segunda-feira, 24 de abril de 2023

Depoimento de Bolsonaro à PF: o que pode ligar ex-presidente aos crimes de 8/1

A Polícia Federal vai ouvir na próxima quarta-feira (26/4) o ex-presidente Jair Bolsonaro como parte da investigação sobre quem foram os mentores intelectuais das invasões de 8 de janeiro ao Supremo Tribunal Federal, Congresso Nacional e Palácio do Planalto.

Para especialistas, maior desafio é estabelecer nexo de causalidade entre falas do presidente e invasões ao Planalto, Congresso e Supremo (Reuters)

O inquérito tramita no STF e o relator, ministro Alexandre de Moraes, havia determinado no dia 14 de abril, que a PF agendasse o depoimento em até dez dias.

Os policiais devem questionar Bolsonaro sobre mensagens postadas nas redes sociais em que ele questiona o resultado da eleição e sobre o fato de não ter determinado, quando ainda presidente, a retirada dos acampamentos bolsonaristas em frente aos quartéis.

Mas, para que as investigações resultem numa denúncia contra o ex-presidente, os investigadores terão que encontrar evidências de que os atos de Bolsonaro resultaram nas invasões aos prédios públicos.

Bolsonaro tem negado envolvimento no 8 de janeiro. Enquanto ainda estava nos EUA, disse, sem apresentar provas, que “pessoas de esquerda” programaram as invasões.

"As manifestações da direita ao longo de 4 anos foram pacíficas e não temos nada a temer. Jamais o nosso pessoal faria o que foi feito agora no dia 8 [de Janeiro]. Cada vez mais nós temos certeza que foram pessoas da esquerda que programaram aquilo tudo", disse o ex-presidente à emissora NBC.

A BBC News Brasil ouviu criminalistas para entender que crimes podem ser considerados nessa investigação, quais as possibilidades de o inquérito terminar em acusação penal contra o ex-presidente, e que condutas de Bolsonaro que devem ser investigadas.

Em 8 de janeiro, apoiadores de Bolsonaro invadiram prédios dos Três Poderes. Até agora cerca de 100 pessoas foram denunciadas (Reuters)

Os crimes

Segundo os professores de processo penal Juliana Bertholdi e Gustavo Badaró, se os investigadores encontrarem provas do envolvimento de Bolsonaro com os atos de 8/1, ele poderá ser enquadrado em algum (ou alguns) desses três crimes: o do Art. 286 do Código Penal, e os dos artigos 359-L e 359-M, que punem quem atenta contra o Estado Democrático de Direito.

O Art. 286 do Código Penal prevê pena de detenção de três a seis meses ou multa a quem incita publicamente a prática de crime.

Já o Art. 359-L pune com reclusão de 4 a 8 anos quem: "Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais."

E o Art. 359-M pune com reclusão de 4 a 12 anos quem: "Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído". Ou seja, pune quem tenta dar um golpe de Estado.

Até agora, 100 pessoas que participaram dos acampamentos e invasões foram denunciadas. Muitas delas foram enquadradas nos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e de golpe de Estado, além de associação criminosa armada e danos ao patrimônio público.

“Em relação ao Bolsonaro, obviamente ele não invadiu nenhum estabelecimento, nem permaneceu acampado em nenhum quartel. E não se tem notícia de que ele tenha financiado, num sentido material do termo, as invasões”, diz o professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo Gustavo Badaró.

“Mas o que se coloca é se ele, fora da Presidência da República ou no final do mandato, incitou ou instigou a população na prática desses atos.”

Segundo especialistas, pelo menos três crimes podem ser considerados em inquérito que apura quem foram os mentores intelectuais das invasões (Reuters)

Segundo Juliana Bertholdi, professora de Processo Penal da PUC-PR, durante o depoimento, a Polícia Federal vai tentar esclarecer até que ponto as condutas de Bolsonaro e outros integrantes de seu governo contribuíram para as invasões do 8 de janeiro.

“Nós estamos tentando entender como toda essa articulação para os atos do dia 8/1 aconteceu. Existem diferentes formas do articulador participar dessa organização. Ele pode ser um financiador, ele pode ser um mentor intelectual ou alguém que participou desse planejamento”, explica.

“No depoimento, a força policial vai tentar recolher o máximo de informações possíveis sobre aquele fato que aconteceu e, a partir dessas informações, tentar tipificar ou não as condutas. Vai decidir se aquela pessoa deve ser indiciada ou não.”

Condutas de Bolsonaro

Ao pedir que Bolsonaro fosse investigado no inquérito que apura quem foram os autores intelectuais das invasões, a Procuradoria-Geral da República citou uma postagem do ex-presidente nas redes sociais feita no dia 10 de janeiro, dois dias após os atos.

A publicação, que rapidamente viralizou antes de ser apagada da conta de Bolsonaro, diz: “Lula não foi eleito pelo povo. Ele foi escolhido e eleito pelo TSE e o STF”.

Na representação feita ao Supremo, o subprocurador-geral da República, Carlos Frederico Santos, sugere que Bolsonaro fez incitação pública à prática de crimes contra o Estado de Direito ao questionar o resultado eleitoral.

Para ele, ainda que a postagem tenha sido feita após os episódios de violência e vandalismo do dia 8 de janeiro, as condutas do ex-presidente devem ser investigadas no inquérito sobre a autoria intelectual dos ataques.

“Não se nega a existência de conexão probatória entre os fatos contidos na representação e o objeto deste inquérito, mais amplo em extensão. Por tal motivo, justifica-se a apuração global dos atos praticados antes e depois de 8 de janeiro de 2023 pelo representado”, escreveu.

Para o professor da USP Gustavo Badaró, essa postagem tem relevância por ter sido feita pouco após as invasões.(Reuters)

Mas a Polícia Federal deverá avaliar também outras condutas do ex-presidente, como o fato de ele não ter desmobilizado as manifestações de bolsonaristas em frente aos quartéis antes de deixar a Presidência.

“As pessoas protestando pedindo abertamente a prática de um ato ilegal ficaram lá nos acampamentos pelo tempo que quiseram. Foram mobilizadas numa área de segurança que era uma área pertencente ao quartel”, lembra Badaró.

“Acho que o ponto principal da investigação vai ser esse: o fato de Bolsonaro, que é ex-militar, não ter agido para desmobilizar os acampamentos quando era presidente e, portanto, superior hierárquico do ministro da Defesa e de todas as forças.”

Outras condutas que, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, podem ser investigadas incluem os vários momentos em que Bolsonaro questionou o sistema eleitoral, em postagens, entrevistas e lives e em que defendeu os protestos nos acampamentos, antes da invasão.

Também deve ser levado em consideração pela PF o fato de o governo do ex-presidente ter pressionado para que o Exército pudesse auditar as eleições.

Dificuldade de estabelecer nexo causal

Mas, os criminalistas destacam que não será fácil estabelecer uma relação de causalidade entre as falas e omissões de Bolsonaro e os atos de 8 de janeiro.

Juliana Bertholdi explica que, para o ex-presidente ser enquadrado como mentor intelectual dos crimes de golpe de Estado e atentado violento ao Estado de Direito, é preciso ficar claro que ele tinha a intenção de induzir seus eleitores a invadir os Três Poderes.

“A gente tem que demonstrar que a pessoa tinha a intenção de, com aquele comportamento, atingir aquele resultado danoso. Então, a gente entra num espaço de subjetividade e complexidade bastante significativo”, disse à BBC News Brasil.

Para a criminalista, Bolsonaro foi cauteloso em suas manifestações, conseguindo se comunicar com seus apoiadores mais radicais sem incitá-los de maneira direta a cometer crimes.

“A forma como ele construiu o discurso foi seguramente muito pensada, porque em nenhum momento ele afirma o que ele parece querer afirmar. Ele sempre se utiliza de subterfúgios na hora de fazer as afirmações”, diz.

Gustavo Badaró também destaca que será um desafio estabelecer um nexo causal entre as falas de Bolsonaro e as invasões. Por isso, segundo ele, a PF deverá construir uma narrativa que agregue diferentes condutas e falas como evidência do possível envolvimento do ex-presidente com os atos de 8/1.

“A gente não tem um ato decisivo que a gente possa falar que claramente foi crime. A questão é verificar se, pelo conjunto da obra, os pequenos atos, sinalizações e omissões têm, do ponto de vista jurídico, relevância causal para o 8 de janeiro”.

Nathalia Passarinho, para a BBC News Brasil, em 24.04.23.

domingo, 23 de abril de 2023

Qual Brasil voltou?

Lula diz e repete que ‘o Brasil voltou’. De fato: voltou o Brasil do toma lá dá cá, das invasões de terra, do atraso econômico e da megalomania internacional, marcas do lulopetismo

O presidente Lula da Silva tem bradado que, com ele, “o Brasil voltou”. Pois bem. Imodéstia à parte, é o caso de perguntar: afinal, de que Brasil se está falando? Que país é esse que estaria de volta?

É seguro afirmar que não é o Brasil pelo qual ansiavam milhões de eleitores moderados que, mesmo conhecendo bem o passado de malfeitos dos governos petistas, entenderam que a eventual reeleição de Jair Bolsonaro, um dos mais desqualificados, indecorosos e patrimonialistas presidentes em toda a história republicana, representava uma tragédia a ser evitada a qualquer custo.

Esses brasileiros fundamentais para a apertada vitória do petista em 2022 foram descartados por Lula cedo demais – e sem o menor constrangimento, haja vista o discurso arrogante e as atitudes do presidente. Não que as expectativas fossem altas. A rigor, são pessoas que não esperavam muito mais do atual governo, além do resgate da decência no exercício da Presidência da República e alguns sinais de moderação e responsabilidade na condução do País.

