segunda-feira, 17 de abril de 2023

As trapalhadas na visita à China

A viagem, que deveria mostrar a nova forma de o Brasil se relacionar com o mundo, virou uma coleção de declarações infelizes de Lula

Lula se desculpa por falta a entrevista coletiva após dia exaustivo na ChinaLula se desculpa por falta a entrevista coletiva após dia exaustivo na China TV Brasil/ Reprodução

O presidente Lula estava com tudo preparado para ganhar a visita à China, mas errou ao falar e ao não falar. Não quis dar entrevista à imprensa brasileira, hábito que até os ditadores militares seguiam quando em viagem ao exterior. No dia seguinte, pediu desculpas. Fez improvisos infelizes, que mostraram pouca sabedoria para lidar com as relações internacionais. Isso é espantoso, diante da experiência de Lula em seu terceiro mandato.

Não é necessário dar gritos de independência em relação aos Estados Unidos, só por estar em solo chinês. Nessa altura da nossa maturidade como potência regional, o Brasil deve estar bem com as principais potências mundiais. Isso é um clássico do Itamaraty.

A volta do Brasil ao cenário internacional é um alívio. Quem se lembra do que foi a relação do governo Bolsonaro com a China sabe que o avanço agora é extraordinário. Naquele mandato, a relação com o nosso principal parceiro esteve marcada por agressões infantis, delírios persecutórios, postagens ofensivas nas redes sociais.

Lula foi a Pequim para restabelecer o nível adequado das relações com a China. O fato de a viagem ter sido remarcada rapidamente teve forte significado diplomático. Mostrou que para ambos os países a visita era relevante.

A declaração do presidente contra o dólar não faz sentido algum. Ninguém precisa perder noite de sono se perguntando por que o dólar é a moeda mais usada no comércio internacional. Não existe qualquer obrigação de se transacionar com o dólar, mas tem sido a moeda de referência, porque tem mais liquidez e um emissor confiável.

É natural, também, a busca de mais diversidade monetária no comércio internacional. Aliás, isso já está acontecendo com muitos acordos feitos para transações nas moedas dos países que estão comprando e vendendo entre si, um deles firmado em março entre o Banco Central brasileiro e o BC chinês.

A visita à Huawei é compreensível, porque a empresa é fornecedora da telefonia brasileira há décadas. Mas eram desnecessárias a declaração de que estava ali para dar uma “demonstração de que não temos preconceito em nossas relações com os chineses” e a afirmação de que “ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China”.

É meio patético ficar na China mandando recados desaforados para os Estados Unidos. Não é uma questão de escolha entre a China e os Estados Unidos. O desejável é ter boas relações com ambos.

Em outro momento infeliz, Lula atacou o FMI na posse da ex-presidente Dilma Roussef no comando do Banco do Brics, dizendo que a instituição “asfixia” os países. O FMI é um fundo do qual fazemos parte, não somos mais um país com dívida externa e o Fundo não é mais aquele. Ele mudou muito sua visão de mundo. Essa é uma crítica datada e envelhecida.

De novo, é o Brasil se colocando em patamar inferior ao que já alcançou. A propósito, o diretor do Departamento do Hemisfério Ocidental do FMI, Nigel Chalk, se disse “entusiasmado” com o arcabouço fiscal, porque é um plano, segundo ele, de equilíbrio fiscal mas “consciente das necessidades sociais do país”.

Claro que a declaração de Lula foi feita para agradar a Argentina, tanto que o presidente Alberto Fernández agradeceu. Só que a Argentina cavou com erros seriais o buraco no qual caiu. Não acumulou reservas durante o boom das commodities, como fez o Brasil. Podia tê-lo feito porque também é exportadora dessas mercadorias.

Em 2010, a então presidente Cristina Kirchner acabou com a independência do Banco Central e demitiu o presidente da instituição por decreto, porque queria que o BC financiasse gastos de custeio. Sem reservas e com dívidas, o país fez vários acordos com o FMI e nunca os cumpriu. Hoje, está com inflação de 100%. No Brasil, ela caiu abaixo de 5%. Semana passada, enquanto a moeda argentina descia a nível recorde, o real se valorizava.

O Brasil aderiu “firmemente” ao princípio de que Taiwan pertence à China. Era o que a China queria. Em contrapartida, o Brasil queria o apoio dos chineses à velha pretensão de ter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Recebeu apenas um apoio para que o Conselho seja mais representativo, tenha países em desenvolvimento e que o Brasil tenha um papel mais “proeminente” nas Nações Unidas. Ou seja, o Brasil entregou tudo, até a adesão a um desfecho que pode ser violento, e recebeu de volta um apoio bem mais fraco do que o pretendido.

Míriam Leitão, a autora deste artigo, é jornalista especializada em economia. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 16.04.23

terça-feira, 11 de abril de 2023

Lula não está acima do Congresso

É dever dos parlamentares derrubar decretos de Lula que desfiguram o Marco do Saneamento, pois contrariam lei aprovada pelo Legislativo e ajudam a manter desigualdades

Afalta de saneamento básico é uma das mais constrangedoras desigualdades sociais, que afetam o presente e o futuro de grande parte da população. Em 2020, depois de muito estudo e debate, o Congresso aprovou o Marco do Saneamento (Lei 14.026/2020), que, para enfrentar essa lamentável situação, estabelecia duas grandes frentes: desencastelar empresas estatais de saneamento ineficientes e estabelecer um tratamento jurídico uniforme, para prover segurança jurídica e atrair investimentos privados.

O PT sempre foi contra o Marco do Saneamento. Escolheu ficar do lado das empresas públicas ineficientes e dos que delas se beneficiam, em vez de defender a população mais vulnerável.

Durante a tramitação do texto no Congresso, a legenda lutou para que tudo ficasse rigorosamente como está. Atualmente, são cerca de 100 milhões de brasileiros sem coleta de esgotos e 35 milhões sem acesso à água tratada. Felizmente, os petistas perderam a batalha, e a Lei 14.026/2020 foi aprovada.

Agora, o presidente Lula da Silva pretende reverter por decreto os grandes avanços do Marco do Saneamento. Na semana passada, o Executivo federal editou dois decretos (i) estendendo a permanência de empresas estatais de saneamento que comprovadamente não têm condições de prestar o serviço de forma adequada e (ii) desobrigando a realização de processo licitatório para companhias estaduais que atuam em microrregiões. Além de ferirem os propósitos da Lei 14.026/2020, as medidas afetam a estabilidade e a previsibilidade da regulação. Como se sabe, a insegurança jurídica afasta investimentos privados.

Nessa história, há um detalhe importante. Os decretos de Lula contra o Marco do Saneamento se aproveitaram de uma brecha criada pelo presidente Jair Bolsonaro. Originalmente, o Congresso havia proibido a renovação de contratos sem licitação depois de 31 de março de 2022. No entanto, Bolsonaro vetou esse trecho, excluindo da lei a previsão de um prazo. Agora, o governo do PT utiliza essa ausência de data para estender, por decreto, contratos sem licitação, justamente o que a Lei 14.026/2020 vinha impedir.

Tudo isso é revoltante, mas existe um caminho constitucional para reverter o retrocesso causado pela gestão petista. Entre as competências previstas no art. 49 da Constituição, o Congresso tem o dever de “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa” (inciso V), “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta” (inciso X) e “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes” (inciso XI). Os decretos de Lula encaixam-se nas três hipóteses, a exigir, assim, imediata atuação do Congresso.

Para tanto, basta que o Congresso edite um decreto legislativo sustando os efeitos dos decretos do Executivo federal. Isso não fere o princípio da separação dos Poderes, tampouco significa atropelo das competências do Palácio do Planalto. É apenas uma medida, com sólido suporte na Constituição, de proteção das prerrogativas e da vontade do Legislativo. O presidente da República não pode impedir, por meio de decreto, que uma lei produza seus efeitos.

Além de ter evidente fundamento jurídico e de assegurar condições para a melhoria da infraestrutura de saneamento, um decreto do Legislativo sustando os dois atos do Palácio do Planalto pode ser especialmente pedagógico, neste momento em que o governo Lula ensaia e tenta tantos retrocessos. É uma oportunidade para relembrar alguns limites fundamentais da República. Existe um Congresso a ser respeitado, o que inclui respeito às leis aprovadas. Além disso, governar o País não é impor, por meio de decreto, ideias que, no âmbito adequado de debate, foram derrotadas. Essa manobra foi vista, por exemplo, nos decretos das armas de Jair Bolsonaro. E o Supremo Tribunal Federal já disse que esse jeito de exercer o poder é rigorosamente inconstitucional.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 11.04.23

Argumento maroto contra as privatizações

Governo Lula cancela privatizações sob o argumento de que é preciso garantir ‘oferta de cidadania’; ora, estatais ineficientes sonegam cidadania a milhões de brasileiros diariamente

Ogoverno tornou oficial a decisão de não mais privatizar estatais. Na semana passada, o Executivo retirou sete empresas do Programa Nacional de Desestatização (PND) e excluiu outras três do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Faziam parte dessas duas listas os Correios, EBC, ABGF, Ceitec, Datraprev, Nuclep, Serpro, Conab, PPSA e Telebras.

O decreto de Lula da Silva não surpreende. Desde a campanha eleitoral, o petista nunca escondeu o desejo de interromper o processo de privatizações. A formalização da decisão, no entanto, é uma oportunidade para observar a confusão propositada que o governo faz a respeito das funções do Estado.

“Nosso objetivo é reforçar o papel destas empresas na oferta de cidadania e ampliar ainda mais os investimentos”, afirmou o Ministério das Comunicações, a respeito da exclusão dos Correios e da Telebras do PND. Para o governo, aparentemente, somente empresas públicas seriam capazes de oferecer cidadania aos brasileiros excluídos. Essa lógica expõe uma visão política que não sobrevive à realidade dos fatos.

Se há dois serviços que estão muito próximos da universalização, são o de energia elétrica e o de telecomunicações. A privatização das empresas estatais que dominavam ambos os setores garantiu investimentos que ampliaram a cobertura e o acesso de milhões de brasileiros a serviços básicos que eram considerados artigos de luxo até a década de 1990. Nas mãos da Telebras, telefones fixos eram bens valiosos, cuja fila de espera era contabilizada em anos. No interior do País, só tinha acesso à eletricidade quem aceitava bancar parte do investimento nas redes de energia com recursos próprios.

