sábado, 18 de fevereiro de 2023

Brasil bate recorde de endividados: 'Com nome sujo, a gente não é nada'

Para endereçar o problema, o governo federal espera lançar ainda em fevereiro o programa Desenrola, de renegociação de dívidas.

Em 2022, a cada 100 famílias brasileiras, 78 estavam endividadas. Governo planeja lançar programa Desenrola, de renegociação de dívidas, ainda este mês (Crédito da foto: Thaís Carrança / BBC)

Adriana da Silva Lins, de 47 anos e moradora da Vila Ema, na zona leste de São Paulo, trabalhava como ajudante geral na cozinha de uma escola. Ela perdeu o emprego e, sem renda em meio à pandemia, viu as dívidas se acumularem.

“É dívida de cartão, dívida de banco. Eu vendia cosméticos e também fiquei em dívida com isso, porque não conseguia receber das minhas clientes e não consegui pagar pelos produtos da Boticário, Natura, Avon. Foi virando uma bola de neve”, conta a mãe de três filhos.

Atualmente fazendo bicos como diarista e recebendo o Auxílio Brasil há dois meses, ela estima suas dívidas em cerca de R$ 20 mil – o que inclui também contas de luz em atraso. Com a mãe doente, a prioridade é comprar remédios e, assim, as dívidas vão ficando para depois.

“Isso faz eu me sentir péssima. Eu sempre gostei de ter minhas contas em dia, de ter meu nome limpo. E, de repente, você se vê um nada. Porque, quando a gente não tem o nome limpo, a gente não é nada”, afirma.

A família de Adriana é uma de milhões de famílias brasileiras endividadas e inadimplentes – isto é, com dívidas em atraso.

Os dois indicadores bateram recordes em 2022, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

E, com juros elevados e os mais pobres recorrendo ao crédito para fazer frente a despesas do dia a dia, o recorde poderá ser quebrado novamente este ano, prevê a entidade empresarial.

Para endereçar o problema, o governo federal espera lançar ainda em fevereiro o programa Desenrola, de renegociação de dívidas.

Os detalhes do programa – uma das promessas de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – ainda não foram divulgados, mas a expectativa é de que a iniciativa priorize cerca de 40 milhões de brasileiros endividados com renda até dois salários mínimos (R$ 2.604, em valores atuais).

O governo também pretende lançar ainda este mês o novo Bolsa Família, que deve substituir o programa Auxílio Brasil, criado pelo governo Jair Bolsonaro (PL).

A mudança preocupa famílias de baixa renda que se endividaram com o empréstimo consignado do Auxílio Brasil – cujas parcelas são descontadas diretamente do benefício pago pelo governo federal. Elas temem mudanças no Cadastro Único e a possibilidade de serem excluídas do programa, ficando com a dívida do consignado para pagar.

O que explica o recorde de endividados

Em 2022, a cada 100 famílias brasileiras, 78 estavam endividadas. O patamar é o mais elevado da série histórica da Peic, com início em 2010.

Entre 2020 e 2022, a proporção de famílias endividadas passou de 66,5% para 77,9%, uma alta de 11,4 pontos percentuais.

No período, a taxa básica de juros da economia brasileira (Selic) foi elevada de 2% para os atuais 13,75% – nível que tem sido motivo de embates entre o governo e o Banco Central.

Izis Ferreira, economista da CNC, afirma que três fatores contribuíram para esse recorde de endividamento em 2022: a alta da inflação até a metade do ano, que corroeu o poder de compra das famílias; o incentivo crescente ao uso do cartão de crédito, através da oferta de novos produtos e serviços por bancos e fintechs; e, para os mais ricos, a demanda represada por serviços, como viagens e compra de passagens aéreas, geralmente pagos no cartão.

“A face negativa desse maior endividamento é a inadimplência, que também chegou a proporções recordes”, observa a analista.

Em 2022, a proporção de famílias brasileiras com contas em atraso chegou a 28,9%, também maior patamar da série histórica da Peic.

“Quando você tem mais dívidas no seu orçamento, num momento em que ainda tem uma inflação que incomoda, é mais difícil gerir esse orçamento e pagar tudo em dia”, diz Ferreira.

“O desafio para o consumidor hoje é pagar tudo isso num cenário de juros altos, porque os juros elevados aumentam o valor da dívida. Eles dificultam a renegociação e o pagamento de dívidas atrasadas. E esse contexto deve permanecer no ano de 2023”, prevê.

Segundo a economista, os juros de mercado – que chegaram a uma média de 52,1% ao ano para pessoas físicas em 2022, segundo dados do Banco Central – vão continuar elevados, devido à alta da inadimplência, do risco de não pagamento e da perspectiva de desaceleração da atividade econômica e do emprego neste ano.

“Nesse contexto de juros altos, teremos em 2023 mais famílias com dificuldades para pagar dívidas em dia e aquelas que já estão atrasadas vão enfrentar muita dificuldade de renegociar.”

Quem são os endividados: mulheres, jovens, de baixa escolaridade

Segundo a pesquisa da CNC, o endividamento tem rosto no Brasil: de mulher, com menos de 35 anos, ensino médio incompleto e moradora das regiões Sul ou Sudeste.

Em 2022, do total de mulheres, 79,5% se endividaram, comparado a 76,7% dos homens.

Entre as famílias lideradas por pessoas sem ensino médio completo, 31,2% tinham dívidas em atraso, comparado a 25,8% das famílias de pessoas com segundo grau completo.

Mulheres, com menos de 35 anos, ensino médio incompleto e moradoras das regiões Sul ou Sudeste são maioria entre endividados (Getty Images)

“As mulheres trabalham mais na informalidade e em tempo parcial, e muitas são chefes de famílias, então elas têm uma condição de vulnerabilidade no mercado de trabalho maior do que os homens”, observa Izis Ferreira, da CNC.

“Com renda instável, o risco de atrasar dívidas é maior. E, como as mulheres usam modalidades de crédito de pior qualidade, quando essas dívidas atrasam, elas vão ficando muito caras.”

Para as mulheres, a principal forma de endividamento é o cartão de crédito e o carnê de loja, observa a economista.

E o perfil das dívidas no cartão revela como essa modalidade de crédito tem sido usada como uma extensão do orçamento das famílias: das dívidas com cartão de crédito, 65% são referentes a compras no supermercado, e 41% a compra de remédios ou tratamento médico, segundo o Perfil e Comportamento do Endividamento Brasileiro 2022, da Serasa.

Tabela mostra principais tipos de dívidas contraídas no cartão de crédito 

“O cartão é um crédito de acesso muito fácil, oferecido inclusive pelo varejo e com limites baixos, que facilitam esse acesso”, observa Patrícia Camillo, gerente da Serasa.

“Ele ainda é visto como um valor adicional ao orçamento mensal. As pessoas adquirem o cartão para fazer compras básicas, já considerando que, sem o cartão, o orçamento não é suficiente. Esse comportamento é o perigo do cartão e o que leva ele a ser o Top 1 das dívidas.”

Em 2022, o juro médio cobrado pelos bancos no rotativo do cartão chegou a 409,3% ao ano, uma alta de 61,9 pontos percentuais em relação a 2021, quando o juro foi de 395,4%. Assim, essa modalidade de crédito é uma das mais caras do mercado, junto ao cheque especial.

Ainda segundo os dados da Serasa, o país tinha 69,4 milhões de inadimplentes em dezembro de 2022 e o valor médio das dívidas por pessoa era de R$ 4,5 mil, somando um total de R$ 312 bilhões em dívidas em atraso.

