quinta-feira, 20 de abril de 2023

O panóptico das delícias

A prisão ideal de Jeremy Bentham triunfou, isso porque os detentos não estão lá contra a vontade, mas por desejo, por prazer, por gozo e por paixão.

Em 1785, o filósofo inglês Jeremy Bentham inventou o que lhe parecia ser a prisão ideal. Dentro dela, caberiam centenas ou milhares de pessoas encarceradas, e todas seriam vigiadas durante as 24 horas do dia, em cada movimento mínimo que fizessem. Na outra ponta, a dos carcereiros vigilantes, um número mínimo de funcionários daria conta do recado. Seria uma casa de detenção eficiente e de baixo custo, imaginou o criador da ética utilitarista.

Para fazer seu projeto funcionar, o pensador se saiu com uma solução arquitetônica. Sua ideia era bastante simples, quase óbvia. No centro de um grande pátio circular ficaria a torre de vigilância, implacavelmente opaca, indevassável. Algumas frestas, estrategicamente desenhadas, permitiriam que o guarda acomodado lá dentro conseguisse ver todas as coisas à sua volta – daí o nome da coisa: “pan-óptico”. Do lado de fora, porém, ninguém seria capaz de enxergar nenhuma parte do corpo desse guarda, ou de saber para onde ele dirigia os olhos.

Nas bordas do vasto terreno, em seu perímetro perfeitamente circular, Bentham previu a construção das celas, que se estenderiam como um anel circundando o grande pátio em forma de pizza, a uma distância segura da torre central. As paredes das celas voltadas para a área interna – e para a torre – seriam transparentes, de tal maneira que o guarda encarregado de monitorar o comportamento da população carcerária pudesse acompanhar, quando bem entendesse, as cenas mais comezinhas dentro de cada um dos aposentos. Quanto aos prisioneiros, não conseguiriam ver nada, nunca, nem por um instante. A eles não era autorizado enxergar um único centímetro quadrado do interior do esconderijo dos carcereiros. Em seus cubículos transparentes, os cativos se saberiam vigiados o tempo todo, mesmo quando o carcereiro oculto, em seu abrigo opaco, não estivesse preocupado em observá-los. Por não ver quem os via, seriam obedientes.

No fundo, mais do que um prédio, o panóptico nasceu como um sistema para disciplinar, orientar e canalizar o olhar. Inspirou edificações penitenciárias na França, em Portugal e em alguns outros países.

Bem mais tarde, a invenção das câmeras de vídeo tornou desnecessário o aparelho arquitetônico do filósofo inglês. A sociedade ingressou numa fase em que os dispositivos eletrônicos aprofundaram a bisbilhotagem total, dentro e fora dos presídios. No século 20, o filósofo francês Michel Foucault voltou ao tema do panóptico para denunciar a vigilância sem tréguas. Mais recentemente, a professora de Harvard Shoshana Zuboff começou a falar em “capitalismo de vigilância”, que tem por ferramentas preferenciais as plataformas e as redes sociais. Shoshana tem razão no que diz. Foucault também tinha. Ainda tem.

Se você quiser visualizar o estado atual da nossa – assim chamada – civilização, pense num grande panóptico digital. Para ter uma ideia mais precisa do que somos, leve em conta que, no panóptico dos nossos dias, todo mundo se diverte. Os moradores das celas agora vivem num frenesi sem descanso, fazem de tudo para atrair, seduzir e reter a atenção do pobre guardinha – ao qual podemos chamar de algoritmo, sem medo de errar. Este, o algoritmo, continua recluso no seu bunker de poder e desumanidade. Todo o resto é visível, acessível e desfrutável, menos ele, menos o algoritmo.

No panóptico digital, diferentemente do que planejou Jeremy Bentham, podemos enxergar o que se passa na intimidade dos outros aposentos. O sistema de vigilância descobriu que a promiscuidade do ver-e-ser-visto excita e vicia os detentos, inebriados pelo esporte passivo de olhar e ser olhado.

No dizer de Merleau-Ponty, o olhar “habita” e “anima” o objeto, ou seja, empresta uma “alma” àquilo que é visto. No fim das contas, somos pouca coisa além disto: seres olhantes e olhados no espetáculo do mundo. Cada cidadão é simultaneamente o voyeur e o exibicionista do sistema digital. Cada homem, cada mulher, cada criança, cada vivente aperta, com a força avassaladora do olhar, os laços indestrutíveis do grande cárcere.

No fim, tudo deságua na explicitude mais escancarada, numa ostentação sem limites. O obsceno toma a cena principal, quer dizer, o que deveria estar fora de cena ocupa o centro das atenções perdidas, descentradas, alucinadas. A culinária se torna um show à parte, a cozinha vai para a sala principal. O transe espiritual – aquele mesmo que teria sido inacessível à linguagem, que seria impossível de se traduzir em imagens ou palavras – se converte em alegorias gestuais e contorcionismos faciais que tomam a tela inteira, em closes inescrupulosos. Diante disso, a pornografia parece uma infantilidade inocente. Tudo se tornou mais pornográfico que a pornografia.

Sim, a prisão ideal de Jeremy Bentham triunfou, isso porque os detentos não estão lá contra a vontade, mas por desejo, por prazer, por gozo e por paixão. A humanidade encontrou delícias sem igual em seu hedonismo caído que consiste em vigiar e se deixar vigiar, enquanto não vê o que mais importa. •

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.04.23

O desprezo do PT pelo que é público

Mudança no estatuto da Apex e indicações para a Petrobras mostram desprezo do PT pelo bom funcionamento do Estado. Lula repete mesmas práticas antirrepublicanas de Bolsonaro

Com razão, Jair Bolsonaro foi muito criticado por desvirtuar o funcionamento da máquina estatal, enfraquecendo mecanismos de controle em benefício de interesses particulares. Ao longo dos últimos quatro anos, foi visível a tentativa bolsonarista de apropriar-se do Estado para fins não previstos na Constituição e na legislação. Agora, o governo de Lula da Silva tenta fazer o mesmo, como se as regras de proteção do Estado não valessem para o PT.

Dois casos recentes são particularmente escandalosos. Conforme revelado pelo Estadão, o presidente da Agência de Promoção de Exportações do Brasil (Apex-Brasil), o ex-senador Jorge Viana (PT-AC), promoveu, em março, uma mudança no estatuto do órgão em benefício próprio, excluindo a exigência de inglês fluente para ocupar o cargo responsável por divulgar os produtos brasileiros no exterior. Segundo a assessoria de Jorge Viana admitiu ao jornal, ele não domina a língua inglesa. Fala, “mas não a ponto de fazer um discurso”.

Originalmente, o estatuto da ApexBrasil exigia um certificado de proficiência ou de conclusão de curso de inglês, de nível avançado. Agora, diz apenas que “preferencialmente” o presidente e os diretores “deverão ter fluência ou nível avançado do idioma inglês”. Ou seja, diminuiu-se a exigência técnica de um cargo público – exigência esta absolutamente razoável tendo em vista o escopo do órgão – para que fosse possível lá instalar um companheiro sem a devida qualificação.

Em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro também nomeou para a presidência da Apex-Brasil uma pessoa que não era fluente em inglês. Após a imprensa revelar que o nomeado tinha se recusado a fazer um teste de inglês, ele foi demitido, tendo ficado apenas oito dias no cargo.

A agravar a história da Apex-Brasil sob a gestão petista, Jorge Viana empregou no órgão um mochileiro, um cantor e um arquiteto para cuidar da promoção dos produtos brasileiros no exterior, mostrou o Estadão. Nenhum dos três tem experiência na área de comércio internacional, mas os três fazem parte do grupo político do ex-senador petista no Acre. É o PT mostrando, sem nenhum pudor, seu apetite para aproveitar-se do aparato estatal em benefício próprio.

O segundo escândalo envolve, vejam só, a Petrobras. O governo de Lula da Silva indicou nomes para o Conselho de Administração da empresa de capital misto. O setor de governança da empresa rejeitou 4 dos 11 indicados pelo governo, em razão da existência de conflito de interesse ou de não preenchimento dos requisitos e condições legais. Diante desse parecer, o mínimo que o Palácio do Planalto deveria fazer era indicar outros nomes, por respeito à empresa, por respeito à legislação vigente que protege a empresa e por um mínimo de cuidado depois de todos os escândalos do PT envolvendo a Petrobras.

No entanto, o governo de Lula da Silva considera-se acima das regras de compliance. Ignorando o parecer da Petrobras, o Ministério de Minas e Energia reiterou a indicação de nomes que haviam sido vetados. Com esse modo de proceder, Lula da Silva seguiu exatamente seu antecessor, Jair Bolsonaro, que também insistiu em indicações desaconselhadas pela governança da Petrobras.

É assim, com desleixo pelas normas que preservam o funcionamento do Estado, que se criam as condições para os casos de corrupção, de ineficiência e de mau uso dos recursos públicos. Não é por acaso que os escândalos ocorrem. Quando se ignoram deliberadamente os alertas e, pior, quando se desprezam as exigências legais, o Estado fica desprotegido, refém de uma dinâmica de poder que pretere o interesse público para atender a questões privadas.

Diante desse comportamento que debilita as instituições, é de perguntar: Lula da Silva não tinha ninguém a indicar para a presidência da Apex-Brasil que falasse inglês fluentemente? Não é possível compor o Conselho de Administração da Petrobras cumprindo integralmente os requisitos legais e sem envolver conflitos de interesse? Por que tamanho desprezo pelo que é público, pelo que é da coletividade?

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 20.04.23

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Espiões russos no Brasil: como Putin renovou programa soviético na América Latina para treiná-los

Serviços de espionagem russos são acusados de coleta de informações, manipulação e assassinatos; países latino-americanos são pilares importantes para o sucesso da espionagem

Presidente russo, Vladimir Putin, durante videoconferência com o Conselho de Segurança, em imagem do dia 31 de março. Ex-espião, Putin estruturou sistema de espionagem moderno da Rússia Foto: Gavriil Grigorov/Sputnik/Kremlin via EFE

A descoberta recente de três espiões russos disfarçados de cidadãos brasileiros para coletar informações nos Estados Unidos e na Europa chamou a atenção para uma das maiores redes de espionagem mundiais. Com modernização após a invasão na Geórgia em 2008, quando uma série de falhas ficou evidente, os serviços de inteligência russos – em especial o seu braço militar, o GRU – se tornaram um dos projetos mais estruturados do governo de Vladimir Putin, ele mesmo um espião antes de se tornar presidente. Desde então, eles acumulam acusações de operações de espionagem, manipulação de informações e assassinatos.