É evidente que as empresas privadas costumam privilegiar regiões e serviços mais lucrativos. Se não precisa prestar serviços de forma direta, fiscalizar o cumprimento dos contratos pelas empresas é precisamente papel do Estado. Foi para isso que foram criadas as agências reguladoras. Não é coincidência, portanto, que a cobertura universal tenha sido atingida nos setores em que havia órgãos fortes, caso da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).

Há um segmento, por outro lado, que se notabiliza por ilustrar o exato oposto dessas experiências bem-sucedidas. Com forte presença de estatais estaduais, o setor de saneamento básico escancara nossas mazelas sociais, a ponto de a universalização do acesso à água e esgoto ser objetivo previsto somente para 2033. Os recentes investimentos na área foram fruto do novo marco do setor, aprovado pelo Congresso em 2020, cujos princípios foram deturpados pelo governo para favorecer estatais e dispensá-las de disputar leilões com empresas privadas.

Considerando o discurso de Lula, é muito improvável que estatais que ainda permanecem no PND e no PPI mudem de status em seu governo, como o Porto de Santos. Mesmo administrações que tinham a desestatização como meta falharam miseravelmente na execução da tarefa, caso da gestão de Jair Bolsonaro, que só conseguiu privatizar a Eletrobras e a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa). Tratar o assunto como dogma, o que não é exclusividade nem da esquerda nem da direita, explica por que a União ainda tem hoje 125 estatais.

Ao contrário do que advoga o governo Lula, a oferta de cidadania aos brasileiros não depende de empresas estatais. Ser um cidadão pleno, com direitos e deveres, depende do acesso a serviços essenciais prestados com qualidade. Isso requer tarifas equilibradas e agências reguladoras autônomas, que fiscalizem a atuação de companhias robustas, sejam públicas ou privadas.

É inegável, no entanto, que o setor público não tem recursos à disposição para realizar investimentos em infraestrutura como o setor privado. Nesse sentido, o ideal seria que o Estado abandonasse o discurso político e reconhecesse suas limitações. Dessa forma, poderia dedicar-se à sua função primordial, como a oferta de serviços como saúde e educação, cujo acesso é fundamental para o verdadeiro exercício da cidadania pela população.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 11.04.23

segunda-feira, 10 de abril de 2023

A verdadeira frente ampla de Lula

Em 100 dias de governo centralizado no velho PT, a verdadeira frente ampla de Lula é externa

Em missa de Ramos no Rio de Janeiro, um padre relatou que muitos fiéis haviam lhe manifestado repúdio às declarações da autoridade da Igreja a um canal de TV da Argentina de que Lula foi condenado sem provas, vítima de lawfare, e Dilma Rousseff, “mulher de mãos limpas”, sofreu impeachment por “um ato administrativo menor”.

“Respeitamos o Santo Padre e sua liberdade de opinião. Não há motivos para crise. Mas entrevista não é dogma de fé”, explicou ele, com o devido respeito, indicando que nenhum católico está obrigado a compactuar com comentários midiáticos do papa argentino sobre a política brasileira. “Lamentamos que o Santo Padre não esteja bem informado sobre o Brasil”, completou, arrebatando a plateia, que o aplaudiu de pé.

Eu, Felipe, aplaudi junto, porque aprecio reações locais de fibra a intromissões estrangeiras enviesadas, sobretudo de uma autoridade que deveria guiar a Igreja e acolher todos os povos, em vez de legitimar o vitimismo de populistas que os dividem. Dias depois, na mesma linha de meter a colher na cumbuca dos outros, Lula defendeu que a Ucrânia abra mão da Crimeia, porque Zelenski “não pode querer tudo”.

“Não há razão legal, política ou moral que justifique o abandono de sequer um centímetro do território ucraniano”, rebateu no Facebook o portavoz da diplomacia do país, Oleg Nikolenko. “O mundo deve saber: o respeito e a ordem retornarão apenas quando a bandeira ucraniana retornar à Crimeia, quando houver liberdade lá, assim como em qualquer outro lugar na Ucrânia”, emendou Zelenski, em vídeo.

As reações não pararam por aí. “Estou pedindo ao presidente Lula que ceda o Rio à Rússia para acabar com a guerra”, ironizou no Twitter o historiador inglês Ian Garner, especialista em propaganda russa. “Ei, Holanda, Lula parece simpatizar com fraudulentas apropriações históricas de terras. Talvez ele deixe você ressuscitar o Brasil holandês”, acrescentou Trent Murray, correspondente internacional na Alemanha, publicando o mapa do Nordeste do século 17. “Lula entregaria o RS se a Argentina o anexasse?”, questionou também.

É melhor não dar ideia, pessoal. Em 100 dias de governo centralizado no velho PT, ávido por retomar o controle das estatais e reabrir caminho às empreiteiras amigas, a verdadeira frente ampla de Lula é externa, com a Argentina peronista de Alberto Fernández (e sua inflação anual batendo em 100%), a Venezuela chavista de Nicolás Maduro, a China comunista de Xi Jinping e a Rússia imperialista de Vladimir Putin.

Haja pano. Haja Papa.

Felipe Moura Brasil, o autor deste artigo, é analista de assuntos políticos. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 10.04.23

Um governo envelhecido aos 100 dias

Lula age como se estivesse na reta final de seu mandato, em busca de trunfos eleitoreiros, e não no início, momento em que decisões difíceis e impopulares costumam ser tomadas

O governo de Lula da Silva chega hoje ao seu centésimo dia como se estivesse em sua reta final. Os sinais de decrepitude precoce estão em toda parte, mas sobretudo na aparente incapacidade do presidente de dar um rumo – imprimir uma marca, como dizem os marqueteiros – à sua incipiente administração.

O governo dá ares de envelhecimento acelerado quando parece mais preocupado em criar fatos que lhe garantam vantagens eleitorais, como se estivéssemos às portas da eleição presidencial de 2026, e não em tomar as decisões duras e impopulares que qualquer governo responsável toma quando ainda está embalado pela legitimidade das urnas – ainda mais diante da perspectiva de enfrentar um Congresso crescentemente hostil, em que a base governista aparenta ser frágil e pouco confiável.

Alguns otimistas dirão que Lula da Silva, por mais perdido que esteja, ainda faz um governo melhor do que o de Jair Bolsonaro. Mas aí não há vantagem nenhuma: é virtualmente impossível ser pior do que Bolsonaro, responsável pela putrefação moral da política, pela desmoralização da República e pela ruína de áreas cruciais para o País, como saúde e educação.

Mas era possível ser efetivamente melhor, se a disposição de construir fosse tão grande quanto a de desmontar o que foi feito no passado recente. Os petistas, a começar por Lula da Silva, parecem convictos de que tudo o que foi realizado depois do impeachment da presidente Dilma Rousseff deve ser desfeito por ser fruto de um tal “golpe”.

Nem se discute que era necessário, por exemplo, reverter as medidas bolsonaristas que levaram ao armamento desenfreado da população. Tampouco pode ser ignorado o esforço de resgatar os povos indígenas da Amazônia, em especial o povo Yanomami, submetidos ao abandono, à fome e à morte pela leniência do governo anterior no combate aos crimes na região. Ademais, o novo governo melhorou a imagem do País no exterior, resgatando o Brasil da condição de pária em que Bolsonaro o colocou e recobrando seu tradicional papel de interlocutor relevante em uma miríade de questões globais, em especial na seara ambiental e no comércio internacional.

Mas os retrocessos são igualmente notáveis, frutos sobretudo do empenho dos petistas de fazer terra arrasada dos avanços obtidos na gestão de Michel Temer, chamado de “golpista” por Lula. Movido por esse espírito de vingança, Lula avalizou o desmonte do Marco do Saneamento, para favorecer estatais falidas e incompetentes em detrimento do bem-estar dos pobres; avançou sobre a Lei das Estatais, criada justamente para estancar a corrupção das estatais, grande marca dos governos petistas; mandou parar a reforma do ensino médio, para satisfazer sindicatos em prejuízo dos estudantes, aflitos com um futuro incerto; ameaçou rever a reforma trabalhista, um formidável avanço em relação à legislação caduca da era varguista; fustigou a Petrobras a abandonar as políticas e práticas administrativas adotadas justamente para salvar a companhia depois da destruição promovida pelos petistas; e detonou o teto de gastos, criado no governo Temer para conter a sangria das contas públicas após a passagem irresponsável de Dilma pelo poder.

Menos mal que, entre uma pirraça e outra, o governo Lula foi capaz de elaborar uma proposta de regime fiscal que, malgrado seus problemas, ao menos sinaliza alguma intenção de manter a solvência das contas públicas. Mas, bem ao estilo petista, a maior oposição ao projeto do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não parte da oposição, e sim do próprio PT, incapaz de aceitar que dinheiro público não brota da terra nem dá em árvore. Quando um Lindbergh Faria (PT-RJ) diz que o novo regime fiscal é nada menos que um “pacto com o diabo”, algo que nem o mais empedernido dos bolsonaristas ousou fazer, este jornal tem razões de sobra para suspeitar que o ministro da Fazenda talvez não tenha forças para lutar contra “opositores” cujo grande poder decorre justamente da pequena distância que os separa dos ouvidos de Lula.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 10.04.23

sábado, 8 de abril de 2023

Os dramas do ensino médio

O presidente da República sugere que a nova lei pode ser aprimorada com participação de alunos e professores. Desse mato não sai coelho

O ensino médio vive três grandes dramas: não conseguimos formular e implementar uma política adequada; a maioria dos alunos chega com formação precária e sem condições de sucesso; e tudo isso decorre de ideias e políticas equivocadas que se apoiam, infelizmente, em elevado grau de consenso.

Um pouco de história. Até por volta de 1970 havia um ensino médio acadêmico e outro profissional. O acadêmico se dividia em opções de humanidades e ciências, geralmente ofertadas na mesma escola. O profissional se desdobrava em normal, técnico, contabilidade e agrícola, ministrado em escolas especializadas. Isso foi abolido e o ensino técnico ficou marginalizado. Na década de 1990, resolução do Conselho Nacional de Educação aumentou em mil horas a duração do ensino profissional, mudança que, somada ao advento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), praticamente extinguiu o técnico. Em 2019, apenas 8% de alunos do ensino médio estavam no técnico.

