evento a tratar "uma proposta de aprimoramento do processo democrático como se se tratasse de ataque direto à democracia".

A defesa ressalta, ainda, que a reunião foi convocada por Bolsonaro após o então presidente do TSE, Edson Fachin, realizar em maio de 2022 o evento "Sessão Informativa para Embaixadas: o sistema eleitoral brasileiro e as Eleições de 2022".

Na ocasião, Fachin fez um discurso com críticas indiretas aos ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral.

"Convido o corpo diplomático sediado em Brasília a buscar informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira, não somente aqui no TSE, mas junto a especialistas nacionais e internacionais, de modo a contribuir para que a comunidade internacional esteja alerta contra acusações levianas", afirmou no evento.

A defesa de Bolsonaro alega, então, que ambos os encontros com diplomatas representariam um “diálogo institucional” sobre o sistema eleitoral.

“O que se percebe das falas do primeiro investigado Jair Messias Bolsonaro, por meio de um exame sereno e desapaixonado, feito com as lentes do necessário diálogo institucional e da inadiável promoção da transparência eleitoral, é nada mais nada menos do que um convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”, diz a defesa em manifestação ao TSE.

“Com o respeito devido, não parece difícil entender que o sistema eletrônico de votação e as boas práticas que acercam a realização de uma eleição como a brasileira são dignas de constante aperfeiçoamento, não havendo motivos para se confundir questionamentos (pontos duvidosos!), postos às claras, com ato de abuso de poder político e/ou de meios de comunicação”, afirma ainda a defesa, liderada pelo advogado Tarcísio Vieira, ex-ministro do TSE.

Quanto às acusações de que teria responsabilidade nos atos de 8 de janeiro, Bolsonaro tem negado qualquer envolvimento. Enquanto estava vivendo nos Estados Unidos, disse, sem apresentar provas, que “pessoas de esquerda” programaram as invasões.

"As manifestações da direita ao longo de 4 anos foram pacíficas e não temos nada a temer. Jamais o nosso pessoal faria o que foi feito agora no dia 8 [de Janeiro]. Cada vez mais nós temos certeza que foram pessoas da esquerda que programaram aquilo tudo", disse o ex-presidente à emissora americana NBC.

Bolsonaro deixou o país para uma temporada na Flórida poucos dias antes da posse de Lula e voltou ao Brasil no final de março.

3. Por que especialistas consideram condenação provável?

Para o advogado Luiz Fernando Casagrande Pereira, especialista em direito eleitoral, a cassação do deputado estadual pelo Paraná Fernando Francischini em outubro de 2021 é um precedente que torna “muito provável” a condenação de Bolsonaro.

Bolsonarista, Francischini foi o deputado estadual mais votado no Paraná em 2018 e perdeu seu mandato devido a acusações infundadas contra o funcionamento das urnas. Além disso, o TSE o declarou inelegível por oito anos.

Em 2018, o deputado estadual pelo Paraná Fernando Francischini perdeu o mandato devido a acusações infundadas contra o funcionamento das urnas (Crédito da foto: Alex Ferreira / Câmara dos Deputados)

A punição foi aplicada porque Francischini fez uma transmissão ao vivo no Facebook durante a votação de 2018 apontando supostas fraudes em urnas eletrônicas que não estariam registrando votos para o então candidato Jair Bolsonaro. A alegação era que o eleitor digitava 17 (número de Bolsonaro em 2018, quando concorreu pelo antigo PSL), mas não aparecia o rosto e o nome do atual presidente no painel da urna.

Porém, a investigação do caso identificou que, na verdade, essas pessoas estavam digitando 17 no momento em que a urna registrava o voto para governador, e não para presidente, de modo que seria impossível o voto ser registrado para Bolsonaro.

Depois, acrescenta Pereira, uma resolução do TSE de dezembro de 2021 estabeleceu ser proibida "a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinja a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos".

Ainda segundo essa resolução, quem promover esse tipo de alegação falsa contra o processo eleitoral poderá sofrer "apuração de responsabilidade penal, abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação". Isso significa que, além de poder enfrentar uma investigação criminal, tal pessoa pode ser processada na Justiça Eleitoral.

Na visão de Casagrande Pereira, essa resolução foi um “recado” para os candidatos em 2022.

“Então, eu diria que o Bolsonaro assumiu esse risco quando fez os movimentos que fez, inclusive a reunião com os embaixadores, que está inserido num contexto de outras tantas vezes em que ele questionou o sistema de votação e totalização e obteve sucesso”, nota o advogado.

“Sucesso no sentido de convencer as pessoas de que o sistema não é confiável. E era exatamente isso que o TSE queria impedir quando cassou o mandato do Francischini e quando adotou essa resolução”, continuou.

Decisões preliminares do TSE relacionadas ao caso que será julgado também são um sinal ruim para Bolsonaro. Ainda em 2022, a Corte determinou que fossem retirados do ar os vídeos com a transmissão da reunião.

Também no ano passado, o tribunal multou o presidente em R$ 20 mil por considerar que o evento foi campanha eleitoral antecipada e feriu a resolução que proíbe ataques falsos ao sistema eleitoral.

Para Vânia Aieta, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenadora-geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), a reunião com diplomatas no Palácio da Alvorada configura claro abuso de poder político.

“Nessa ação, vejo possibilidades concretas e reais da condenação do Bolsonaro”, avalia.

“Essa reunião de fato se configura abuso do poder político, na medida em que ele usa do papel dele de presidente, usa de toda a institucionalidade presidencial, para convocar o corpo diplomático e dizer, sem apresentar absolutamente nenhuma prova, que a Justiça Eleitoral estaria fraudando as eleições”, reforça.

Aieta lembra que o país já teve situações de fraude eleitoral que levaram à anulação de eleições, mas todos os episódios anteriores à adoção da urna eletrônica (lançada em 1996).

Um caso, ela cita, ocorreu em 1994, quando a Justiça Eleitoral refez a eleição para deputados estaduais e federais no estado do Rio de Janeiro, após os votos brancos terem caído para níveis historicamente baixos, indicando uma falsificação de parte dos votos.

“Mas (a acusação de fraude de Bolsonaro) agora era uma mera retórica de desinformação, um mero estímulo à criação de uma rede de desinformação que viria então a serviço de desacreditar o resultado eleitoral se não lhes fosse favorável”, destaca a professora.

4. Quem vai julgar Bolsonaro?

Das sete vagas titulares do TSE, três são ocupadas por ministros do STF: atualmente, estão lá Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Kassio Nunes (Crédito da foto: Alejandro Zambrana/SECOM - TSE)

O TSE é formado por sete ministros titulares e a expectativa nos bastidores de Brasília é que o julgamento deve ter um placar de 5 a 2 ou 6 a 1 pela condenação de Bolsonaro.

Das sete vagas titulares do TSE, três sempre são ocupadas por ministros do STF, que cumprem mandatos de dois anos renováveis por mais dois. Atualmente, são Alexandre de Moares, que preside o tribunal, Cármen Lúcia e Kassio Nunes.

Moraes tem adotado uma postura dura contra os ataques ao sistema eleitoral, e por isso acredita-se que votará pela inelegibilidade de Bolsonaro. A expectativa é que Cármen Lúcia acompanhará essa posição.