Para isso, a inserção de espiões disfarçados de cidadãos comuns para coletar informações – à lá James Bond ou aos agentes secretos soviéticos retratados na série The Americans – é uma parte crucial da estrutura. Nos últimos meses, descobriu-se que o Brasil e outros países da América Latina, como Argentina, Peru, Uruguai e Equador, são pilares importantes para o sucesso da espionagem.

São através dos passaportes destes países, obtidos com facilidade e vistos como “simpáticos” no mundo, que os russos se camuflam em uma “vida comum”, onde casam, têm filhos, um emprego simples, à espera da oportunidade de servir ao Kremlin. O método, considerado ilegal, mas amplamente utilizado por diversos países, acontece em paralelo a outras formas de coletar informações, como espionagem cibernética e o trabalho realizado por diplomatas.

Imagem mostra dois agentes russos acusados de tentarem assassinar o ex-oficial de inteligência russo, Serguei Skripal, em 2008. Skripal fez o papel de agente duplo e foi alvo de operações do GRU (Foto: Cedida / via REUTERS)

Com o isolamento crescente da Rússia no cenário internacional, os serviços de espionagem se tornaram o instrumento mais forte utilizado para coletar informações secretas e influenciar processos para servir aos interesses russos. As operações mais agressivas, como a inserção de espiões disfarçados de cidadãos, são realizadas na maioria dos casos pelo GRU, órgão do Ministério da Defesa da Rússia com ampla autonomia.

Entre a lista de acusações contra o órgão, estão a interferência nas eleições dos Estados Unidos em 2016, uma tentativa de golpe em Montenegro no mesmo ano, ataques cibernéticos contra a Agência Mundial Antidoping (Wada) e a Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) e tentativa de assassinato do agente duplo Serguei Skripal no Reino Unido em 2018

No celular do russo Sergey Cherkasov foram encontradas indicações, fotos e mapa de um esconderijo de equipamentos e mensagens em Cotia, São Paulo.

Ao menos três russos acusados de espionagem com identidades brasileiras falsas são investigados pelas autoridades ocidentais

De acordo com analistas, o GRU, ao lado de outros dois órgãos de inteligência do país, o FSB (Serviço Federal de Segurança, que sucedeu a KGB) e o SVR (Serviço de Inteligência Estrangeiro), recuperou a expertise que os russos possuíam em espionagem na época da União Soviética, responsável, por exemplo, por obter segredos sobre o programa de armamento nuclear dos EUA, e que havia sido perdida durante a década de 90.

“A ameaça da espionagem russa hoje talvez seja maior do que durante a Guerra Fria”, declarou o ex-assessor especial do governo Bill Clinton para assuntos da Rússia e membro do centro de estudos americano Rand Corporation, William Courtney.

Apesar da capacidade de obter informações, analistas afirmam, no entanto, que a Rússia falha em analisar e avaliar as informações. Na Ucrânia, por exemplo, o programa de espionagem conseguiu obter informações e manipular a opinião pública de áreas ocupadas, segundo um relatório do centro de estudos britânico Royal United Services Institute (Rusi), mas falhou ao não antecipar a forma de uma resposta ocidental unificada.

Reestruturação da espionagem russa

O programa atual de espionagem da Rússia não seria possível sem o apoio do presidente, Vladimir Putin, ex-funcionário da KGB e diretor da FSB antes da chegada ao Kremlin. Quando a Rússia iniciou a modernização dos serviços militares após perceber falhas nas informações coletadas na invasão da Geórgia em 2008, Putin ocupava o cargo de primeiro-ministro após oito anos na presidência, mas mantinha grande influência sobre o governo do aliado Dmitri Medvedev. Ao retornar ao Kremlin em 2012, as agências tinham autonomia e o apoio dele para operar.

“A espionagem russa caiu muito nos anos 90, até por uma questão financeira, porque faltava recursos, e porque o (Boris) Yeltsin não priorizava tanto a questão da inteligência e segurança. O Putin, além de ter conseguido a recuperação econômica nos anos 2000, provém dos serviços de segurança e deu prioridade a isso”, afirma o historiador e professor da USP, Angelo Segrillo, especialista em Rússia.

Um relatório do serviço de pesquisa do Congresso dos EUA publicado em 2021 indica que a estrutura atual do GRU permite total autonomia e que o órgão se reporte diretamente a Putin. As atividades desenvolvidas pelo serviço se especializaram em áreas desregulamentadas – como zonas de guerra e na internet – e para atuar de maneira mais agressiva, enquanto o FSB está ligado à inteligência interna e dos países que fazem fronteira com a Rússia e o SVR, a informações mais diplomáticas.

Analistas e pesquisadores notaram no relatório do Congresso americano que a cultura organizacional e a competição entre agências de espionagem podem influenciar a disposição dos russos de conduzir operações agressivas e muitas vezes imprudentes, como forma de justificar a atuação para o alto poder do Kremlin.

Em uma reportagem do Washington Post publicada em 2018, o opositor russo Gennadi Gudkov, que serviu a KGB e depois na FSB, disse que os agentes do GRU se referem a si mesmos como “caras durões que agem”. “‘Precisa que batamos em alguém? Nós vamos acabar com ele’”, disse ele. “’Precisa que tomemos a Crimeia? Vamos tomar a Crimeia.” Para eles, vale-tudo em favor de Moscou.

Influência nas escolas e espiões espalhados

Nos últimos 11 anos, os serviços de espionagem russos ampliaram a presença e a influência nas próprias instituições russas para construir a atual estrutura. O GRU, junto com o FSB e o SVR, passou a patrocinar programas de educação militar em escolas públicas de Moscou que visam incutir respeito pelos serviços de espionagem e aumentar o conhecimento em informática e matemática de potenciais recrutas.

Historicamente, os espiões russos são chamados de razvedchik, o que os distingue dos espiões estrangeiros, chamados de shpion. Enquanto o primeiro serve à pátria e tem uma missão, o segundo é visto como inimigo. Putin, por exemplo, era um razvedchik.

Imagem mostra alunos da Escola de Cadetes General Yermolov e membros de um clube patriótico militar juvenil durante um treinamento nos arredores de Stavropol, Rússia, em 8 de fevereiro de 2017. Serviços de espionagem aumentaram a influência nas escolas nos últimos anos (Foto: Eduard Korniyenko/Reuters)

A propaganda estatal russa, que constantemente promove o patriotismo e um antagonismo com o Ocidente, também serviu de instrumento para a espionagem do país. As agências passaram a ser vistas como caminho para jovens brilhantes e a ter um prestígio interno que facilita o recrutamento. “A Rússia tem um forte senso de patriotismo, e esse apelo é utilizado desde a União Soviética para cooptar espiões”, disse Segrillo.

“Isso serve até para cooptar russos que saíram do país por discordarem de posições políticas, mas que aceitam colaborar para a espionagem por esse aspecto”, acrescentou.

Inserção nos países

Os recrutados para o GRU são treinados na Academia Militar do Estado-Maior das Forças Armadas da Rússia. Os espiões escolhidos, após receberem intenso treinamento, constroem uma identidade insuspeita, comum, e tradicionalmente são mandados para outros países, onde se integram a sociedade para obter cargos no qual possam fornecer informações ao Kremlin.

Foi essa a trajetória de Serguei Cherkasov, o espião russo preso após tentar entrar na Holanda com identidade brasileira falsa. O espião vivia em São Paulo e no Rio e usava o nome falso de Victor Muller Ferreira. A identidade foi utilizada para estudar na Universidade John Hopkins, nos EUA, onde tentou conseguir estágios em agências governamentais e internacionais. Ao conseguir um cargo no Tribunal Internacional em Haia, foi descoberto por autoridades americanas e holandesas e deportado para o Brasil.

Na análise de Segrillo, essa prática, utilizadas por diversos países na história, se aproveita de brechas na burocracia para obter cidadania nas nações da América Latina, da pluralidade da sociedade desses países, com grandes comunidades de imigrantes, e da simpatia desfrutada no exterior. “Chegar com um passaporte russo nos EUA desperta muito mais desconfiança do que chegar com um passaporte brasileiro”, afirmou.

Imagem de 2017 mostra russo Serguei Cherkasov, espião que se disfarçava de cidadão brasileiro. Inserção de espiões com passaportes falsos é prática comum na Rússia (Foto: U.S. Justice Department)

O alcance desses espiões no mundo é desconhecido, mas operações recentes ajudaram a desmantelar redes de espionagem russa na Europa e nos EUA, levando à descoberta de pelo menos mais dois russos disfarçados de brasileiros. Apesar das investigações e das prisões recentes, um relatório da Rusi avalia que os serviços de espionagem obteve mais êxito na Ucrânia do que os militares no campo de batalha.

Segundo o documento, o FSB rapidamente dominou a opinião de populações em áreas ocupadas da Ucrânia antes da guerra. No mesmo período, o órgão também obteve HDs dos computadores do governo ucraniano que os auxiliaram a identificar indivíduos pró-Kiev que foram presos e interrogados. “É evidente que serviços especiais russos conseguiram recrutar uma grande rede de agentes na Ucrânia antes da invasão”, afirma o relatório.

Os serviços de espionagem também tiveram grande sucesso na primeira incursão russa na Ucrânia, em 2014, quando anexou a Crimeia. Graças à espionagem, o exército russo possuía informações sobre bases militares estratégicas, zonas desguarnecidas e conseguiu implementar propaganda falsa na região, destaca o relatório do Congresso dos EUA sobre as atividades do GRU.