Na maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e nos asiáticos, entre 30% e 70% dos alunos a partir dos 13 ou 14 anos de idade frequentam cursos médios em escolas profissionais especializadas. Alguns países começam a diversificar pouco antes ou pouco depois.

Nos EUA e no Canadá, são três as características marcantes. O médio acadêmico é diversificado, por isso as escolas são de porte considerável. Há uma gama razoável de opções para os alunos. O técnico se dá parte nessas escolas e parte nas especializadas, mas é feito sobretudo no nível pós-secundário (Community Colleges) ou por meio de sistemas de aprendizagem profissional promovidos pelas associações de classe – como é típico na construção civil. A Inglaterra tem um pouco de tudo na área de formação profissional, a partir do ensino médio.

Esses sistemas de formação profissional são consolidados, robustos e têm inúmeras vantagens. Uma delas é fornecer recursos humanos habilitados para o mercado de trabalho e formados em instituições cujo ethos os prepara para tal. Uma outra é a flexibilidade para o aluno que deseja seguir curso superior – o que varia são as exigências e o tempo para o seu cumprimento. Esses países estão atentos às mudanças no conteúdo, na forma e às novas exigências do mercado de trabalho.

Na maioria dos países industrializados, o médio acadêmico com foco no ensino superior também se caracteriza pela diferenciação. Nos países de influência francesa há mais rigidez; nos países de influência anglo-saxã, maior flexibilidade. Mas em todos vigora grau razoável de opções para os jovens, tanto em relação às disciplinas quanto ao nível de profundidade, o que forma verdadeiramente as elites acadêmicas.

Voltemos às nossas mazelas. Com o Enem, padronizamos o ensino médio e o pouco do ensino profissional existente ficou subordinado ao processo. E, como o Enem é voltado para a seleção para as universidades, o ensino médio ficou vinculado ao superior.

A reforma aprovada em 2018 tinha como objetivo mudar essa realidade, mas não saiu do papel porque é inviável em razão de dois grandes entraves. O primeiro é ideológico: prevaleceu a ideia de que o ensino médio deve continuar atrelado ao superior, isto é, todos os alunos precisam seguir um mesmo currículo, cujos conteúdos são aferidos pelo Enem, que, por sua vez, é a chave de acesso à etapa superior.

O segundo entrave é pedagógico: criaram-se “itinerários formativos” dissociados do que faz sentido tanto do ponto de vista do médio acadêmico quanto do profissional. Isso requer contorcionismo gigantesco de quem entende de ensino profissional – o que é desnecessário, bastaria usar uma nomenclatura aderente às disciplinas e ocupações. Na reforma, o profissional não foi concebido como preparação para o trabalho, e sim como conjunto de “disciplinas” a serem ministradas no contraturno.

Não vigora no Brasil a ideia de que a formação profissional requer ethos, cultura de formação. E nessa formação há espaço para o ensino de disciplinas básicas, mas de forma diferente do que se faz num curso acadêmico. Este desafio se torna ainda maior numa conjuntura de profundas mudanças tecnológicas e no mercado de trabalho.

Para dar certo, a reforma do médio dependeria, no nível federal, da diversificação do Enem, o que não ocorreu. E, no nível dos Estados, da consolidação das escolas acadêmicas e técnicas localizadas e estruturadas de forma a atingir economias de escala que permitam a oferta de opções reais para o aluno em suas áreas de especialização.

Para muitos, a reforma é boa e os problemas estão apenas na implementação. O fato de que nenhum Estado conseguiu implementar algo viável depois de cinco anos é apenas detalhe ou incompetência de 27 governantes?

Há modelos externos de sucesso que apontam caminhos. Internamente, temos a excepcional experiência de formação profissional do Sistema S, bastando que assuma a responsabilidade de expandir o que faz bem feito. O presidente da República sugere que a nova lei do ensino médio pode ser aprimorada com participação de alunos e professores. Desse mato não sai coelho. •

João B. Araújo e Oliveira, o autor deste artigo, é Presidente do Instituto Alfa e Beto. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.04.23

quinta-feira, 6 de abril de 2023

O totalitarismo escópico

No totalitarismo dos nossos dias, o medo dominante é o medo da invisibilidade. É por aí que o poder dos algoritmos aterroriza todo mundo

O mundo digital jogou a humanidade num novo tipo de totalitarismo. Não há outra palavra para definir a relação entre a massa de bilhões de seres humanos e os conglomerados monopolistas globais, como Amazon, Apple, Meta (dona do Facebook e do WhatsApp) e Alphabet (dona do Google e do YouTube), sem falar nas chinesas. As pessoas não sabem nada, absolutamente nada, sobre o funcionamento dos algoritmos que controlam milimetricamente o fluxo das informações e das diversões pelas redes afora. Na outra ponta, os algoritmos sabem tudo sobre o psiquismo de qualquer um que acesse um computador, um celular, um tablet ou um simples reloginho de pulso, destes que monitoram exercícios físicos, batimentos cardíacos, pressão arterial, passos e braçadas. Estamos na sociedade do controle total – controle totalitário.

O mais espantoso é que esse controle só se viabiliza graças à docilidade contente das multidões. Em frêmitos de excitação exibicionista, elas escancaram suas próprias intimidades para as máquinas. Em seguida, não satisfeitas com o furor do exibicionismo, entregam-se ao voyeurismo cavernoso para bisbilhotar a vida alheia. Olhando e sendo olhadas, trabalham feericamente a serviço do imenso extrativismo de dados pessoais, que, depois de capturados, são comercializados a preços estratosféricos.

Você não acredita? Pois deveria acreditar. De onde você acha que vem o valor de mercado dos conglomerados? Resposta: vem da captura (gratuita) e da venda dos dados pessoais das multidões. O mundo digital conseguiu a proeza de instaurar uma ordem de vigilância total, em que todos vigiam todos e ainda por cima se deliciam com isso. E quem sai ganhando no fim das contas? Sim, eles mesmos, os conglomerados – ele mesmo, o capital.

Chega de ilusões otimistas. Um pacto de convivência em que os algoritmos enxergam tudo e mais um pouco das privacidades individuais, enquanto os indivíduos nada enxergam dos algoritmos, que são o centro do poder digital, só pode ser chamado de pacto totalitário.

Hannah Arendt ensina que a adesão de todos é uma das marcas distintivas do totalitarismo. Ela viu que, no nazismo e no stalinismo, cada cidadão se apressava em agir como um funcionário da polícia política e delatava até mesmo os familiares. Hitler e Stalin contavam com os préstimos voluntários das pessoas comuns para dizimar dissidentes. “A colaboração da população na denúncia de opositores políticos e no serviço voluntário como informantes”, escreve a filósofa em Origens do totalitarismo, “é tão bem organizada que o trabalho de especialistas é quase supérfluo”.

No totalitarismo descrito pela grande pensadora, o medo impele toda gente a obedecer. Hoje sabemos que o medo não age sozinho. Além dele, existe a paixão: as massas nutrem um desejo libidinal pela figura do líder. “Sede de submissão”, nas palavras de Freud. Há um prazer inconfessável na servidão.

No totalitarismo dos nossos dias, o medo dominante é o medo da invisibilidade. É por aí que o poder dos algoritmos aterroriza todo mundo. Quanto ao desejo, este se manifesta como um arrebatamento imperioso que leva um adolescente a matar e morrer em troca de um instante de holofote sobre o seu nome e sua fotografia. A tara extremada por algum contato, mesmo que remoto, com as estrelas que reluzem nos palcos virtuais leva à sujeição total.

Que o trabalho escravo aflore neste universo de gozo e pânico não surpreende. As pessoas, carinhosa e cinicamente chamadas de “usuárias”, trabalham de graça para as redes. Dedicam horas e mais horas de seus dias plúmbeos para abarrotar as plataformas com seus textos, suas imagens, suas musiquinhas prediletas, seus áudios e suas misérias afetivas. E é precisamente o produto desse trabalho – escravo – que atrai bilhões de outros “usuários”. Os conglomerados não precisam contratar fotógrafos, cantores, atrizes, redatores, jornalistas, nada disso, pois já contam com seus adeptos fanatizados e escravizados. Nunca, em toda a história do capitalismo, a exploração do trabalho – e dos sentimentos – chegou a níveis tão absurdos.

Não surpreende, também, que a propaganda da extrema direita antidemocrática se saia tão bem nesse ambiente. O totalitarismo das redes repele o discurso da democracia com a mesma força que impulsiona mensagens autocráticas. É óbvio. A política democrática precisa de homens e mulheres livres, que tenham autonomia crítica e valorizem os direitos. Esses estão em baixa. A autocracia é o contrário: só se alastra entre grupos violentos, inebriados pelo ódio e impelidos por crenças irracionais, que estão em alta.

Como o totalitarismo dos nossos dias se tece pela exploração e pelo direcionamento do olhar, deve ser chamado de “totalitarismo escópico”. O olhar é o cimento que cola o desejo de cada um e cada uma à ordem avassaladora. Se queremos uma regulação para enfrentá-la, devemos começar por exigir transparência incondicional dos algoritmos. É inaceitável que uma caixa preta opaca e impenetrável presida a comunicação social na esfera pública. Mais que inaceitável, é totalitário.

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista e Professor da Escola de Comunicações de Artes da Universidade de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.04.23

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Pela 1ª vez em 34 anos, Bolsonaro terá que responder por seus atos

PF ouvirá ex-presidente sobre escândalo das jóias; desde 1989 ele tinha a proteção de um mandato

Ex-presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores de uma janela na sede do PL em BrasíliaEx-presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores de uma janela na sede do PL em Brasília Evaristo Sá/AFP

Durante quatro anos, Jair Bolsonaro mentiu sobre a urna eletrônica e sugeriu que seria vítima de um complô. Enquanto isso, seus aliados usavam a máquina do governo para tentar roubar a reeleição.

A conspiração contra a democracia chegou ao ápice em 30 de outubro de 2022. Era o dia do segundo turno, e a Polícia Rodoviária Federal montou barreiras ilegais para dificultar a circulação de eleitores.