Já Kassio Nunes, indicado ao STF por Bolsonaro, é visto como um aliado do ex-presidente e pode ser o único voto contra a condenação. Reforça essa avaliação o fato de que o ministro concedeu uma liminar suspendendo a cassação de Francischini pelo TSE, decisão que depois foi derrubada pela maioria do Supremo.

Nessa liminar, Nunes citou “a preeminência atribuída pela Constituição de 1988 à livre circulação de pensamentos, opiniões e críticas com vistas ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito e à pluralização do ambiente eleitoral, cabendo à Justiça Eleitoral intervenção mínima, em primazia à liberdade de expressão”.

Outras duas vagas titulares do TSE são ocupadas por ministros do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em mandatos de dois anos não renováveis.

Um deles é Benedito Gonçalves, corregedor-geral eleitoral e relator da ação. Ele é visto como alinhado a Moraes no TSE.

O outro é Raul Araújo, ministro de perfil conservador que já tomou decisões consideradas favoráveis a Bolsonaro, por exemplo, quando proibiu manifestações políticas no Lollapalooza depois de artistas demonstrarem apoio a Lula na eleição.

Entre juristas, porém, há dúvidas sobre qual será seu voto no caso.

E as outras duas vagas titulares do TSE são ocupadas por juristas vindos da advocacia — no momento, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares. Ambos foram nomeados em maio por Lula e são considerados próximos a Moraes.

Mariana Schreiber, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 14.06.23

terça-feira, 13 de junho de 2023

Nem-nem: geração em busca de um propósito

Os dados oscilam, mas há anos a frustração dos jovens que não estudam nem trabalham permanece como ferida aberta a exigir cuidados mais dedicados do Estado e da sociedade

Uma pesquisa rápida ao acervo do Estadão revelará que há mais de dez anos as aflições da chamada geração nem-nem, grupo de jovens entre 15 e 29 anos que não estudam nem trabalham, são temas recorrentemente abordados nesta página. Para este jornal, há poucos sinais mais reveladores da distância que separa o Brasil de um futuro à altura de suas potencialidades do que a negligência do Estado e da sociedade com a falta de confiança no País que desalenta tantos milhões de jovens naquela faixa etária, há tanto tempo.

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua Educação 2022, divulgados pelo IBGE há poucos dias, não são alvissareiros. Eles mostram que um em cada cinco brasileiros entre 15 e 29 anos está fora da sala de aula e do mercado de trabalho. Ou seja, dos 49 milhões de jovens nessa faixa etária, 9,8 milhões (20%) estão em situação de total desalento – uma geração à procura de um propósito de vida. Ainda de acordo com a pesquisa, 15,7% dos jovens estavam trabalhando e estudando no ano passado; 25,2% apenas estudando; e a maioria, 39,1%, estava trabalhando, mas longe das escolas, centros técnicos e universidades.

Os porcentuais oscilam entre uma pesquisa e outra, mas há anos, de forma consistente, a frustração de milhões das novas gerações com o País permanece como ferida aberta a exigir cuidados mais dedicados. O número dos nem-nem apurado na Pnad Contínua Educação 2022 é ligeiramente menor do que o revelado pela pesquisa realizada em 2019, quando 22,4% dos brasileiros entre 15 e 29 anos não trabalhavam nem estudavam. Contudo, esse recuo de 2,4 pontos porcentuais nem de longe autoriza otimismo. Como falar em melhora diante do fato de que quase 10 milhões de cidadãos em idade produtiva não encontram estímulos ou condições objetivas para voltar às salas de aula ou procurar um emprego?

A Pnad Contínua Educação 2022 reforça, ainda, a necessidade de uma intervenção multidisciplinar, o mais rápido possível, para acudir esses jovens desiludidos, em especial as mulheres. Elas apontam a gravidez (22,4%) e a necessidade de realizar trabalhos domésticos ou cuidar de outras pessoas (10,3%) como impedimentos para os estudos ou para o trabalho fora de casa. Mesmo os jovens que trabalham, mas não estudam (40,2%) inspiram preocupação. Afinal, que desenvolvimento pessoal e financeiro podem almejar para si e suas famílias no futuro quando, por força das necessidades de momento, precisam abdicar de sua formação educacional?

Há caminhos para que o País se livre, de uma vez por todas, da indecência de entregar boa parte de sua juventude à desesperança, comprometendo seu próprio futuro. E eles são conhecidos. Dependem primordialmente do despertar da sociedade para o problema e da cooperação entre os entes federativos.

Ao governo federal, por exemplo, cabe formular e conduzir uma política econômica responsável que leve o País à retomada do crescimento duradouro, condição indispensável para a ampliação de postos de trabalho. É elementar. Pais empregados, com renda suficiente para que a família tenha uma vida digna, significam filhos livres para estar na sala de aula, não em busca de complementação da renda familiar.

Os governos subnacionais, por sua vez, sem prejuízo da coordenação da União, têm de estabelecer a educação pública como prioridade inegociável. Nesse sentido, é mais que bem-vinda a ideia do governo de São Paulo de criar, no âmbito da Secretaria da Educação, a Coordenadoria de Educação Profissional, que será responsável por ofertar milhares de vagas em cursos técnicos aos jovens paulistas usando a atual estrutura das escolas da rede pública. De acordo com o Palácio dos Bandeirantes, as aulas técnicas serão ministradas por profissionais atuantes no mercado para o qual prepararão seus alunos.

Essa é apenas uma ideia. Há muitas outras. Tão mais rápido será o encontro do País com um futuro mais auspicioso, menos desigual, quanto maior for a atenção dedicada pelo Estado e pela sociedade a uma geração que perdeu até mesmo a capacidade de sonhar.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.06.23

É chegada a hora de Brasil e Ucrânia se unirem

Para o futuro da democracia, ficar calado ou permanecer neutro não é opção

O líder ucraniano, Volodimir Zelenski (à esq.), e seu chefe de gabinete, Andrii Iermak, em encontro com o presidente dos EUA, Joe Biden, em Kiev - (Gleb Garanich - 20.fev.23/Reuters - REUTERS)

Desde pequeno, três assuntos me fazem lembrar do Brasil.

O primeiro é a bossa nova. Fiquei encantado na primeira vez em que ouvi "Garota de Ipanema". Segundo: o café. Quando a União Soviética estava nos seus últimos anos, bens que costumavam ser sinais de luxo ultrapassaram os limites da Cortina de Ferro. Forte e perfumado, tornou-se um ingrediente essencial no dia a dia dos ucranianos. O terceiro é, obviamente, o futebol. Dos lendários Pelé e Garrincha ao icônico Ronaldo.

Mas esses assuntos são para tempos de paz. Nestes dias turbulentos, tenho pensado em outro tema que me lembra o Brasil: a capoeira. Admiro a força daqueles que a criaram —pessoas que resistiram à escravidão. Desde a invasão ilegal da Ucrânia pela Rússia, tive a honra de conhecer pessoas igualmente heroicas.

O líder ucraniano, Volodimir Zelenski (à esq.), e seu chefe de gabinete, Andrii Iermak, em encontro com o presidente dos EUA, Joe Biden, em Kiev - Gleb Garanich - 20.fev.23/Reuters - REUTERS

Mas os paralelos entre a Ucrânia e o Brasil vão além. Os atos de agressão da Rússia não foram apenas contra o nosso povo, mas também contra o meio ambiente. A Ucrânia perdeu um terço de suas florestas. Ecossistemas estão à beira da extinção. Os brasileiros abrigam boa parte do pulmão do nosso planeta —a Amazônia— e, por isso, compreendem que esta é uma ameaça para a humanidade.