Lula, porém, tem conduzido o Brasil por um caminho perigoso. O governo tem tomado um rumo que, se não chega a configurar estelionato eleitoral – pois só o mais lhano dos cidadãos haveria de acreditar que Lula, de volta ao poder, faria algo muito diferente do que está fazendo –, tampouco sinaliza que, se não os esqueceu, ao menos Lula teria aprendido alguma coisa com os erros cometidos em um passado não muito distante.

Esse Brasil que Lula diz que “voltou” parece ser um país que só existe na cabeça do presidente; um país forjado por seus dogmas, sua recalcitrância, seu voluntarismo na implementação de políticas públicas e quiçá por uma gama de sentimentos que possam ter moldado suas visões de mundo após o período de 580 dias na cadeia.

O Brasil dos fatos, da realidade implacável que está diante dos olhos de qualquer observador que não se deixa enviesar pela vaidade ou pelo fervor ideológico, é o Brasil do retrocesso em mais áreas do que Lula, alguns de seus ministros e apoiadores teriam coragem de admitir em público.

Por óbvio, é indisputável a verdade de que houve guinadas republicanas em áreas fundamentais para o País, como saúde, educação e meio ambiente, três dos setores que foram obliterados pela sanha destruidora de Bolsonaro. A derrota de Bolsonaro, por si só, já foi suficiente para melhorar a qualidade do ar que os brasileiros respiram. Literalmente, pois são perceptíveis os esforços da nova administração federal para reconstruir o aparato de proteção ambiental que conferiu ao Brasil um soft power nessa seara que, há décadas, alçou o País à condição de interlocutor indesviável em fóruns internacionais sobre as mudanças climáticas.

No governo de Lula, vacinas, ora vejam, também voltaram a ser tidas como indispensáveis para evitar mortes, e a cultura deixou de estar sob ataque permanente para voltar a ser tratada como traço de distinção e união de um povo, ou seja, um bem a ser preservado.

Mas, como já dissemos nesta página, não é vantagem alguma Lula posar como um presidente melhor do que seu antecessor porque é virtualmente impossível que haja um governo pior do que o de Bolsonaro. De Lula, esperava-se muito mais do que isso, não só por suas promessas, mas, sobretudo, pelo arco de apoios que o petista construiu – para além da esquerda e centro-esquerda – a fim de pôr fim à barbárie bolsonarista.

O que se viu até agora, no entanto, é igualmente uma política de destruição de marcos republicanos, tais como a lei das estatais, o marco legal do saneamento, a reforma do ensino médio, entre outros. É o voluntarismo megalomaníaco e o improviso de Lula pautando as relações internacionais do País. É o fisiologismo desbragado na relação entre Executivo e Legislativo. É a tolerância à invasão de terras pelos companheiros do MST.

O Brasil que tantos anseiam por ver de volta é o país que, unido, soube superar a ditadura militar, consolidar a democracia e derrotar a inflação e a instabilidade econômica. Com Lula, ao que parece, esse Brasil não voltará tão cedo.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.04.23

Lula perdido no vasto mundo

 Com muito falatório e pouco governo, Lula se afunda em bobagens, iguala agressor e agredido e assusta os parceiros ocidentais

O mundo, mundo, vasto mundo de Carlos Drummond de Andrade é certamente maior que o universo petista, insuficiente até para eleger o candidato Luiz Inácio Lula da Silva em 2022. Aparentemente esquecido da ampla diversidade política de seus eleitores, o presidente Lula insiste em agir como se o Brasil e o sistema internacional fossem extensões de Vila Euclides, berço sindical de sua carreira pública. Rebaixado à condição de pária pelo presidente Jair Bolsonaro, o País começou, com a mudança de governo, a retomar sua posição no sistema regional e na ordem global. Esse retorno seria mais fácil e mais seguro se o principal porta-voz brasileiro parasse de falar bobagens, levasse em conta o Direito Internacional, deixasse de afrontar sem razão Estados Unidos e Europa e considerasse mais seriamente os interesses nacionais.

O presidente brasileiro poderia, talvez, pensar no exemplo de seus gentis anfitriões na China, maior parceira comercial do Brasil. Sem descuidar de seus interesses, os chineses continuaram, nos últimos três anos, tomando espaço dos exportadores brasileiros nos maiores mercados sul-americanos. Em 2022, ocuparam o primeiro lugar nas vendas à Argentina.

O presidente Lula conseguiu impedir, por enquanto, acordos comerciais entre a China e outros países do Mercosul. Mas só impedirá a desorganização do bloco se coordenar uma negociação conjunta com os chineses. Isso dependerá muito mais de ação diplomática e de bons argumentos práticos do que de retórica. Paraguaios e uruguaios têm respeitáveis motivos, há muito tempo, para abandonar a fidelidade a um bloco estagnado e distante dos objetivos originais de cooperação produtiva e de inserção global.

Mas o presidente Lula tem mostrado mais inclinação para a retórica, para as picuinhas e para o falatório de palanque do que para a administração e para as políticas mais ambiciosas. Demorou cerca de três meses e meio para apresentar suas metas fiscais e formalizar o compromisso, ainda discutível, com o equilíbrio das contas públicas. Esse objetivo dependerá, como já indicaram analistas, de maior arrecadação, embora o ministro da Fazenda negue a intenção de impor maior peso aos contribuintes. Além disso, nenhum plano ou roteiro de governo foi apresentado até agora. Mas o presidente encontrou tempo para tolices administrativas, como a transferência da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), importante instrumento da política agrícola, para o insignificante Ministério do Desenvolvimento Agrário – uma decisão tecnicamente injustificada e obviamente ideológica.

Na política externa, as manifestações mais ostensivas têm sido grotescas ou desastrosas. A viagem à China foi encerrada com uma declaração infantil sobre a predominância do dólar em negócios internacionais. Sem se envolver no episódio ridículo, o presidente Xi Jinping até pode ter gostado da canelada nos Estados Unidos, mas certamente conservará o enorme volume de reservas cambiais em moeda americana, cerca de US$ 3,1 trilhões.

Se a segunda maior economia do mundo conserva esse dinheiro, deve haver uma razão ponderável, assim como deve haver uma boa razão para o uso do euro no dia a dia da União Europeia. Ninguém está proibido de negociar com outras moedas, especialmente em blocos econômicos, mas quem quer acumular reservas em reais, liras turcas ou pesos argentinos? Lula terá, em algum momento, considerado essas questões?

Nem todas as falas de Lula têm sido, no entanto, inconsequentes e engraçadas. Ao tratar como equivalentes um Estado agressor, a Rússia, e um Estado agredido, a Ucrânia, o presidente brasileiro atropelou uma das noções mais importantes do Direito Internacional, enunciada no artigo 51 da Carta das Nações Unidas e amadurecida em séculos de negociações e de elaborações teóricas.

Pelas normas internacionais, a violência só é admissível como resposta a um ataque. Também é inaceitável a chamada agressão preventiva – quando se fala, por exemplo, no perigo potencial gerado pela expansão da Otan ou quando se denuncia, com ou sem razão, a existência de armas de destruição em massa num país qualquer. O ataque à Ucrânia é tão contrário à regra internacional quanto foi a invasão do Iraque no começo deste século.

Pode-se até desculpar, em Lula, a ignorância da lei internacional, mas, neste caso, ele ignorou também uma norma simples do Código Penal e, é claro, uma regra básica da ética e da civilidade. Ao cometer esse erro, alinhou o Brasil à política criminosa de um autocrata. Diante da reação internacional, e certamente aconselhado por auxiliares mais informados e mais sensatos, o presidente mudou suas palavras e condenou, na terça-feira, a violação territorial da Ucrânia. Mas a tentativa de correção soou fraca e foi insuficiente para anular o enorme equívoco das declarações anteriores. Com tantos desastres, Lula talvez entenda, finalmente, a conveniência de falar menos, de consultar mais os assessores mais prudentes e de – afinal – dar mais atenção ao trabalho e começar, de fato, a governar o País.

Rolf Kuntz, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 23.04.23

Mediação marqueteira da guerra ressoa como balido de ovelha

Em briga de cachorro grande, neutralidade já é uma forma de intermediação

Celso Amorim, assessor especial de Lula para assuntos internacionais - Adriano Machado - 5.dez.22/Reuters

Não veio a público o teor da conversa entre o assessor especial da Presidência brasileira e Putin. Discrição de Estado, pode ser. Homem ponderado, o brasileiro poderia ter aproveitado, porém, para atualizar junto ao russo a fábula do lobo e do cordeiro.

No original de Esopo, o lobo, naturalmente mais forte, rejeita os argumentos do outro porque pretende devorá-lo a qualquer custo. Numa versão atualizada, o cordeiro poderia estar marcialmente preparado para dar uma surra no atacante.

Foi mais ou menos isso o que aconteceu entre Rússia e Ucrânia. Não que esta última, guarnecida por elites militares declaradamente neonazistas, como o Batalhão Azov, vestisse pacífica pele ovina. A invasão russa, porém, foi um ataque lupino, pretensiosamente mais forte e com o "argumento" apocalíptico das armas nucleares. Não funcionou.

Apesar da terra arrasada, de milhares de mortes civis e militares, o "cordeiro" ucraniano, com ajuda americana e europeia, inflige derrotas importantes aos invasores em termos de soldados, generais e equipamentos. Era uma vez um lobo mau...

Frio como inverno siberiano, Putin não se abala com execuções de civis, estupros e decapitações, de que têm sido acusadas suas tropas. Nenhum Hitler, certo, mas um autocrata que ascendeu dos temíveis serviços secretos, dos bastidores de acordos com máfias e oligarcas, sem hesitar no envenenamento e aprisionamento de adversários. Alimenta um nacionalismo neoczarista com roupagem stalinista.