Os bloqueios tinham um alvo: as regiões onde Lula havia recebido mais votos no primeiro turno. Novos indícios complicaram a situação de Anderson Torres, mas nem o patriota mais delirante acreditaria que ele agiu por iniciativa própria.

O ex-ministro da Justiça era um bolsonarista obediente. Estava ao lado do chefe quando ele convocou embaixadores ao Palácio da Alvorada para atacar o sistema eleitoral. Depois da eleição, cruzou os braços quando a extrema direita queimou ônibus e tentou depredar o edifício da Polícia Federal.

Lula subiu a rampa, e Torres reapareceu na cena de outro crime: os atos golpistas de 8 de janeiro. Desta vez, como chefe da polícia que permitiu a invasão das sedes dos Três Poderes.

O delegado está preso há quase três meses, e seu novo advogado diz que ele só comentará as suspeitas nos autos. Seu silêncio ajuda o capitão, mas não significa que ele será o único a pagar pela trama contra a democracia.

Hoje Bolsonaro prestará o primeiro depoimento à polícia desde a derrota nas urnas. Será ouvido sobre outro escândalo, o das joias sauditas, e deve sair indiciado por peculato. Se os investigadores não acreditarem em sua versão sobre os “presentes” de R$ 18 milhões, também poderá ser enquadrado por corrupção passiva.

Em mais de três décadas na política, o capitão sempre agiu como se nunca tivesse que responder por seus atos. Parecia se julgar inimputável. Agora ele experimenta uma situação inédita. Pela primeira vez desde 1989, não tem mandato nem foro privilegiado para protegê-lo. Demorou, mas a conta começou a chegar.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 05.04.23

Pesquisa mostra Lula e PT ‘sub judice’

De olho nas eleições de 2024, cúpula petista cobra do governo programa para classe média

Uma pesquisa qualitativa encomendada pela cúpula do PT acendeu o sinal amarelo no Palácio do Planalto, às vésperas de o governo Lula completar cem dias. A sondagem constatou que eleitores de classe média, evangélicos e empreendedores se consideram “esquecidos” pelo partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e por sua terceira gestão. Além disso, mostrou que o PT tem perdido força em cidades do interior e até em capitais, dando lugar a siglas do Centrão, próximas a Jair Bolsonaro.

O resultado jogou luz sobre recentes levantamentos feitos pelo Planalto e serviu para guiar a propaganda do PT, que está no ar. O maior interesse da pesquisa, produzida para captar sentimentos e hábitos de eleitores, recaiu sobre o público “nem Lula nem Bolsonaro”, com potencial de ser conquistado. A conclusão foi a de que não há divergências inconciliáveis nesse grupo, mas Lula e o PT estão “sub judice”.

Os escândalos de corrupção pesam até hoje sobre a imagem do partido, embora em menor grau. O problema para o governo é que eleitores “não polarizados”, com perfil “em disputa”, avaliam que o PT se “burocratizou”, tem “discurso dissociado da prática” e não oferece propostas para o novo mundo do trabalho. Há também desconfiança na capacidade do presidente de fazer entregas e críticas ao “vale-tudo” da aliança com o Centrão.

“Esse setor que não votou em nós e continua refratário representa 40% do eleitorado”, disse o deputado Jilmar Tatto (SP), secretário de Comunicação do PT. “Que política o governo vai ter para contemplar essas pessoas? Vamos abrir diálogo com a equipe econômica porque precisamos nos preparar para as eleições de 2024 e 2026.”

Embora Lula tenha enquadrado a direção do PT para segurar o bombardeio na direção da âncora fiscal apresentada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, será difícil conter as pressões por gastos em 2024, ano de disputas municipais.

De 2012 para cá, o partido perdeu 71% de suas prefeituras. Agora, uma ala se rebela contra a diretriz de não lançar candidatos próprios em São Paulo, Rio e Minas. Para piorar, a pesquisa apontou mais um obstáculo: abaixo de Lula há um vale de desconhecidos no PT.

O diagnóstico foi feito em grupos de discussão formados por homens e mulheres de 25 a 45 anos, de todas as regiões do País, e com renda per capita de R$ 539,99 a R$ 4.601,88, em meados de fevereiro. Os grupos continham três perfis: no primeiro estavam os que se identificam com Lula e com o PT; no segundo, os “não polarizados” ou neutros; e, no terceiro, os antipetistas. Apesar das diferenças ideológicas, o desencanto com a política bateu à porta de todos. Foi amplo, geral e irrestrito. •

Vera Rosa, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.04.23

O empenho de Lula para derrubar a Lei das Estatais

Talvez a principal razão para derrubar o avanço institucional conquistado pelo País seja vencer a narrativa


A indignação do presidente Lula da Silva com a Lei das Estatais vem do período de transição. No início de dezembro, quando tentava emplacar Aloizio Mercadante no BNDES, Lula esbravejou numa reunião: “Que lei é essa que não me deixa nomear ninguém?”.

A Lei das Estatais foi promulgada em junho de 2016 no governo Michel Temer no embalo da corrupção revelada pela Lava Jato. É uma lei preventiva, que define critérios de competência para ocupar cargos de comando nas estatais.

Também veda a participação de políticos e funcionários de governo na cúpula dessas empresas e estabelece quarentena de três anos para dirigentes partidários e sindicais e para quem participou de campanhas eleitorais.

Pouco tempo depois da reclamação de Lula, a Câmara aprovou a redução da quarentena para 30 dias numa votação relâmpago às 23 horas da terça-feira de 13 de dezembro. A manobra revoltou a opinião pública e o assunto empacou no Senado.

Lula recuou, mas não desistiu. Partidos da base aliada entraram no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a inconstitucionalidade da lei sob a tese da “criminalização da política”, que foi abraçada por ministros, advogados e comentaristas alinhados ao governo.

O argumento – defendido pelo próprio presidente em manifestação ao Supremo redigida pela Advocacia-Geral da União (AGU) – é que a quarentena é discriminatória porque pressupõe que “a atividade político-partidária seja inerentemente um fator instigador para a improbidade administrativa”.

Trata-se de um raciocínio falacioso. Quarentena é medida preventiva e existe em diferentes atividades sem configurar discriminação. É mitigação de risco, já que prevenir costuma ser mais eficiente que punir. No caso das estatais, foi adotada com base na experiência de casos de corrupção.

O ministro do STF Ricardo Lewandowski, porém, concedeu uma liminar pouco antes de se aposentar e liberou as nomeações. Nos bastidores do Supremo, comenta-se que ele agiu sem consultar ninguém, impondo pesado ônus político ao tribunal.

Na última sexta-feira, a liminar corria o risco de cair quando o ministro Dias Toffoli pediu vistas. Lula já tinha voltado à cena em encontro com Rodrigo Pacheco no Planalto na mesma semana, pressionando-o a colocar o assunto em votação, conforme revelou este jornal.

Por que Lula se empenha tanto em derrubar um avanço institucional conquistado pelo País? A resposta é simples: são quase 600 cargos em jogo. Mas talvez a principal razão seja vencer a narrativa. Derrubar a Lei das Estatais é fundamental para emplacar a ideia de que a Lava Jato e a corrupção revelada por ela não passaram de uma armação. •

Raquel Landim, a autora deste artigo, é  Jornalista e analista da CNN Brasil. Publicadooriginalmente n'O Estado de S. Paulo, 04.04.23

O que é o 'dilema do prisioneiro', que inspira estratégia da PF em depoimentos sobre joias de Bolsonaro Presidente Ja

Nesta quarta-feira (05/04), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), seu ex-ajudante-de-ordens, tenente-coronel do Exército Mauro Cid, e outras oito pessoas irão prestar depoimento no inquérito aberto pela Polícia Federal para apurar as circunstâncias envolvendo a entrada no Brasil de conjuntos de joias - entre eles, um avaliado em R$ 16,5 milhões - dados à família Bolsonaro em 2021 pelo governo da Arábia Saudita.

O ex-presidente Jair Bolsonaro vai prestar depoimento à Polícia Federal no caso que investiga a entrada de joias dadas pela Arábia Saudita à sua família (Reuters)

Todos os depoimentos estão marcados não apenas para o mesmo dia, mas para a mesma hora: 14h30.

A escolha da data e horário, segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil, não foi aleatória.

A ideia por trás desse agendamento avaliado por advogados ouvidos pela reportagem como "inusual" seria pôr em prática os mecanismos de um experimento estudado por matemáticos, economistas, psicólogos e cientistas sociais há quase 70 anos

O experimento ficou mundialmente conhecido como "dilema do prisioneiro". Mas o que um mecanismo teria a ver com o depoimento de Jair Bolsonaro e as joias dadas pela Arábia Saudita num contexto em que ninguém, até o momento, está está na condição de "prisioneiro"?

Em primeiro lugar, é importante rememorar o que levou Bolsonaro a prestar depoimento à PF.

Em março, reportagens do jornal O Estado de S. Paulo revelaram que a Receita Federal reteve, em 2021, um estojo com joias dado pelo governo da Arábia Saudita à família Bolsonaro.

Entre os itens estava um colar de diamantes destinado à então primeira-dama Michelle Bolsonaro. Pela legislação brasileira, bens acima de US$ 1 mil que entrem no Brasil precisam ser declarados à Receita. Caso não o sejam, seus donos precisam pagar os impostos devidos e uma multa.

No caso de presentes oficiais destinados ao acervo público da Presidência da República, a legislação prevê a isenção de impostos.

O pacote estava na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, que havia voltado de uma viagem oficial à Arábia Saudita. O assessor não declarou os bens ao chegar ao Brasil.

Reportagens também mostraram que, a três dias do fim do mandato de Bolsonaro, seu então ajudante-de-ordens, Mauro Cid, assinou um ofício endereçado ao então secretário especial da Receita Federal Julio Soares solicitando a liberação das joias.

Um emissário da Presidência foi enviado à Receita Federal em Guarulhos munido do ofício e solicitou a devolução das joias. Os fiscais, no entanto, alegaram que o ofício não era o documento adequado para a liberação e manteve o pacote retido.

Apesar disso, o atual ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou a abertura de um inquérito para apurar o caso.

Em entrevista, ele citou a suspeita de pelo menos três crimes: peculato (quando servidor se apropria de um bem público), descaminho (quando bens são desviados para não serem tributados) e lavagem de dinheiro (quando a origem de recurso é dissimulada para ter aparência de legalidade).