O futuro do mundo livre está sendo decidido neste momento nos campos de batalha da Ucrânia. Moscou rompeu promessas feitas em acordos internacionais para justificar as tentativas de exterminar um Estado soberano. A sua máquina de propaganda funciona no Brasil e em todo o mundo, disseminando afirmações sem sentido sobre a hegemonia do Ocidente.

Os ucranianos sofreram a deportação forçada de 20 mil crianças, viram tortura e execução do seu povo e a destruição de cidades inteiras. E isso é só a ponta do iceberg. A ideologia do mundo russo é uma mistura explosiva de capitalismo selvagem, imperialismo e nacionalismo chauvinista. E não dá sinais de que vai parar.

Os países do hemisfério Sul lutaram contra o colonialismo e ditaduras impostas por outras nações durante parte da sua história. A Ucrânia está fazendo o mesmo. Mas a escolha que cada líder mundial tem que fazer agora é muito maior do que decisões sobre armas ou sanções.

Será que os Brics querem ser associados a um Estado que cometeu tais horrores? Será que a conveniência econômica supera os riscos para a humanidade e as ameaças globais à segurança ecológica, nuclear e alimentar? Os acontecimentos na Ucrânia não são apenas por territórios ou recursos.

Se a Rússia não for interrompida, como o resto do mundo impedirá que outros regimes semelhantes se repitam na Ásia, África ou América do Sul?

A agressão e o genocídio não podem ser justificados. O acordo entre Moscou e Minsk para a instalação de armas nucleares no território belarusso é mais um passo na direção do desastre. A Ucrânia desistiu das suas armas nucleares e foi invadida. Deverá o Brasil voltar a buscar ogivas nucleares por precaução?

Ficar calado ou permanecer neutro não é opção. Esta é uma decisão que determinará o futuro da democracia. A visão ucraniana, que oferece um futuro global mais seguro, está delineada na fórmula da paz do presidente Volodimir Zelenski. Não se pode permitir que o terrorismo fique impune.

Os ucranianos e os brasileiros não têm só uma filosofia comum, mas também interesses que pautam as economias do futuro. Nossos países podem iniciar uma nova era de relações, seja na expansão das nossas indústrias aeroespaciais ou de transformação de alimentos, seja em projetos de sustentabilidade ou em produtos eletrônicos.

É a hora de nos mantermos unidos.

Andrii Iermak, o autor deste artigo, é Chefe de gabinete da Presidência da Ucrânia. Publicado originalmente em português do Brasil pela Folha de S. Paulo, em 13.06.23

Kit de desvios

Casos dos robôs educativos e da Codevasf mostram baixo controle sobre emendas

Kit de robótica comprado por meio de emendas parlamentares (Pedro Ladeira/Folhapress)

Se fosse uma série, o roteiro talvez merecesse críticas por faltar-lhe verossimilhança: parlamentares destinam R$ 26 milhões para comprar kits de robótica que serão utilizados em escolas sem laboratório de ciências, sem internet e sem água encanada.

Em desmandos da política, contudo, não raro a realidade supera a ficção; o caso, revelado por reportagem da Folha, é apenas o mais recente em uma longa lista de episódios que roçam o surrealismo.

Nos capítulos atuais, a Polícia Federal investiga um casal que retirava dinheiro em espécie de agências bancárias e entregava os valores a pessoas ainda não identificadas.

A PF desconfia que os montantes tenham sido desviados de contratos em torno dos kits de robótica e terminaram nas mãos de agentes públicos. Um deles seria Luciano Cavalcante, principal auxiliar de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados —suspeita que os investigadores embasam com imagens de vídeos.

Outro aliado de Lira, o vereador João Catunda, de Maceió, estaria por trás da empresa que adquiriu kits por R$ 2.700 e os revendeu para cidades alagoanas por R$ 14 mil.

A hipótese de corrupção salta aos olhos e, com razão, exaspera o cidadão que cumpre suas obrigações dentro da lei. É o dinheiro dos impostos, afinal, que locupleta quem se beneficia de desvios.

Não se deve perder de vista, porém, que o caso seria grave mesmo que não tivesse todas as digitais de um esquema espúrio. É que, mesmo nessa eventualidade, haveria enorme desperdício de verbas muito necessárias país afora.

Tome-se a situação da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Contratos com empreiteiras pouco conhecidas suscitam desconfiança, mas o maior ralo de dinheiro talvez nem seja esse, e sim a subversão da estatal.

Em tese voltada à irrigação, ela parece servir mais para a pulverização dos recursos federais em pequenos projetos. Tudo direcionado para acólitos e familiares de políticos e, pior, sem avaliação de prioridades, necessidade ou eficiência.

Como no caso dos kits de robótica, ainda que de fato fossem comprados a bom preço, que valia teriam em escolas sem internet?

Ambos os episódios ilustram os frutos podres das práticas fisiológicas. Elas não surgiram ontem, mas ganharam novo impulso com o aumento do poder do Congresso sobre o Orçamento. Emendas parlamentares foram o duto por onde o dinheiro passou antes de chegar aos kits de robótica e à Codevasf.

Nada há de errado em o Parlamento definir despesas; tudo vai mal, entretanto, quando há pouco controle e ainda menos transparência no trato da coisa pública.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 13.06.23 (editoriais@grupofolha.com.br)

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Chamando o vento pelo assobio

Por Edson Vidigal

No zap, pelo viva voz, Luiz Raimundo me conta que a Ilha hoje amanheceu assobiando. Aquele assobio de barqueiro-pescador chamando vento. 

Venta Lelê pra esse barco andar, venta Lelê pra esse barco andar... 

Ergo-me movendo os braços como numa saudação de palanque, daquelas que de há muito nem faço mais:

- É o Maranhão, mermão! É o Maranhão...

Então, navegando entre as ondas de um colírio, o meu drone, empanturrado de tanta inteligência artificial, restante das gambiarras engendradas nos silícios do Bacanga, alcança uma enorme palmeira branca tirada, segundo o António, de uma rocha metamórfica, constituída de calcita e dolomita recristalizada de textura sacaroide, de granulação variável, frequentemente provida de veios coloridos, tudo isso, para ser chamada, ao final, de mármore. 

(Esse António de quem vos falo é o Houaiss, isso mesmo – o António Houaiss, mais conhecido pelo dicionário concorrente do Aurélio, sim, o popular pai-dos-burros, do Aurélio Buarque de Hollanda, em cuja equipe militou o nosso imortal Campelo, da AML, e porque não lhe pagaram ainda rola processo judicial pelo aí. 

Tenho o meu pensar cauteloso, mas sempre muito indignado, sobre como estão ultimamente os três pilares do nosso mui querido Estado Democrático de Direito. Como diria um amigo nosso, aprendiz de Proust, depois eu conto...

O António não resumiu seu tempo à essa obra esplendorosa que é o Dicionário. Vivesse hoje estaria, quem sabe, talvez, mais festejado em feiras e festivais por suas invenções gastronômicas. Escreveu um livro de receitas positivamente testadas na panela e no fogão. 