Os novos endividados do consignado do Auxílio Brasil

Em 2022, um outro fator contribuiu para o aumento do endividamento entre os mais pobres no Brasil: a criação, às vésperas da eleição, do empréstimo consignado do Auxílio Brasil.

O empréstimo foi liberado em 10 de outubro, entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais em que o então presidente Jair Bolsonaro (PL) tentava a reeleição. Somente naquele mês, a modalidade movimentou mais de R$ 5 bilhões, segundo o Banco Central.

Quem tomou o empréstimo consignado em outubro, desde novembro está tendo seu Auxílio Brasil descontado. Quem recebia R$ 600, agora recebe R$ 440 após o pagamento da parcela mensal.

Propaganda do programa Auxílio Brasil no muro de residência na favela de Heliópolis em São Paulo, em dezembro de 2021

Quem tomou o empréstimo consignado do Auxílio Brasil em outubro, desde novembro está tendo seu benefício descontado (AFP - Ag, France Press)

“Está sendo difícil, mas eu tinha ciência que ia estar sendo descontado”, diz Elisângela Cruz César, de 43 anos e moradora de uma área invadida na zona norte de São Paulo.

Dona de casa e mãe de seis filhos, Elisângela conta que tomou o empréstimo por conta do desemprego do marido, que é açougueiro, mas perdeu o trabalho durante a pandemia. Ainda desempregado, os dois têm no auxílio descontado agora sua única fonte de renda.

“A gente só não está passando necessidade mesmo porque tem ajuda, tem cesta básica”, afirma.

Elisângela conta que nunca tinha pegado um empréstimo na vida, o consignado do Auxílio foi sua primeira vez no mercado de crédito, já que nem cartão de crédito ela usa.

“Todo mundo que tinha o benefício e estava passando necessidade foi [fazer o empréstimo], nem pensou, porque quem tem criança não vai querer passar dificuldade. Era minha única opção, então eu fui e fiz”, lembra.

“Mas agora é bem preocupante, porque mudou o presidente e a regularização do CadÚnico [Cadastro Único] vai mudar muita coisa. Vai que de repente cancela, faz alguma coisa no benefício? Aí ou a gente paga [a dívida do consignado] por fora, ou então acaba sujando o nome da gente, que vai ficar com uma dívida nas costas”, diz a mãe de família.

No início deste mês, o novo governo mudou as regras do consignado para beneficiários do Auxílio Brasil.

Com a mudança, o desconto mensal máximo do benefício para pagamento das parcelas passa a ser de 5%. Antes, chegava a 40%.

A taxa de juros agora não vai poder passar de 2,5% ao mês e o número de parcelas não pode ser superior a seis. Anteriormente, o limite de juros era de 3,5% ao mês e o número máximo de parcelas chegava a 24.

As novas regras, no entanto, valem apenas para novos empréstimos.

Ansiedade, insônia, depressão

Para além do nome sujo – que dificulta a obtenção de novos créditos e financiamentos –, o aumento da inadimplência no país também tem efeito sobre a saúde e os relacionamentos familiares dos brasileiros.

Segundo a pesquisa da Serasa:

83% dos endividados têm dificuldade para dormir por conta das dívidas;

78% têm surtos de pensamentos negativos devido aos débitos vencidos;

74% afirmam ter dificuldade de concentração para realizar tarefas diárias;

62% sentem impactos no relacionamento conjugal;

61% vivem sensação de “crise e ansiedade” ao pensar na dívida;

53% revelam sentir “muita tristeza” e “medo do futuro”;

51% têm vergonha da condição de endividado;

33% não se sentem mais confiantes em cuidar de suas próprias finanças;

31% sentem impacto das dívidas no relacionamento com familiares.

Endividados sentem vergonha e sofrem impacto das dívidas no relacionamento conjugal e com familiares, mostra pesquisa da Serasa (Getty Images)

Tatiane*, de 35 anos, está enfrentando essa realidade.

Antes empregada com carteira assinada, ela deixou o emprego em meio a uma gravidez de risco e agora trabalha por conta própria, vendendo roupas e produtos naturais. De um ano para cá, suas vendas diminuíram e ela acabou se endividando em três cartões e com o fornecedor dos produtos que vende.

“Com tudo isso, eu comecei a ter uma ansiedade muito forte, que eu não tinha. A ponto de não conseguir dormir, sentir dor no peito, ficar chorando o tempo todo”, conta a trabalhadora autônoma.

“Eu tenho duas crianças pequenas, as contas vão chegando. Nada espera e é muito complicado a gente ver as contas vencendo, as crianças precisando das coisas. Você começa a entrar em desespero, de ver que você não está conseguindo arcar com as obrigações.”

Programa Desenrola Brasil

Para Izis Ferreira, economista da CNC, Adriana, Elisângela e Tatiane são exemplos das pessoas que deveriam ser priorizadas no novo programa de renegociação de dívidas do governo federal.

“Quando falamos do perfil dos mais endividados e dos que mais atrasam dívidas é justamente para entendermos quem é preciso priorizar. Porque não adianta fazer um programa que tente trazer todo mundo de uma vez, será preciso dar preferência aos públicos mais vulneráveis, que têm dívidas atrasadas há mais tempo e estão sujeitas aos juros maiores”, diz a economista.

“São as famílias com dívidas atrasadas no cartão de crédito, as mulheres, as pessoas de menor renda, de menor escolaridade”, enumera.

“Para garantir o consumo futuro das famílias, que é um dos motores do crescimento, temos que resolver o problema da inadimplência e do endividamento.”

Famílias com dívidas atrasadas no cartão de crédito, mulheres, pessoas de menor renda e de menor escolaridade precisam ser priorizadas em programa de renegociação de dívidas, diz economista da CNC (Getty Images)

Na segunda-feira (14/2), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o desenho do programa Desenrola já está pronto para ser analisado por Lula. Caso seja aprovado pelo presidente, a expectativa é de que possa ser lançado ainda em fevereiro, depois do Carnaval.

Questionado pela BBC News Brasil sobre a provável data de lançamento e detalhes do novo programa, o Ministério da Fazenda afirmou apenas que “ainda não há uma previsão e nem detalhes, faremos uma ampla divulgação quando a data for definida”.

Segundo informações do jornal O Estado de S. Paulo, o programa deve focar quem ganha até dois salários mínimos e tem dívidas de até R$ 5 mil, atrasadas há mais de 180 dias em 31 de dezembro de 2022.

O Tesouro Nacional deve aportar R$ 20 bilhões em um fundo garantidor para as renegociações.

A ideia é que o banco escolhido pague a dívida ao credor e então faça um novo empréstimo para o cliente, com desconto. A taxa de juros deverá ser de até 1,99% ao mês (equivalente a 26,7% ao ano).

Caso o cliente não pague, terá o nome sujo de novo e o banco pode apresentar o contrato ao Tesouro, que honra a garantia de 100% do valor.

Ainda segundo o jornal, o programa deverá ter duas fases, a primeira voltada aos credores (bancos, varejistas, empresas de telefonia e de serviços públicos), que deverão manifestar o interesse em participar do programa e informar quanto de desconto estão dispostos a conceder sobre a dívida que têm a receber.

A partir dessa manifestação de interesse, será feita a seleção das empresas participantes do programa através de um modelo de leilão.

Na segunda fase do programa, os devedores poderão acessar um site a ser criado pelo governo para verificar quais dívidas podem ser quitadas sob as regras do Desenrola. O devedor poderá escolher o que pagar e a instituição com quem vai fazer a renegociação.

Adriana, a mãe de três filhos da zona leste de São Paulo com dívidas no cartão de crédito e contas de luz atrasadas, vê o programa com bons olhos e espera poder participar da renegociação.