Desde então, Bolsonaro tem negado qualquer irregularidade em relação ao caso e dito que só soube da existência do pacote confiscado pela Receita a partir das reportagens publicadas pela imprensa.

"Um ministro nosso foi na região da Arábia Saudita e ganhou dois presentes. Um pra mim e pra primeira-dama. O (que era) pra mim, tomei conhecimento no final do ano passado que tinha chegado. O da primeira-dama ficou na Alfândega. Ela e eu tomamos conhecimento pela imprensa", disse Bolsonaro em entrevista à CNN Brasil, no dia 29 de março.

É nesse contexto que os depoimentos de Bolsonaro, Mauro Cid e outras oito pessoas foram agendados.

Bolsonaro e o rei Salman Bin Abdulaziz na visita do brasileiro à Arábia Saudita em 2019.; após visita, governo saudita presenteou o então presidente com um estojo com joias que ficou com Bolsonaro (José Dias / PR)

Como é o dilema do prisioneiro?

O mecanismo que ficou conhecido como "dilema do prisioneiro" faz parte de uma linha de estudos mais ampla chamada Teoria dos Jogos. Ela se dedica a analisar como indivíduos ou corporações envolvidos em uma determinada situação buscam melhorar os seus resultados.

O filme Uma Mente Brilhante, estrelado pelo ator Russell Crowe, mostra a vida de um dos grandes estudiosos da Teoria dos Jogos, o matemático John Forbes Nash, que em 1994 foi um dos vencedores do Prêmio Nobel de Economia.

A partir da segunda metade do século 20, a Teoria dos Jogos se transformou em um dos principais arcabouços teóricos de um campo das Ciências Econômicas que ficou conhecido como economia comportamental.

E foi justamente nos início dos anos 1950 que o "dilema do prisioneiro" começou a ser estudado pelos cientistas Melvin Dresher e Merrill Flood e ficou famoso após ser formulado pelo matemático americano Albert William Tucker. Os três buscavam entender os mecanismos que faziam indivíduos cooperarem entre si.

Uma das formulações mais conhecidas do dilema é a seguinte: a polícia prendeu duas pessoas, "Row" e "Col", suspeitas de um crime grave. Elas são postas em celas diferentes e ficam sem comunicação uma com a outra.

O promotor do caso chega um dos presos e oferece o seguinte acordo:

se os dois confessam o crime, eles são condenados a 10 anos de prisão;

se o primeiro confessa e o segundo nega, o primeiro é condenado a um ano de prisão, mas o que negou será condenado a 20 anos;

se os dois negam o crime, ambos são condenados a dois anos de prisão.

Os estudiosos apontam que, pela forma como as regras do jogo são colocadas, os incentivos são para que tanto um quanto o outro neguem as acusações, conseguindo assim, penas mais brandas.

No entanto, o fato de eles não saberem exatamente o que cada um vai dizer, aumenta as chances de eles não cooperarem entre si e acabarem condenados a penas mais severas.

"A lição geral é que sempre que dois ou mais jogadores interagem e suas preferências têm uma estrutura muito comum e razoável, as ações que mais beneficiam cada indivíduo não beneficiam o grupo. Isso torna o dilema do prisioneiro relevante para uma ampla gama de fenômenos sociais", escreveu o professor de Filosofia na Texas A&M University, dos Estados Unidos, no livro The Prisoner's Dilemma (Classic Philosophical Arguments) ("O Dilema do Prisioneiro - Debates Filosóficos Clássicos", em tradução livre), publicado em 2015.

Na esfera criminal, o dilema do prisioneiro e a teoria dos jogos são frequentemente usados para explicar os mecanismos que levam pessoas a delatar crimes a partir de incentivos previamente estabelecidos.

No Brasil, por exemplo, a lógica vem sendo aplicada em acordos de leniência entre o governo federal e empresas que cometem crimes contra a ordem econômica ou a administração pública.

Em casos de carteis, por exemplo, a ideia é que a primeira empresa que confessar a prática leva os melhores benefícios. A premissa é de que oferecendo esse tipo de estímulo, haveria menos incentivos às empresas em manter o cartel.

O dilema do prisioneiro também vem sendo abordado em artigos científicos para ilustrar os mecanismos que levaram a delações premiadas durante a Operação Lava Jato.

No caso envolvendo as joias dadas a Bolsonaro, os investigadores buscam entender, por exemplo, se Bolsonaro tinha ou não conhecimento de que as joias haviam sido apreendidas pela Receita e se foi ele quem ordenou Mauro Cid a tentar reaver o material.

Como Mauro Cid era ajudante-de-ordens de Bolsonaro, um dos seus assessores mais próximos, a expectativa é sobre o que os dois irão responder quando forem questionados sobre isso.

Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Badaró, a tomada de depoimentos simultâneos no caso envolvendo Bolsonaro lembra a estratégia do dilema do prisioneiro.

"Lembra o dilema (do prisioneiro) porque ele dificulta uma eventual combinação de versões entre os depoentes. Eles não têm como saber com antecedência exatamente o que é que a outra pessoa vai dizer. Isso cria um ambiente de incerteza para quem está dando o depoimento", afirmou Badaró à BBC News Brasil.

Badaró diz ainda que, apesar de criar um ambiente de suspeição sobre o que as outras pessoas irão dizer, os depoimentos simultâneos não são uma garantia de que versões não possam vir a ser combinadas ou mesmo que os depoentes não possam receber alguma orientação.

"Se os trâmites forem respeitados, os depoentes deverão estar acompanhados dos seus advogados e eles podem auxiliar seus clientes no momento das perguntas. A estratégia pode demonstrar alguma astúcia das autoridades policiais, mas não é infalível", disse Badaró.

Para o também professor de Direito da USP Pierpaolo Bottini, a tomada dos depoimentos de forma simultânea não representa uma prática abusiva da Polícia Federal.

"Eu não vejo nenhum tipo de abuso de marcar os depoimentos ao mesmo tempo, desde que todas as pessoas tenham seus direito a advogados, acesso aos autos e direito ao silêncio", disse Bottini.

O advogado de defesa de Mauro Cid, Rodrigo Roca, disse à reportagem da BBC News Brasil que a medida adotada pela PF é "inusual", mas que não vê nenhuma ilegalidade na convocação dos depoimentos ao mesmo tempo. Apesar disso, ele criticou a estratégia.

"Essa estratégia só faz sentido numa ficção policialesca. Se a intenção fosse evitar (combinação de versões), seria uma tolice. Os interrogatórios são cercados de garantias processuais que impediram esse joguinho. Todos os interrogados podem se recusar a responder uma pergunta a qualquer momento", disse Roca.

"Apesar de ser inusual, parece que é uma forma de otimização do serviço. Pode ser usado pro bem ou pro mal. Estão querendo correr com alguma finalidade espúria ou há tanto serviço que resolveram otimizar os autos das oitivas pra caberem no prazo?", indagou o advogado.

Procurada pela BBC News Brasil, a Polícia Federal disse, em nota, que não pode fornecer dados sobre as investigações.

"A Polícia Federal não fornece informações sobre possíveis oitivas a serem realizadas em seus inquéritos policiais", disse a PF.

A BBC News Brasil não conseguiu localizar a defesa de Bolsonaro neste processo.

Leandro Prazeres, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 05.04.23. / - Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nz589515xo

terça-feira, 4 de abril de 2023

Donald Trump, acusado de 34 crimes por silenciar seu relacionamento com a atriz pornô Stormy Daniels com dinheiro

O juiz da Suprema Corte de Nova York acusa um ex-presidente dos EUA pela primeira vez depois que o republicano, que foi libertado sob acusações, se entregou voluntariamente ao Ministério Público

O ex-presidente Donald Trump aguarda com seus advogados a leitura das acusações, nesta terça-feira em Nova York. (Foto: Andrew Kelly (AP/La Presse)

Seus advogados esperavam uma entrega "sem dor e com classe", um processo o mais discreto possível, mas a expectativa gerada pelo comparecimento nesta terça-feira de Donald Trump perante a Promotoria em Manhattan (Nova York) fez jus à dimensão histórica de o momento. O primeiro presidente dos Estados Unidos, ativo ou aposentado, que se sentará no banco dos réusfoi indiciado nesta terça-feira por 34 acusações de falsidade derivadas de três pagamentos para ocultar escândalos (um deles um caso extraconjugal com a atriz pornô Stormy Daniels) na campanha presidencial de 2016. A revelação das acusações abre um novo e incerto capítulo na carreira de Trump, candidato republicano à Casa Branca mais bem colocado em 2024 nas pesquisas, em seu partido e, por extensão, na política da primeira potência mundial.

O magnata chegou ao tribunal por volta das 13h30 locais (19h30 no continente espanhol), um pouco antes do esperado, enquanto slogans a favor e contra ainda eram trocados na rua entre empurrões e insultos. O denso cordão policial tornou a entrada de Trump na 100 Centre Street, em Lower Manhattan, praticamente imperceptível para os espectadores, enquanto as insistentes hélices dos helicópteros forneciam a trilha sonora do momento.

O ex-presidente Trump, com uma expressão entre atordoado e desafiador, testemunhou como os funcionários fizeram o arquivo da polícia sobre ele, mas evitou a imagem indigna do homem algemado. A continuación, pasó a la sala donde el juez Juan Merchan, del Tribunal Supremo del Estado de Nueva York, procedió a la lectura de los cargos, de los que se declaró “no culpable”, la fórmula equivalente a inocente usada en el sistema procesal estadunidense. Um procedimento rápido para satisfazer uma expectativa sem precedentes. Acusado, ou seja, aguardando julgamento, o magnata, que foi liberado com as acusações, dirigiu-se ao aeroporto para retornar à sua mansão em Mar-a-Lago, na Flórida. A partir daí prevê-se que fale aos seus seguidores pelas 20h15 (14h15 em Espanha continental), horário nobre.