E não só isso. O Professor Sérgio, não sei bem, se à época já fosse o pai do Chico, quando ele, o António, mais o Mangabeira, irmão do Octavio baiano, mais o Hermes Lima, o Evandro Lins, nascido ali em Parnaíba e criado bem aqui em Itapecuru-Mirim, todos então na velha UDN, a qual não era conhecida ainda como a UDN da calúnia, desafiaram a velharada do partido e fundaram a Esquerda Democrática, a qual veio a ser o PSB, um tanto desvirtuada nos princípios programáticos da origem pelo Arrais, o qual voltou do exilio quando da última ditadura com um olhar ao Brasil um tanto ultrapassado. Mas a ideia de que o socialismo cabe muito bem num Estado Democrático de Direito foi debatida e construída originariamente aqui no Brasil por eles, os jovens da Esquerda Democrática.)

Meu drone deu uma volta pelo topo da palmeira branca plantada numa praça que tem um coreto quase em frente a uma igreja de construção farejando o gótico. Mostra-me a foto que ele, o inteligente artificial, - e já são tantos hoje na política, agora me apresenta. No topo da brancona e longilínea palmeira, quem? O Gonçalves Dias, não, não, sim, o cantor das selvas, de Caxias.

Num dos bancos da praça do poeta de Caxias vez por outra era visto um senhor a tomar banho de sol. Aborrecia-se demais quando os garotos do grupo escolar em frente jocosamente o chamavam – ei Cauby Peixoto, ei Cauby Peixoto! O cara virava uma arara. Mas o negócio é que pendurava um palito de picolé no canto da boca e quando não assobiava, cantava a Tarde Fria. 

- É o Maranhão mermão! Sempre assobiando, palitando os dentes com palito de picolé, cantando a Tarde Fria...

(Lelê é a nossa neta. De Euridice e minha também. Por extensão. Dessas que nunca se tira da tomada. Linda, inteligente, arguta. Como toda neta da gente. A saudade amanhecida hoje nesse friozão que faz aqui foi lá no meu subconsciente e voltou dizendo que é a Lelê quem chama o vento e ele atende. E não o seu Loló.)

O chamamento do vento na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, como constatou e descreveu um ancestral do Macrón - o padre D’abeville, o qual tinha horror a mentiras, em especial as atiradas de uns incertos púlpitos, - oh templos, oh mores, - o cara que mandava no vento acionado pelo assobio chama-se Loló e mora invisível, até onde eu sei, por todas as praias do litoral nordeste do Brasil. 

Na jurisdição do seu Loló, a qual abarca por inteiro a ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, incluindo Cedral e até Cajapió (não é a pior cajá, gente), seu Loló tem casa no Calhau. Foi lá que, no último século, lhe levaram a notícia de que o Coronel Santana deu ordem de prisão e levou preso o Secretário de Fazenda, se bem lembro, no último dia do governo do doutor Nunes Freire. 

Esse Coronel Santana, e fazia tempo de Quarta-Feira de Cinzas no País, era um dos mais exímios assobiadores – chamadores de vento para empinar seu papagaio tipo jamanta na Praça Marechal Deodoro.

Chico Maranhão também assobiava muito na praia do Calhau chamando o vento do seu Loló para desencalhar.

- Desencalhar, o que siô? 

- Sereia, siô. Sereia.

É sempre bom lembrar o achado de Glauber Rocha, segundo o qual “no Maranhão, quem não é mais poeta, virou coco babaçu.”

Bsb, 09.06.23

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Que Brasil Lula projetará nas próximas viagens?

Seria uma lástima se Lula e Biden desperdiçassem a oportunidade de serem sal da terra e luz do mundo, com a bênção do papa e o aplauso da comunidade mundial

Visto de Washington, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não fez amigos nem influenciou países no acanhado começo de seu inusitado terceiro mandato no Palácio do Planalto. Ao contrário, desapontou aliados tradicionais na Europa e nas Américas ao persistir na conhecida trilha das oportunidades perdidas, que vai no sentido oposto do objetivo declarado de promover o interesse nacional e fazê-lo projetando a liderança do Brasil em temas centrais para nós e nossos vizinhos. Quem sabe as bênçãos de Santo Antônio, São João e São Pedro iluminarão o caminho do presidente e o ajudarão a colher bons frutos em sua próxima viagem internacional, este mês, durante as festas juninas.

Em Paris, Lula tratará com seu colega francês, Emmanuel Macron, de dois assuntos que estão no topo na agenda internacional: a guerra deflagrada pela injustificável invasão da Ucrânia pela Rússia, a primeira entre duas nações europeias desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945; e o urgente desafio de conter as mudanças climáticas e preservar o meio ambiente – este tema da primeira encíclica do papa Francisco, que pede um envolvimento substantivo do Brasil. Ambas as discussões continuarão no Vaticano, com votos de sucesso dos amigos do País ao redor do mundo.

O que fará Lula? Adiará a escolha e correrá o risco de perder o bonde da História, calculando que o País será chamado à mesa de negociações quando a realidade as impuser? Se esse cálculo se comprovar correto, o que o Brasil aportará, além de boas intenções e capacidade diplomática? Mas, se o cálculo se mostrar equivocado e o País for alijado das conversas, por irrelevante ou não confiável, hoje um cenário plausível, o que fará o presidente?

Não há respostas prontas para essas perguntas, até porque elas só terão credibilidade se resultarem de um debate interno que o País até hoje não teve fora dos rarefeitos círculos acadêmicos e intelectuais. Fazê-lo agora, para começar, impõe o difícil reconhecimento de que o Brasil diminuiu de tamanho relativo na última década, especialmente durante o abjeto governo de Jair Bolsonaro, e terá de encontrar seu caminho num ambiente internacional muito diferente daquele no qual Lula ascendeu ao poder na primeira década do século.

As escolhas que Lula fez até agora, com a ajuda de seu assessor internacional, o ex-chanceler Celso Amorim, claramente não foram satisfatórias para uma parcela importante dos eleitores que o levaram ao poder num país dividido e polarizado. A demora em condenar a criminosa invasão russa da Ucrânia e o desejo de ficar em cima do muro em nome de uma suposta neutralidade expuseram a pusilanimidade nacional ao mundo, que esperava mais da maior democracia do Hemisfério Sul. Nos EUA, onde os funcionários mais e melhor conhecem o Brasil, a decepção veio à tona em declarações públicas hostis de ex-diplomatas e comentários de gente influente no Executivo e no Congresso. Resumindo, o Brasil deixou de reconquistar o espaço que perdeu durante o calamitoso governo de Bolsonaro e terá a missão de Sísifo para reparar o mal feito.

Some-se a isso uma pronunciada queda de interesse pelo País em Washington, o que dificulta a construção de agendas positivas de cooperação e investimentos. Este panorama desolador pode ser revertido por Lula, se ele tiver interesse e disposição política para tomar um rumo mais produtivo nas relações com aliados tradicionais como os EUA, sem prejudicar os laços com a China, hoje o maior parceiro comercial do Brasil.

Para tanto, o líder brasileiro terá de superar ressentimentos e preconceitos ideológicos e retomar o caminho virtuoso das escolhas corajosas que fizeram dele e do Brasil na década de 1980 exemplos a serem seguidos. Terá Lula a energia e a ousadia necessárias para reinventar-se aos 77 anos? Uma visita bem preparada à Casa Branca e um fim de semana com o presidente Joe Biden em Camp David certamente ajudariam, e por isso merecem consideração em Brasília e em Washington. Tais eventos seriam recebidos como golaços diplomáticos nos dois países e alterariam o panorama internacional de forma significativa. Abririam perspectivas de cooperação econômica, política e cultural entre as duas maiores democracias multirraciais e multiculturais das Américas, para benefício de ambas e de seus vizinhos.