“Se eu puder participar, vou com certeza. Tudo que eu mais quero é ter meu nome limpo. A coisa mais importante que a gente pode ter é nossa dignidade”, diz a diarista.

*O sobrenome da entrevistada foi omitido a pedido para preservar sua identidade.

Thais Carrança, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 16.02.23

'Há um renascimento de grupos neonazistas no Brasil', diz diretor de fundação judaica

A prisão de um jovem de 17 anos, detido por atirar bombas caseiras do tipo coquetel molotov em duas escolas enquanto usava uma braçadeira com uma suástica, acendeu mais uma vez o alerta para o crescimento do antissemitismo no Brasil.

Adolescente que jogou bombas caseiras em escola de Monte Mor, no interior de São Paulo, usava suástica no braço esquerdo (Guarda Metropolitana)

Para Ariel Gelblung, diretor para a América Latina do Centro Simon Wiesenthal, o incidente é reflexo do fortalecimento da ideologia neonazista no país durante o governo de Jair Bolsonaro.

"Há um renascimento de grupos neonazistas no Brasil. Vimos algo semelhante acontecer nos Estados Unidos durante o governo de Donald Trump, quando membros da extrema direita se achavam no direito de expressar e dizer qualquer coisa", afirmou o advogado à BBC News Brasil.

"O mesmo aconteceu no Brasil durante o governo Bolsonaro."

Segundo o argentino, o tema precisa ser discutido e trazido à tona para "desarmar a disseminação" do antissemitismo violento.

"Embora estejamos tranquilos com a forma como as autoridades agiram para deter o agressor e por não haver vítimas ou danos significativos, estamos preocupados com o episódio em si", diz o representante da organização judaica que afirma ter como objetivo promover os direitos humanos e pesquisar o Holocausto.

O ataque aconteceu no prédio em Monte Mor, interior de São Paulo, que abriga a Escola Estadual Professor Antonio Sproesser e a Escola Municipal Vista Alegre, onde o agressor havia estudado até o 5º ano do ensino fundamental. Ele é menor de idade e não teve a identidade divulgada.

Dois artefatos explodiram depois de atingir a grade de entrada do prédio, mas ninguém ficou ferido.

Segundo a Guarda Municipal, além da braçadeira, foram encontrados um caderno e livros com referências nazistas e uma réplica de fuzil em um carro utilizado pelo agresssor e na casa dele.

"É a primeira vez que vemos algo assim recentemente no Brasil. Trata-se de um adolescente e sinceramente não sabemos se a motivação foi pessoal ou ideológica. Mas isso é um sinal de que temos que ficar em alerta", afirmou Ariel Gelblung.

Beatrix von Storch e o marido em encontro com Bolsonaro no Palácio do Planalto (Crédito da foto: Arquivo Pessoal)

Alianças perigosas

Para o argentino, não há necessariamente uma ligação direta entre Jair Bolsonaro e o antissemitismo, mas as visões e alianças feitas pelo ex-presidente durante seu mandato deram espaço para o crescimento de uma extrema direita perigosa.

"Bolsonaro recebeu e se aproximou de uma representante da AfD da Alemanha", diz o advogado, em referência à recepção à deputada alemã Beatrix von Storch, vice-líder do partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD).

Von Storch é neta de Johann Ludwig Schwerin von Krosigk, que serviu como ministro das Finanças da ditadura de Adolf Hitler por mais de 12 anos. Muitos membros da legenda também são acusados regularmente de nutrir simpatias pelo nazismo e de minimizar os crimes cometidos pelo Terceiro Reich.

"Ideologicamente, esses membros da extrema direita se sentiram como se tivessem o direito real de expressar suas crenças", diz Gelblung.

Questionado sobre a proximidade do ex-presidente e de muitos de seus seguidores com Israel – não é incomum que bolsonaristas exibam bandeiras do país em demonstrações públicas – o especialista afirmou que a política nem sempre segue uma lógica exata.

"Me parece que Bolsonaro fala sério quando expressa sua admiração por Israel, porque ele apoia muito a igreja evangélica e eles amam Israel", diz.

"Mas nem todo mundo pensa igual. Muitos de seus apoiadores não são evangélicos - eles o apoiam como político, não como fiel. A política não é como matemática."

Bolsonaro sempre negou ter qualquer relação com extremistas da direita ou neonazistas.

O diretor da organização judaica para a América Latina também compara esse contexto brasileiro com o americano. "Ninguém fez tanto por Israel [na Presidência americana] como Donald Trump. Mas a extrema direita se sentiu confortável demais com sua liderança", afirma.

A BBC News Brasil tentou contato com Bolsonaro e seus assessores para que pudessem dar um posicionamento a respeito das alegações. Não foram enviadas respostas até a publicação deste material.

Reprodução - Vídeo mostra saudação nazista em ato em Santa Catarina

'Novo governo traz outros problemas'

Apesar da preocupação, Ariel Gelblung afirma que o Brasil fez alguns progressos nos últimos anos, com a entrada na Aliança Internacional de Memória do Holocausto (IHRA) como membro observador e decisões importantes do Supremo Tribunal Federal (STF) contra discursos de negação do Holocausto.

Mas o advogado não vê a mudança de governo como necessariamente uma boa notícia para o combate aos grupos neonazistas. Segundo ele, a proximidade do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o Irã pode ser problemática para o avanço da luta contra o antissemitismo.

Gelblung viu a decisão da Presidência de, inicialmente, permitir o atracamento de duas embarcações militares iranianas no porto do Rio de Janeiro em janeiro como sinal dessa aproximação.

A autorização foi vetada posteriormente, após o pedido do governo do Irã ser visto como uma tentativa de Teerã de usar o Brasil para provocar os EUA — os navios chegariam à costa na mesma semana em que o presidente brasileiro estaria em Washington para uma visita à Casa Branca.

"Com a mudança de governo podemos ver surgir outro tipo de problema com o antissemitismo", diz o representante do Centro Simon Wiesenthal.

"Quando o Irã ampliou sua influência na América Latina no passado, tivemos três ataques terroristas no país. Dois em Buenos Aires e um no Panamá."

Buenos Aires foi alvo de dois ataques, em 1992 e 1994. O primeiro deles, contra a embaixada de Israel, deixou 29 mortos. O segundo atentado teve como alvo o prédio da Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) e deixou 85 mortos.

Um dia depois do ataque de 1994 em Buenos Aires, a explosão de um avião no Panamá matou todas as 21 pessoas a bordo. Entre os passageiros, 12 eram judeus. O incidente foi oficialmente classificado como ato terrorista por Israel e EUA.

A BBC procurou a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República sobre um posicionamento em relação às declarações, mas não obteve resposta.

Lula em visita a Teerã em 2010, durante seu segundo mandato (Getty Images)

Crescimento de denúncias

Entre junho de 2020 e julho de 2022, o Brasil registrou uma denúncia de antissemitismo por semana, segundo levantamento feito pelo relatório O Antissemitismo durante o governo Bolsonaro.

O documento, assinado por quatro ativistas e acadêmicos brasileiros de longa trajetória no estudo e monitoramento do antissemitismo no país, fala em 104 "acontecimentos antissemitas" no Brasil ao longo de mais de 700 dias.

Os pesquisadores apontaram para uma exacerbação do antissemitismo em paralelo a manifestações de caráter nazifascista no Brasil, inclusive por parte de integrantes de postos governamentais.

Diversos episódios são listados no relatório como indicativos desse comportamento por membros do governo. Um dos casos apontados aconteceu em 2020, quando Jair Bolsonaro e assessores beberam um copo de leite durante uma live.