Se o brasileiro foi recebido na sala frequente nas imagens, Putin estaria sentado à mesa com inusitada distância entre cabeceira e ponta, truque de linguagem corporal: espreitado por olhos de sociopata, o interlocutor já se senta em desvantagem de fala.

O que ouviu não revelou, mas transpareceu em Lula ao dizer que os EUA deveriam parar de "incentivar" a guerra. E mais: "A Ucrânia não pode querer tudo". Tudo o quê? A integridade de seu próprio território.

A Guerra da Ucrânia, claro, mais complexa que o perfil de seus líderes, é um ponto de inflexão na nova luta pela divisão geopolítica da Terra. Para o neoimperialismo comercial e tecnológico, não existem fronteiras materiais, e sim horizontes.

É a realidade do poder norte-americano, assim como o sonho imperial de Putin, em choque com o nacionalismo vitalista da Ucrânia: ancoragem num solo nacional eurocentrado.

Nessa briga de cachorro grande, neutralidade (Áustria, Finlândia) já é mediação, especialmente por quem não tem nada a ver com isso. Mediar não é fazer marketing unilateral com retórica identitária, mais estética do que política, de esquerda caquética. Senão a voz apaziguadora ressoa como patético balido de ovelha.

Muniz Sodré, o autor deste artigo, é sociólogo, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 23.04.23

sábado, 22 de abril de 2023

O crime da Lava-Jato foi combater a corrupção

Estão soltando os condenados. Não por terem sido considerados inocentes, mas por cuidadosa manipulação de regras formais

O senador e ex-juiz Sergio Moro (Foto: Cristiano Mariz / O Globo)

Lula comete muitos equívocos. Na maior parte, são opiniões rasteiras sobre assuntos complexos que ele não conhece. Entram nessa categoria os comentários sobre os games — vistos como formadores de crianças violentas — e transtornos mentais — ou “desequilíbrio de parafuso” que afeta 30 milhões de brasileiros, potenciais causadores de “desgraça”. Tratava dos assaltos a escolas, tema sensível, mas essas falas não geram políticas públicas. Ao contrário. Nos ministérios da Saúde e da Educação, ficaram perplexos com os comentários do presidente. Calaram. Ainda bem.

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É diferente quando se trata das incursões de Lula em política internacional. As declarações de apoio à China e à Rússia revelam um antiamericanismo que, antes de mais nada, é visceral. Lula acha — e diz — que sua prisão foi resultado de uma conspiração armada pelo Departamento de Justiça dos EUA. Tem muita gente importante no PT que racionaliza essa ideia, tornando-a base da diplomacia “Sul-Sul”. Se os americanos são capazes de destruir uma economia emergente, então o negócio é buscar outros parceiros.

(Janja vira alvo da oposição por ir a loja de grife em Lisboa)

En passant, fica dito que a corrupção no mensalão e, sobretudo, no petrolão foi coisa pequena, limitada a algumas pessoas, sem participação do PT, muito menos de Lula. Os grandes acordos de delação? Empresas, executivos e empresários chantageados. E os réus confessos que devolveram dinheiro? Também chantagem e mixaria. Assim mesmo, tudo duvidoso, porque a diretoria da Petrobras na época era formada por cúmplices da conspiração.

Para eles, a Petrobras quebrou, nas gestões petistas, não por má gestão e roubalheira, mas por ter sido saqueada por agentes do imperialismo. E por que saqueada? Porque a estatal e as empreiteiras associadas, Odebrecht à frente, se espalhavam pelo mundo ameaçando as companhias americanas. (Leiam artigos e livros de José Sérgio Gabrielli e Alessandro Octaviani, este agora indicado para a Superintendência da Susep. Ele, aliás, sustenta que a corrupção foi fator de crescimento em muitos países.) Dizem que, contra essa expansão brasileira, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos inventou o programa de combate à corrupção, com o propósito explícito de tirar do caminho as concorrentes das empresas americanas.

Como chegaram a isso? Partindo de um fato real: o governo americano, com a OCDE, liderou um programa de combate à corrupção que apanhou empresários, empresas e governos pelo mundo todo, inclusive entre os aliados europeus. Não foi, pois, uma ação contra o Brasil de Lula. Foi na sequência de investigações sobre terrorismo e tráfico de drogas, quando se adotou a linha follow the money. Quem financiava o crime? Como se dava a troca de dinheiro sujo por respeitáveis recursos no sistema financeiro global? No meio do caminho, com a colaboração de diversos governos, se topou com a corrupção dos Estados.

O programa desenvolveu métodos de rastreamento de dinheiro, praticamente quebrando o sigilo bancário e estabelecendo troca de informação entre os fiscos e os bancos centrais. A Lava-Jato fez parte desse programa. Foi assim, aliás, que achou dinheiro desviado em bancos suíços. Sim, Deltan Dallagnol e Sergio Moro estudaram nos EUA. Exatamente como juízes, promotores e policiais de diversos países. Obtiveram condenações notáveis.

Foi tudo uma farsa global?

No mundo, muita gente grande continua em cana. Aqui, estão soltando todos os condenados. Não por terem sido considerados inocentes, mas por uma cuidadosa manipulação de regras formais que vai anulando processo por processo. Em cima disso, o discurso petista vai ganhando espaço: o combate à corrupção, uma farsa americana, só serviu para destruir empresas brasileiras, gerar desemprego e recessão. A inversão está feita: não é a corrupção que corrói a economia, mas o combate a ela.

Pode?

Não pode. Leiam o livro de Malu Gaspar “A organização” e os escritos de Maria Cristina Pinotti.

Carlos Alberto Sardenberg, o autor deste artigo, é Jornalista. Publocado originalmente n'O Globo, em 22.04.23

Dez perguntas para dois chanceleres


Proponho questões para esclarecer a posição oficial do Brasil sobre a invasão russLula tem dois chanceleres: Mauro Vieira, que comanda o Itamaraty, e Celso Amorim, assessor presidencial. 

O primeiro representa a política institucional, que definiu o voto brasileiro na resolução da ONU exigindo a retirada das forças russas de ocupação da Ucrânia. O segundo representa a política ideológica, lulista e petista, que renegou aquele voto.

Fernando Haddad, Mauro Vieira e Celso Amorim durante evento em Buenos Aires, Argentina - Agustin Marcarian-24.jan.23/Reuters

Proponho dez perguntas a eles, destinadas a esclarecer a posição oficial do Brasil sobre a invasão russa:

1) A Carta da ONU e a Constituição brasileira consagram os princípios da soberania nacional e do respeito à integridade territorial das nações. É nesses princípios que o Brasil apoia sua pretensão de ajudar a mediar negociações entre Rússia e Ucrânia?

2) O encontro de Amorim com Putin, em Moscou, seguido pelas declarações de Lula na visita à China e pela recepção de Serguei Lavrov em Brasília, paralelamente à ausência de visitas à Ucrânia, indicam que o Brasil escolheu o lado russo. Ou existe explicação diferente para o desequilíbrio diplomático?

3) O Tribunal Penal Internacional (TPI), do qual o Brasil participa, emitiu ordem de prisão contra Vladimir Putin, pelo crime de deportação forçada de crianças ucranianas para a Rússia. O Itamaraty não se pronunciou sobre o tema e Amorim visitou Putin pouco depois do gesto do TPI. O governo brasileiro decidiu ignorar o TPI?

4) Lavrov declarou, em Brasília, que Rússia e Brasil compartilham "posição similar" sobre a "gênese" da guerra na Ucrânia. Lula afirmou, repetidamente, que a raiz da invasão russa é o alargamento da Otan –e, ainda, que os EUA e seus aliados europeus estimulam a continuidade da guerra. Deve-se concluir disso que, de fato, o governo brasileiro concorda com a declaração do chanceler russo?

5) Segundo Lula, a responsabilidade pela guerra cabe, igualmente, a Putin e Zelenski. O governo brasileiro não distingue o país agressor do país agredido, o invasor do invadido?

6) A Casa Branca classificou as afirmações de Lula como um alinhamento com a propaganda de guerra russa. Vieira reagiu, negando a interpretação do governo dos EUA –mas não negou a veracidade da declaração de Lavrov sobre a similaridade entre as visões russa e brasileira. Quem cala consente?

7) Tradicionalmente, Amorim abusa do conceito de soberania, usando-o para evitar qualquer crítica a ditadores amigos que violam os direitos humanos. Contudo, nega solidariedade à nação cuja soberania é destruída por uma guerra de agressão destinada a promover anexações territoriais. Na política externa do governo, soberania é um princípio com validade geral ou mero álibi utilizado para justificar alinhamentos ideológicos?

8) A Crimeia é território ucraniano internacionalmente reconhecido. A própria Rússia reconheceu as fronteiras ucranianas em tratado firmado em 1994 –pelo qual, aliás, a Ucrânia entregou suas armas nucleares à Rússia. Com que direito Lula sugere a cessão da Crimeia à Rússia como condição para futuras e hipotéticas negociações de paz?

9) A Carta da ONU suporta o princípio da "autodefesa coletiva", isto é, o direito de fornecer ajuda bélica a nações que resistem a uma invasão não provocada. Sem auxílio militar ocidental, a Ucrânia já não existiria como Estado independente. A "paz" pela rendição –é isso que deseja o governo ao criticar tal auxílio?

10) No seu pronunciamento sobre o diálogo com Lavrov, Vieira mencionou as "preocupações securitárias" russas e ucranianas mas não se referiu às anexações territoriais russas ou à soberania ucraniana. Lula pretende realmente ser aceito pela Ucrânia como mediador de negociações de paz ou simplesmente invoca a palavra paz para legitimar as narrativas imperiais russas?