Não menos importante, Biden e Lula, de 80 e 77 anos respectivamente, projetariam a vitalidade das sociedades que lideram e reacenderiam a chama da esperança num mundo melhor em dois países que ainda enfrentam as consequências de séculos da escravidão de africanos que, libertados, deram a ambos e ao mundo culturas densas e ricas nas artes, na música e na literatura. Seria uma lástima se Lula e Biden, dois homens de origens humildes, desperdiçassem a oportunidade única que a História lhes oferece de serem sal da terra e luz do mundo, com a bênção do papa Francisco e o aplauso da comunidade mundial. Não é pouco. E, quem sabe, talvez seja suficiente para o Nobel da Paz.

Paulo Sotero, o autor deste artigo, é Jornalista - pesquisador sênior do Brasil Institute no Wilspn Center, em Washington - DC. Publicado originalmente pelo O Estado de S. Paulo, em 07.06.23

Ruptura de barragem no Dnieper deixa centenas de milhares de pessoas na Ucrânia sem água potável

Kiev descreve o incidente como um "terrível ato terrorista" de Moscou e alerta que mais de 40.000 cidadãos de 80 cidades estão em risco de inundação


A barragem de Nova Kajovka desabou, esta terça-feira.
TASS (VIA REUTERS

Cidades e campos alagados, resgates em botes de borracha, vítimas tentando guardar seus pertences em sacolas plásticas. A ruptura da barragem de Nova Kakhovka no rio Dnieperdeixou uma paisagem devastada no sul da Ucrânia, onde pelo menos 5.900 pessoas foram deslocadas em ambas as margens. Quase 1.900 pessoas foram evacuadas na área controlada pela Ucrânia, de acordo com as autoridades de Kiev. 

Nos territórios ocupados pela Rússia, mais de 4.000 pessoas foram realocadas para outros locais, segundo autoridades leais a Moscou. Em uma primeira avaliação do desastre, o governo ucraniano estima que cerca de 10.000 hectares de terras agrícolas foram inundados; pelo menos 20.000 residências e empresas estão sem eletricidade e "centenas de milhares" dos afetados não têm acesso à água potável. E a catástrofe não acabou: um total de 80 cidades, nas quais residem cerca de 42.000 pessoas, correm risco de inundação. Além disso, de acordo com as previsões do Executivo ucraniano, 500.

As autoridades de Kiev e Moscou continuam a se culpar pela destruição da barragem. Até agora, eles não relataram mortes, embora tenham relatado uma dúzia de desaparecidos, sete na área sob controle russo e três na área ainda em mãos ucranianas. Tudo isso em meio aos planos da esperada contraofensiva na Ucrânia , que a Rússia já iniciou, mas sobre a qual Kiev não confirma nada. O imenso rio Dnieper, que separa os dois exércitos em Kherson, a cerca de 60 quilômetros da barragem, é um dos cenários-chave dessa grande operação militar.

O ministro das Infraestruturas, Oleksandr Kubrakov, alertou durante uma visita à área para o perigo da movimentação de minas, da disseminação de doenças e da mistura de substâncias químicas com a água, informa a agência Reuters. Em alguns pontos, segundo o governador regional de Kherson, Oleksandr Prokudin, a água ultrapassa os cinco metros e os serviços de resgate precisam se deslocar em barcos. Na margem oriental do Dnieper, na zona ocupada pela Rússia, cresce a sensação de caos entre a população e o medo de surtos epidêmicos devido à morte em massa de animais e à inundação de cemitérios. Por sua vez, as autoridades impostas pelo Kremlin na área prometem aos afetados um pagamento de 10.000 a 50.000 rublos (entre 115 e 570 euros), "dependendo do grau de dano" sofrido em suas casas, relata Javier G. Cuesta . .

Além da catástrofe humana e ambiental, o colapso da infraestrutura também gera temores de que afete a usina nuclear de Zaporizhia , a maior da Europa e localizada às margens do rio Dnieper. Por enquanto, a usina, que depende do nível adequado de água para seu resfriamento, não sofreu nenhum problema, conforme confirmado pelo governo de Kiev.

“Atualmente, não há ameaça direta”, destaca ainda o Ministério da Energia através de um comunicado referente à central nuclear. É “improvável” que estas instalações venham a ter “problemas de segurança adicionais imediatos”, segundo os serviços secretos do Reino Unido, que monitorizam diariamente os aspetos mais críticos da segurança no país invadido.

Embora a água de Nova Kakhovka seja essencial para resfriar os reatores da usina de Zaporizhia, inicialmente, "não há risco iminente à segurança", disse na terça-feira o diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Raphael Grossi. Ciente, de qualquer forma, da importância do enclave, ocupado por militares russos e palco constante de combates, Grossi se deslocará na próxima semana à usina, onde uma missão da AIEA monitora o local desde setembro passado . O nível da água na barragem é normalmente de 16 metros. Se cair abaixo de 13,2, existe o perigo de o sistema de refrigeração não responder, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente da Ucrânia.

As da usina de Zaporizhia são as instalações mais críticas e as que mais preocupam desde o incidente da madrugada de terça-feira. De acordo com o Ministério da Energia, o incidente também inundou 129 subestações transformadoras em Kherson, bem como duas usinas de energia solar na região de Mykolaiv.

Até a manhã de quarta-feira, 1.852 casas foram inundadas na margem oeste do rio Dnieper, a maioria delas no distrito de Korabel, ao sul da cidade de Kherson, segundo o governador regional. O oeste é a costa que está sob controle ucraniano desde que as Forças Armadas locais conseguiram expulsar os russos há sete meses.

Na manhã desta quarta-feira, um dia e meio após o rompimento da barragem, o nível da água havia baixado 2,5 metros e as áreas circundantes continuaram inundadas, embora a um ritmo mais lento do que na terça-feira, segundo a empresa pública Ukrhydroenergo, que gere centrais hidroelétricas. A companhia ferroviária nacional, Ukrzaliznytsia, organizou na madrugada um dispositivo de evacuação que operava da cidade de Kherson a Mikolaiv, mas a ausência de grandes grupos populacionais nas áreas afetadas pelo incidente não torna necessário fretar comboios especiais, eles explicou a fontes da empresa EL PAÍS.

As autoridades de Kiev insistem em responsabilizar as forças de ocupação russas por um ataque deliberado para destruir a barragem. “Os terroristas russos mostraram mais uma vez que são uma ameaça para todos os seres vivos. A destruição de uma das maiores reservas de água da Ucrânia é absolutamente deliberada", disse o presidente, Volodimir Zelensky, por meio de seu perfil na rede social Twitter. “Este é um dos atos terroristas mais terríveis desta guerra”, declarou o ministro Kubrakov durante sua visita a Kherson. Além disso, a Ucrânia descreve o ocorrido como "ecocídio". A equipe de Zelensky publicou um vídeo mostrando peixes mortos nas margens do rio Dnieper.