"Beber leite em público é um símbolo dos neonazistas. Eles defendem uma 'teoria' (obviamente parte da pseudociência), que afirma que somente indivíduos da raça ariana seriam capazes de tolerar lactose enquanto adultos. Portanto, em manifestações, eles tomam galões de leite e 'se orgulham' disto", diz o relatório.

Em outro episódio mais recente, apoiadores de Bolsonaro fizeram uma saudação nazista durante execução do Hino Nacional em uma manifestação a favor da intervenção militar em Santa Catarina. O caso é investigado pelo Ministério Público.

Julia Braun, de Londres para a BBC Brasil, em 17.02.23 ( Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9wdd7kx1n8o)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

A ameaça de Bolsonaro

Ex-presidente diz que voltará para liderar oposição. A direita civilizada deve ver essa promessa como ameaça a seus valores mais caros e um risco de que a esquerda se fortaleça no poder

Jair Bolsonaro disse ao Wall Street Journal que voltará ao Brasil para liderar a oposição. Se não quiser perpetuar a dialética infernal que recolocou no Planalto o lulopetismo – responsável pelos maiores escândalos de corrupção e a pior recessão da Nova República – nem a espiral de degradação que desembocou no 8 de Janeiro – o maior atentado à democracia desde a ditadura –, a direita, seja a liberal, seja a conservadora, deve fugir desse “líder” que nega todos os seus valores mais caros.

A direita civilizada deve se opor tão energicamente a Bolsonaro quanto a Lula. Em certo sentido, até mais. Seu enfrentamento ao lulopetismo é um combate corpo a corpo. Até as derrotas podem ser revigorantes, se servirem para reconduzi-la às fontes de sua potência e de seu dinamismo. Como disse Winston Churchill, “o sucesso não é final; o fracasso não é fatal; é a coragem de continuar que conta”. A luta com o bolsonarismo é de outra natureza. Não tanto contra um adversário em pé de igualdade, mas contra um patógeno, um parasita que suga suas energias a ponto da putrefação.

Bolsonaro não é conservador nem liberal, só reacionário e autoritário. O liberalismo crê na potência do livre-arbítrio e sua contrapartida, a responsabilidade individual. Daí a ênfase nas liberdades fundamentais, na igualdade ante a lei, na meritocracia, no livre mercado. O conservadorismo reverencia a sacralidade da família e a experiência acumulada pela sociedade nas tradições e materializada nas instituições. Ambos desconfiam da húbris humana. Por isso, creem no progresso rumo a uma sociedade mais justa e próspera por meio da distribuição, não da concentração do poder; do debate, não da imposição de ideias; da reforma, não da ruptura das instituições.

Não é liberal quem faz carreira insultando minorias; acumulando privilégios para sua família e clientela política; opondo-se a reformas e defendendo o intervencionismo estatal. Não é conservador quem desdenha tão orgulhosamente do princípio moral e religioso do amor ao próximo, especialmente lá onde ele é mais testado e necessário: na compaixão pelos desvalidos, os vulneráveis, os marginalizados e mesmo, sim, os marginais. Não é nem liberal nem conservador quem promove o culto à própria personalidade; quem vê a luta política não como um embate entre adversários, mas como a aniquilação de inimigos; quem violenta a separação dos Poderes e busca submetê-los ao seu tacão.

A direita, se quiser manter seu vigor e promover seus valores, deve combater esse corpo estranho. Mas não com seus mesmos meios. O bolsonarismo deve ser desmoralizado sem violência.

Não será fácil. Primeiro, porque liberais e conservadores precisam expiar seus próprios pecados, a começar pela complacência com as desigualdades sociais, e recobrar a convicção em seus ideais e sua capacidade de articulação. Mas também porque a facção da esquerda no poder fará de tudo para oxigenar esse parasita que corrói a direita e no qual os esquerdistas encontraram sua nêmesis ideal. Lula tem feito tudo menos cumprir suas promessas de conciliação e está redobrando a aposta no ressentimento, colando em toda oposição os rótulos de “elitista”, “fascista”, “golpista”, “genocida”, “terrorista”. Essa esquerda também deve ser desmoralizada. Mas não com seus mesmos meios.

Conservadores e liberais não devem buscar desmoralizar os eleitores de Lula ou Bolsonaro, mas ouvi-los, humildemente questioná-los, influenciá-los e, enfim, representá-los. Aos primeiros, precisam provar que antes que antagonizar seus ideais mais preciosos, a igualdade e a inclusão, só desconfiam dos instrumentos da esquerda e oferecem outros mais eficazes. Já as ansiedades dos eleitores de Bolsonaro – ante o crime, ante as intromissões estatais, ante as coerções das militâncias identitárias, ante a corrupção do “sistema” político – podem ser passíveis de distorções, mas exprimem, no fundo, um anseio pela lei e a ordem e pela preservação de valores universais. O desafio é mostrar que Bolsonaro, antes que liderá-los rumo à satisfação desses desejos, só os afastará dela, como os afastou, ainda mais.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 17.02.23

Lula exalta PT e desdenha de outros partidos: ‘Cooperativas de deputados’; legendas reagem mal

Apesar de desdenhar de outros partidos, presidente petista tem oito ministros indicados por legendas aliadas

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva desdenha dos demais partidos e diz que o PT é que é o partido mais importante do País Foto: Wilton Junior / Estadão

Com oito partidos apadrinhando ministros de seu governo e ainda em busca de apoio do Legislativo para garantir aprovação de projetos de interesse do governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desdenhou nesta quinta-feira, 16, das agremiações políticas. Em entrevista à CNN, Lula deixou claro que, para ele, o único partido relevante no Brasil é o PT.

“Não existe partido político no Brasil. O único partido com cabeça, tronco e membro é o PT. O PT não é uma coisa qualquer, é um partido político. O restante é uma cooperativa de deputados que se juntam nas eleições”, disse o petista.

Ele admitiu que sua legenda desperta “amor e ódio”, mas que é uma das maiores legendas da esquerda no mundo. “O PT só perde para o Partido Comunista chinês, que é muito grande”.

Lula reduziu a “cooperativas de deputados” 22 partidos com representação formal na Câmara, dentre os quais oito possuem ministros no primeiro escalão do governo. Ocupam Pastas da gestão petista ministros do PCdoB, União Brasil, MDB, PSD, PDT, PSB, PSOL e Rede.

Na oposição, o PL do ex-presidente Jair Bolsonaro tem a maior bancada, com 99 deputados, 31 a mais do que o PT.

Apesar de desmerecer a importância das demais siglas partidárias, Lula alegou que é preciso “estar junto” com os presidentes das casas legislativas, porque o Congresso seria um retrato da vontade do eleitor. “Não pode reclamar, tem que conviver”, afirmou o presidente, que mostrou confiança na possibilidade de construir a governabilidade sem o orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão e derrubado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Na entrevista, o presidente condenou a criminalização da política e voltou a atacar seu antecessor Jair Bolsonaro. “Quando você nega a política o resultado é esse: Bolsonaro, Hitler, Mussolini. Quando você nega a política, o resultado é o surgimento do autoritarismo”, declarou.

O petista ainda evitou criticar diretamente o vice-presidente de seu partido, o deputado Washington Quaquá (RJ), que postou uma foto ao lado do deputado federal Eduardo Pazuello (PL-RJ), ministro da Saúde do governo Bolsonaro. “Cada um carrega a fotografia que quiser. Acho que ele já tem idade suficiente para escolher com quem ser fotografado”, disse Lula. Quaquá foi criticado publicamente pela presidente do PT, Gleisi Hoffmann.