Donald Trump, ladeado por seus advogados e escoltado por oficiais de justiça, entrou no tribunal onde as acusações contra ele foram apresentadas. (Curtis Means - AP)

De acordo com a declaração do promotor de Manhattan, Alvin Bragg, a acusação se deve à "falsificação de registros contábeis de Nova York para ocultar informações prejudiciais e atividades ilegais dos eleitores americanos antes e depois das eleições de 2016". Durante a campanha, acrescenta o promotor, "Trump e outros usaram um esquema para identificar, comprar e enterrar informações negativas sobre ele [seus casos extraconjugais com Daniels e com uma ex-modelo da Playboy] e aumentar suas perspectivas eleitorais. Ele então fez um grande esforço para ocultar essa conduta, causando dezenas de entradas falsas de registros comerciais para ocultar atividades criminosas, incluindo tentativas de violar as leis eleitorais estaduais e federais”. Esta é uma das chaves que sustentarão a acusação, porque, segundo Bragg, “não podemos normalizar condutas criminosas graves, independentemente de quem as comete”. A próxima audiência foi marcada para 4 de dezembro, segundo a CNN.

Além da justiça real, processual, também houve muita justiça poética na aparência de Trump, por ter tido que se humilhar, ou seja, quebrar seu orgulho e arrogância —é a definição do RAE—, perante o promotor público Bragg, um afro-americano, e o juiz da Suprema Corte Merchan, um hispânico, um desses seres que o republicano demonizou chamando-os de bad men , como definiu os imigrantes em 2016. Um promotor negro e um juiz latino como o inimigo daquele que encarnou o poder e o sucesso com letra maiúscula, e que a partir de hoje tem assento reservado no banco dos réus.

Nomeação presidencial

A acusação não impedirá Trump de concorrer à indicação presidencial nas primárias republicanas. Pelo contrário, a curto prazo parece estar impulsionando-o como um foguete. Uma declaração de seu escritório de campanha de 2024 disse que ele levantou mais de US $ 4 milhões nas primeiras 24 horas após a decisão do grande júri de Nova York na quinta-feira de indiciá-lo ; e mais três milhões desde então. Dos quatro milhões iniciais, 25% vêm de novos doadores, o que demonstra a caixa de ressonância —assim como o registro— do processo. Seu revés eleitoral, como o candidato mais bem colocado nas pesquisas — na última ele estava 30 pontos à frente do candidato não oficial Ron DeSantis, governador da Flórida -, é, no entanto, uma incógnita, já que muitos analistas acreditam que a vitimização do momento diminuirá à medida que o processo avança.

Apesar da humilhação pública de ser responsabilizado, o que é uma novidade para ele, Trump não vai facilitar as coisas para a justiça . Horas antes de sua aparição, ele solicitou em sua rede social, Truth Social, que o julgamento fosse transferido para Staten Island, por considerá-lo um "lugar muito justo e seguro" e, diga-se de passagem, muito mais politicamente relacionado aos republicanos do que ao Reduto democrático de Manhattan. O ex-presidente também chamou o juiz da Suprema Corte de Nova York de "odiador conhecido de Trump".

Donald Trump momentos antes de testemunhar perante o tribunal criminal de Manhattan, esta terça-feira. (Maria Altaffer - AP)

Merchan, de origem colombiana, julgou no ano passado um dos principais colaboradores de Trump, Allen H. Weisselberg, que durante décadas foi diretor financeiro da Trump Organization, e que em janeiro foi condenado a cinco meses de prisãoe cinco anos de liberdade condicional por fraude fiscal. Trump ressuscitou hoje essa afronta em sua rede social, com sintaxe duvidosa, para sustentar sua figura de vítima do sistema. “Foi uma bagunça injusta em um caso anterior relacionado a Trump. [Merchan] recusou-se a recusar, deu instruções horríveis ao júri e foi impossível lidar com ele durante o julgamento da caça às bruxas", escreveu ela. Perseguição política e caça às bruxas por parte dos democratas —é o procurador Bragg— são os dois conceitos com os quais o republicano renega a causa, assim como a suposta instrumentalização da justiça como arma de arremesso, isto é, política. Trump acrescentou no Truth Social que a filha do juiz já trabalhou na campanha da atual vice-presidente, Kamala Harris.

Além de não ter sido autorizado, o comício convocado pela deputada Marjorie Taylor Greene (MTG, sigla pela qual é conhecida), uma das figuras republicanas mais radicais , diluiu-se entre o paroxismo de câmeras, policiais e curiosos que tomaram a iniciativa praça localizada em frente ao prédio. Impossível ver qualquer coisa, nem mesmo George Santos, o congressista republicano de Nova York que está no pelourinho por ter inventado boa parte de sua biografia e currículo . Santos, que como MTG se situa na ala mais radical do partido , chega a ser criticado por muitos correligionários, para os quais a sua presença, longe de assumir um apoio sólido, marcava os poucos activos dos concentrados, apenas uma centena.

Na véspera, o prefeito de Nova York, o democrata Eric Adams, havia pedido moderação e boas maneiras durante um briefing sobre as medidas extraordinárias de segurança adotadas. "Enquanto estiver na cidade, comporte-se da melhor maneira possível", disse Adams a MTG e seus fãs na segunda-feira. Apoiadores e críticos de Trump se manifestaram em áreas separadas marcadas pela polícia para evitar incidentes, mas ao mesmo tempo como um lembrete vívido da polarizada sociedade americana. Embora o establishment republicano tenha cerrado fileiras em torno de Trump , as demonstrações de apoio mais extremas, como a do MTG, apenas ajudaram a alimentar o circo da mídia.

Dentro do prédio, ao lado da movimentada Chinatown, o juiz Merchan não se deixou levar pela expectativa. La víspera, autorizó la presencia de cinco fotógrafos en la sala, a la vez que prohibía cualquier dispositivo electrónico, incluidos los móviles de los periodistas que hicieron fila durante toda la noche para acceder a la misma, alegando que la transparencia no puede tener prioridad sobre o procedimento. “A aparição de Trump gerou interesse público e atenção da mídia sem precedentes. A população está justamente faminto pelas informações mais precisas e atualizadas disponíveis", explicou Merchan em comunicado. "Mas, infelizmente, embora genuíno e indubitavelmente importante, os interesses da mídia devem ser pesados ​​contra os concorrentes" no processo.

Maria Antonia Sanchez-Vallejo, de New York (USA) para o EL PAÍS, em 04.04.23

Clientelismo escancarado

‘Emendas Pix’ degradam políticas públicas, distorcem a democracia e facilitam corrupção


Enquanto o Planalto tenta driblar a Suprema Corte reciclando o “orçamento secreto” – a distribuição de recursos públicos a parlamentares aliados sem critérios técnicos nem transparência –, o próprio Congresso tenta driblar o Planalto inflando as chamadas “emendas Pix” – a distribuição de recursos pelos parlamentares a seus feudos eleitorais sem critérios técnicos nem transparência.

Com as emendas Pix – ou “cheque em branco” – os prefeitos recebem repasses federais sem qualquer compromisso e dispõem deles como bem entenderem. Desde que essas emendas foram criadas, em 2019, o seu volume saltou de menos de R$ 600 milhões para R$ 6,7 bilhões em 2023, podendo chegar a R$ 10 bilhões.

Os apologistas alegam que ampliar a discricionariedade orçamentária do Legislativo fortalece sua colaboração com o Executivo; que a prática é comum no mundo; e que ela serve diretamente às populações dos Estados e municípios. Mas essas meias-verdades são incapazes de disfarçar as mentiras inteiras e seus reais propósitos.

Em princípio, nada há de errado em aumentar a participação do Congresso – que, afinal, é a “Casa do Povo” – na definição do Orçamento, tanto que a Constituição previu as emendas. O problema é quando esse ganho de poder não é acompanhado das devidas responsabilidades.

Já no governo Dilma Rousseff e, depois, no de Jair Bolsonaro, as emendas cresceram exponencialmente para garantir a sobrevivência dos incumbentes no cargo. Dos 7% de gastos discricionários da União, quase 25% estão nas mãos dos congressistas. Isso não tem paralelo no mundo. Na maioria dos países da OCDE, as alterações do Legislativo no Orçamento não chegam a 0,01%. Nos EUA, que têm uma das maiores taxas de intervenção, não chega a 2,4%.

Mais aberrante que a quantidade da ingerência legislativa é sua qualidade. Ao contrário das emendas individuais ou de bancada, as de relator (o orçamento secreto) e as Pix são distribuídas sem transparência, critérios técnicos, equidade ou fiscalização.

Em flagrante atentado aos princípios da impessoalidade, da publicidade e da eficiência, o resultado não poderia ser outro. Os recursos são pulverizados sem planejamento, degradando a qualidade das políticas públicas. Como são drenados dos orçamentos ministeriais, aumenta-se a pressão fiscal para recompô-los. Como são canalizados aos currais eleitorais dos congressistas, distorce-se a competição democrática. Como são gerenciados sem transparência, amplia-se a margem para corrupção.

Os parlamentares alegam que as transferências diretas são uma demanda popular entre os prefeitos. Se são, não deveriam. A maioria dos municípios e suas populações perdem. Só quem ganha é a minoria de prefeitos apadrinhados por congressistas movidos por cálculos eleitorais. Na prática, essas emendas não só subvertem seu valor de face (“Mais Brasil, menos Brasília”), mas empoderam o que há de mais venal no Poder Público brasileiro: mais Brasília patrimonialista, clientelista e corporativista, menos Brasil republicano.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo., em 04.04.23  

O mapa do golpe

Anderson Torres: quem tem minuta do golpe, mapa do golpe e agenda do golpe é o quê?

O ex-ministro da Justiça Anderson Torres, preso desde janeiro, é uma prova viva do quanto o governo Jair Bolsonaro mergulhou até o último fio de cabelo na articulação de um golpe contra as eleições e a democracia. Há a torcida, de um lado, e um temor, do outro, de que Torres possa virar delator – de prova viva a bomba viva contra o próprio ex-presidente.

Assim como o tenente-coronel Mauro Cid usava seu cargo de ajudante de ordens de Bolsonaro para mobilizar mundos e fundos para levar as joias das Arábias para o chefe, o delegado de carreira da PF Anderson Torres jogava fora qualquer prurido e toda a sua biografia em favor do golpe.

Foi na sua casa, num envelope com timbre do governo, que seus antigos colegas da PF encontraram a minuta de intervenção no TSE, com destituição sumária de todos os ministros e criação de comissão mista de civis e militares, na linha de 1984, o clássico de George Orwell.