As inundações beneficiam, à primeira vista, as tropas russas, segundo o Institute for the Study of War (ISW), centro dos Estados Unidos que não tem, no entanto, dados para determinar quem está por trás da quebra. "Alargar o rio Dnieper e complicar as tentativas de contra-ofensiva ucraniana" pode ser uma tática buscada pelos militares do Kremlin, aponta em seu relatório diário.

Kherson também é uma das regiões mais fortemente minadas na guerra atual. O Comité Internacional da Cruz Vermelha alertou esta quarta-feira para o perigo de a água deslocar as minas que faltam retirar, bem como a sinalização colocada para alertar a população e não aceder às áreas impuras.

Nova Kajovka é um enclave estratégico que as tropas russas ocupam desde o ano passado. O abastecimento de água à população da península da Crimeia, ocupada pela Rússia desde 2014, depende em grande parte dessas instalações, onde a tensão é evidente há meses. O exército local assumiu o controle da capital regional, Kherson, localizada cerca de 60 quilômetros abaixo, perto da foz do Mar Negro, em novembro. Essa contra-ofensiva conseguiu expulsar as tropas invasoras da margem direita, mas em todos esses meses, apesar de tentar, não conseguiram retomar o controle de Nova Kajovka.

Luís Vega, o autor desta reportagem, é o enviado especial do EL PAÍS a Kiev (Ucrânia), capital do País invadido pela Rússia. Publicada originalmente em 07.06.23.

O Congresso brasileiro ameaça a humanidade

O que fazer quando as decisões de um parlamento negacionista afetam o futuro de todos?

Membros de povos indígenas e organizações ligadas a movimentos indígenas se manifestam no centro de Manaus, Amazonas (Brasil). (Crédito da foto: Rafael Alves, EFE)

O Parlamento brasileiro é um exemplo da situação em que a humanidade se encontra: em um planeta em colapso climático, o futuro global é determinado por decisões locais. No Brasil, o Congresso é controlado por deputados e senadores negacionistas do clima, em parte por ignorância, em parte porque preferem enriquecer no presente imediato, em parte pelas duas razões. 

No final de maio, os deputados atacaram o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas , liderado por Marina Silva, destruindo estruturas essenciais. Tiraram também o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas , liderado por Sonia Guajajara, sua principal função: demarcar as terras das populações originárias. O Senado aprovou a desfiguração dos ministérios de Luiz Inácio Lula da Silva diretamente ligados à proteção da natureza. 

Na segunda-feira, Dia Mundial do Meio Ambiente, Marina Silva, que lutou quase sozinha para mudar esse quadro, chamou o desmatamento de seu ministério de "regressão". É muito mais do que isso. O ataque compromete, talvez de forma irreversível, a proteção da Amazônia.

Este é o drama. O futuro muito próximo é decidido por homens de terno, em sua maioria brancos, longe da Amazônia e de outros biomas. Sem maioria no Congresso, Lula apoiou o desmatamento dos ministérios. Os deputados da base governista nem fingiram que estavam tentando impedir a destruição. A emergência climática está longe da consciência da maioria. Embora os eventos extremos se multipliquem pelo mundo, continua sendo um assunto de gueto, mesmo para uma parte da esquerda.

Um dia antes do ataque à estrutura do novo governo, os deputados brasileiros já haviam aprovado outra atrocidade: o "marco provisório", aberração que determina que apenas os índios que estiveram em suas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, têm o direito de ter seu território demarcado. O ponto deliberadamente ignorado é que muitos indígenas foram expulsos de suas terras ou fugiram para não serem exterminados.

Com a aprovação do projeto, que ainda precisa passar pelo Senado, os deputados querem avançar com a destruição da natureza. Hoje o Supremo Tribunal Federal julga essa questão. O voto mobilizou os povos indígenas, mas deveria mobilizar toda a humanidade, pois ficou demonstrado que a Amazônia resiste onde há terras indígenas.

A democracia brasileira é precária. Se fosse uma ditadura, o risco seria ainda maior, porque os poucos contrapesos já teriam sido retirados. O Brasil caminhava nessa direção quando Jair Bolsonaro desmoralizou a presidência. Por isso os Estados Unidos de Joe Biden e parte dos governos da Europa comemoraram a vitória de Lula, que prometeu proteger a Amazônia. Mas o projeto de extrema-direita continua ativo no Congresso brasileiro e está decidindo o futuro do mundo.

Deputados e senadores negacionistas só deixarão de negar quando perderem dinheiro aqueles que financiam suas campanhas. A pressão externa deve ser muito maior. A União Européia deve prevenir de forma mais efetiva a importação de produtos do desmatamento e agir contra as mineradoras e outras corporações com bandeira de países membros que destroem a floresta e poluem os rios. A imprensa repete que o Congresso “emparedou” Lula. Nós é que estamos emparedados. E a casa está queimando.

Eliane Brum, a autora deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 07.06.23. Tradução de Meritxell Almarza . 

Uso de aplicativos incrementou prática da conciliação, diz Paulo Sérgio Domingues

Apesar de todos os percalços vividos na crise da Covid-19, o uso das ferramentas digitais na prestação jurisdicional durante a epidemia incrementou a prática da conciliação ao facilitar o contato entre as partes, seus advogados e os conciliadores, disse o ministro Paulo Sérgio Domingues, do Superior do Tribunal de Justiça.

Justiça teve de ser criativa nas conciliações durante a crise da Covid, disse Domingues

Entusiasta do uso dos aplicativos eletrônicos desde os tempos em que, como desembargador, coordenou o gabinete de conciliação do Tribunal Regional da 3ª Região (TRF-3), Domingues traçou um panorama do momento atual da prática conciliatória em sua entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", na qual a revista eletrônica Consultor Jurídico ouve alguns dos principais nomes do Direito sobre os temas mais importante da atualidade.

"A pandemia nos ensinou muito a respeito de como podemos incrementar a conciliação a partir da utilização de meios eletrônicos para a solução consensual de conflitos", disse o ministro, que é especialista no uso de tecnologia no Poder Judiciário, tendo chefiado a comissão de informática que cuidou da implantação do processo judicial eletrônico, da digitalização de processos físicos e da segurança cibernética no TRF-3.

Segundo Domingues, no auge da crise, a Justiça se viu obrigada a promover as conciliações de maneira criativa. Para isso, recorreu a aplicativos de videoconferência, como o Teams e o Zoom, como forma de conectar as partes, os advogados e os conciliadores.

"Nós fizemos muitas dessas conciliações sem nenhum problema depois em relação ao cumprimento dos acordos", contou o ministro. "Quando uma pessoa não podia sair de casa para assinar os acordos, uma foto com o RG, com o joinha, já funcionava como um 'OK' para uma conciliação. Da mesma forma, um advogado segurando sua carteira da OAB e dando um 'OK' também resolvia a conciliação."

Na visão do ministro, tudo isso serviu para mostrar, tanto para os jurisdicionados quanto para os advogados, que pode ser mais prático buscar a solução consensual já a partir da propositura de uma ação.

"Não há dúvida de que, com mais de um milhão de advogados atuando, apenas a propositura de ações judiciais não vai resolver os problemas, porque o Judiciário vai ficar congestionado e cada vez mais lento. Isso é inevitável. Então, é importante que os advogados tenham essa consciência de que a participação deles na conciliação não é algo ruim, e sim algo que contribui para uma solução mais rápida. E que permite que o Judiciário se ocupe de processos mais complexos", explicou Domingues.