O jornalismo adulatório faz, no máximo, as indagações fáceis. Haverá, ainda, jornalistas dispostos a confrontar os dois chanceleres com as perguntas difíceis?

Demétrio Magnoli, o autor deste artigo, é doutor em geografia humana pela USP. Sociólogo, escreveu e publicou “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 22.04.23

Lula diz que nunca igualou Ucrânia à Rússia na guerra

Em Portugal, presidente condena violação do território, diz que não vai visitar Ucrânia e nega ter igualado Kiev e Moscou sobre responsabilidade pelo conflito. Mas afirma que "quem não fala em paz contribui para guerra".

Presidente Lula se encontra em Lisboa com o Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciou neste sábado (22/04), em Lisboa, sua primeira visita oficial à Europa neste terceiro mandato. Após um encontro com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, o brasileiro fez declarações sobre a guerra na Ucrânia, em que condenou a violação ao território ucraniano e negou ter igualado Kiev e Moscou sobre a responsabilidade pelo conflito.

Lula também disse que só visitará a Rússia ou a Ucrânia quando houver sinais de que os países estão dispostos a alcançar uma solução negociada para o fim da guerra.

"Eu não fui à Rússia nem à Ucrânia, só vou quando tiver um clima de construção de paz. Nunca igualei os dois países", disse o presidente. "​​Todos nós achamos que a Rússia errou. E já condenamos em todas as decisões da ONU. Mas a guerra já começou e é preciso parar a guerra. E para parar a guerra tem que ter alguém que converse, e o Brasil está disposto."

Lula continuou afirmando que seu "governo condena a violação à integridade territorial da Ucrânia", mas defende "uma solução política e negociada para o conflito". "Precisamos criar um grupo de países que se sentem à mesa tanto com a Ucrânia como com a Rússia para encontrar a paz."

A fala sobre uma solução política negociada ecoa declarações recentes de Lula sobre a guerra, mas anteriormente o presidente gerou controvérsias ao dizer que tanto Moscou como Kiev são responsáveis pelo conflito, uma vez que "quando um não quer, dois não brigam".

Atrito com UE e EUA

Recentemente o presidente também gerou atrito com os Estados Unidos e a União Europeia (UE) ao afirmar que essas potências contribuem para prolongar o conflito em solo ucraniano. Bruxelas e a Casa Branca chegaram a emitir reações de indignação à fala do brasileiro.

Questionado neste sábado sobre se ainda mantém esse posicionamento, Lula respondeu: "Se você não fala em paz, você contribui para a guerra."

Ele lembrou então de quando o chanceler federal da Alemanha, Olaf Scholz, o visitou em Brasília e pediu que o Brasil vendesse armamentos de guerra a Berlim para que fossem doados à Ucrânia. A solicitação foi negada por Lula.

"O Brasil se recusou a vender os mísseis, porque se a gente vendesse os mísseis e esses mísseis fossem doados à Ucrânia e esses mísseis fossem utilizados e morresse um russo, a culpa seria do Brasil. O Brasil estaria na guerra. E o Brasil não quer participar da guerra. O Brasil quer construir a paz", afirmou o presidente.

Portugal apoia Ucrânia

Na mesma coletiva de imprensa, o presidente português também comentou a guerra, afirmando que Portugal condena a invasão russa e expressando solidariedade ao povo ucraniano. Rebelo de Sousa ainda reafirmou o compromisso de Portugal com as políticas da Otan e da UE em relação à guerra.

"Portugal é aliado da UE, da Otan, definiu apoio à Ucrânia. A posição do Brasil é a que o presidente Lula defendeu", afirmou o líder português. "Portugal pensa que não é uma situação justa não permitir que a Ucrânia possa se defender e recuperar território que foi perdido devido à violação territorial."

Esta é a primeira viagem oficial de Lula à Europa neste terceiro mandato. Durante a manhã, ele foi recebido por Rebelo de Sousa com honras militares na Praça do Império, em Lisboa, e depois fez uma visita ao túmulo de Luís de Camões. Os dois presidentes seguiram então para um encontro em Belém, antes da coletiva de imprensa conjunta.

Neutralidade brasileira à prova

Por mais que Lula tenha negado que visitará pessoalmente a Ucrânia, ele decidiu enviar o assessor especial do Palácio do Planalto para assuntos internacionais, Celso Amorim, para se reunir com autoridades em Kiev e discutir a invasão da Rússia.

O presidente afirma que o Brasil tem posição neutra no conflito, mas suas falas que corresponsabilizaram a Ucrânia pela invasão de seu território e acusaram a UE e os EUA de prolongarem a guerra levantaram dúvidas em países do Ocidente e na comunidade ucraniana sobre a neutralidade de Brasília.

Contribuiu para essa percepção o contato frequente do governo brasileiro com o governo russo, sem que houvesse até o momento visitas oficiais de membros do alto escalão da gestão Lula a Kiev.

Amorim reuniu-se com o presidente russo, Vladimir Putin, e seu chanceler, Serguei Lavrov, em Moscou, no final de março. Lavrov foi também recebido em Brasília na última segunda-feira pelo chanceler brasileiro, Mauro Vieira, e por Lula.

Amorim foi ministro das Relações Exteriores de 2003 a 2011, nos dois primeiros governos Lula. Após sua viagem a Moscou, ele visitou Paris, onde conversou com representantes do governo francês sobre o tema.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 22.04.23

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Liberdade e desenvolvimento

O Brasil tem tudo para se tornar uma grande nação, mas, antes, precisa derrubar seus próprios muros. Porque ainda nos falta liberdade

Vianna Moog, em sua obra-prima de 1954, Bandeirantes e Pioneiros, procurava explicar o subdesenvolvimento do Brasil fazendo um paralelo entre a formação dos Estados Unidos e a nossa. Os Estados Unidos seriam a nação mais poderosa do mundo porque foi fundada por pioneiros, que vieram da Europa para se fixar e trabalhar no novo mundo. Enquanto isso, nossos fundadores vieram para o Brasil em busca de fortuna, voltando para Portugal depois de atingido seu objetivo. Essa seria a lógica dos bandeirantes. Procurar ouro, enriquecer rápido. Eles construíram a maior nação unificada do Hemisfério Sul, mas essa construção teria sido apenas subproduto de suas expedições, de suas lutas, de sua coragem.

Essa tese foi muito popular na época, mas hoje não nos serve mais.

Tivemos, sim, os bandeirantes, que foram grandes conquistadores. Eles impediram o domínio da infantaria espanhola sobre o continente e criaram um país grande, central e dominante na América do Sul, enquanto as antigas colônias espanholas se fragmentaram em países periféricos.

Temos extensão territorial de grande potência, população que se julga unificada, ausência de desertos, de terremotos, e até falamos português com sotaque próprio, que identifica e diferencia seus habitantes. O Brasil não cabe no rótulo América Latina. O Brasil é diferente, é outro tipo maior de país.

Hoje a tese de Vianna Moog precisa ser atualizada, porque temos tantos pioneiros quanto qualquer outro país novo do mundo. Será verdade? Se fosse vivo, ele logo nos perguntaria: E onde estão esses pioneiros? O que falta para caminharmos em direção ao desenvolvimento?

A primeira pergunta é fácil de responder. Os pioneiros estão em toda parte! Estão nos desempregados que iniciaram uma pequena empresa para sobreviver. Estão nos migrantes que levaram a agricultura empresarial aos confins de todo o País, tornando-o a maior potência emergente do mundo na produção de grãos. Estão nos empreendedores que criaram empresas capazes de rivalizar com as de melhor tecnologia do mundo desenvolvido.

Se não falta gente habilitada ao crescimento, apesar de nossas deficiências educacionais, se não falta garra, não falta precisão (no sentido que essa palavra tem para Ariano Suassuna), o que falta, então?

Para tentarmos responder a essa segunda pergunta precisamos, antes, entender o que conseguiram fazer os nossos pioneiros num determinado ramo de atividade que nos tornou referência em todo o mundo.

No Brasil de Vianna Moog, em 1954, produzíamos algo em torno de 25 milhões de toneladas de grãos, só exportávamos café e importávamos até milho. Hoje produzimos 300 milhões de toneladas e caminhamos para superar os Estados Unidos como maior exportador de grãos do mundo, apesar das estradas esburacadas, dos portos deficientes, da falta de ferrovias, da falta de silos, da falta de tudo que o governo deveria prover.

O que aconteceu de diferente ali, se sabemos que nosso PIB permanece estagnado? Ele teria caído nos últimos anos, não fosse o crescimento da agricultura. Teria acontecido conosco, em menor escala, o que aconteceu com a Argentina, que era um país rico no início do século passado e foi regredindo, assolada por ditaduras e pelo populismo peronista, até se tornar pobre. Como explicar o sucesso surpreendente de nossa agricultura empresarial neste mar de fracassos?

A resposta é a liberdade. A agricultura brasileira foi o único ramo da economia que viveu longe dos burocratas de Brasília e teve liberdade no Brasil. Ela nunca esteve enredada no cipoal retrógrado de normas, regulamentos, portarias, leis oportunistas, impostos escorchantes e processos judiciais bizantinos que sufocam os demais ramos de nossa economia.

A liberdade foi, nos Estados Unidos, e tem sido agora, no mundo, o motor do desenvolvimento.

Isso ficou muito mais claro depois da queda do Muro de Berlim, em 1989. O crescimento econômico de vários países emergentes começou naquela época, quando eles entenderam o que realmente significava a queda do muro. Nossos políticos não entenderam.

Passaram-se 33 anos da queda do muro. Vimos como se tornaram ricos, desde então, aqueles países pequenos, ou superpovoados, ou emergentes maiores sem recursos naturais, que entenderam o que precisavam fazer.