Prestígio com Putin

Graças a essa estrutura, a Rússia mantém uma rede enorme de informações em um momento de isolamento diplomático, no qual poucos países se sentem seguros de confiar suas informações. “A Rússia hoje depende muito da espionagem para seus objetivos políticos. Em parte porque não tem muitos amigos e não é vista como confiável, portanto precisa contar com a espionagem para obter informações estrangeiras”, avaliou o analista William Courtney.

Em 2018, Putin expressou o respeito pelo GRU durante a comemoração do centenário da fundação da primeira agência de espionagem russa. O serviço estava sob a atenção internacional após a tentativa de assassinato de Serguei Skripal, ex-oficial de inteligência militar russo que atuou como um agente duplo para os serviços de inteligência britânicos, mas não impediu Putin de rasgar elogios. “Como supremo comandante, é claro que sei sem exagero sobre suas habilidades únicas, incluindo em condução de operações especiais”, disse o presidente russo, conforme registrado pela agência Reuters na época.

Para os analistas, a defesa do presidente foi surpreendentemente forte. Isso mostrou que Putin não tinha planos de desistir de implantar sua agência de inteligência militar centenária como uma de suas principais armas para afirmar a influência russa no exterior. “E isso é mais perigoso do que na época da União Soviética porque a Rússia é mais aberta, com mais negócios no mundo. Ou seja, com mais oportunidades de inserir oficiais de inteligência”, declarou Courtney.

Luiz Henrique Gomes, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 19.04.23.

A Rússia implanta uma frota para sabotar linhas de energia submarinas ocidentais, de acordo com uma investigação jornalística

Mídia pública dos países nórdicos denuncia que Moscou espiona cabos elétricos e de telecomunicações no leito do Mar do Norte, tendo em vista um possível confronto com a OTAN

Um submarino nuclear estava se preparando para participar dos exercícios da Frota Russa do Pacífico perto do porto de Vladivostok na sexta-feira.

A Marinha Russa mantém uma atividade frenética diante de um hipotético confronto direto com a OTAN. Uma investigação jornalística conjunta dos países nórdicos denuncia que a Rússia sonda secretamente há uma década as redes de cabos submarinos dos aliados desde o Báltico até a costa britânica para sabotá-los em caso de escalada. A investigação das televisões públicas da Dinamarca, Noruega, Finlândia e Suécia encontrou soldados armados a bordo de um suposto navio científico russo que perseguiu os principais parques eólicos do Reino Unido em novembro e registrou pelo menos outras cinquenta embarcações que navegaram de forma suspeita por outros pontos de vista na última década. Enquanto isso, do outro lado do mundo, no Mar do Japão,A frota da Rússia no Pacífico realiza enormes manobras de surpresa apoiadas por bombardeiros estratégicos capazes de transportar armas nucleares.

A televisão dinamarquesa DR estreia esta quarta-feira o primeiro capítulo da investigação. Em um de seus fragmentos, jornalistas abordam o suposto navio científico russo Almirante Vladimirski a bordo de um barco. É um navio civil em águas calmas. "Vejo tripulantes andando no convés, acho que estão nos observando", diz o jornalista, ao se aproximar de um barco que desligou o sistema de geolocalização e foi interceptado graças à detecção de várias mensagens enviadas a um baseado no solo. Em seguida, ele exclama um palavrão, presenciando o aparecimento de vários homens armados com fuzis e máscaras de esqui.

O almirante Vladimirsky partiu de Kronstadt, perto de São Petersburgo, a 1 de novembro de 2022, chegando à costa escocesa na noite de 10 de novembro, junto a uma zona onde se encontram dois grandes parques eólicos offshore e respetivas ligações a terra. “O navio ficou aqui [dois dias] ziguezagueando pela área [dos parques]”, diz a investigação. “A velocidade do navio é várias vezes abaixo de um nó, cerca de um quilômetro por hora. À noite, o barco fica basicamente na mesma posição."

O barco seguiu então para a região onde está sendo construído o maior parque eólico offshore da Escócia, capaz de fornecer energia para um milhão e meio de pessoas. Ele parou naquela área novamente por mais dois dias antes de retomar sua marcha, parando em mais dois complexos eólicos ingleses perto da foz do Tâmisa e um terceiro dinamarquês perto da ilha de Anholt, antes de retornar ao enclave russo de Kaliningrado.

Este navio científico desligou seu Sistema de Identificação Automática (AIS) para não compartilhar sua localização , mas a mídia nórdica traçou sua rota de retorno graças a seus relatórios de posição para bases russas em terra - sem especificar como eles tiveram acesso. no Estreito de Kattegat entre a Suécia e a Dinamarca.

50 embarcações suspeitas

A mídia nórdica também localizou cerca de 50 outras embarcações suspeitas na última década, graças aos dados abertos dos transmissores AIS . “E estes são apenas uma amostra da frota que a Rússia pode implantar para sabotar redes submarinas para internet, energia, gás e outras infraestruturas ocidentais”, alerta Stale Ulriksen, professor da Academia de Defesa da Noruega.

Segundo a inteligência nórdica, embarcações, desde pequenos barcos de pesca camuflados até enormes navios, enviam todas as informações coletadas para a Diretoria Principal de Pesquisa em Mar Profundo (conhecida como GUGI) do Ministério da Defesa da Rússia. A missão desse programa seria atingir a logística rival. Nem o ministério nem as embaixadas russas nos países nórdicos, exceto a Noruega, responderam às perguntas dos jornalistas. “Existe demanda por navios de pesquisa e ela é realizada em total conformidade com o direito internacional. Esse trabalho é coordenado pelos canais diplomáticos", afirmou o embaixador russo em Oslo, Teimuraz Ramishvili.

Além dessas operações, a inteligência norueguesa alertou em fevereiro que a Frota do Norte russa foi equipada com armas nucleares pela primeira vez desde o fim da União Soviética, já que as fronteiras do Báltico foram enfraquecidas pelo deslocamento de tropas da Ucrânia para a invasão. .

Ecos do Nord Stream

A divulgação desses quatro países perturbou o Kremlin. O porta-voz do presidente russo, Vladimir Putin, Dmitri Peskov, reiterou mais uma vez que as acusações feitas contra Moscou são perseguições contra seu país. “Eles preferem culpar a Rússia por tudo de novo, sem fundamento. Preferimos que prestem mais atenção ao ataque terrorista contra Nord Stream, uma sabotagem sem precedentes que precisa de uma investigação internacional transparente, urgente e de longo alcance."


A explosão dos gasodutos Nord Stream 1 e 2 em setembro do no passado reabriu o debate sobre a fragilidade estratégica em torno da logística submarina. O autor desse ataque é desconhecido e todo tipo de versões circulam enquanto as investigações oficiais são realizadas em segredo: o Ministério da Defesa russo inicialmente atacou uma equipe de sabotadores britânicos, e depois optou pela versão contestada do jornalista Seymour Hersh de que o Estados Unidos e Noruega estavam por trás disso. Alguns meios de comunicação estadunidenses atribuem a ação a grupos pró-ucranianos que agiram sem o conhecimento do governo de Volodimir Zelenski .

O sigilo dessa ação destacou a importância da guerra submarina, cenário para o qual a Rússia vem se preparando há anos. O minissubmarino AS-31 Losharik sofreu um acidente em 2019 que resultou em 14 mortes. De acordo com a versão oficial do Ministério da Defesa da Rússia, o navio estava realizando investigações em alto mar no momento do incidente. No entanto, a imprensa russa noticiou na época de menos censura que este navio foi “projetado para realizar operações em profundidade de até seis quilômetros. Em particular, a implantação de uma grande variedade de sensores e o corte de cabos submarinos”, segundo uma crónica da época no jornal Lenta.

Navios da Frota Russa do Pacífico estavam se preparando para participar de exercícios militares perto do porto russo de Vladivostok na sexta-feira.

O AS-31 Losharik realizou sua primeira missão em 2012, quando partiu para as águas do Pólo Norte acoplado ao submarino nuclear BS-136 Orenburg. A essa altura, Vladimir Putin já estava de olho naquela região-chave . “O Ártico não possui apenas reservas de hidrocarbonetos e outras matérias-primas; é também a rota mais curta do oeste ao Oceano Pacífico. Todos estão interessados ​​em nossa Rota do Mar do Norte, que será mais navegável a partir de agora devido às mudanças climáticas", disse o presidente russo em 2013.

A projeção naval é fundamental para o Kremlin proteger esses interesses econômicos. Embora todos os olhos estejam voltados para os campos de batalha ucranianos, Moscou recentemente emitiu um alerta no Oceano Pacífico. O Ministério da Defesa organizou nesta semana exercícios navais maciços no Mar do Japão, logo após seu principal parceiro hoje, a China, ter realizado exercícios militares para ensaiar um bombardeio contra Taiwan .

As forças armadas comandadas por Sergei Shoigu anunciaram esta quarta-feira que a frota do Pacífico contou com o apoio de oito bombardeiros estratégicos Tu-22M3 , capazes de transportar tanto mísseis hipersónicos como armas nucleares, e outras aeronaves que praticavam a guerra anti-submarina. Esses exercícios militares foram realizados em torno das ilhas Kuril e Sakhalin, reivindicadas pelo Japão.

Javier G. Cuesta, originalmente, de Moscou (Rússia) para o EL PAÍS, em 19.04.23

Lula suaviza discurso após duras críticas dos Estados Unidos e da União Europeia por ficar do lado da Rússia

O presidente do Brasil, que quer mediar a guerra na Ucrânia, reitera que condena a invasão após a revolta causada por gestos e declarações recentes

Presidente Lula, nesta terça-feira, na solenidade de comemoração do Dia do Exército, em Brasília. (André Borges - EFE)

O Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que há meses promove uma iniciativa para buscar uma solução negociada para a guerra na Ucrânia, tenta apaziguar a ira que vários de seus últimos gestos e declarações causaram no Ocidente, que o acusa de estar fazendo o jogo para a Rússia. "Enquanto meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma negociação política para o conflito", enfatizou Lula na terça-feira, sem mencionar a invasora, a Rússia. Ele fez essa declaração durante o banquete que ofereceu ao presidente romeno, Klaus Werner Iohannis, pouco mais de 24 horas depois de estender o tapete vermelho para o chanceler russo, Sergei Lavrov, e receber duras críticas da Casa Branca e de Bruxelas.