Lula também saiu em defesa do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, condenado pelo Supremo Tribunal Federal por envolvimento no escândalo do mensalão. “Ninguém pode ser penalizado a vida inteira, ninguém pode ser na política criminalizado de forma perpétua. José Dirceu é um agente político, militante político da maior qualidade e está voltando a participar”, declarou em entrevista à CNN Brasil. (COM BROAD)

Weslley Galzo, O Estado de S. Paulo, em 17.02.23

Resolução do PT amplia decepção de ‘frente ampla’ com rumo do governo Lula

Siglas e setores políticos que aderiram a Lula no 2.º turno da acirrada disputa contra Bolsonaro veem partido e presidente com foco em ‘fake news’, ‘revanchismo’ e ‘retrovisor

Resolução foi formulada após reunião do Diretório Nacional do PT ocorrida no aniversário de 43 anos do partido, em 13 de fevereiro.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Com pouco mais de um mês de governo, manifestações do PT e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva têm despertado desconfiança e decepção entre setores políticos que aderiram ao petista no segundo turno da acirrada disputa contra Jair Bolsonaro (PL). Ontem, líderes partidários que se aliaram numa “frente ampla” anti-Bolsonaro reagiram à resolução do Diretório Nacional do PT, que procurou reforçar a narrativa segundo a qual o partido foi vítima de “falsas denúncias” nos rumorosos casos de corrupção que protagonizou nas duas últimas décadas.

Em linha com os discursos mais recentes do presidente, o texto da legenda se refere ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff como “golpe” e chama de “quadrilha” os antigos procuradores da Operação Lava Jato e o ex-juiz e atual senador Sérgio Moro (União Brasil-PR), além de defender a revisão da autonomia do Banco Central, da taxa de juros e das metas de inflação.

A versão distorcida dos fatos causou desconforto e irritação no MDB, um dos mais importantes aliados de Lula na etapa final da eleição. “Triste o PT, um partido importante, em um documento da sigla, resolver espalhar fake news”, afirmou ao Estadão o presidente da legenda, Baleia Rossi.

Quando o cenário eleitoral era incerto e os bolsonaristas escalavam o discurso contra as urnas eletrônicas, o comitê de Lula reuniu um arco de apoios em segmentos políticos desalinhados com o PT, como João Amoêdo (ex-presidente do Novo) e Arminio Fraga, tucanos históricos e ex-rivais dos petistas na centro-esquerda.

“Falar em golpe é estultice. Lula não pode fazer dessa resolução do PT uma resolução sua. Ele está governando com o apoio de vários líderes que apoiaram o impeachment de Dilma. O voto nele foi pela democracia, e a democracia não pode viver em permanente fratura”, disse o presidente do Cidadania, Roberto Freire.

Dilma sofreu impeachment em 2016 por promover as chamadas pedaladas fiscais. A prática, revelada pelo Estadão, consiste em manobra fiscal a fim de permitir ao governo cumprir as metas fiscais – portanto, indicando falsamente haver equilíbrio entre gastos e despesas nas contas públicas.

A resolução petista ainda ignora os escândalos que marcaram as gestões do partido, em especial o mensalão e a corrupção na Petrobras. Neste último caso, investigado como parte da Lava Jato, foi revelado esquema que envolvia licitações fraudulentas com empreiteiras e pagamento de propina. Oficialmente, a Petrobras divulgou rombo de R$ 6,2 bilhões em seu balanço em 2015.

‘Sem anistia’

O documento também aponta para os militares e responsabiliza o governo Bolsonaro por provocar onda de “violência, ódio, intolerância e discriminação” na sociedade. E fala em “seguir na luta pela culpabilização e punição de todos os envolvidos, inclusive os militares”. O texto afirma que “a palavra de ordem ‘sem anistia’ deve ser um imperativo do partido para culpabilizar os responsáveis e exigir que Bolsonaro e seus cúmplices respondam pelos seus crimes”. Ao fim de reuniões do Diretório Nacional, a sigla costuma divulgar resoluções como uma espécie de “guia” para filiados e manifesto à sociedade. O documento divulgado ontem é o primeiro depois da posse de Lula para o terceiro mandato.

“Depois do 8 de janeiro, Lula podia ter adotado discurso mais pacificador e tentar atrair setores que votaram em Bolsonaro. Deveria olhar menos para o retrovisor. O revanchismo não é o caminho”, disse o ex-governador do Rio Grande do Sul Germano Rigotto, que integrou a coordenação da campanha presidencial de Simone Tebet (MDB) – atual ministra do Planejamento – no primeiro turno e foi colaborador da equipe de transição após o pleito.

Um dos autores do pedido de impeachment de Dilma, o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr., que apoiou Lula no segundo turno, também vê o petista governando com o retrovisor. “O PT entrou com mais de 50 pedidos de impeachment contra Fernando Henrique Cardoso”, observou. Para ele, o discurso dos petistas é “esquizofrênico e sem pé na realidade”. “Querem reconstruir o passado.”

Ex-ministro das Relações Exteriores no governo Michel Temer (MDB), o tucano Aloysio Nunes Ferreira, que apoiou Lula desde o primeiro turno, seguiu na mesma linha. “Lula discursou perante a direção de um partido que ele lidera, que tem sua cultura, seu programa e uma visão própria dos fatos políticos que não coincidem em todos os pontos com os demais componentes da frente que o elegeu e com quem ele pretende governar. A diversidade pode ser sua força, desde que possamos o quanto antes estabelecer um programa comum que balize sua atuação no governo e no Congresso”, disse Aloysio ao Estadão.

“Todo mundo faz autocrítica no seu dia a dia. É preciso aprender com erros do passado para construir um futuro mais tranquilo. O PT pulou essa parte. O partido precisa calçar as sandálias da humildade”, disse o deputado Danilo Forte (CE), do União Brasil.

‘Passado’

Sensação crescente entre aliados recentes do petismo é a de que presidente e partido vivem uma irrealidade e ainda não se preocuparam com o exercício do governo. Lula tem feito discursos e concedido entrevistas direcionadas a um setor “convertido” da sociedade – seus próprios apoiadores. Ontem, em entrevista à CNN Brasil, ele endossou a necessidade de uma nova narrativa do PT e chegou a dizer que deu uma “surra” em Bolsonaro na eleição, embora tenha vencido a disputa por menos de 2% dos votos.

Para a especialista em estratégias para campanhas eleitorais e CEO do instituto de pesquisa Ideia, Cila Schulman, as falas do petista não contribuem para a construção de uma imagem positiva do governo e são danosas por não dialogarem com “problemas reais” do País. “O eleitor não está de olho no retrovisor da Lava Jato ou do impeachment, ele está interessado na resolução de problemas atuais e que o preocupam, como inflação, educação, saúde, emprego. As pautas do passado não estão no radar do brasileiro”, afirmou.

O sociólogo José Carlos Martins, um dos idealizadores do grupo Derrubando Muros, que reuniu diversos segmentos em oposição a Bolsonaro nas eleições, classificou como “atabalhoados” e “intempestivos” os recentes discursos de Lula e resumiu o sentimento do centro político. “Lula escolheu um time bom nas atividades fundamentais, como Justiça, Saúde, Educação e Meio Ambiente, mas não está tratando com carinho a aliança feita em torno do nome dele.”

Pedro Venceslau, Natália Santos e Davi Medeiros, O Estado de S. Paulo, em 17.02.23

As raízes históricas do Carnaval

O que os romanos têm a ver com o Carnaval? E qual é o papel da Igreja? Saiba como surgiu a tradição da folia que antecede o período da quaresma.

Embora soe estranho para um brasileiro, um dos pontos altos do Carnaval na Alemanha já foi esta quinta-feira (16/02). Especialmente na região da Renânia, e exatamente a partir das 11h11, milhares de foliões fantasiados festejaram em locais públicos e bares ao som de músicas carnavalescas. Em 2023, Colônia, um dos bastiões da folia na Alemanha, celebra 200 anos de Carnaval organizado.