Nossos políticos também viram, mas ainda não entenderam. Talvez se aferrem a preconceitos ideológicos do passado. Ignoram que o progresso não tem ideologia. Que ele não é de esquerda nem de direita. Que ele só ocorre quando existem condições propícias: equilíbrio fiscal, inflação controlada, políticas econômicas favoráveis ao investimento, eliminação de estatais ineficientes ou cabides de emprego. É preciso reformar e abrir o Estado. Essa receita veio de Berlim, quando a queda do muro assinalou o fim de uma era.

Antonio José de Oliveira Costa, o autor deste artigo, é advogado pela Faculdade do Largo de S. Francisco (USP) e Pós-graduado em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas-SP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 21;04.23.

Ucranianos em Portugal condenam falas de Lula sobre guerra

Comunidade ucraniana entregará carta aberta à embaixada brasileira em Lisboa na sexta-feira, quando Lula chega ao país europeu para visita oficial. Texto afirma que "neutralidade" não pode ser confundida com "conivência"

A comunidade ucraniana em Portugal criticou em uma carta aberta as recentes declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a invasão russa da Ucrânia, e disse estar "muito preocupada e apreensiva" com a posição do Brasil sobre o conflito.

A carta foi obtida pela agência de notícias Lusa nesta quinta-feira (20/04) e será entregue na sexta-feira à embaixada do Brasil em Lisboa, quando Lula chega a Portugal para uma visita oficial de quatro dias.

O documento foi redigido em nome da comunidade ucraniana que vive em Portugal e nos demais países da União Europeia (UE), e pelos mais de oito milhões de ucranianos refugiados em todo o mundo devido à guerra.

A carta cita que o presidente brasileiro têm dito que a culpa pela guerra seria compartilhada entre a Rússia e a Ucrânia e que a solução para o fim do conflito passaria pela Ucrânia desistir de parte de seu território –  e lembra a recepção em Brasília ao ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, na segunda-feira.

Dirigindo-se a Lula, o documento afirma: "Senhor presidente, se há momentos na história em que a neutralidade não se pode confundir com a conivência nem o temor este é, definitivamente, um deles".

O signatários também reforçam o convite feito pelo presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, para que o brasileiro vá à Ucrânia "para ver in loco e com os seus próprios olhos, o significado de 'paz russa'".

O que Lula disse

No início de abril, Lula sugeriu à Ucrânia que cedesse a Crimeia a Moscou a fim de negociar o fim da guerra. "[O presidente russo, Vladimir] Putin não pode ficar com o território da Ucrânia. A Crimeia pode ser discutida. Mas o que ele invadiu de novo, ele tem que repensar", disse o presidente em encontro com jornalistas no Palácio do Planalto.

A declaração gerou reação de Kiev, que "deixou claro que a Ucrânia não faz comércio com os seus territórios". A esmagadora maioria da comunidade internacional continua a considerar a Crimeia território da Ucrânia, nove anos depois de, com sua anexação, o presidente russo, Vladimir Putin, começar a retalhar o território ucraniano.

No último fim de semana, em visita aos Emirados Árabes Unidos, Lula disse que a Ucrânia seria corresponsável pelo início do conflito. "A construção da guerra foi mais fácil do que será a saída da guerra, porque a decisão da guerra foi tomada por dois países."

O brasileiro também acusou os EUA e a Europa de prolongarem o conflito no Leste Europeu. A declaração gerou reação internacional, e a Comissão Europeia e a Casa Branca rebateram na segunda-feira as críticas feitas pelo brasileiro.

Na terça-feira, Lula amenizou o tom e disse que seu governo condena a violação do território ucraniano, ao mesmo tempo que defende "uma solução política negociada para o conflito". O brasileiro defendeu a criação "urgente" de um grupo de países capazes de mediar o fim da guerra, "que tente sentar-se à mesa tanto com a Ucrânia como com a Rússia para encontrar a paz".

O que diz a carta

Assinada pelo presidentes do Congresso Europeu dos Ucranianos, Bogdan Raicinec, e da Associação dos Ucranianos em Portugal, Pavlo Sadokha, o documento afirma que "ninguém quer ver o bom nome do Brasil, enquanto nação democrática e livre, manchado como aliado do regime criminoso do Kremlin, pelo que as recentes declarações nos deixaram muito preocupados e apreensivos".

"Consideramos que qualquer tipo de apoio que o Brasil possa entender conferir à Federação Russa será desprestigiante, levará a uma desconfiança da comunidade internacional."

O documento diz que "qualquer acordo de paz justa proposto pela Federação Russa acabará em campos de concentração para o extermínio da nação ucraniana com a solução silenciosa 'Z'", uma referência à letra pintada nos veículos militares russos usados na invasão da Ucrânia.

 "Já vivemos a situação no século passado com a ação de extermínio perpetrada pelos nazis e que culminou com a organização comunista do Holodomor, numa tentativa de erradicar qualquer sobrevivente ucraniano. Resistimos e sobrevivemos", sublinham.

A carta afirma que os ucranianos vão "continuar a lutar", sobretudo pelas "crianças que [o presidente russo, Vladimir] Putin deporta para a Rússia ao mesmo tempo que executa os seus pais". "Permita-nos recordar que a deportação ilegal das nossas crianças foi, aliás, a base de acusação para a emissão de um mandato de captura contra Vladimir Putin emitido pelo Tribunal Penal Internacional", acrescenta.

A carta diz ainda que a guerra da Ucrânia já dividiu o mundo em dois polos, "um que defende a liberdade, a ordem e o progresso, e outro que põe os seus interesses imperialistas e oligárquicos acima do bem supremo da vida humana, da ordem e paz internacionais".

E, dirigindo-se a Lula, afirma: "Senhor presidente, se há momentos na história em que a neutralidade não se pode confundir com a conivência nem o temor este é, definitivamente, um deles".

"Os ucranianos nunca esquecerão os bravos militares brasileiros que ajudaram a libertar a Europa do jugo totalitário e, por isso, acreditamos que é chegada a hora de Vossa Excelência comandar o Brasil na direção do lado certo da história e alinhada com o mundo livre", conclui o documento.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 21.04.23

Lula viaja a Portugal em busca de acordos e sob críticas por declarações sobre guerra na Ucrânia

Em Portugal, Lula participa da cúpula bilateral Portugal-Brasil, reunião conjunta dos dois governos

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chega nesta sexta-feira (21/4) a Portugal para uma visita oficial em meio a críticas de partidos de oposição em relação a suas declarações sobre a guerra na Ucrânia e com uma manifestação contra a sua presença convocada pela maior força de extrema-direita do país.

O petista decidiu antecipar seu embarque para Lisboa para a noite de quinta-feira (20/4) — inicialmente a previsão era que ele partiria de Brasília na manhã desta sexta-feira (21/4). Com a mudança, ele aterrissou na capital portuguesa ainda nesta manhã.

Ele fica em Portugal até a próxima terça-feira (25/4), quando viaja à Espanha. Em Madri, Lula deve permanecer por apenas um dia. Seu retorno ao Brasil está previsto para a noite de quarta-feira (26/4).

Em Portugal, Lula participa da cúpula bilateral Portugal-Brasil, reunião conjunta dos dois governos, e tem encontros marcados com o primeiro-ministro português, António Costa, e com o presidente, Marcelo Rebelo de Souza.

Também deve entregar o prêmio Luiz de Camões, a principal premiação de literatura em língua portuguesa, ao cantor, compositor e escritor Chico Buarque, que o venceu em 2019, mas até agora não o recebeu, entre outras razões, pela recusa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em assinar o diploma de concessão e, posteriormente, pelo confinamento imposto pela pandemia de covid-19.

Além disso, Lula deve participar de uma sessão solene de boas-vindas no Parlamento português (Assembleia da República) na próxima terça-feira (25/4), dia da celebração da Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura militar em Portugal — inicialmente, Lula faria um discurso por ocasião da data comemorativa, mas o convite gerou polêmica, e partidos de oposição se manifestaram contra a iniciativa (ler mais abaixo). Ele seria o primeiro chefe de Estado estrangeiro a discursar na cerimônia.

Segundo o Itamaraty, a expectativa é que os representantes dos dois países assinem dez acordos e termos de cooperação.

Entre eles, estão o que concede equivalência aos Ensinos Fundamental e Médio do Brasil ao de Portugal e o que permite que a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) tenha validade permanente em Portugal, e vice-versa.

Na sequência, Lula viaja à Espanha, onde deve se encontrar com empresários, com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, e com o rei Filipe 6º.

Polêmica sobre Ucrânia

A visita de Lula a Portugal acontece em meio à repercussão negativa das declarações do brasileiro sobre a guerra na Ucrânia

Membro da União Europeia e da Otan, a aliança militar ocidental, Portugal tem declarado apoio aberto ao país invadido pela Rússia e chegou, inclusive, enviar tanques Leopard a Kiev.

As críticas vieram de partidos de oposição e da associação de ucranianos em Portugal.

Em visita recente aos Emirados Árabes Unidos, onde fez uma parada depois de sua viagem à China, o petista atribuiu aos EUA e à União Europeia, a responsabilidade pelo prolongamento da guerra na Ucrânia.

"O presidente [Vladimir] Putin não toma a iniciativa de parar. [Volodymyr] Zelensky não toma a iniciativa de parar. A Europa e os Estados Unidos continuam contribuindo para a continuação desta guerra", disse.

No início do mês, Lula já havia afirmado que a Ucrânia poderia ceder a Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, em nome da paz.

Após a polêmica, o petista condenou a invasão russa da Ucrânia.

"Ao mesmo tempo em que meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma solução política negociada para o conflito", disse Lula em encontro com o presidente da Romênia, Klaus Werner Iohannis nesta semana.