O ministro considera que esse entendimento chegou às faculdades de Direito, que acordaram para a importância da solução consensual e já começam a oferecer matérias que tratam da prática.

"A gente espera que isso se dissemine, porque é algo que é necessário mesmo para a própria sobrevivência do advogado no futuro. Conciliação e tecnologia: sem essas duas ferramentas o advogado provavelmente não vai conseguir sobreviver no mercado."

Por fim, Domingues disse que há espaço para a conciliação em todos os tribunais, inclusive nos superiores. "Isso pode ser realizado de uma maneira institucional, com a participação de grandes litigantes, sejam públicos, sejam privados, de maneira que o alcance das conciliações alcançadas acabe se disseminando para os tribunais do país inteiro."

Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 07.06.23

'Menos juridiquês': o projeto que defende linguagem simples para Justiça ser mais democrática

Linguagem mais simples aproxima as pessoas da Justiça


Ei Thêmis! Fala claro e simples que eu te entendo.

Inane. Cônjuge supérstite. Inobstante. Hialinamente.

São palavras incomuns, desconhecidas, complicadas e que podem ser substituídas por sinônimos bem mais simples: "cônjuge supérstite" é o mesmo que viúvo, "hialinamente" quer dizer "claramente".

Apesar de tudo isso, não é raro encontrá-las em documentos de processos judiciais - em textos de advogados, promotores e decisões de magistrados.

É o famoso "juridiquês" - uma linguagem desnecessariamente complicada usada com frequência em documentos judiciais.

O Direito, como toda área de conhecimento, tem termos técnicos conhecidos por quem é da área e não pelos leigos. O problema não uso desses termos técnicos, mas a forma excessivamente rebuscada de escrever - nenhuma dessas palavras citadas no início do texto, por exemplo, é um termo técnico-jurídico necessário.

Pensando em aproximar o Judiciário da sociedade, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está promovendo uma iniciativa bem sucedida do Tribunal de Justiça da Bahia para ampliar o uso de uma linguagem mais simples na Justiça e criar formas de traduzir as decisões para o público em geral.

"Existe uma necessidade do Judiciário se aproximar mais da sociedade", diz o conselheiro do CNJ Mário Maia.

"E existem muitas formas de tornar a Justiça mais acessível - a linguagem é uma delas."

"Como primeira forma de contato, eu entendo que linguagem pode aproximar ou afastar. Da forma como ela normalmente se apresenta, é muito difícil de compreender."

Segundo ele, a ideia da iniciativa não é acabar com o o uso dos termos técnicos, que são necessários, mas incentivar o uso de uma linguagem mais direta e também criar formas de "traduzir" o processo para quem não é da área.

"Isso não desmerece o vernáculo jurídico, que vai continuar existindo, mas explicar as decisões para as pessoas não tiveram a oportunidade de aprendê-lo", diz Maia.

"Não é que ele tenha que ser combatido. Ele deve ser preservado no ambiente jurídico, na academia. Existem tradições conservadas que carregam um valor histórico."

Mas manter uma tradição não significa rejeitar o novo, diz ele.

O acesso à Justiça ainda é muito restrito no Brasil

Linguagem simples

O principal ponto da iniciativa é incentivar que os tribunais de Justiça disponibilizem uma explicação em linguagem simples de certas decisões, sentenças ou portarias a depender do perfil de pessoas que elas afetem.

"Uma decisão que afeta empresas, que têm equipes jurídicas especializadas, não precisa disso. Mas uma decisão sobre aposentadoria, por exemplo, ou que afete o regime de trabalho do trabalhador rural, precisa ser acessível", defende Maia.

Essa "tradução" seria produzida pelas próprias varas tanto em forma de texto como em forma de áudio - acessível por QR Code, por exemplo - pensando tanto em pessoas com deficiência visual quanto em pessoas que não sabem ler.

"Para muitas pessoas é constrangedor ter que dizer que é analfabeto e pedir para alguém ler", diz Maia.

"Disponibilizar uma explicação em áudio é uma forma de inclusão. O acesso à Justiça gera a noção de pertencimento, a pessoa começa a se sentir cidadã, detentora de direitos, de proteção."

A iniciativa beneficia inclusive pessoas com alta escolaridade de outras áreas do conhecimento, segundo o conselheiro.

Afinal, a dificuldade de entender decisões pode acontecer mesmo que as peças do processo estejam escritas de forma bastante objetiva, com sentenças na ordem direta e linguagem clara, já que o uso de certos termos técnicos é inevitável.

"Se eu ler um comunicado de uma associação médica eu também não vou entender", diz Maia. "Então, essa iniciativa é algo que beneficia todo mundo."

A iniciativa, no entanto, depende de cada tribunal - é uma recomendação do CNJ, não uma resolução, que tornaria seus termos obrigatórios.

"É algo que pode ser iniciativa do tribunal, do magistrado ou mesmo da secretaria da vara, de acordo com o perfil de pessoas. Há locais onde seria importante, por exemplo, disponibilizar o conteúdo em linguagens de povos indígenas. Muitas vezes a gente esquece que o português não é a única língua falada no Brasil", diz Maia.

A experiência do Tribunal de Justiça da Bahia, afirma, mostra que a iniciativa não gera gastos extras.

"Sempre tem alguma resistência das pessoas, mas o debate é bom, ajuda a conscientizar e é uma forma da gente escutar os questionamentos", diz.

Letícia Mori, originalmente, de S. Paulo - SP para a BBC News Brasil, em 06.06.23. (Twitter,@_leticiamori)

terça-feira, 6 de junho de 2023

O arriscado ‘negócio da China’

Programa chinês para financiar projetos mal planejados e possivelmente explorados por corruptos locais na África, Ásia e América Latina ameaça asfixiar países em desenvolvimento

Em 2013, o presidente chinês, Xi Jinping, anunciou um vasto programa de financiamento de infraestrutura em economias emergentes. A Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês), disse ele, era o “projeto do século”. Com efeito, a China se tornou o maior credor bilateral do mundo, especialmente para os países em desenvolvimento, eclipsando até o Banco Mundial e o FMI. Dez anos depois, as falhas no programa – incluindo a sua opacidade, gerenciamento de risco insuficiente e a participação de algumas das nações devedoras menos confiáveis do mundo – estão forçando Pequim a uma operação para apagar incêndios, com o risco de precipitar uma “crise da dívida do século” para o mercado emergente.

A China financiou projetos de infraestrutura em dezenas de países, desde ferrovias na África, portos na Ásia e estradas na América Latina, que, somados, beiram US$ 1 trilhão. Os críticos chamaram a iniciativa de “diplomacia de armadilha da dívida”, para forçar os devedores a ceder ativos estratégicos, como portos e minas. Uma vez que os termos e condições dos empréstimos são sigilosos, é difícil avaliar se e até que ponto foi esse o caso. Especialistas apontam que os empréstimos vêm de dúzias de bancos espalhados pelo país e são aleatórios demais para serem coordenados de cima. De acordo com o centro de pesquisas AidData, do College of William and Mary, na Virgínia, os contratos iniciais estavam em linha com os preços de mercado. Na maioria dos casos, os bancos chineses não exigiam dos tomadores de empréstimo a penhora de ativos físicos. No entanto, os bancos chineses exigiam que os países mantivessem uma conta separada a ser tomada ou bloqueada em caso de disputa, o que, somado às condições de confidencialidade, tornava difícil para outros credores e os próprios cidadãos desses países monitorar as condições financeiras do governo.