Também mobilizado para acalmar os ânimos estava o principal assessor de política externa de Lula por décadas, Celso Amorim. Ele se apressou em enfatizar em diversas entrevistas que "o Brasil não tem a mesma posição da Rússia" em relação à guerra na Ucrânia, afirmação que contradiz o que foi dito pelo ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, em entrevista com seu homólogo brasileiro na segunda-feira em Brasília.

Tanto a Casa Branca quanto Bruxelas esperavam que o Brasil voltasse à linha de frente da diplomacia, liderado por Lula, após a derrota do direitista Jair Bolsonaro. O Brasil recuperou o destaque internacional, mas tanto os Estados Unidos quanto a UE percebem uma mudança de postura que os deixa incomodados e incomodados.

“Estamos surpresos e preocupados. Não estão num ponto de equidistância, parece que passaram para o lado da Rússia e da China", segundo fontes europeias, que sublinham: "Não nos opomos às suas ideias de promover uma solução pacífica mas tem de ser para restaurar a legalidade internacional". O porta-voz da Casa Branca foi cruel ao acusar o Brasil de "repetir automaticamente a propaganda da Rússia sem olhar para os fatos". Enquanto isso, o governo da Ucrânia reiterou o convite a Lula para conhecer a situação em primeira mão.

O Brasil condenou a invasão e pediu a retirada das tropas russas da ONU, mas, fiel à sua tradição diplomática, se opõe e critica as sanções contra a Rússia por carecerem do aval do organismo multilateral. Mas não é sua posição de neutralidade e não ingerência, defendida por décadas, que irrita o Ocidente.

Lula já causava polêmica quando ainda não havia retornado à Presidência ao culpar tanto o ucraniano Volodomir Zelenski quanto o russo Vladimir Putin pela guerra. O problema para os EUA e a UE é que nas últimas semanas o agora presidente reiterou aquela distribuição de culpa entre o agressor e o país atacado, mas também acusou Washington e Bruxelas de prolongar o conflito enquanto continuam a fornecer armas a Kiev e sugeriu que talvez a Ucrânia tenha que desistir de retomar a península da Criméia (anexada ilegalmente em 2014).

Essas foram as palavras; depois, os gestos: durante sua visita oficial à China, Lula visitou um centro tecnológico da empresa Huawuei ( punido por Washington, que o considera uma ameaça à segurança nacional) e depois recebeu Lavrov (sancionado pelos EUA e UE), com quem ele manteve uma reunião privada. E em março foi o único país, junto com Moscou e Pequim, a apoiar uma resolução russa pedindo uma investigação independente sobre a sabotagem que destruiu o gasoduto Nord Stream.

O Brasil tem uma longa tradição como país não alinhado com nenhum dos grandes blocos. Por isso, desde a Guerra Fria, seu presidente abre os discursos da Assembleia Geral da ONU todos os anos. É uma potência média com aversão ao conflito, com uma enorme vontade de promover o diálogo e que há décadas reclama a ampliação do Conselho de Segurança da ONU para que reflita mais fielmente o atual equilíbrio de forças no globo.

Logo após chegar ao poder em janeiro, Lula lançou sua ideia de criar um grupo de países neutros que se envolveriam na tentativa de convencer Rússia e Ucrânia a se sentarem para negociar o fim da guerra. Uma proposta que não acaba de decolar.

Depois de quatro anos em que metade do Brasil assistiu com horror como seu país foi isolado internacionalmente sob o governo de Bolsonaro, o Brasil voltou a ter voz e retomou seu clássico perfil independente. O ex-chanceler Amorim, hoje assessor diplomático de Lula com 80 anos, resumiu assim a posição de seu país: “Queremos um mundo equilibrado e multipolar porque é o que mais interessa ao Brasil, mas o Brasil sozinho não pode criar esse mundo. O que ela pode fazer é contribuir para que o mundo não fique dividido em uma Guerra Fria de mocinhos e bandidos”. Sobre a guerra na Ucrânia, ele afirmou: “Enquanto não houver diálogo, a paz ideal para ucranianos e russos não acontecerá. Tem que haver concessões."

Em meio à crescente hostilidade entre Washington e Pequim, o Brasil não quer ser arrastado para escolher entre seu primeiro parceiro comercial (China) e seu segundo. Ele gosta de se colocar em uma liga de potências médias ao lado de países como Índia, Indonésia, Turquia ou África do Sul. Nessa perspectiva, promoveu a criação dos BRICS, o bloco emergente que hoje definha e ao qual também pertencem China e Rússia.

Naiara Galarraga Gortázar, a autora deste artigo, é correspondente do EL PAÍS no Brasil. Antes, ela foi vice-chefe da seção Internacional, correspondente de Migração e enviada especial. Trabalhou nas redações de Madri, Bilbao e México. Durante uma pausa na carreira do jornal, foi correspondente em Jerusalém do Cuatro/CNN+. É graduada e mestre em Jornalismo (EL PAÍS/UAM). Publicado originalmente no EL PAÍS,em 19.04.23.

terça-feira, 18 de abril de 2023

Lula busca seu Eldorado para acabar dependendo da China

A visita do presidente brasileiro a Pequim o distancia da autonomia estratégica que vinha defendendo e o aproxima muito das posições de Pequim sobre o uso do dólar como moeda de reserva e a guerra na Ucrânia

Os presidentes Xi Jinping e Luiz Inácio Lula da Silva são recebidos por um grupo de crianças no Grande Salão do Povo em Pequim, em 14 de abril. (RICARDO STUCKERT (AFP)

O Presidente brasileiro Lula da Silva deixou Pequim em grande estilo, não só pela enorme delegação que o acompanhou e pelos mais de 15 acordos de cooperação assinados com a China, mas também pela audácia das suas declarações, pelo menos do perspectiva de Ocidente, declarações que, por outro lado, parecem sair da boca do presidente Xi Jinping. Se o objetivo do presidente Lula nessa viagem era colocar o Brasil na mira da comunidade internacional, sem dúvida ele conseguiu. Mas se o objetivo era colocar o Brasil como potência neutra, como Narendra Modi fez com a Índia, a viagem não correu tão bem porque deixou bem claro quem é o mestre da relação bilateral entre os dois países: Xi Jinping .

Os objetivos de Lula com sua visita eram muito claros: acima de tudo, trazer oportunidades de crescimento para o Brasil, cuja economia foi duramente atingida pela pandemia.. De fato, as exportações de matérias-primas brasileiras para a China dispararam desde 2008, tornando a China, de longe, o principal parceiro comercial do Brasil. Embora essas exportações tenham sofrido uma queda, elas voltaram a se recuperar graças à abundância de lítio do Brasil, juntamente com outros materiais críticos para a transição energética. 

Tanto que a balança comercial brasileira com a China é positiva, um dos poucos casos no mundo. Além das exportações, a China é um dos maiores investidores no Brasil, especialmente no setor de energia. A distribuidora chinesa State Grid investiu cerca de US$ 3 bilhões em transmissão de energia no Brasil e a Cofco, maior comercializadora de alimentos da China, investiu mais de US$ 1,1 bilhão no agronegócio brasileiro. Por outro lado,

Mas crescimento e desenvolvimento não são os únicos objetivos que levaram Lula a Pequim. As horas difíceis pelas quais Lula passou após sua primeira presidência, marcada por sua prisão e condenação em 2017, parecem ter criado um anseio por liderança internacional que esteve ausente em sua primeira presidência.(2003-2010). Não há dúvida de que o Brasil é grande o suficiente, em termos de economia e população, para desempenhar um papel de potência regional na América Latina e também global se a rivalidade entre as duas grandes potências, China e Estados Unidos, permitir . 

Outros atores também estão nessa briga, como a União Européia e a Índia, mas Lula parece ter tomado outro caminho, que é quebrar o baralho e ficar do lado da China. A realidade é que as instituições internacionais tradicionais não estão funcionando para o Brasil, com um G-20 bastante disfuncional, ainda mais desde a invasão da Ucrânia, a ausência de acordos comerciais com os Estados Unidos e os 20 anos de espera que o acordo entre o Mercosul e a União Europeia. 

Talvez seja justamente isso que tenha levado Lula à convicção de que só a China pode oferecer resultados rápidos. De fato, a iniciativa promovida por Xi, especialmente desde o início da pandemia e com maior zelo desde a invasão da Ucrânia, do Sul Global deixa espaço, pelo menos no papel, para um país como o Brasil como copromotor dessa iniciativa. Que melhor prova do que terpresidente do banco BRICS, rebatizado de Novo Banco de Desenvolvimento, para a ex-presidente brasileira, Dilma Rousseff, sempre na sombra de Lula.

O problema é que o limite para a liderança brasileira que Lula almeja é justamente sua origem, a própria China, já que ela só pode ser exercida em oposição aos EUA e com apoio incondicional a Pequim. Uma liderança com essas características torna-se tão tendenciosa que deixa de ser tendenciosa, e foi exatamente o que aconteceu com a visita de Lula à China. Se Lula queria mostrar ao mundo, e certamente aos Estados Unidos, sua "autonomia estratégica", para usar uma expressão que nós, europeus, conhecemos bem, certamente não conseguiu. 

Na verdade, as duas principais mensagens de Lula em Pequim – o fim do uso do dólar nas transações comerciais e sua posição sobre a guerra na Ucrânia – poderiam muito bem ter sido transmitidas por Xi Jinping. Essa realidade não é sinal da força do Brasil como potência regional, mas sim de sua enorme dependência econômica da China a ponto de determinar sua política externa e, mais grave, do uso da moeda de reserva global para um país com dívida externa tão alta quanto a do Brasil.