Uma pequena viagem no tempo

Em Colônia, aliás, estão algumas raízes dessa festa popular. Há 2 mil anos, quando a cidade era uma colônia romana e se chamava Colonia Claudia Ara Agrippinensium, era celebrado em todo o Império Romano o festival da Saturnália, em homenagem ao deus Saturno.

Havia muita bebida e dança e, para a diversão de todos, os ricos trocavam seus belos mantos pelas túnicas simples de seus escravos, e até os serviam. Os servos estavam autorizados a criticar duramente seus senhores, o que resultava em punições severas nos dias seguintes. Mas nos dias de folia, o mundo estava de cabeça para baixo.

Havia inclusive uma procissão cujo nome em latim era Carrus Navalis (carro que vem do mar) − expressão que soa muito parecido com "carnaval". A população de Colônia se fantasiava e acompanhava com tambores, flautas e chocalhos o carrinho magnificamente decorado.

Imagem retrata pessoas fantasiadas festejando com burro, cabrito e ovelhaImagem retrata pessoas fantasiadas festejando com burro, cabrito e ovelha

Assim, em 1907, se imaginava que fosse festejada a Saturnália (Foto: akg-images/picture alliance)

Enquanto no Império Romano a Saturnália geralmente caía em dezembro, os alemães celebravam um festival selvagem na primavera. Eles usavam máscaras aterrorizantes e faziam barulho com tambores e sinos para afugentar os demônios do inverno. Essa é uma outra raiz do Carnaval, cultivada ainda hoje no sul da Alemanha.

Historicamente, várias festas e ritos da Antiguidade podem ter influenciado o Carnaval. Sua associação com orgias pode ser relacionada às festas de origem greco-romana, como os bacanais ou festas dionisíacas, que se distinguiam pela bebedeira desenfreada e a total entrega aos prazeres da carne.


Como o Carnaval se tornou festa da Igreja

Quando o imperador romano Constantino fez do cristianismo a religião do Estado, no ano 343, as Saturnálias acabaram. E as ações pagãs dos alemães também passaram a ser uma pedra no sapato da Igreja. Mas, como não se queria proibir o povo de celebrar, a festa foi reinterpretada: não se tratava mais de afastar os maus espíritos, mas do Diabo, o pior inimigo do cristianismo.

Máscaras típicas do Carnaval da Suábia (Foto: Heiner Heine/imageBROKER/picture alliance)

A data foi subordinada à liturgia do ano eclesiástico. Entre a Quarta-Feira de Cinzas e o Sábado Santo, os fiéis deveriam comer menos e rezar mais. Assim, antes dos 40 dias de jejum que precedem a Páscoa, era permitido celebrar a carne vale (em latim: "despedida da carne").

O Carnaval se estabeleceu assim como uma festa da Igreja, que prevaleceu principalmente nas áreas católicas. E não apenas na Europa: os colonizadores da Espanha e de Portugal também levaram seu Carnaval para o Caribe e a América Central e do Sul.

No Brasil, uma das primeiras manifestações carnavalescas foi o entrudo, uma brincadeira bastante rude, de origem portuguesa, praticada na colônia pelos escravos. Até ser proibido, em 1841, os foliões saíam às ruas se sujando mutuamente com lama e urina, por exemplo.

Papa montado em burro

Embora o Carnaval tivesse passado à supervisão da Igreja, os padres e bispos continuaram a ver os festejos desenfreados com desconfiança. Mas até toleraram as paródias dos rituais da Igreja, inclusive elegendo um "Papa Tolo" que entrava na igreja montado em um burro.

Só que não apenas a Igreja, mas também a burguesia de Colônia determinava como seria celebrada a festa carnavalesca, na qual jovens aprendizes interpretavam canções satíricas nas praças públicas e em frente a pousadas, enquanto malabaristas e comediantes perambulavam pelas ruas

Todo ano a elite renana tinha seu baile de máscaras, como mostra o quadro de 1754Foto: akg-images/picture alliance

A classe alta, por outro lado, comemorava à sua maneira: o príncipe-eleitor de Colônia Clemens August (1700-1761), por exemplo, organizava todos os anos um estupendo baile de máscaras para os senhores da Igreja e a alta sociedade.

Quando as tropas de Napoleão ocuparam a região onde fica Colônia, viram as festas de Carnaval com certo ceticismo e temporariamente proibiram os festejos. Tarefa nada fácil, pois os foliões já não festejavam nas ruas, mas nas hospedarias.

Em 1815, foram os prussianos a ocupar Colônia, e a cidade voltou ao domínio alemão. Os ocupantes permitiram as folias, que, segundo testemunhas da época, tornaram-se cada vez mais desbragadas: "A devassidão desenfreada e a grosseria se espalharam. Cometia-se muito desatino sob a máscara da folia, e muitas máscaras eram imorais e desrespeitosas."

A festa passa a ser organizada

Para certos colonianos influentes, a coisa passara dos limite: em 1823, fundaram um comitê coordenador, organizaram um desfile e criaram o personagem "Herói Carnaval". Com seu "caráter nobre", ele deveria acabar com os abusos. Mais tarde, seria rebatizado "Príncipe do Carnaval de Colônia". 

Carnaval é para muitos oportunidade de celebrar amizades (Foto: Christoph Reichwein/dpa/picture alliance)

Desde 1883, ele tem a seu lado a "Virgem de Colônia", que simboliza a liberdade da cidade. Ela é tradicionalmente retratada por um homem, já que os clubes carnavalescos eram − e muitas vezes ainda são − sociedades puramente masculinas.

O chamado "triunvirato" que reina sobre os foliões em Colônia e completado pela figura do Camponês. Em outros lugares de tradição carnavalesca da Alemanha, os dias da folia são regidos pelo príncipe e sua princesa. Mas uma coisa os une a todos: eles abrem a temporada de Carnaval na Alemanha em 11 de novembro, ou seja, 11/11. Neste dia, às 11h11, é dado início à temporada de Carnaval na Alemanha, que só se encerra na Quarta-feira de Cinzas.

A magia do número 11

A data não redonda é um "número maluco" (Narrenzahl), como se diria na Idade Média. Na época, o 11 de novembro, dia de São Martinho, marcava o início de um período de jejum até o Natal, antes do qual a população ainda queria festejar. Além disso, o 11 representaria a igualdade de todos os foliões: dois simples números 1, um ao lado do outro, ambos com o mesmo valor.

Por último, mas não menos importante, há uma interpretação cristã: o 11 é um a mais do que os dez dedos das mãos, mas um a menos que o número de apóstolos. Portanto nem meio nem cheio − com um toque de pecaminosidade.

Suzanne Cords | Roselaine Wandscheer para Deutsche Welle. Publicado originalmente em 17.02.23

Zelenski insta artistas a escolherem um lado


Em discurso na abertura da 73ª edição do Festival de Cinema de Berlim, presidente ucraniano afirma que cinema deve se posicionar politicamente e que arte e cultura devem decidir se apoiam "a tirania ou a civilização".

O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, discursou na noite desta quinta-feira (16/02) na abertura da 73ª edição da Berlinale, o Festival de Cinema de Berlim. Ele fez um paralelo entre o muro de Berlim e a guerra na Ucrânia e instou os artistas a se posicionarem.

Logo que apareceu em vídeo no telão da cerimônia, Zelenski traçou uma linha entre a guerra e o cinema. Atualmente, ele rompe a chamada quarta parede - uma alusão à demarcação imaginária entre filme ou palco, de um lado, e o público, do outro.