Torres declarou à PF que a prova era “lixo” e que a recebeu da sua secretária, que nega categoricamente. Quem está mentindo? Ou melhor: quem tem interesse em mentir? O fato é que o documento existe e estava na casa do ex-ministro da Justiça, logo da Justiça!

Após o primeiro turno de 2022, a diretora de Inteligência do ministério, delegada Marília Alencar, mapeou as cidades onde Lula teve mais votos. Depois, ela apagou, mas a PF não dorme no ponto e recuperou tudo direitinho. E para que servia o mapa? Para nortear a ação da Polícia Rodoviária Federal contra a chegada de eleitores de Lula às urnas no segundo turno, especialmente no Nordeste.

Cid mandou um sargento da Marinha fazer o trabalho sujo em Guarulhos. Torres dispensou intermediários e foi pessoalmente à Bahia, onde o PT é recordista de votos. Para acertar como impedir o trânsito de petistas? E, antes do fim do governo, ele saiu da Justiça para a Secretaria de Segurança Pública do DF. Que é responsável pelo quê? Pela segurança dos três Poderes, cujas sedes foram invadidas, sem reação, em 8 de janeiro.

Ele assumiu, pôs a sua turma e bateu um papo com o general Gustavo Dutra em 6 de janeiro e viajou para os EUA em 7 de janeiro, quando todos já sabiam do risco de vandalismo. O que fazia o general Dutra? Era chefe do Comando Militar do Planalto, ao qual é vinculado o Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), que não sabia, não viu e não fez nada para proteger o Planalto.

A conclusão é de que Torres tramou contra as eleições e o TSE, transferiu-se para a Segurança do DF para deixar tudo pronto para o golpe e se mandou para os States. Torres, porém, é coadjuvante. O protagonista é Jair Bolsonaro. 

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo,Comentarista do programa "Em Pauta" da GloboNews". Publicado originalmente em 04.04.23.

Relatoria de ação que pode beneficiar empreiteiras gera impasse no STF

Sorteado, Mendonça rejeita pedido de partidos que insistem em levar para Gilmar caso sobre multas bilionárias de leniências; presidente da Corte definirá relator do processo

André Mendonça foi sorteado para julgar suspensão de multas, mas partidos aliados do governo querem Gilmar Mendes. (Foto: Carlos Moura, STF e Nélson Jr, STF - 17.05.22)

Partidos aliados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, PSOL, PCdoB e Solidariedade estimulam uma disputa no Supremo Tribunal Federal (STF) e insistem em definir a relatoria da ação que tenta suspender e renegociar multas bilionárias fechadas em acordos de leniência na Operação Lava Jato. O ministro André Mendonça, sorteado para o caso, disse ter competência para tratar do processo, enquanto as siglas querem Gilmar Mendes.

O tema virou também uma batalha político-partidária, com o Novo ingressando com pedido de amigo da Corte (amicus curiae) e defendendo a rejeição de todos os pleitos das legendas governistas.

Como o Estadão revelou, as três legendas apresentaram uma ação contra os acordos de leniência – espécie de delação premiada de empresas – na quarta-feira passada, sob a alegação de que o Ministério Público Federal (MPF) coagiu executivos e empresários de empreiteiras flagradas em desvios na Petrobras. Nela, já invocaram a relatoria de Gilmar. No mesmo dia, o sistema interno do STF entregou o caso a Mendonça. No dia seguinte, os partidos voltaram a pedir Gilmar à frente do processo.

Diante do impasse, e após afirmar discordar dos argumentos, Mendonça deixou a decisão final para a presidente do Supremo, Rosa Weber.

A ação pede que todas as multas assumidas pelas empresas até agosto de 2020 sejam repactuadas. Cinco leniências firmadas com a União pelo chamado “clube vip” de empreiteiras investigadas e punidas na Lava Jato somam R$ 8 bilhões. No âmbito da Operação Greenfield, que revelou fraudes em fundos de pensão e na Caixa, o Grupo J&F se comprometeu a devolver R$ 10,3 bilhões aos cofres públicos. Os partidos afirmam que as penalidades impostas às empresas afetam toda a sociedade, ao levar a uma “quebra generalizada” e causar desemprego.

Para PSOL, PCdoB e Solidariedade, Gilmar tem prevenção – deve ser o relator por julgar no STF casos que têm alguma conexão com a matéria. Mencionaram que o decano da Corte foi relator de pedidos de empreiteiras contra punições aplicadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) que excediam valores pactuados em acordos de leniência.

Mendonça, no entanto, escreveu, no despacho de ontem, que a “simples pertinência temática ou identidade de matérias, tal como alegado pelas suscitantes (partidos), não é suficiente para afastar a regra geral que norteia a distribuição processual, de forma aleatória e impessoal, de modo randomizado”. Gilmar é um dos ministros mais críticos no Supremo aos métodos da extinta Lava Jato.

POLÍTICA. A ação começou a atrair a atenção da oposição. O Novo pediu à Corte para rejeitar o processo sob o argumento de que os partidos aliados de Lula “estão se valendo de ação de controle concentrado de constitucionalidade para buscar no Supremo Tribunal Federal fazer valer suposto direito em favor de terceiro” – este “terceiro”, para o Novo, são as empresas lenientes. Esse controle concentrado se dá em razão do instrumento usado pelo partidos – ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

“Ora, se as sociedades empresárias pactuantes entendessem que estivessem em alguma vulneração a direito próprio, poderiam, de maneira eficaz, buscar a tutela do Poder

Judiciário por meio de demandas individuais ou, quem sabe, a composição de associação para a defesa coletiva de seus interesses enquanto sociedades investigadas, acusadas ou punidas por atos de corrupção contra a administração pública”, afirma o Novo. O partido pede para participar do processo.

Prerrogativa Decisão sobre competência para julgar o caso é da presidente da Corte, ministra Rosa Weber.

INTERESSE NACIONAL. PSOL, PCdoB e Solidariedade, no entanto, afirmam atuar em benefício de um interesse nacional de retomada do setor de infraestrutura no País. “Assinei porque confio nos partidos que estão propondo a ação, nos argumentos elaborados pelos advogados e porque é preciso rever os acordos que foram firmados sob coerção, em meio à Lava Jato, para garantir a entrada de grupos estrangeiros no Brasil. A iniciativa não tem nada a ver com o governo”, declarou o presidente do PSOL, Juliano Medeiros.

A ministra da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos (PCdoB), afirma que assinou na condição de dirigente partidária. “É uma decisão partidária, que parte da compreensão de que é preciso preservar as empresas nacionais como elementos decisivos para impulsionar a economia do País”, disse.

As empreiteiras que integravam o “clube vip” da Operação Lava Jato (Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez, UTC e Camargo Corrêa) confessaram ter formado um cartel para fraudar contratos da Petrobras e outras estatais, além de pagar propina a agentes públicos e políticos.

Das multas, até hoje, apenas pouco mais de R$ 1 bilhão foi quitado. Como mostrou o Estadão, empreiteiras têm procurado o governo para a renegociação, com a possibilidade de pagar parte dos débitos com obras de infraestrutura. 

Luiz Vassallo, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 04.04.23

O dever de melhorar a Lei do Impeachment

É preciso revisar a Lei 1.079/1950, que dispõe sobre os crimes de responsabilidade e o rito do impeachment. Mas a atual proposta do Senado, excessivamente ampla, demanda ajustes

Em 2021, realizando o trabalho fundamental de revisão da legislação de proteção da democracia, o Congresso revogou a Lei de Segurança Nacional (LSN, Lei 7.170/1983), substituindo-a pela Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021). Foi um passo importante. Mesmo sem ter inconstitucionalidades explícitas, a LSN apresentava uma estrutura voltada à proteção ideológica do Estado, o que, além de não amparar adequadamente o regime democrático, dava margem a interpretações equivocadas e abusivas.

Ficou faltando, no entanto, a revisão da Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950), que, em sete décadas de vigência, teve sua redação alterada apenas em relação aos crimes contra o Orçamento

público em 2000, na época da aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Diante dessa carência, no início de 2022, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, criou uma comissão de juristas para estudar a legislação sobre o impeachment, com o objetivo de propor ao Congresso uma possível atualização.

Agora, com base no anteprojeto elaborado pela comissão, Rodrigo Pacheco apresentou o Projeto de Lei (PL) 1.388/2023, que traz uma proposta de revisão da Lei 1.079/1950. Segundo o presidente do Senado, a atual Lei do Impeachment, pensada para outro contexto social, político e constitucional, é “lacunosa, incompleta e inadequada”, com disposições que se mostraram “anacrônicas e desatualizadas”.

O PL 1.388/2023 tem duas grandes novidades. Em primeiro lugar, ele aumenta o rol de autoridades sujeitas a processos de impeachment, especificando os respectivos crimes de responsabilidade. A Lei 1.079/1950 refere-se apenas ao presidente da República, aos ministros de Estado, aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e ao procurador-geral da República. Na proposta de Pacheco, também podem ser denunciados por crime de responsabilidade os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; os membros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP); o advogadogeral da União; os ministros de tribunais superiores; os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) e dos Tribunais de Conta dos Estados; os juízes, desembargadores e os membros do Ministério Público da União, dos Estados e do Distrito Federal.

Por exemplo, segundo o PL 1.388/2023, constitui crime de responsabilidade do magistrado “exercer atividade político-partidária ou manifestar opiniões dessa natureza”, bem como “revelar fato ou documento sigiloso de que tenha ciência em razão do cargo”. No caso dos comandantes militares, são crimes de responsabilidade, entre outros, “expressar-se por qualquer meio de comunicação a respeito de assuntos político-partidários” e “realizar ou permitir atividades de inteligência com desvio de finalidade”. Para cada uma dessas autoridades, há um respectivo tribunal competente para julgar as denúncias de crimes de responsabilidade.

A segunda grande novidade da proposta de Rodrigo Pacheco é a fixação de prazo de 30 dias úteis de análise para cada pedido apresentado no Congresso. Decorrido o prazo, “será considerado indeferimento tácito, com o consequente arquivamento da denúncia”, ensejando recurso para a Mesa Diretora interposto por, no mínimo, um terço da composição da respectiva Casa legislativa. Com isso, diminui-se o poder do presidente da Câmara, que, na sistemática atual, pode inviabilizar toda e qualquer denúncia simplesmente não avaliando sua admissibilidade.