No que diz respeito à Ucrânia, desde fevereiro passado Lula intensificou os esforços diplomáticos para acabar com a guerra, criando o chamado "clube da paz". Dessa iniciativa, a priori autônoma , Lula partiu para outra bem mais agressiva, em que acusa os Estados Unidos de fomentar a guerra e a Ucrânia de ser responsável por ela, junto com a Rússia. Com isso, Lula passou de lançar grandes ideias como possível conspirador para uma solução concertada, para ter um papel de marionete adotando uma posição muito mais parecida com a da China, com a diferença de que Pequim pode manter uma posição oficial menos agressiva e se esconder atrás Lula e outros que o seguem.

Sobre o uso internacional do dólar, Lula tem defendido o uso de moedas locais para o comércio internacional, mas ninguém sabe que não será o real brasileiro que assumirá esse papel, mas o yuan chinês, como ficou evidente no anúncio feito há algumas semanas da criação de uma infraestrutura de pagamentos em yuan no Brasil, com o objetivo principal de liquidar os pagamentos comerciais bilaterais entre a China e o Brasil na moeda chinesa.

O que parece claro é que Xi alcançou seus objetivos com a visita de Lula para fazer pender a balança em favor de um Sul Global mais unido e pronto para seguir os passos do gigante asiático. Lula, por outro lado, deixou de dar sinais de autonomia estratégica e liderança global para usar a linguagem de Xi Jinping em questões de grande importância. Claro, pelo menos carrega no bolso uma série de acordos de cooperação que, esperamos, trarão novas oportunidades de crescimento para o Brasil. É melhor que assim seja porque a demissão de Washington por Lula pode não ser gratuita no mundo bipolar em que ainda nos encontramos.

Alicia García-Herrero, a autora deste artigo, é economista-chefe para a Ásia da Natixis e pesquisadora sênior da Bruegel. Publicado originalmente pelo EL PAÍS, em 18.04.23

Argentina, Uruguai, Brasil, Peru ou Equador: "toupeiras" russas proliferam na América Latina

A missão da “toupeira” consiste em construir uma viagem inesperada, até chata, que pode passar por formar um casal e ter filhos, estudar, trabalhar e residir em um ou mais países antes de chegar a um destino que pode interessar a Moscou.

Três indivíduos suspeitos de serem "toupeiras" russos com identidades brasileiras: Gerhard Daniel Campos, José Assis Giammaria e Viktor Muller Ferreira.

A história é de um filme. Ou uma série de TV. O governo de Vladimir Putin implantou “toupeiras” em toda a América do Sul. Russos escondidos atrás de passaportes argentinos, brasileiros, peruanos, equatorianos, uruguaios e sabe-se lá de que outra nacionalidade. Agentes de “células adormecidas” que podem hibernar por anos, até décadas, esperando por uma oportunidade de servir ao Kremlin. Da Rússia com amor.

"Toupeiras" não são espiões tradicionais, se é que isso existe. Não são russos que se dizem russos, com nome russo, que podem trabalhar como diplomatas numa embaixada russa e que são expulsos se forem apanhados em impedimento , como aconteceu com Aleksandr Belousov e Aleksandr Paristov, na Colômbia, em dezembro de 2020. As “toupeiras” escondem a sua verdadeira identidade e até local de nascimento, e tecem uma outra vida, envoltas numa teia de mentiras.

Não. A missão da "toupeira" é muito diferente. Consiste na construção de uma jornada insuspeita, até chata, que pode passar por formar um casal e ter filhos, estudar, trabalhar e residir em um ou mais países antes de chegar a um destino que pode interessar a Moscou. Então sim, a "toupeira" vai parar de hibernar e entrará em sua fase ativa.

A última saga de "toupeiras" russas começou a se desenrolar meses atrás. Difícil apontar quando. Mas pelo menos podemos saber o momento em que saltou um ponto que permitiu puxar o fio. Aconteceu no dia 5 de dezembro, quando tropas de elite da polícia eslovena invadiram escritórios e a casa de uma família em Ljubljana, capital do país. Eles prenderam um casal que se mudou com passaporte argentino, acusado de trabalhar para Moscou.

Ele disse que seu nome era Ludwig Gisch e que nasceu na Namíbia, embora mais tarde tenha se estabelecido na Argentina e obtido a cidadania; Ela disse que seu nome era María Rosa Mayer Muños e era originária da Grécia, embora também tenha esclarecido que era argentina por opção. Tiveram dois filhos – um de 7 anos, outro de 9 – e pouco antes da pandemia decidiram emigrar para a Europa. Eles afirmaram que estavam fartos da insegurança das ruas de Buenos Aires e se instalaram na Eslovênia. Ele montou uma pequena empresa de informática; ela, uma galeria de arte. E começaram a viajar, juntos ou separados, pela Europa e Argentina. Uma fachada, suspeitam os eslovenos, para levar mensagens e dinheiro a outras toupeiras em hibernação.

Gisch e Mayer Muños foram detidos e mantidos incomunicáveis ​​desde então. A Eslovênia quer julgá-los por espionagem e falsificação de documentos, e eles podem ser condenados a oito anos de prisão. Mas correm as versões de que isso pode não dar em nada. A Rússia supostamente iniciou negociações para uma troca de espionagem, de acordo com o jornal The Guardian . Talvez por causa de Evan Gershkovich, o jornalista do Wall Street Journal que Moscou deteve após as prisões em Ljubljana e, coincidentemente, acusado de espionagem?

A Rússia fica em silêncio em público, mas os dominós começaram a cair. A primeira foi registrada na Grécia, onde uma mulher desapareceu logo após as prisões de Gisch e Mayer Muños na Eslovênia. Ela alegou ser Maria Tsallas e ser fotógrafa, mas descobriu-se que ela se apropriou do nome de uma criatura que morreu em 2001... e seu nome verdadeiro seria Irina Alexandrovna Smireva. Os gregos acreditam que ele fugiu para Moscou.

A próxima peça do dominó caiu quase imediatamente. O marido de Tsallas, o suposto grego, dizia ser brasileiro e se chamava Gerhard Daniel Campos Wittich. Ele desapareceu no ar em janeiro enquanto mochileiro na Malásia, para angústia de sua namorada brasileira, que desconhecia sua verdadeira identidade ou, para mais informações, que ele tinha uma esposa em Atenas... As autoridades suspeitam que ele também esteja em Moscou.

As peças começaram a se encaixar, como um quebra-cabeça. Em outubro, o governo norueguês prendeu outro suposto brasileiro que trabalhava como acadêmico na Universidade de Tromsø, José Assis Giammaria, embora sua verdadeira identidade fosse Mikhail Mikushin e ele tivesse o posto de coronel. E as autoridades da Holanda prenderam em Haia outro suposto brasileiro, Viktor Muller Ferreira, que tentava se infiltrar no Tribunal Penal Internacional (TPI) como estagiário. Ou seja, o tribunal que investiga os crimes de guerra cometidos pela Rússia na Ucrânia. Seu verdadeiro nome? Seria Sergej Vladimirovich Cherkasov.

Muller Ferreira -ou Cherkasov- seria a "toupeira" desta incursão que mais se aproximou de atingir um local sensível e de extremo interesse para Moscovo. Nada mal para quem teria nascido em Kaliningrado e passado por São Paulo e Baltimore, antes de chegar a um destino que vale a pena. Mas ela estava a um passo de distância, como uma mulher que anos atrás se chamava María Adela Kuhfeldt Rivera, nascida no Peru, filha de pai alemão e designer de joias. Com sede em Nápoles, tentou na prática extrair informações de quem trabalha na base militar que a OTAN opera ali. Seu nome verdadeiro seria Olga Kolobova.

María Adela -ou Kolobova- acabou por ser uma viajante do mundo, até que o amor a atingiu. Ou talvez o Kremlin a tenha passado do time solteiro para o time casado. Em julho de 2012, ela se casou com alguém que apresentou aos amigos como italiano, embora o noivo tivesse cidadania equatoriana e russa. Na verdade, ele havia obtido um passaporte russo na embaixada russa em Quito três meses antes. De qualquer forma, o homem morreu um ano após o casamento. Mas ela não se preocupou em ir ao funeral dele. Ou eles se davam muito mal ou o casamento era feito de papelão. De qualquer forma, ela também está agora em Moscou.

Mas se as aventuras de cada uma dessas "toupeiras" levam a uma temporada de The Americans , o uruguaio Juan Lázaro leva todos os prêmios. Depois de se estabelecer no Peru, tornou-se cidadão nacional e casou-se com a jornalista local Vicky Peláez, antes de se mudarem juntos para os Estados Unidos, onde acabaram atrás das grades. Em 2010 confessou que não era uruguaio, nem esse era seu nome. Ele também disse que sua esposa costumava viajar para a América do Sul para entregar informações de inteligência a seus superiores e arrecadar dinheiro para financiar suas operações secretas. Ele também deixou uma frase para lembrar. "Por mais que eu ame meu filho, não quebraria minha lealdade ao Serviço [Secreto] nem por ele." Isso é lealdade. Moscou antes do sangue.

Em 9 de julho daquele mesmo ano, o homem que havia deixado de ser Lázaro e admitiu que se chamava Mikhail Vasenkov voltou à vida subterrânea das “toupeiras”. Foi num aeroporto de Viena, onde aterraram dois aviões. Ambos cheios de espiões. A troca foi a mais portentosa desde o fim da Guerra Fria. Acredita-se que Lazaro -ou Vasenkov- ainda esteja em Moscou.

Quase treze anos depois daquela troca de espiões vienenses, os alarmes continuam disparando em toda a região. O Brasil está investigando se a Rússia usa sistematicamente seu território para construir identidades de cobertura . No Uruguai, o chefe da equipe de segurança do presidente Luis Lacalle Pou foi preso em setembro de 2022, acusado de fazer parte de uma quadrilha que emitiu certidões de nascimento russas apócrifasem que se afirmava que os pais eram uruguaios. Para que? Facilitar a obtenção de passaportes uruguaios e documentos de identidade para cidadãos russos e, quem sabe, gerar novas toupeiras. E na Argentina é impressionante que mais de 10.500 russas viajaram a Buenos Aires para dar à luz no ano passado. Explicação? Toda pessoa nascida na Argentina é, por lei, cidadã argentina e isso, por sua vez, facilita os trâmites posteriores para que os pais tenham acesso à cidadania. Mais toupeiras, também?