"O cinema pode superar essas barreiras, tanto reais quanto ideológicas", disse Zelenski, referindo-se ao filme alemão Asas do Desejo (1987), do diretor de Wim Wenders, no qual anjos atravessaram o Muro de Berlim.

Onde antes ficava o Muro, hoje bate o coração da Berlinale.

Civilização ou tirania?

"Hoje é a Rússia que quer construir esse muro na Ucrânia: entre nós e você", disse Zelenski. A arte e a cultura precisam responder de qual lado querem estar: da civilização ou da tirania.

"O cinema deve ficar fora da política?", perguntou Zelenski, para logo após responder: "Não se for uma política de crimes em massa, assassinato e terror, a política da Rússia de hoje". Ficar em silêncio só ajuda o "mal".

A Berlinale decidiu apoiar a Ucrânia. Zelenski citou o lema da primeira Berlinale, em 1951: vitrine do mundo livre.

"Hoje, a Ucrânia é uma fortaleza do mundo livre, que resiste há um ano", afirmou.

Gestão de Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian quer colocar a solidariedade à Ucrânia e ao Irã no centro do festival (Foto: Fabrizio Bensch/REUTERS)

Na cerimônia de abertura, a coordenadora da Berlinale, Mariette Rissenbeek, leu uma declaração: "A Berlinale e todos os cineastas declaram sua solidariedade com o povo da Ucrânia em sua luta pela independência e condenam a guerra de agressão nos termos mais fortes possíveis".

Além da estreia mundial de Superpower, de Sean Penn, outros trabalhos da Berlinale abordam a situação da Ucrânia, às vésperas da data que marca um ano do início da guerra. É o caso do documentário Eastern Front, filmado por Vitaly Mansky e Yevhen Titarenko na linha de frente de combate.

Iron Butterflies, um ensaio poético de Roman Liubyi, tem como ponto de partida o avião de passageiros MH17, da Malásia, que foi abatido sobre o leste da Ucrânia em 2014.

Já o documentário In Ukraine, de Piotr Pavlus e Tomasz Wolski, mostra, segundo o festival, a "realidade em que o país vive desde 24 de fevereiro de 2022".

Sean Penn esteve com Zelenski um dia antes do começo da invasão russa (Foto: Fabrizio Bensch/REUTERS)

Guerra mudou os planos de Sean Penn

O vencedor do Oscar Sean Penn retornou recentemente de Kiev. "Nada mudou na vontade do povo ucraniano", disse Penn, cujo documentário Superpower fará sua estreia mundial nesta sexta-feira na Berlinale.

Originalmente, Penn queria fazer um filme sobre a trajetória de Zelenski de ator e comediante de stand-up a presidente. Mas, em 24 de fevereiro de 2022 a Rússia invadiu a Ucrânia. "Isso mudou tudo", disse Penn, que estava na Ucrânia no início da guerra e conheceu Zelenski um dia antes da invasão russa.

Em solidariedade aos protestos no Irãily Atef, declararam sua solidariedade aos protestos no Irã no tapete vermelho  (Foto: Fabrizio Bensch/REUTERS)

"Qualquer um que faça filmes e mostre filmes em tempos sombrios resiste à falta de liberdade", disse a ministra da Cultura alemã, Claudia Roth, em seu discurso na cerimônia.

Ela disse que gostaria de entregar um prêmio a todas as pessoas "que esta noite não caminham em tapetes vermelhos, que não estão no centro das atenções, mas que resistem nos porões, nas estações de metrô ou na linha de frente".

Roth também lembrou das mulheres no Irã e no Afeganistão (Foto: Fabrizio Bensch/REUTERS)

Roth também lembrou das mulheres no Irã e no Afeganistão e dos homens que as apoiaram em sua luta pela liberdade, e disse que seu coração "também está com as vítimas do terrível terremoto na Turquia e na Síria".

A noite de abertura foi seguida pela exibição do filme She Came to Me, que está fora de competição no festival. Na comédia de Rebecca Miller, Peter Dinklage (Game of Thrones) interpreta um compositor em crise.

Torsten Landsberg, o autor deste texto, é jornalista. Publicado originalmente por Deutsche Welle - DW, em 17.02.23

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

A democracia resiste

A recessão democrática que assombrou o mundo nos últimos anos aparentemente foi interrompida em 2022, aponta índice da Economist Intelligence Unit, mas o trabalho está só no começo

A democracia segue sob ataque, mas a situação parou de piorar, segundo a mais recente edição do Índice de Democracia elaborado pela Economist Intelligence Unit, divisão de pesquisas do grupo responsável pela revista britânica The Economist. De 2016 a 2021, esse indicador capaz de medir o vigor da democracia em 167 países e territórios havia descido gradativamente até o patamar mais baixo de sua série histórica, iniciada em 2006. Agora o índice mostra que o declínio democrático foi interrompido em 2022, um alívio em meio a tantas turbulências. Resta saber, porém, se o freio na escalada autoritária terá força para se impor daqui para a frente − ou se foi mero espasmo.

Na escala de 0 a 10, a média global do Índice de Democracia ficou em 5,29 no ano passado, um acréscimo de 0,01 em relação ao resultado de 2021. Essa mínima variação não chegou a ser classificada como aumento, mas estagnação, o suficiente para conter a espiral descendente dos últimos anos. A única região a apresentar avanços democráticos expressivos foi a Europa ocidental, cujo indicador cresceu de 8,22 para 8,36. Ao todo, 75 países subiram na tabela, bem mais que os 47 registrados em 2021.

Por outro lado, houve graves retrocessos. A Rússia foi a nação que mais perdeu posições em meio à onda de repressão e censura interna que se seguiu à criminosa e inaceitável invasão da Ucrânia. A China, por sua vez, fez valer seus poderes ditatoriais ao implementar uma política de tolerância zero em relação à covid-19, mantendo milhões de pessoas trancadas em casa no terceiro ano da pandemia. O norte da África e o Oriente Médio puxaram a média global para baixo, enquanto a América Latina e o Caribe tiveram nova queda no indicador: de 5,83 para 5,79.

O Índice de Democracia classifica os países em quatro grupos. No topo estão as chamadas “democracias plenas”, categoria que passou de 21 para 24 nações, com a reinclusão de Chile, Espanha e França em 2022. Vale notar que esse seleto grupo, liderado pela Noruega e formado majoritariamente por europeus, concentra apenas 8% da população mundial. Consideradas as “democracias falhas”, entre as quais se encontram Brasil e Estados Unidos, as democracias alcançam 72 países, respondendo por menos de metade da população mundial − um dado que diz muito sobre o déficit democrático. As demais categorias são a dos “regimes híbridos”, na qual o Peru acaba de ingressar, e a dos “regimes autoritários”, caso de Venezuela, Nicarágua, Cuba e Haiti.

O relatório da Economist Intelligence Unit faz referência à falta de consenso internacional acerca dos critérios para medir o grau de democracia de um país. O índice é calculado com base em 60 indicadores de 5 grandes áreas: processo eleitoral e pluralismo; liberdades civis; funcionamento do governo; participação política; e cultura política. Embora não esgotem o conceito de democracia, essas categorias jogam luz sobre diferentes aspectos a serem observados para que se possa falar, efetivamente, em regime democrático. Cabe destacar alguns dos parâmetros por trás do conceito de “democracias plenas”: existência de Poder Judiciário independente, sistema eficaz de freios e contrapesos, imprensa livre e uma cultura política que estimule a participação popular. Eleições justas e livres, claro, pressupõem respeito ao resultado das urnas e transferência pacífica de poder.