O vice-presidente do PSD, Paulo Rangel, cobrou do governo "tomar uma posição pública e formal" sobre as falas de Lula.

Já Rui Rocha, líder do partido opositor Iniciativa Liberal, afirmou que o Parlamento português "não pode receber um aliado de Putin como Lula no 25 de abril". Ele lembrou que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, discursou por videoconferência no local.

"A AR (Assembleia da República, o Parlamento português) que convidou Zelensky para discursar em 21 de Abril de 2022 não pode receber um aliado de Putin como Lula no 25 de Abril. E o Presidente da República que atribuiu a Ordem da Liberdade a Zelensky não pode estar confortável com a presença de um aliado de Putin como Lula na AR no 25 de Abril", escreveu Rocha em sua conta pessoal no Twitter.

Por outro lado, Jamila Madeira, vice-presidente da bancada parlamentar do PS, defendeu que Lula tem procurado fomentar "a busca pela paz" na Ucrânia, tal como o presidente da França, Emmanuel Macron.

Já o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, disse não estar arrependido de ter convidado Lula para discursar no Parlamento português.

Segundo ele, Portugal não teria relações com grande parte do mundo se as cortasse devido a divergências relativas à política externa.

"Não me arrependi coisa nenhuma. A posição portuguesa é clara: a Rússia é que invadiu a Ucrânia, não a Ucrânia que invadiu a Rússia. Portugal e a UE estão a apoiar a Ucrânia e vamos continuar. Direi-o ao presidente Lula e ao presidente da Índia, que vem a seguir, e aos presidentes do Senegal e da Argélia, que também virão a Portugal", disse.

Rebelo de Sousa acrescentou que os partidos da oposição têm todo o direito de criticar a posição de Lula, uma vez que "vivemos em democracia", mas que se trata de uma "relação entre Estados".

"Discordamos, mas não temos nada a ver com isso. Cada país tem a sua política externa, se estivermos de acordo melhor, mas se não estivermos de acordo com a nossa política interna e externa, não teríamos relações com 3/4 do mundo", completou.

A Associação dos Ucranianos em Portugal, por sua vez, preparou uma carta para entregar a Lula na noite desta sexta-feira em frente à embaixada do Brasil, segundo disse o presidente da entidade, Pavlo Sadokha, à BBC News Brasil.

Convocação para protesto contra Lula do Chega

O partido Chega convocou manifestação contra Lula para próxima terça-feira, 25 de abril, dia em que se comemora Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura militar em Portugal

Manifestação

A oposição mais forte à visita de Lula vem do partido de direita radical Chega, capitaneado pelo deputado André Ventura.

A sigla divulgou nas redes sociais uma convocação para um protesto contra o petista no próximo dia 25 do lado de fora do Parlamento português.

"Lugar de ladrão é na prisão", diz a chamada para a manifestação, que faz referência à prisão de Lula em 7 de abril de 2018.

A convocação do ato foi compartilhada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que descreveu a manifestação como "justa". O perfil do Chega no Twitter respondeu ao post do deputado dizendo que "Lula, não é bem-vindo em Portugal!".

Fundado em 2019, o Chega, que se define como um partido "conservador, liberal e nacionalista", tem no discurso anti-imigrante um de seus principais alicerces e é hoje a terceira maior força no Parlamento português, com 12 deputados. O Partido Socialista (PS), que governa o país, ainda tem maioria absoluta, com 120 deputados.

Em 13 de janeiro deste ano, em sessão no Parlamento português, Ventura chamou Lula de "bandido".

Na ocasião, o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva (Partido Socialista), reagiu e afirmou se tratar de "uma expressão ofensiva em relação ao presidente de um país muito amigo de Portugal".

Apesar disso, Ventura replicou e disse ser "difícil se referir ao presidente do Brasil de outra forma".

Ao fim de sua fala, o líder do Chega condenou, no entanto, "os ataques às instituições e a violência" dias antes, em 8 de janeiro, quando milhares de apoiadores de Bolsonaro invadiram as sedes dos três poderes em Brasília.

Mais recentemente, em vídeo enviado às redações em Portugal, Ventura reafirmou a promessa de que o partido vai "mesmo organizar a maior manifestação de sempre contra um dignatário estrangeiro em Portugal", mobilizando "portugueses e brasileiros, todos os que se quiserem juntar, para mostrar que o centro-direita e a direita portuguesa não são o PSD, não são este PSD". O PSD é o principal partido de oposição em Portugal e a segunda maior bancada no Parlamento, com 77 deputados.

Segundo Ventura, Lula deve ser condenado pela "proximidade com a Rússia", pela "incapacidade de ver o sofrimento do povo ucraniano", pela "sua proximidade à China", pela "hesitação em condenar as ditaduras sul-americanas" e "acima de tudo e sobretudo, pelo nível de corrupção que representa".

Para o líder do Chega, o PSD está enfraquecendo a direita e ajudando a esquerda a crescer.

"É ultrajante ver um partido que deve liderar a centro-direita dize que saúda a presença de Lula no dia 25 de abril em Portugal no dia da conquista democrática, no dia da nossa celebração democrática", disse Ventura em referência ao PSD.

"É muito triste ver a direita e a centro-direita em Portugal assim. É esta atitude medrosa, hesitante, mariquinhas que leva a que tenhamos a esquerda a crescer a nível mundial e sempre a apontar o dedo à direita, incapaz de resistir", acrescentou.

Em maio, Ventura deve receber Bolsonaro e o vice-primeiro-ministro da Itália, Matteo Salvini, além de outros nomes da extrema-direita para uma cúpula mundial organizada pelo Chega em Lisboa.

O objetivo, segundo Ventura, é transformar Portugal num dos "centros mundiais da ultradireita contra o socialismo".

Mal-estar

De fato, não foi apenas em Portugal que as falas de Lula sobre a guerra na Ucrânia foram mal recebidas.

John Kirby, coordenador de comunicação estratégica do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, nos Estados Unidos, chamou a postura do presidente brasileiro de "repetição automática da propaganda russa e chinesa" e "profundamente problemática".

"É profundamente problemático como o Brasil abordou essa questão de forma substancial e retórica, sugerindo que os Estados Unidos e a Europa de alguma forma não estão interessados na paz ou que compartilhamos a responsabilidade pela guerra", disse ele em conversa com jornalistas.

"Francamente, neste caso, o Brasil está repetindo a propaganda da Rússia sem olhar para os fatos", acrescentou.

Para Kirby, "os comentários mais recentes do Brasil de que a Ucrânia deveria considerar ceder formalmente a Crimeia como uma concessão pela paz são simplesmente equivocados, especialmente para um país como o Brasil que votou para defender os princípios de soberania e integridade territorial na Assembleia-Geral da ONU".

O porta-voz para Assuntos Externos da União Europeia, Peter Stano, também rebateu as falas de Lula sobre a guerra, destacando que a Rússia é a "única responsável" pelo conflito.

"O fato número um é que a Rússia — e apenas a Rússia — é responsável pela agressão ilegítima e não provocada contra a Ucrânia. Então não há dúvidas sobre quem é o agressor e quem é a vítima", disse Stano, lembrando que o Brasil condenou a invasão da Ucrânia na ONU (Organização das Nações Unidas).

Stano acrescentou que EUA e EU não estão contribuindo para prolongar a guerra, mas ajudando Kiev em sua legítima defesa.

"Caso contrário, a Ucrânia enfrentaria a destruição. A nação ucraniana e a Ucrânia como país seriam destruídos porque estes são os objetivos declarados da guerra de Putin", afirmou.

O mal-estar se agravou ainda mais com a viagem oficial do ministro das Relações Exteriores russo, Serguei Lavrov, a Brasília no início desta semana.

Uma das propostas do governo Lula é a criação de um "clube da paz", fórum de países que Brasília considera como não alinhados a nenhum dos lados do conflito para mediar as negociações entre Kiev e Moscou.

Na terça-feira (18/4), o governo da Ucrânia, por meio do porta-voz de sua chancelaria, Oleg Nikolenko, voltou a convidar Lula a visitar Kiev.

Em postagem no Facebook, Nikolenko afirmou que deseja que o brasileiro compreenda "as verdadeiras causas da agressão russa e suas consequências para a segurança global".

Lula já havia sido convidado pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, no mês passado, quando os dois falaram por videoconferência pela primeira vez. Na ocasião, o petista afirmou que aceitaria o convite em momento oportuno.

Discurso vetado

Cravinho e Lula em Brasília (Ricardo Stuckert)

Lula seria o primeiro chefe de Estado estrangeiro a discursar no Parlamento português por ocasião da comemoração da Revolução dos Cravos, que pôs fim à ditadura militar em Portugal.

A participação do petista chegou a ser anunciada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, João Gomes Cravinho, em visita ao Brasil.

"É a 1ª vez que um chefe de Estado estrangeiro faz um discurso nesta data", disse Cravinho em entrevista a jornalistas em Brasília.

Mas partidos de oposição, como PSD, IL e Chega, se manifestaram contra o convite e, após uma reunião entre lideranças políticas, chegou-se a um consenso de que Lula discursaria, mas numa sessão solene de boas-vindas, à parte das comemorações da Revolução dos Cravos.

Em entrevista concedida recentemente à Folha de S.Paulo, o assessor especial do presidente Lula, Celso Amorim, esclareceu que a posição do governo brasileiro é a de que a Rússia errou mas defendem que russos e ucranianos conversem. "A guerra não é uma solução nem para a Rússia nem para a Ucrânia. Essa é a questão do Brasil", disse ele.

Luís Barrucho, enviado da BBC News Brasil a Lisboa, em 21.04.23

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Gonçalves Dias e a Independência do Brasil

As comemorações em torno do bicentenário de nascimento de Gonçalves Dias deveriam estar intimamente associadas à passagem do bicentenário da adesão do Maranhão à Independência do Brasil.