Da Rússia com amor.

HUGO ALCONADA SEG, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente pelo EL PAÍS, em em 18.04.23

Por que Janja da Silva é tão odiada?

Esposa de Lula recebe fogo de todos os lados, sendo julgada por sua aparência ou por supostamente não "saber o seu lugar". Já pensou se mulheres, primeiras-damas ou não, fossem criticadas só por seu trabalho? Que sonho.

Janja durante a posse de Lula, em janeiroFoto: Ueslei Marcelino/REUTERS

"Essa Janja é muito feia e cafona." Esse tipo de comentário tomou conta das redes sociais bolsonaristas na semana passada, quando o presidente Lula viajou para a China e a esposa fez parte de sua comitiva, algo comum em um país onde a primeira-dama tem um papel forte como o Brasil.

Janja, uma socióloga de 56 anos, recebe todo tipo de críticas desde que se casou com Lula. O bombardeio se acentuou com a recente viagem. Mas, sinceramente, acho que se ela não tivesse acompanhado o marido, teria sido criticada por não ir.

Falo isso porque a posição de primeira-dama é um lugar onde é difícil uma mulher agradar (mais do que já é na sociedade como um todo). Como as especificações da função não existem oficialmente, as primeiras-damas têm que se adaptar a um espaço imaginário, em aberto. Ou seja, cada um espera uma coisa diferente.

No caso de Janja, muitos parecem querer que ela seja mais "discreta". "Ela exagera" ou "ela tem que se conter", dizem críticos de direita, centro e esquerda. Em um programa de TV, comentaristas homens disseran que ela precisa "se conter ou ser contida". Em outras palavras: Janja precisa "saber o seu lugar".  Só eu acho absurdo algo assim ser dito sobre uma mulher em 2023?

Janja e Lula recebem flores ao desembarcarem em Xangai, na China. Dilma Rousseff é vista ao fundo.Janja e Lula recebem flores ao desembarcarem em Xangai, na China. Dilma Rousseff é vista ao fundo.

Janja foi criticada ao viajar com Lula para a China na semana passada (Foto: Ricardo Stuckert/AFP)

A Geni do momento

A socióloga recebe fogo de todos os lados. É a Geni do momento, aquela da música do Chico Buarque, a que é feita para apanhar e é boa de cuspir. Praticamente todos os dias alguma matéria contra Janja é publicada pela mídia brasileira.

Não estou falando, obviamente, que Janja não erra e que não deva ser criticada por atitudes como representante do país ou, por exemplo, por uso do  dinheiro público. Pelo contrário. Nesses casos, ela precisa ser cobrada. Sem dúvida.

Por exemplo: se de fato ela queria comprar uma mesa para o Palácio do Planalto que custava R$ 200 mil, como escreveu a colunista do Uol Carla Araújo, isso é um absurdo, principalmente em um país com mais de 30 milhões de pessoas passando fome.

Mas também me incomoda que mulheres ainda tenham que ser sempre as responsáveis pela área "cama, mesa e banho" da vida.

"Cuidar da casa" não parece ser exatamente o que Janja quer fazer. A socióloga já disse várias vezes que não é nem recatada nem do lar e que pretende participar do governo ativamente. Ela fala com todas as letras que é feminista. E também que é uma antiga militante do PT.

O que está em jogo não é a beleza

Ou seja, além de ser casada com Lula, ela preenche todos os requisitos que fazem uma mulher ser odiada pela extrema direita brasileira, já que o feminismo é um dos principais alvos do bolsonarismo. Falar mal de feministas gera engajamento.

Essas pessoas também costumam ver mulheres de forma objetificada. Por isso, há muitos comentários chamando Janja de "feia". Ela é lindíssima. Mas desde quando isso vem ao caso? Estamos falando de esposas de presidentes, não de participantes de um concurso de misses. O que está em jogo não é a beleza. 

Se Janja quer participar do governo, repito, ela está, sim, sujeita a críticas. O que é chocante (mas não exatamente surpreendente) é que tanto ódio, ainda no início de um governo, seja direcionado, novamente, contra uma mulher. E não, pelo menos por enquanto, ela não recebeu cheques ou joias suspeitas. E torcemos para que isso não aconteça.

O papel de primeira-dama ainda faz sentido?

Ao invés de discutir o quanto uma primeira-dama deve ser discreta politicamente, acho que poderíamos estar discutindo se faz sentido, em 2023, ainda existir com tanta força essa figura, um cargo tão machista, que remete a uma mulher que fica no backstage enquanto o homem brilha. E se as esposas (e os esposos) de políticos fossem pessoas que continuassem vivendo sua vida independentemente e sem cobranças? Seria ótimo, não?

E isso é o que já acontece em alguns países. É o caso da Alemanha. Por aqui, nós nem sabemos o nome das esposas do chanceler federal, Olaf Scholz, e a do presidente Frank-Walter Steinmeier, respectivamente: Britta Ernst, economista e política, e Elke Büdenbender, juíza em Berlim.

Um exemplo de como elas são tratadas: nesta segunda-feira (17/04), foi divulgado pela imprensa que a "secretária de Educação de Brandemburgo, Britta Ernst" havia renunciado. A maior parte dos títulos das notícias não mencionava o fato de ela ser esposa de Scholz. O casamento com o chefe de governo só era mencionado como um detalhe. E, pelo jeito, sua renúncia não tem nada a ver com o fato de ela ser primeira-dama, mas com a qualidade do seu trabalho mesmo, que vinha sendo muito criticado.

Já pensou se mulheres, primeiras-damas ou não, fossem criticadas só pelos seus trabalhos e não por sua aparência? Que sonho.

Nina Lemos, a autora deste artigo, é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão. / Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 18.04.23

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Escolher lado na disputa sino-americana é ruim para o Brasil

Pragmatismo recomenda que o País fique equidistante desse conflito de titãs

Na cerimônia de posse da ex-presidente Dilma Rousseff na presidência do Banco do Brics, Lula da Silva atacou o predomínio do dólar nas transações internacionais. Também visitou um centro de pesquisa da Huawei, empresa gigante de tecnologia que os Estados Unidos consideram uma ameaça para sua segurança nacional.

Agradou aos chineses, mas deu mais alguns arranhões nas relações com o governo Joe Biden, depois dos pronunciamentos polêmicos sobre a invasão da Ucrânia e da autorização para dois navios de guerra iranianos ancorarem no Rio de Janeiro, em fevereiro último. O Brasil é uma nação soberana e tem o direito de assumir posições internacionais que julgar apropriadas, mas o pragmatismo recomenda que o País fique equidistante desse conflito de titãs.

Vejamos a questão do predomínio do dólar.

Se considerarmos pelo tamanho das economias, as aspirações chinesas quanto à internacionalização da sua moeda, o yuan, são compreensíveis. Conforme estimativas do FMI, para 2023, o PIB da China, medido por paridade do poder de compra (PPP, na sigla em inglês), corresponde a aproximadamente 19% do PIB global, enquanto a fatia dos Estados Unidos está ao redor de 15,5% (a participação do PIB brasileiro é de 2,3%). Estima-se também que as exportações do gigante asiático correspondam a 15% das vendas internacionais totais, contra 10% dos norte-americanos (as exportações brasileiras alcançam 1,3% do total mundial).

No entanto, para a moeda de um país ter larga aceitação internacional, tamanho é uma condição necessária, mas não suficiente. Os fatores mais importantes são a transparência, a confiança e a resiliência da economia do país emissor. Não pode haver controle de capitais, pois os agentes econômicos precisam ter segurança na livre entrada e saída de seus recursos. Apesar dos números econômicos gigantescos da China, aproximadamente 60% das reservas internacionais detidas pelos bancos centrais e o mesmo porcentual das emissões de instrumentos de dívidas são denominadas em dólar. Da mesma forma, cerca de 80% do comércio internacional é efetuado na moeda norte-americana.

O crescimento chinês e a invasão russa à Ucrânia estão redesenhando o mapa geopolítico, sendo provável que a participação do yuan nas transações econômicas globais tenda a aumentar, mas está fora do horizonte observável o momento em que substituirá o dólar. A rigor, nem a própria China deseja que isso ocorra rapidamente, dado que o governo chinês não abre mão do controle de capitais.

Lula da Silva foi eleito para salvar a democracia das ameaças bolsonaristas, mas, na busca por maior protagonismo internacional, acena para governos totalitários. Seu discurso contra o dólar parece mais guiado por razões ideológicas do que técnicas, e mostra que o atual governo ainda tem dificuldade para focar nas reais prioridades da nossa economia. •

Claudio Adilson Gonçalez, o autor deste artigo, economista ,oi consultor do Banco Mundial, subsecretário do Tesouro Nacional e chefe da Assessoria Econômica do Ministério da Fazenda. Atualmente é  diretor-presidente da MCM Consultores.Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 17.04.23

Posicionamentos de Zanin, favorito para o STF, geram desconfiança no PT

 Advogado tem atuação próxima ao presidente Lula desde antes da Lava-Jato

O advogado Cristiano Zanin e o presidente Lula — Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação

Favorito para assumir a vaga do ministro Ricardo Lewandowski no Supremo Tribunal Federal (STF), o advogado Cristiano Zanin tem uma atuação próxima ao presidente Lula desde antes de ter assumido sua defesa nos processos da Lava-Jato. Zanin trabalhou no início da carreira em casos de falência de companhias aéreas e que geraram repercussão no Palácio do Planalto no primeiro mandato do petista. Nos bastidores, a bancada governista no Senado avalia que a provável escolha para o STF não enfrentará grande resistência de opositores de Lula, que têm elogiado o perfil de Zanin. O PT, por sua vez, tem dúvidas quanto aos posicionamentos do advogado.

Em entrevistas e artigos, Zanin sempre tratou de temas ligados à sua área de atuação, voltada para litígios empresariais e para o uso abusivo de mecanismos jurídicos, conhecido como lawfare. Reservadamente, senadores petistas afirmam que o advogado fez o dever de casa e estará preparado, em sua eventual sabatina no Senado, para tratar de temas variados.