É necessário revisar a Lei do Impeachment, mas ainda mais necessário é assegurar que a revisão seja bem feita. Mesmo imperfeita, a Lei 1.079/1950 tem funcionado. Uma nova lei muito complexa, com pretensão de regular todos os casos de abuso do poder estatal, pode ser contraproducente, seja por impedir as devidas responsabilizações, seja por permitir pressões políticas sobre autoridades cujo exercício do cargo deve justamente estar protegido de pressões políticas. Revisar é preciso, mas com muito cuidado. O dever do Congresso é melhorar a lei, não piorá-la.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 04.04.23

Lula e a leitura mendaz da história

Uma coisa é reconhecer os abusos da Lava Jato; outra, muito diferente, é querer fazer o País acreditar que toda a operação não passou de uma ‘farsa’, como Lula anda dizendo por aí

Quando decidiu dar ao sr. Lula da Silva a oportunidade de exercer um terceiro mandato presidencial, malgrado o fato de que sua ficha moral é muito suja, a maioria dos eleitores não lhe delegou superpoderes para fazer a Terra girar ao contrário, apagar fatos e reescrever a história. No entanto, talvez inebriados por um sucesso que está longe de ter sido absoluto, Lula e outros próceres do PT se apropriaram do triunfo eleitoral de 2022 como uma espécie de autorização para reinterpretar, chamemos assim, os muitos malfeitos investigados pela Operação Lava Jato, como se eles simplesmente não tivessem existido.

É indiscutível o fato de que a Operação Lava Jato, como hoje se sabe, esteve eivada de erros e desvios das leis e da Constituição cometidos por membros do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal. Como revelou uma reportagem do Estadão no domingo passado, até mesmo procuradores federais que participaram ou apoiaram a operação, hoje, fazem uma autocrítica pelos excessos cometidos pela força-tarefa. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, debruçou-se sobre casos concretos e anulou, uma a uma, todas as condenações prolatadas contra Lula, tanto que foi revertida a inelegibilidade do petista.

Uma coisa, porém, é reconhecer a incompetência e a parcialidade do exjuiz e atual senador Sérgio Moro (União Brasil-PR), além do possível conluio entre um grupo de procuradores federais e o então titular da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba. Outra coisa, muito distante, é querer fazer o País acreditar que toda a Operação Lava Jato não passou de uma “farsa”, uma “armação” urdida entre autoridades do Brasil e dos Estados Unidos para usurpar as riquezas nacionais, como Lula anda dizendo por aí.

Se “farsa” foi, haja farsantes. O que dizer de tantas confissões? O que dizer da recuperação de ativos bilionários depositados em contas no exterior? O que dizer do resultado de investigações conduzidas por promotores estrangeiros em nada contaminados pela política nacional?

O presidente não precisava ser tão desrespeitoso com a inteligência e a memória de tantos brasileiros que não se ajoelham sob o altar do petismo. À falta de decência, bastaria a Lula um olhar racional para o placar da eleição para que fosse acometido por um súbito surto de humildade.

O petista venceu Jair Bolsonaro por uma margem de apenas 1,8% dos votos válidos, o que indica que o antibolsonarismo é só ligeiramente maior que o antipetismo no País. Lula não teria sido eleito se dependesse só dos votos de seus apoiadores mais devotados, aqueles que tomam sua palavra quase como um dogma religioso. Ele precisou convencer os milhões de eleitores que sabem muito bem o que o PT fez nos 14 anos em que governou o País – com especial ênfase nos escândalos do mensalão e do petrolão – de que era o único capaz de impedir que Bolsonaro fosse reeleito e pudesse concluir a destruição da democracia no Brasil.

Qualquer político, diante disso, teria a decência de reconhecer que a maior parte do eleitorado fez sua escolha por exclusão, e não por convicção. Mas não Lula, claro. O chefão petista considera que os votos que recebeu o autorizam a retocar as fotos em que ele e seu partido aparecem como protagonistas de escândalos e como instigadores da divisão do País. Ao tentar desmoralizar inteiramente a Lava Jato, como se a operação fosse inimiga do Brasil (em conluio com os ianques, claro) e tivesse como objetivo destruir o PT e seu líder, Lula desrespeita as diversas instituições de Estado que verificaram, julgaram e condenaram os numerosos malfeitos do lulopetismo. Por extensão, Lula desrespeita a própria democracia que ele jurou salvar das garras do bolsonarismo.

O PT, como organização privada que é, tem o direito de defender as interpretações que faz da realidade como bem entender, por mais equivocadas ou enviesadas que sejam. O problema é que o que o PT “pensa”, na verdade, é o que Lula pensa. E Lula já não é mais um líder partidário nem tampouco candidato; é o chefe de Estado e de governo. E como tal deve se portar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 04.04.23

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Hoje, o governo Lula completa 93 dias.Faltam 1.368 dias para que acabe

Pelo bem do país, tomara que dê certo

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva discursa com brasão da Republica ao fundo - MetrópolesHugo Barreto/Metrópoles

Lula é culpado pela piora na expectativa dos brasileiros quanto à situação da economia? Se Bolsonaro tivesse sido reeleito, a expectativa teria melhorado?

Apenas 23% acham que a situação do país progrediu nos últimos meses, ante 34% no final de outubro, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial, segundo pesquisa Datafolha.

O percentual dos que acreditam em piora também caiu, de 42% para 35%. O movimento mais destacado se deu, porém, entre os que não vêem mudança, que saltaram de 23% para 41%.

Em outubro, apenas 13% dos brasileiros aptos a votar consideravam que a economia do país iria piorar. O otimismo contaminava lulistas e bolsonaristas. O percentual atingiu 26% agora.

Desde dezembro ampliou-se a parcela dos entrevistados que preveem mais inflação (de 39% para 54%), mais desemprego (de 36% para 44%) e perda do poder de compra dos salários (21% para 31%).

Isso se deve ao fato de Lula ter sido eleito ou ao modo como governa? Ou a um monte de outros motivos? Bolsonaro presidiu o país em novembro e dezembro. Lula preside há 93 dias.

No mínimo, 15 desses dias giraram em torno das consequências do golpe frustrado de 8 de janeiro. Atribui-se a Lula a má gestão da economia com ataques ao Banco Central e ao seu presidente.

Será? A pesquisa mostra que a ofensiva de Lula contra os juros altos tem o apoio de 80% dos entrevistados, enquanto 71% consideram que as taxas de juros estão acima do adequado.

Atribui-se também a Lula a piora nas expectativas dos brasileiros dado às intenções gastadoras do governo que dificultariam a queda da inflação. O mercado reagiu bem ao pacote fiscal do governo.

Em linhas gerais, ele foi apresentado ao distinto público. Nos próximos dias, deverá se tornar inteiramente conhecido. Então, será alterado e votado pelo Congresso.

Onde, no mundo, as expectativas com a economia são boas? Nos Estados Unidos com a recente quebra de bancos? Na Europa? Na Ásia? Certamente não na Rússia e no Reino Unido.

Lula 1 e Lula 2 enfrentaram aqui e lá fora uma conjuntura econômica muito mais favorável. Lula 3 enfrenta uma conjuntura completamente adversa. Ele sabia que seria assim, mas quis.

Pelo bem do país, dos que votaram em Lula e dos que não votaram, tomara que ele seja bem-sucedido ao fim de quatro anos. A ver.

Ricardo Noblat, o autor deste artigo, é Jornalista. Editor do Blog do Noblat. Publicado originalmente no Metropóles, em 03.04.23

03/04/2023 8:00, atualizado 03/04/2023 4:47

Lula e suas coalizões incongruentes

Ignorar preferências do Congresso gera mais derrotas e maior custo governativo

A interpretação dominante das relações executivo-legislativo em sistemas presidencialistas é a de que o número de cadeiras ocupadas pelo partido do presidente no Congresso é o fator mais importante para explicar seu sucesso no legislativo.

Entretanto, em ambientes multipartidários, como o brasileiro, mesmo presidentes majoritários podem enfrentar maiores dificuldades para aprovar a sua agenda.

Por que a maioria numérica de cadeiras no legislativo ocupadas pelos partidos que fazem parte da coalizão presidencial não é condição suficiente para que o presidente governe de forma bem-sucedida?

No artigo Congruent we Govern, escrito em parceria com Frederico Bertholini e Marcus Melo, mostro que a variável chave para explicar o sucesso legislativo de presidentes em ambientes multipartidários não é o tamanho da maioria, mas a congruência de preferências ideológicas entre a coalizão e o plenário do Congresso.

Coalizões que espelham a preferência mediana do Congresso geram mais sucesso legislativo ao presidente a baixo custo. Por outro lado, quando as preferências da coalizão e do plenário são incongruentes, o presidente tende a enfrentar mais derrotas e o custo de gerenciar essa coalizão aumenta.

A partir de nove rodadas de surveys com os parlamentares de 1990 a 2021 (Zucco e Power), identifiquei que existe uma grande variação na composição ideológica das coalizões presidenciais desde Sarney até Lula 3.

Algumas coalizões são mais congruentes com o plenário, como a do governo FHC 1. Por outro lado, as coalizões dos governos Bolsonaro e Lula 3 apresentaram o nível de incongruência com o plenário muito parecido, variando apenas o sinal do polo, que é invertido. Enquanto a coalizão de Bolsonaro foi mais à direita da preferência da Câmara, a de Lula 3 é mais à esquerda.

Embora a coalizão de Lula 3 seja menos incongruente com o plenário do que a de seus governos anteriores, o que sugere aprendizado, ela, a despeito de possuir um maior número de partidos (14), só gera maioria simples, é ideologicamente mais heterogênea e não aloca de forma proporcional poderes e recursos levando em consideração o peso político dos parceiros.

Talvez não seja por acaso que o governo Lula 3 tenha decidido ter nada menos do que 37 ministérios e reproduzir o orçamento secreto criado por Bolsonaro ao centralizar no Ministério das Relações Institucionais a execução de recursos discricionários na ordem de R$ 25 bilhões como RP2. Ainda é cedo, entretanto, para saber se essa estratégia vai proporcionar sucesso legislativo.l

Carlos Pereira, o autor deste artigo, cientista político, é Professor Titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Fundação Getúlio Vargas). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.04.23 (email: carlos.pereira@fgv.br)