Afinal, o mais importante poeta do Romantismo brasileiro foi gerado e nasceu sob o fragor das lutas que se travaram nos arredores de Caxias, a antiga Caxias das Aldeias Altas, último reduto de resistência portuguesa à emancipação do Brasil no Maranhão.

Pouco antes da capitulação das tropas comandadas pelo major português João José da Cunha Fidié, que se haviam acantonado no Morro das Tabocas com dez canhões e 700 homens, e da entrada triunfal na vila dos seis mil brasileiros que, durante cem dias, a mantiveram sob cerco intransponível, o comerciante português João Manuel Gonçalves Dias e sua amante grávida, a mestiça Vicência Mendes Ferreira, temendo represália dos independentes, fugiam para sítio Boa Vista, nas matas do Jatobá, a oitenta quilômetros de Caxias.

Apenas nove dias após a rendição de Caxias, Vicência, em cujas veias corria sangue indígena e africano, daria à luz, a 10 de agosto de 1823, aquele que haveria de ser aclamado como o poeta da nacionalidade e de eternizar em versos belíssimos os acontecimentos decisivos para o surgimento do novo país livre e soberano das Américas. 

Caxias foi, para aquele menino vindo ao mundo sob o espanto da guerra, levado em fuga pelo pai português e a mãe brasileira, que temiam os “algozes nacionalistas”, como José e Maria, no antigo Egito, os soldados de Herodes, o “Antimural do lusitano arrojo, último abrigo seu”. 

Imediatamente após a publicação dos Primeiros cantos, em 1847, no Rio de Janeiro, em edição pela qual pagou 900 mil réis do próprio bolso, o jovem batizado Antonio, aos 23 anos de idade, foi saudado em sua terra como primeiro grande poeta romântico brasileiro e o primeiro a elevar a um patamar de grandeza os valores da nova pátria.

Decorridos apenas dez meses da publicação desse livro, o escritor, historiador, jornalista e poeta Alexandre Herculano, verdadeiro semideus das letras portuguesas, publica, na Revista Universal Lisbonense, o artigo que consagraria definitivamente o poeta caxiense. 

Depois de lamentar a decadência da literatura do antigo reino colonial e de afirmar que no Brasil, “país de esperanças, cheio de vida e viço, há um ruído de lavor intimo que soa tristemente cá, nesta terra onde tudo acaba”, Herculano aponta como exemplo da verdadeira poesia nacional do Brasil dois trechos das “Poesias americanas: “O canto do guerreiro” e um fragmento do “Morro do Alecrim”. 

Ora, “Morro do Alecrim”, como o poeta resolveu batizar o Morro das Tabocas, em homenagem ao cabo de guerra João da Costa Alecrim, que, ao lado do baiano-maranhense Salvador Cardoso de Oliveira, enfrentou Fidié na Batalha do Jenipapo, perto de Campo Maior no Piauí – talvez a mais sangrenta batalha das lutas pela Independência no Brasil –  e depois ocupou o refúgio do mesmo Fidié em Caxias,  foi apenas uma das muitas composições com que saudou as lutas pela emancipação do Brasil no Maranhão e, especialmente, em sua Caxias natal. Uma delas, o poema “Ao aniversário da Independência do Maranhão”:

Terras do Maranhão – terras ditosas,

De galas, de primores revestida, 

Que o avaro Holandês tanto almejava;

A bela França cobiçou teus mimos,

E ufanas de se ver sobre os teus mares

A flores de três lírios – assumiram

Fulgor mais vivo – no teu céu brilhante!

...

Mas do tempo que foi que resta agora?

Memória apenas – recordar de males, 

Suave, quando o tempo os tem quebrado,

Agora resta amor ao pátrio solo,

Amor à liberdade – à Independência

Do Brasileiro Império em mundo novo!

Outro exemplo, o “Hino ao Dia 28 de julho”, escritor em Caxias em 1845, no qual canta o poeta:

Fomos servos – noutros tempos,

Curvados à prepotência;

De estrangeiros soberanos

Mendigamos a clemência.

Diziam que a liberdade 

Nos podia ser fatal

Como nas mãos de um menino

Buído e fino punhal.

...

Mas enfim lá do Ipiranga

Altivo grito soou:

Somos livres – longe o eco

- Somos livres – reboou.

Esse grito foi em todos

Um só braço, um só querer.

Voz de mil vozes acordes:

Independência ou morrer!

É importante destacar que, logo em seguida à capitulação das tropas portuguesas, os pais do menino Antonio, escondidos no sítio Boa Vista, retornaram com o filho para a mesma Rua do Cisco, em Caxias, onde moravam e tinham comércio. Ali, Gonçalves Dias viverá até os dez anos, quando é enviado para estudar em Lisboa. Ainda remoendo os tormentos da guerra da Independência, Caxias então mergulha em outra fase de luta, desta vez ainda mais selvagem e sangrenta, a Balaiada.

É, portanto, nesse caldo cultural revolucionário e emancipacionista que se formará o espírito daquele a quem nomes como Antonio Henrique Leal, Lúcia Miguel Pereira, Manuel Bandeira, alguns de seus principais biógrafos, além de críticos atuais, como Antonio Carlos Sechim, o consideram como o verdadeiro poeta nacional. Sechim chega a dizer que se a “Carta de Caminha” emitiu a nossa certidão de nascimento, a “Canção do Exílio “simboliza a nossa carteira de identidade”.

Gonçalves Dias cantou e deu voz ao índio, ao negro, exaltou a paisagem brasileira e ajudou a construir a identidade do seu país, consolidando, na poesia, a Independência da nação que viu nascer. Por unanimidade, é considerado o fundador da “literatura nacional”, literatura com a cara do Brasil, iniciada por um brasileiro nascido numa remota vila maranhense, simultaneamente à consolidação da Independência do seu país. 

Parece-nos, assim, inadmissível, sob todos os aspectos, celebrar o bicentenário do nascimento de Gonçalves Dias e ignorar os 200 anos da completa adesão do Maranhão à Independência do Brasil, acontecimentos simultâneos e indissociáveis, que honram a memória do poeta e a história da nação livre e soberana que ele ajudou a construir.  

Antonio Carlos Lima, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Membro da Academia Maranhense de Letras. Publicado originalmente em (http://aguadecacimba.blogspot.com/2023/04/goncalves-dias-e-independencia-do-brasil.html?m=1

Questão democrática

Ao revisitar antigos erros, como o apoio a ditaduras da América Latina, Lula demonstra que seu apreço à democracia não é prioritário, se é que existe realmente

Presidente Lula (Foto de  Cristiano Mariz/O Globo)

O presidente Lula foi eleito com apoio decisivo de um tipo de cidadão, aquele preocupado em proteger a democracia de uma possível vitória de Bolsonaro na eleição presidencial. A campanha de Lula baseou-se na necessidade de formar uma frente ampla democrática para impedir a continuação de um governo que já deixara clara sua intenção de dar um golpe, que quase se concretizou no dia 8 de janeiro e até hoje impacta nossa sociedade.

Ontem mesmo, o general Gonçalves Dias, que já trabalhara com Lula nos governos anteriores e desfrutava sua confiança a ponto de ser o chefe da segurança pessoal, teve de pedir demissão da chefia do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) diante dos vídeos que demonstravam que ele estivera presente nos atos de vandalismo no Palácio do Planalto — não para impedi-los, ou prender seus autores, mas dando cobertura tácita a eles.

Quando precisou de apoio internacional a favor do que representava sua candidatura, Lula recorreu aos Estados Unidos, cujo governo, liderado por Biden, não se recusou a apoiá-lo, defendendo as urnas eletrônicas e a democracia brasileira. Muita gente acreditou nisso, mas, ao revisitar antigos erros, como o apoio a ditaduras da América Latina, Lula está demonstrando que seu apreço à democracia não é prioritário, se é que existe realmente.

Depois de defender a posição da Rússia na invasão da Ucrânia e de criticar o G7 — grupo integrado pelas maiores democracias do mundo: Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido —, o presidente brasileiro, embora tenha sido convidado para participar da próxima reunião, desdenhou sua eficácia, afirmando que o G20 é um instrumento mais representativo, porque inclui “talvez já a maior economia do mundo”, a China, e também a Rússia, expulsa do G7 em 2014 depois de ter anexado a Crimeia.

Lula, ainda na China, defendeu que a pauta da reunião desses grupos tinha de ser mais específica:

— A ordem do dia é fortalecer a democracia no mundo. A ordem do dia é respeitar as instituições democráticas.

Ora, se Lula está tão preocupado assim com a democracia no mundo, por que se entende tão bem com ditadores como os de Cuba, Venezuela, Nicarágua? Volta e meia, quando confrontados com essas incoerências explícitas, petistas alegam que Lula trabalha nos bastidores para convencer seus amigos a democratizar seus países. Mas que não faria nenhuma crítica pública a eles, para não dar munição aos inimigos.

Talvez por isso, quando esteve em Cuba como presidente em fevereiro de 2010, se recusou a falar sobre a morte, na véspera, do dissidente Orlando Zapata Tamayo, em decorrência de uma greve de fome. Ao contrário, Lula criticou o instrumento da greve de fome como ação política de protesto e comparou os presos políticos cubanos a presos comuns brasileiros. Muitos anos depois, durante a campanha presidencial que o levou ao poder pela terceira vez, o próprio Lula contou que intermediou junto ao então presidente Fernando Henrique Cardoso o fim de uma greve de fome dos sequestradores do empresário Abilio Diniz, que já durava 46 dias, em troca da liberdade:

— Eu fui na cadeia no dia 31 de dezembro conversar com os meninos. (…) Eles pararam a greve de fome e foram soltos.