A expectativa é de que uma ala da oposição aborde o lavajatismo e a pauta de costumes, ao passo que a bancada mais à esquerda deve questioná-lo sobre assuntos como proteção ao meio ambiente, defesa de povos originários e direitos de minorias. Conforme revelou a colunista do GLOBO Malu Gaspar, Zanin participou de uma reunião informal com parlamentares do PT no último mês e desagradou por dar respostas vagas em assuntos que fugiam ao escopo da Lava-Jato e da defesa da democracia.

Durante quase duas décadas na Corte, o ministroviveu episódios marcantes na carreira. Ao se aposentar do cargo, em abril de 2023, afirmou que a declaração que gerou a ação contra a cúpula do PT, em 2007, com condenação da maioria dos réus, foi o momento mais difícil da trajetória profissional

Zanin atuou desde o primeiro governo Lula no escritório do sogro, Roberto Teixeira, que é compadre de Lula. Um de seus casos notórios, em 2006, foi a formatação da compra dos ativos da Varig, em vias de falência, pelo consórcio Volo, formado por um fundo americano. A compra seria alvo de controvérsia após a descoberta, em 2008, de um contrato de gaveta no qual os sócios brasileiros da Volo se comprometiam a vender suas ações ao fundo estrangeiro, o que era proibido.

Poucos meses depois desta compra, Zanin defendeu em um artigo, em março de 2007, a ampliação do limite de capital estrangeiro em companhias aéreas no Brasil, tema que tinha resistências no PT. No artigo, o advogado criticou a limitação de 20% imposta pela legislação, e disse que as “restrições indevidas” deixavam a aviação civil “aquém do seu potencial”, com “impacto negativo em relevantes projetos governamentais, como é o caso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)”.

Na ocasião, como o consórcio Volo dava mostras de que não seria capaz de seguir com a operação da Varig, a chilena LAN e as brasileiras TAM e Gol disputavam para comprar novamente a empresa aérea. A Gol acabou vencendo a concorrência pela Varig, em negociação sacramentada no mesmo dia em que Roberto Teixeira e executivos da empresa se reuniram no Palácio do Planalto. O imbróglio da Varig gerou desgastes ao governo Lula e acusações, de uma diretora da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), de ter sofrido pressões de Teixeira por sua proximidade com o petista. Teixeira, à época, negou qualquer interferência e disse que sua atuação foi jurídica.

Casos no Supremo

Hoje rompido com o sogro, Zanin abriu seu próprio escritório e participa da defesa de conglomerados como a Americanas, em recuperação judicial, e a J&F, holding dos irmãos Joesley e Wesley Batista.

Em fevereiro, o advogado foi um dos signatários da petição na qual a Americanas buscou, junto ao STF, bloquear uma produção antecipada de provas obtida pelo Bradesco na Justiça de São Paulo. Um dos principais credores da Americanas, com uma dívida estimada em R$ 4,8 bilhões, o banco pleiteava acesso a e-mails de diretores da rede varejista.

O ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, acolheu o pedido dos advogados da Americanas para suspender o acesso às mensagens, sob o argumento de que poderia ferir sigilo profissional. Em março, a defesa do Bradesco, encabeçada pelo escritório do advogado Walfrido Warde, também próximo ao PT, se manifestou contra a decisão, afirmando que “o que a Americanas e seus advogados correus requerentes realmente querem é só arranjar uma desculpa” para bloquear o acesso aos e-mails, em que “se buscam os responsáveis por aquela que é tida por todos como, supostamente, uma das maiores e mais abusadas fraudes contábeis da história corporativa brasileira”.

Outro caso com participação de Zanin, que pode desembarcar em breve no Supremo, é a ação da J&F para rever seu acordo de leniência no âmbito das operações Carne Fraca e Lava-Jato. Em março, o STJ rejeitou um recurso da empresa para rever o acordo, que envolve o pagamento de uma multa de R$ 10,3 bilhões a órgãos como o BNDES e a fundos de pensão, como o Petros.

Bernardo Mello Franco, o autor desta reportagem, é jornalista especializado em assuntos políticos. Publicada originalmente n'O GLOBO, em 16.04.23

Inelegibilidade é pouco para crimes de Bolsonaro

Se for punido apenas pelo TSE, ex-presidente prolongará as férias até 2031

Bolsonaro no carro ao sair da Polícia Federal após prestar depoimento no caso das joiasBolsonaro no carro ao sair da Polícia Federal após prestar depoimento no caso das joias Sergio Lima / AFP

Até a tropa do PL já admite: Jair Bolsonaro deve ser condenado no processo que apura seus ataques ao sistema eleitoral. Se a previsão se confirmar, o TSE impedirá o ex-presidente de disputar eleições por oito anos. É muito pouco para a coleção de crimes que ele cometeu.

A Procuradoria pediu que Bolsonaro seja punido por abuso de autoridade e de poder político, desvio de finalidade e uso indevido dos meios de comunicação. O processo trata da reunião com embaixadores em julho de 2022, a menos de três meses do primeiro turno.

Nova rotina: Pela primeira vez em 34 anos, Bolsonaro terá que responder por seus atos

O capitão convocou o corpo diplomático para mentir sobre a urna eletrônica e atacar o candidato da oposição. O discurso foi transmitido na TV Brasil e nas redes do governo, inflamando extremistas que já ensaiavam um levante contra a democracia.

Se for declarado inelegível, Bolsonaro prolongará as férias até 2031. Ganhará mais tempo para curtir o ócio com os amigos endinheirados. No último feriadão, ele usou o jatinho de Nelson Piquet para passear em Angra dos Reis.

Como nem tudo é festa, o capitão ainda deve ser obrigado a lidar com alguns contratempos. No início do mês, ele precisou se explicar à Polícia Federal sobre o escândalo das joias. Nos próximos dias, será ouvido sobre os atos golpistas de 8 de janeiro.

O inquérito sobre o quebra-quebra contém uma novidade. O procurador Augusto Aras, que prestou longos serviços a Bolsonaro, parece ter perdido o interesse em protegê-lo. Foi o Ministério Público Federal quem pediu, ainda em janeiro, que o ex-presidente fosse incluído entre os investigados. Ele produziu prova contra si mesmo na madrugada do dia 11, quando divulgou novas mentiras contra o voto eletrônico.

Para a Procuradoria, a publicação configurou uma “forma grave de incitação” a “crimes de dano, de tentativa de homicídio e de tentativa violenta de abolição do Estado de Direito”. O ex-presidente estava na Flórida, mas continuava a comandar seus radicais à distância.

No depoimento sobre os diamantes, Bolsonaro contou uma história da carochinha. Disse que só ficou sabendo do “presente” no fim do mandato e alegou não se lembrar de quem o avisou. A conversa é duplamente inverossímil. As tentativas de desembaraçar as pedras começaram em 2021, e ninguém se esqueceria do portador de uma notícia tão valiosa.

Se a polícia ligar os pontos e a Justiça cumprir seu papel, Bolsonaro pode pegar uma cana muito mais longa que os oito anos de inelegibilidade. E isso sem incluir um só dia de cadeia pela gestão criminosa da pandemia, que matou mais de 700 mil brasileiros.

O bloco de Lira

Se quiser aprovar o marco fiscal, o governo terá que “melhorar a sua engrenagem política”, avisou Arthur Lira na GloboNews.

Para aumentar seu poder de barganha, o chefão da Câmara acaba de montar um “superbloco” com 173 parlamentares.

“Não farei nenhum movimento para atrapalhar a governabilidade do meu país”, acrescentou, na mesma entrevista. Ah, bom!

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é jornalista especializado em assuntos políticos. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 16.04.23

As trapalhadas na visita à China

A viagem, que deveria mostrar a nova forma de o Brasil se relacionar com o mundo, virou uma coleção de declarações infelizes de Lula

Lula se desculpa por falta a entrevista coletiva após dia exaustivo na ChinaLula se desculpa por falta a entrevista coletiva após dia exaustivo na China TV Brasil/ Reprodução

O presidente Lula estava com tudo preparado para ganhar a visita à China, mas errou ao falar e ao não falar. Não quis dar entrevista à imprensa brasileira, hábito que até os ditadores militares seguiam quando em viagem ao exterior. No dia seguinte, pediu desculpas. Fez improvisos infelizes, que mostraram pouca sabedoria para lidar com as relações internacionais. Isso é espantoso, diante da experiência de Lula em seu terceiro mandato.

Não é necessário dar gritos de independência em relação aos Estados Unidos, só por estar em solo chinês. Nessa altura da nossa maturidade como potência regional, o Brasil deve estar bem com as principais potências mundiais. Isso é um clássico do Itamaraty.

A volta do Brasil ao cenário internacional é um alívio. Quem se lembra do que foi a relação do governo Bolsonaro com a China sabe que o avanço agora é extraordinário. Naquele mandato, a relação com o nosso principal parceiro esteve marcada por agressões infantis, delírios persecutórios, postagens ofensivas nas redes sociais.

Lula foi a Pequim para restabelecer o nível adequado das relações com a China. O fato de a viagem ter sido remarcada rapidamente teve forte significado diplomático. Mostrou que para ambos os países a visita era relevante.

A declaração do presidente contra o dólar não faz sentido algum. Ninguém precisa perder noite de sono se perguntando por que o dólar é a moeda mais usada no comércio internacional. Não existe qualquer obrigação de se transacionar com o dólar, mas tem sido a moeda de referência, porque tem mais liquidez e um emissor confiável.

É natural, também, a busca de mais diversidade monetária no comércio internacional. Aliás, isso já está acontecendo com muitos acordos feitos para transações nas moedas dos países que estão comprando e vendendo entre si, um deles firmado em março entre o Banco Central brasileiro e o BC chinês.

A visita à Huawei é compreensível, porque a empresa é fornecedora da telefonia brasileira há décadas. Mas eram desnecessárias a declaração de que estava ali para dar uma “demonstração de que não temos preconceito em nossas relações com os chineses” e a afirmação de que “ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China”.