Já no final da década passada, o pagamento das dívidas começou a escassear. Com a pandemia e a guerra na Ucrânia, os riscos de calotes se multiplicaram. Novos empréstimos foram feitos pela China, mais para evitar novos calotes, especialmente na África, do que em novos projetos. Esses empréstimos, segundo o Kiel Institute for the World Economy, tomaram novas formas. Eles seguem opacos, mas, além disso, comportam juros inusualmente altos. De resto, não são canalizados para todos os participantes da BRI, mas exclusivamente para os que representam riscos para os bancos chineses. É difícil contornar a suspeita de agiotagem em escala internacional.

Obviamente, os países estrangulados pelo garrote chinês não são meras vítimas inocentes. É mais do que plausível supor que boa parte dessas obras foi feita sem planejamento adequado e se tornou campo fértil para esquemas de corrupção das elites locais. Mas o fato, como disse o premiê alemão, Olaf Scholz, é que “há um perigo sério de que a próxima grande crise do Sul Global seja alavancada pelos empréstimos que a China distribuiu pelo mundo”.

Esforços do G-20, do qual a China faz parte, para criar um “Quadro Comum” de reestruturação da dívida provaram-se letra morta. A cooperação exigiria compartilhar informações, mas a China prefere conduzir suas negociações em privado, frequentemente exigindo pagamentos em commodities ou seus ganhos futuros, e “furando a fila” dos outros credores.

“Na minha visão, nós temos de arrastá-los – mas talvez esse termo seja rude. Nós precisamos caminhar juntos”, afirmou a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, a respeito da China. “Porque, se não o fizermos, haverá catástrofe para muitos, muitos países.”

É do interesse de todo o mundo, incluindo Pequim, criar um sistema eficiente de resolução de dívidas e empréstimos emergenciais para conter a crise dos mercados emergentes que se avizinha. Em alguns casos críticos, como na Zâmbia ou Sri Lanka, a China chegou a cooperar com o FMI em pacotes de resgate. Mas, para ampliar essa cooperação, será indispensável que os credores chineses tragam à luz os termos de seus empréstimos e aceitem soluções multilaterais equânimes para todos os credores.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 06.06.23

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Três vezes Brasil

O País hoje: uma mediocridade política só comparável, no passado, às ‘ditaduras estaduais’, uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte e uma sociedade desordeira

A rigor, o título deste artigo deveria ser Relembrando Euclides da Cunha. O leitor com certeza sabe que o grande autor de Os Sertões foi também um notável ensaísta e, em particular, um exímio analista político.

Não vacilo em afirmar que seu Esboço de História Política, escrito no primeiro centenário da Independência, incluído no volume À Margem da História (reeditado pela Editora Lello em 1967), tem seu lugar assegurado entre os quatro ou cinco melhores textos brasileiros nessa área. Inventei outro título por uma razão muito simples: meu propósito não é resenhar Euclides, mas aproveitar o texto dele para reinterpretar e trazer o texto dele até o Brasil atual. Na primeira parte, apenas interpreto a linha-mestra do Esboço; na segunda e na terceira, exponho o que se passou desde 1891, superpondo o que veio à minha mente à medida que relia o original de Euclides.

O fio condutor da interpretação euclidiana parece-me ser este: “Somos o único caso histórico de uma nacionalidade feita por uma teoria política”. Complementado logo adiante por esta frase-manifesto: “Estávamos destinados a formar uma raça histórica, através de um longo curso de existência política autônoma. Violada a ordem natural dos fatos, a nossa integridade étnica teria de constituir-se e manter-se garantida pela evolução social. Condenávamos à civilização. Ou progredir ou desaparecer”.

A “teoria política” era a ponte de que nos valeríamos para a travessia, deixando para trás a tirania colonial e pondo os pés num futuro que talvez fosse a civilização. Reparem que aqui o Euclides simpatizante do evolucionismo de Augusto Comte faz uma crítica ao mestre e, portanto, a si mesmo. O espectro da regressão a um status colonial delineava claramente as alternativas: era o desmembramento em republiquetas turbulentas, instáveis, comandadas alternadamente por caudilhos, ou antecipar mentalmente o futuro desejado, deixar de lado a ilusão de um determinismo que a ele nos levasse.

 “Violando a ordem natural dos fatos”, acreditar, ainda que com pouca chance de sucesso, na teoria que nos serviria de ponte. Mas tal teoria não poderia ser uma abstração. Haveria de ser um fazerpolítico, que dependia de o destino nos dar líderes e pensadores à altura do empreendimento. O destino não nos faltou: os dois monarcas, Pedro I e Pedro II, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Marquês do Paraná, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e outros mais, cada um a seu modo, deram-nos o impulso para a civilização. Acrescente-se que, naquele período, estávamos em condições de fornecer todo o café que o mundo demandasse. Descontados a anarquia da Regência (1831-1840), o prolongamento excessivo da escravidão e a instauração da República fruto não de uma visão política esclarecida, mas do fato de não ter o País um sucessor masculino, e sim uma princesa – casada com um estrangeiro, o Conde D’Eu –, o saldo foi positivo.

Mas, como diz o ditado popular, pau que dá em Chico dá em Francisco. Aqui, peço vênia para umas pinceladas no brilhante quadro de Euclides. Cedo ou tarde, a riqueza propiciada pelo café haveria de ser destroçada pela competição internacional. E, no lugar do Marquês do Paraná, artífice da pacificação, e de Joaquim Nabuco, o primeiro a denunciar sem meias palavras a ilegitimidade para a qual degenerava o Poder Moderador, veio, por um lado, uma chusma de pseudointelectuais siderados pela ascensão do fascismo na Europa e, pelo outro, os comediantes que personificaram a Política dos Governadores, que melhor fora epitetada como Política das Ditaduras Estaduais, que transformou cada Estado (exceto o Rio Grande do Sul) num regime de partido único. Em seguida, a rebelião de alguns Estados contra a “socialização das perdas”, o subsídio ao que restava da outrora pujante cafeicultura e, finalmente, a tragicomédia da Revolução de 1930, cujo desfecho só poderia ser a ditadura getulista, a polarização getulismo-antigetulismo e, no fim da linha, 21 anos de governos militares.

Essa passagem de nossa história não pode omitir a estrutura social que dela resultou: uma minúscula elite garroteando o patrimônio e a renda nacional; uma classe média esquálida, cada vez mais incrustada na máquina do Estado, eis que desprovida de bases para crescer, tanto no campo como na cidade; e um amazonas de miseráveis, exescravos, desempregados e analfabetos. Para supostamente superar esse estado de coisas, a obsessão com a chamada industrialização por substituição de instituições (ISI), que nos deixou onde estamos: na estagnação e com o maligno espectro da “armadilha do baixo crescimento”.

E agora, José? Agora são uma mediocridade política somente comparável, no passado, às antes mencionadas “ditaduras estaduais” e uma recuperação econômica que parece se distanciar no horizonte a cada minuto. Mas isso ainda não é o pior. É uma sociedade desordeira, que parece não enxergar a si mesma, vivendo da mão para a boca e quase totalmente destituída de valores coletivos. 

Bolívar Lamounier, o autor deste artigo, é sócio-diretor da Augurium Consultoria. Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.06.23