A coleção de incoerências envolvendo questões como essas parece indicar que a democracia como sistema de governo, capaz de gerar desenvolvimento e bem-estar social, não é relevante para Lula e petistas. Lula já disse que a Venezuela tem “democracia demais” e acha que a China tem “muito a ensinar ao mundo”:

— A China tem um partido político forte e um governo forte porque o governo tem controle e poder de comando. O Brasil não tem isso, nem outros países.

O desconforto que Lula sente entre seus pares democráticos do Ocidente e a sem-cerimônia com que se comporta entre seus ditadores preferidos talvez mostrem o verdadeiro dilema político que vive. Foi recebido na China com coreografias de sonhos, em que meninas usavam rosa e meninos azul. Tudo organizado, sem dissidências.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Presidente da Academia Brasileira de Letras e articulista político de O Globo. Publicado originalmente em 20.04.23

Os 'navios fantasmas' russos acusados de sabotagem no Mar do Norte

Acredita-se que navios russos estariam preparando planos de sabotagem para o caso de uma guerra com as potências ocidentais

Turbinas eólicas na costa da Alemanha (Getty Images)

A Rússia tem um programa para sabotar parques eólicos e cabos de comunicação no Mar do Norte, segundo uma investigação conjunta de emissoras públicas na Dinamarca, Noruega, Suécia e Finlândia.

Elas dizem que a Rússia possui uma frota de embarcações disfarçadas como barcos de pesca e navios de pesquisa no Mar do Norte.

Elas transportam equipamentos de vigilância subaquática e estão mapeando locais estratégicos para possíveis sabotagens.

A BBC entende que as autoridades britânicas estão cientes de que navios russos se movimentam pelas águas do Reino Unido como parte do programa.

A primeira de uma série de reportagens sobre o tema será transmitida nesta quarta-feira pelas emissoras DR na Dinamarca, NRK na Noruega, SVT na Suécia e Yle na Finlândia.

A investigação se concentra em um navio russo chamado Almirante Vladimirsky (Morten Krüger)

Transmissores desligados

Um agente de contraespionagem dinamarquês disse que os planos de sabotagem estão sendo preparados para o caso de um conflito aberto com o Ocidente, enquanto o chefe da inteligência norueguesa afirmou às emissoras que o programa era considerado altamente importante para a Rússia e controlado diretamente de Moscou.

As emissoras dizem ter analisado comunicações russas interceptadas que indicam a presença de "navios fantasmas", que desligam os transmissores para não revelar suas localizações, navegando em águas nórdicas.

A reportagem se concentra em um navio russo chamado Admiral Vladimirsky.

Oficialmente, este é um navio oceanográfico, ou uma embarcação de pesquisa subaquática. Mas a reportagem alega que é, na verdade, um navio espião russo.

O documentário usa um ex-especialista da Marinha Real do Reino Unido, em condição de anonimato, para rastrear os movimentos da embarcação nas proximidades de sete parques eólicos na costa do Reino Unido e da Holanda em uma missão.

Mapa mostra rota aproximada do navio e principais parques eólicos na rota

Ele diz que a embarcação desacelera quando se aproxima de áreas onde há parques eólicos e fica vagando pela área. E afirma que a mesma navegou por um mês com o transmissor desligado.

Quando um repórter se aproximou do navio em um pequeno barco, ele foi confrontado por um indivíduo mascarado armado com o que parecia ser um rifle de assalto militar.

Um homem armado confrontou o repórter quando ele se aproximou do navio (Morten Krüger)

O mesmo navio teria sido avistado na costa da Escócia no ano passado. Ele foi visto entrando no Estuário de Moray em 10 de novembro e avistado a cerca de 30 milhas náuticas a leste de Lossiemouth, onde fica a frota de aeronaves de patrulha marítima da Força Aérea Britânica (RAF, na sigla em inglês), antes de seguir lentamente para oeste.

A BBC entende que as autoridades do Reino Unido estão cientes da intenção russa de realizar o que é conhecido como mapeamento submarino, incluindo o uso de barcos que se deslocam nas águas britânicas.

Se houver ameaças específicas contra o Reino Unido, elas serão investigadas, mas as fontes se recusaram a dizer qual atividade pode ter sido analisada até agora.

Em fevereiro, a inteligência holandesa emitiu um aviso oficial incomum sobre atividades que poderiam indicar preparação para interrupção ou sabotagem da infraestrutura marítima. O chefe da inteligência militar do país disse que um navio russo havia sido detectado perto de um parque eólico no Mar do Norte e estava mapeando localizações.

"Vimos nos últimos meses agentes russos tentando descobrir como o sistema de energia funciona no Mar do Norte. É a primeira vez que vimos isso", afirmou o general Jan Swillens.

O reconhecimento de locais sensíveis não é incomum, e os países ocidentais provavelmente estarão realizando atividades semelhantes contra a Rússia. É provável que a intenção seja ter uma série de opções disponíveis caso haja uma escalada do conflito.

Uma opção pode ser danificar as comunicações ou derrubar os sistemas de energia dos países para gerar caos.

Até agora, a evidência de sabotagem efetiva, em vez apenas coleta de informações para uma eventualidade, é mais limitada.

A reportagem levanta a possibilidade de tais embarcações estarem ligadas a um incidente ao sul de Svalbard no ano passado, quando um cabo de dados subaquático foi cortado.

O cabo servia a maior estação terrestre comercial do mundo para comunicações via satélite. A polícia norueguesa disse acreditar que "atividade humana" estava por trás da sabotagem, mas não acusou ninguém oficialmente.

Em 13 de abril deste ano, a Noruega expulsou 15 autoridades russas do país, acusando-as de espionagem. Foi a mais recente de uma onda de expulsões em toda a Europa desde a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022.

Em outubro do ano passado, a polícia declarou um grave incidente nas Ilhas Shetland depois que um cabo foi cortado.

O incidente prejudicou gravemente as comunicações com o continente, e na época considerou-se que teria sido causado provavelmente por "navios de pesca". Os cabos são regularmente cortados por acidente e, até agora, a BBC entende que não acredita-se que tenha sido resultado de atividade hostil.

Houve um ato claro e significativo de sabotagem — a destruição, em setembro passado, de partes do gasoduto Nord Stream projetado para transportar gás da Rússia para a Europa.

Na época, muitos acusaram a Rússia de ser responsável, mas desde então outras reportagens sugeriram outras possibilidades, incluindo agentes pró-Ucrânia como responsáveis, e as investigações estão em andamento.

A inteligência militar russa, o GRU, também foi associada a sabotagens e envenenamentos. Uma equipe do GRU ligada ao envenenamento de Sergei Skripal com o agente nervoso Novichok em Salisbury, em 2018, também foi associada à explosão de um depósito de armas em uma floresta tcheca.

Gordon Corera, o autor deste artigo, é Correspondente de segurança da BBC News.Publicado originalmente em 19.04.23

O apego de Lula ao passado

O presidente não conseguiu ainda criar uma visão de futuro

Lula não parece perceber que se refugiar no passado tem sido prejudicial para ele mesmo. Justo quando tem de enfrentar desgastes de popularidade que aumentam dificuldades políticas – ampliadas pela demissão do amigo do peito de Lula que era o chefe do GSI, que apareceu parecendo acolher invasores do palácio que devia proteger.

Com ou sem esse episódio, o desgaste é típico para qualquer governo em início de mandato, mas, por instinto ou falta de melhores ideias, Lula parece acreditar que sua melhor chance de resistir ao inevitável (diminuição inicial do capital político) é o apego ao passado. E, diga-se de passagem, o general defenestrado vem do longínquo passado, ainda do primeiro mandato.

A ideia de promover crescimento, via gastos públicos, vem lá de trás. É o pressuposto básico que ele impôs ao desenho do arcabouço fiscal, que é retrato do seu arcabouço mental.

A “visão” de Lula está amparada num dado empírico: a sociedade não “valida” cortes de gastos. Ela está apegada ao consenso de que os gastos precisam sempre subir – afirmar que não há mais capacidade de financiálos é conversa de neoliberal.

Vem também lá de trás a noção de que “movimentos sociais” ou “de base” dão a fundamental sustentação política de seu governo. O mais recente símbolo é a inclusão do chefão do MST no séquito imperial que visitou a China, algo “natural” para alguém, como Lula, que regrediu rumo à falsa (e velha) dicotomia entre agricultura familiar e agroindústria.

Assim como está profundamente enraizada no passado a ideia de que a ordem internacional é “injusta” para os pobres (o Sul), pois é imposta por potência imperialista rica (EUA). Que diz defender “democracia” quando defende apenas seus interesses.

Ao contrário do que disseram a Lula, o País chegou, sim, ao limite da capacidade de financiar crescimento real de gastos.

Ao contrário do que ele acredita, sua base de sustentação depende de variada segmentação de eleitores – na qual fatores como religião, valores como empreendedorismo e indignação com corrupção têm mais peso do que os antigos movimentos sindicais ou “sociais”.

E, em oposição ao que ele pensa, o grave risco de segurança para a ordem internacional não está na predominância dos EUA e países ocidentais mas, sim, no “revisionismo” dela por parte de autocracias fundamentalmente opostas a princípios de um universo de valores do qual o Brasil faz parte.

Para destravar a economia, garantir sustentação política sólida e explorar as oportunidades que surgem para o Brasil lá fora, Lula precisaria de uma visão de futuro. Mas ele tem preferido mergulhar no passado. 

William Waack, o autor deste artigo, é jornalista e apresentador do PROGRAMA  WW da CNN - Brasil. Publicado originalmente n'O Estdo de S. Paulo, em 20.04.23