É meio patético ficar na China mandando recados desaforados para os Estados Unidos. Não é uma questão de escolha entre a China e os Estados Unidos. O desejável é ter boas relações com ambos.

Em outro momento infeliz, Lula atacou o FMI na posse da ex-presidente Dilma Roussef no comando do Banco do Brics, dizendo que a instituição “asfixia” os países. O FMI é um fundo do qual fazemos parte, não somos mais um país com dívida externa e o Fundo não é mais aquele. Ele mudou muito sua visão de mundo. Essa é uma crítica datada e envelhecida.

De novo, é o Brasil se colocando em patamar inferior ao que já alcançou. A propósito, o diretor do Departamento do Hemisfério Ocidental do FMI, Nigel Chalk, se disse “entusiasmado” com o arcabouço fiscal, porque é um plano, segundo ele, de equilíbrio fiscal mas “consciente das necessidades sociais do país”.

Claro que a declaração de Lula foi feita para agradar a Argentina, tanto que o presidente Alberto Fernández agradeceu. Só que a Argentina cavou com erros seriais o buraco no qual caiu. Não acumulou reservas durante o boom das commodities, como fez o Brasil. Podia tê-lo feito porque também é exportadora dessas mercadorias.

Em 2010, a então presidente Cristina Kirchner acabou com a independência do Banco Central e demitiu o presidente da instituição por decreto, porque queria que o BC financiasse gastos de custeio. Sem reservas e com dívidas, o país fez vários acordos com o FMI e nunca os cumpriu. Hoje, está com inflação de 100%. No Brasil, ela caiu abaixo de 5%. Semana passada, enquanto a moeda argentina descia a nível recorde, o real se valorizava.

O Brasil aderiu “firmemente” ao princípio de que Taiwan pertence à China. Era o que a China queria. Em contrapartida, o Brasil queria o apoio dos chineses à velha pretensão de ter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Recebeu apenas um apoio para que o Conselho seja mais representativo, tenha países em desenvolvimento e que o Brasil tenha um papel mais “proeminente” nas Nações Unidas. Ou seja, o Brasil entregou tudo, até a adesão a um desfecho que pode ser violento, e recebeu de volta um apoio bem mais fraco do que o pretendido.

Míriam Leitão, a autora deste artigo, é jornalista especializada em economia. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 16.04.23

terça-feira, 11 de abril de 2023

Lula não está acima do Congresso

É dever dos parlamentares derrubar decretos de Lula que desfiguram o Marco do Saneamento, pois contrariam lei aprovada pelo Legislativo e ajudam a manter desigualdades

Afalta de saneamento básico é uma das mais constrangedoras desigualdades sociais, que afetam o presente e o futuro de grande parte da população. Em 2020, depois de muito estudo e debate, o Congresso aprovou o Marco do Saneamento (Lei 14.026/2020), que, para enfrentar essa lamentável situação, estabelecia duas grandes frentes: desencastelar empresas estatais de saneamento ineficientes e estabelecer um tratamento jurídico uniforme, para prover segurança jurídica e atrair investimentos privados.

O PT sempre foi contra o Marco do Saneamento. Escolheu ficar do lado das empresas públicas ineficientes e dos que delas se beneficiam, em vez de defender a população mais vulnerável.

Durante a tramitação do texto no Congresso, a legenda lutou para que tudo ficasse rigorosamente como está. Atualmente, são cerca de 100 milhões de brasileiros sem coleta de esgotos e 35 milhões sem acesso à água tratada. Felizmente, os petistas perderam a batalha, e a Lei 14.026/2020 foi aprovada.

Agora, o presidente Lula da Silva pretende reverter por decreto os grandes avanços do Marco do Saneamento. Na semana passada, o Executivo federal editou dois decretos (i) estendendo a permanência de empresas estatais de saneamento que comprovadamente não têm condições de prestar o serviço de forma adequada e (ii) desobrigando a realização de processo licitatório para companhias estaduais que atuam em microrregiões. Além de ferirem os propósitos da Lei 14.026/2020, as medidas afetam a estabilidade e a previsibilidade da regulação. Como se sabe, a insegurança jurídica afasta investimentos privados.

Nessa história, há um detalhe importante. Os decretos de Lula contra o Marco do Saneamento se aproveitaram de uma brecha criada pelo presidente Jair Bolsonaro. Originalmente, o Congresso havia proibido a renovação de contratos sem licitação depois de 31 de março de 2022. No entanto, Bolsonaro vetou esse trecho, excluindo da lei a previsão de um prazo. Agora, o governo do PT utiliza essa ausência de data para estender, por decreto, contratos sem licitação, justamente o que a Lei 14.026/2020 vinha impedir.

Tudo isso é revoltante, mas existe um caminho constitucional para reverter o retrocesso causado pela gestão petista. Entre as competências previstas no art. 49 da Constituição, o Congresso tem o dever de “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa” (inciso V), “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta” (inciso X) e “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes” (inciso XI). Os decretos de Lula encaixam-se nas três hipóteses, a exigir, assim, imediata atuação do Congresso.

Para tanto, basta que o Congresso edite um decreto legislativo sustando os efeitos dos decretos do Executivo federal. Isso não fere o princípio da separação dos Poderes, tampouco significa atropelo das competências do Palácio do Planalto. É apenas uma medida, com sólido suporte na Constituição, de proteção das prerrogativas e da vontade do Legislativo. O presidente da República não pode impedir, por meio de decreto, que uma lei produza seus efeitos.

Além de ter evidente fundamento jurídico e de assegurar condições para a melhoria da infraestrutura de saneamento, um decreto do Legislativo sustando os dois atos do Palácio do Planalto pode ser especialmente pedagógico, neste momento em que o governo Lula ensaia e tenta tantos retrocessos. É uma oportunidade para relembrar alguns limites fundamentais da República. Existe um Congresso a ser respeitado, o que inclui respeito às leis aprovadas. Além disso, governar o País não é impor, por meio de decreto, ideias que, no âmbito adequado de debate, foram derrotadas. Essa manobra foi vista, por exemplo, nos decretos das armas de Jair Bolsonaro. E o Supremo Tribunal Federal já disse que esse jeito de exercer o poder é rigorosamente inconstitucional.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 11.04.23

Argumento maroto contra as privatizações

Governo Lula cancela privatizações sob o argumento de que é preciso garantir ‘oferta de cidadania’; ora, estatais ineficientes sonegam cidadania a milhões de brasileiros diariamente

Ogoverno tornou oficial a decisão de não mais privatizar estatais. Na semana passada, o Executivo retirou sete empresas do Programa Nacional de Desestatização (PND) e excluiu outras três do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Faziam parte dessas duas listas os Correios, EBC, ABGF, Ceitec, Datraprev, Nuclep, Serpro, Conab, PPSA e Telebras.

O decreto de Lula da Silva não surpreende. Desde a campanha eleitoral, o petista nunca escondeu o desejo de interromper o processo de privatizações. A formalização da decisão, no entanto, é uma oportunidade para observar a confusão propositada que o governo faz a respeito das funções do Estado.

“Nosso objetivo é reforçar o papel destas empresas na oferta de cidadania e ampliar ainda mais os investimentos”, afirmou o Ministério das Comunicações, a respeito da exclusão dos Correios e da Telebras do PND. Para o governo, aparentemente, somente empresas públicas seriam capazes de oferecer cidadania aos brasileiros excluídos. Essa lógica expõe uma visão política que não sobrevive à realidade dos fatos.

Se há dois serviços que estão muito próximos da universalização, são o de energia elétrica e o de telecomunicações. A privatização das empresas estatais que dominavam ambos os setores garantiu investimentos que ampliaram a cobertura e o acesso de milhões de brasileiros a serviços básicos que eram considerados artigos de luxo até a década de 1990. Nas mãos da Telebras, telefones fixos eram bens valiosos, cuja fila de espera era contabilizada em anos. No interior do País, só tinha acesso à eletricidade quem aceitava bancar parte do investimento nas redes de energia com recursos próprios.

É evidente que as empresas privadas costumam privilegiar regiões e serviços mais lucrativos. Se não precisa prestar serviços de forma direta, fiscalizar o cumprimento dos contratos pelas empresas é precisamente papel do Estado. Foi para isso que foram criadas as agências reguladoras. Não é coincidência, portanto, que a cobertura universal tenha sido atingida nos setores em que havia órgãos fortes, caso da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Há um segmento, por outro lado, que se notabiliza por ilustrar o exato oposto dessas experiências bem-sucedidas. Com forte presença de estatais estaduais, o setor de saneamento básico escancara nossas mazelas sociais, a ponto de a universalização do acesso à água e esgoto ser objetivo previsto somente para 2033. Os recentes investimentos na área foram fruto do novo marco do setor, aprovado pelo Congresso em 2020, cujos princípios foram deturpados pelo governo para favorecer estatais e dispensá-las de disputar leilões com empresas privadas.

Considerando o discurso de Lula, é muito improvável que estatais que ainda permanecem no PND e no PPI mudem de status em seu governo, como o Porto de Santos. Mesmo administrações que tinham a desestatização como meta falharam miseravelmente na execução da tarefa, caso da gestão de Jair Bolsonaro, que só conseguiu privatizar a Eletrobras e a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa). Tratar o assunto como dogma, o que não é exclusividade nem da esquerda nem da direita, explica por que a União ainda tem hoje 125 estatais.

Ao contrário do que advoga o governo Lula, a oferta de cidadania aos brasileiros não depende de empresas estatais. Ser um cidadão pleno, com direitos e deveres, depende do acesso a serviços essenciais prestados com qualidade. Isso requer tarifas equilibradas e agências reguladoras autônomas, que fiscalizem a atuação de companhias robustas, sejam públicas ou privadas.

É inegável, no entanto, que o setor público não tem recursos à disposição para realizar investimentos em infraestrutura como o setor privado. Nesse sentido, o ideal seria que o Estado abandonasse o discurso político e reconhecesse suas limitações. Dessa forma, poderia dedicar-se à sua função primordial, como a oferta de serviços como saúde e educação, cujo acesso é fundamental para o verdadeiro exercício da cidadania pela população.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 11.04.23