O Brasil perdeu quatro posições neste ano e aparece na 51.ª posição, com índice de 6,78, atrás de países como Argentina, Índia e África do Sul. O relatório assinala que a eleição presidencial brasileira foi a mais polarizada da América Latina em 2022 e menciona os ataques do então presidente Jair Bolsonaro às urnas eletrônicas, além dos atos golpistas do último dia 8 de janeiro − citados, corretamente, como um risco “para o futuro da democracia brasileira”. Risco esse, vale dizer, que deve ser desbaratado com a força das instituições do País.

O Índice de Democracia sinalizou que é possível frear a erosão democrática global, um alento para quem se opõe à escalada autoritária. Repetir tamanho passo em 2023 e nos próximos anos é um desafio para democratas no mundo inteiro.

Editorial /  Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.02.23

O Judiciário deve voltar ao normal

Não há mais qualquer razão objetiva a impedir que juízes e servidores voltem ao trabalho presencial

Supremo Tribunal Federal, régua e compasso de todo o Poder Judiciário brasileiro

Os magistrados e demais servidores do Poder Judiciário devem voltar ao trabalho presencial a partir do próximo dia 16, como determina uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 17 de novembro do ano passado. Foram três meses de preparação para esse retorno aos fóruns.

Não obstante, associações de juízes e sindicatos de servidores têm resistido à ordem do CNJ. Não há, porém, qualquer razão objetiva para essa relutância, apenas o apego a certos confortos particulares. Há servidores que reclamam de eventuais “prejuízos à rotina” que a volta ao trabalho presencial poderia causar. Outros argumentam, pasme o leitor, que durante o trabalho remoto passaram a ter uma “vida organizada no exterior”, como se a natureza do serviço público que prestam não exigisse o vínculo territorial.

Quase três anos depois, o fato é que ainda não é possível dizer que a pandemia de covid-19 acabou. Mas, graças ao progresso da vacinação, o vírus não representa mais uma ameaça à saúde das pessoas a ponto de demandar o prolongamento do trabalho remoto para a prestação de serviços públicos. Tanto que a esmagadora maioria dos servidores dos Poderes Executivo e Legislativo também já voltou ao trabalho presencial.

Excetuando-se casos muito particulares, como, por exemplo, a prestação dos serviços de saúde e de transporte, praticamente todo o País já voltou àquela vida conhecida antes da eclosão da emergência sanitária. Por que só os servidores do Judiciário não haveriam de voltar?

Quando acorrem à Justiça, é aos magistrados que os cidadãos expõem suas maiores angústias, depositando nesses servidores toda a sua esperança por uma decisão que lhes seja favorável. A Justiça lida, primordialmente, com tudo que toca o humano. Nesse sentido, o contato presencial é fundamental.

Evidentemente, há casos e casos. Talvez esses três últimos anos tenham servido para mostrar que certos serviços podem continuar sendo prestados pela Justiça de forma remota sem qualquer prejuízo para os cidadãos. Decerto o CNJ sopesou perdas e ganhos ao tomar a decisão de impor a volta ao trabalho presencial.

Uma vez decidida a questão, não cabe mais às associações e sindicatos contestar a decisão colegiada; cabe cumpri-la. Uma das atribuições do CNJ é zelar pela eficiência na prestação dos serviços judiciais. A decisão de novembro passado leva em consideração essa missão do colegiado.

Enquanto servidores reclamam de supostos “prejuízos” causados pelo retorno ao trabalho presencial – como se essa não fosse a realidade com a qual todos estavam acostumados até bem pouco tempo atrás –, muitos advogados, segundo apurou o Estadão, não encontram juízes para despachar seus processos, que ficam dormitando nos escaninhos da Justiça, e reclamam de longa espera pela marcação de audiências.

Como bem disse o ministro relator da resolução do CNJ, Luiz Philippe de Mello Filho, do Tribunal Superior do Trabalho, “o retorno da magistratura aos seus respectivos locais de trabalho é imperativo inegociável neste momento em que toda a sociedade já voltou à situação de normalidade”.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 15.02.23

Superficialidade, imediatismo e conturbação atingiram as Forças Armadas

Hierarquia e disciplina, bases institucionais constantes em nossa Lei Magna, representam a própria essência da força armada. 

General Richard Fernandez

Em abril do ano passado, em artigo publicado no Blog do Exército Brasileiro, provoquei o pensamento crítico dos leitores com a cunhagem do acrônimo PSIC, para caracterizar o ambiente informacional da atualidade.

Decorridos dez meses, retorno ao tema, por constatar que a precipitação, a superficialidade, o imediatismo e a conturbação atingiram patamares consideráveis, devido ao comportamento de muitos civis e militares, quando o assunto abordado é o papel desempenhado pelas Forças Armadas no cenário nacional.

Tratando especificamente do Exército Brasileiro, cabe relembrar que sua História, cuja gênese remonta às Batalhas dos Guararapes, confunde-se com a própria evolução histórica do País. A atuação da Força Terrestre é ampla e abrangente, cobrindo nosso território de dimensões continentais com o braço forte e a mão amiga, o que exige tomada de decisões desde os níveis político e estratégico aos ambientes operacional e tático. A cada um desses níveis correspondem especificidades no que tange ao estudo de situação e à liderança. É bem sabido que não há solução tática capaz de corrigir uma formulação estratégica inadequada. E é indispensável destacar que só se chega aos mais altos postos percorrendo-se todos os graus hierárquicos, após décadas de dedicação à carreira das armas. Ninguém ingressa no Exército como general!

Essa óbvia constatação é importante para que se compreenda o contexto ético-profissional que distingue a carreira militar. Hierarquia e disciplina, bases institucionais constantes em nossa Lei Magna, representam a própria essência da força armada. São conceitos que traduzem o exato cumprimento do dever e o respeito à cadeia de comando, composta por autoridades, em todos os escalões da estrutura da Força, que alcançam determinada posição, tendo experimentado as vicissitudes de seus subordinados.

Esse arcabouço ético também é composto pelos valores indispensáveis a quem se dispõe a seguir a vida militar: patriotismo, coragem, lealdade, camaradagem, espírito de corpo, fé na missão, entre outros. Esses valores, ainda que universais, podem manifestar-se de modo distinto, conforme o nível de atuação considerado. A coragem esperada de um comandante tático, por exemplo, não se expressa da mesma forma que a de um líder no nível estratégico. Semelhante na essência, distingue-se na demonstração. Se do primeiro se requer o acatamento imediato da ordem recebida para conduzir seus subordinados ao cumprimento da missão; do outro se espera firmeza na defesa de princípios e valores, de tal forma que, por vezes, dizer "não" pressupõe muito mais coragem do que alinhar-se a eventuais pressões de caráter político.

E o que o Mundo PSIC tem a ver com isso? Tudo! Pois é exatamente na dimensão informacional que temos assistido a condutas em desacordo com a ética militar por parte daqueles que, por indignação, ingenuidade, desconhecimento e, até mesmo, má-fé, têm contribuído para disseminar a desinformação, a relativização de valores e, consequentemente, a desunião que enfraquece o espírito de corpo. Fica a pergunta: a que interesses servem tais pessoas?

Analisando-se o que têm expressado, via de regra em mídias sociais e aplicativos de mensagens, que adicionaram a comodidade do anonimato a esse tipo de atitude, facilmente se identificam as componentes PSIC.

A precipitação é marca típica desse ambiente repleto de meias-verdades e fake news, onde se disparam e replicam mensagens sem a menor preocupação com a veracidade dos fatos e a idoneidade das fontes. Toma-se como verdade, de modo absolutamente irresponsável, conteúdos com juízos de valor destinados ao ataque a reputações e à crítica a decisões dos escalões superiores. Iniciado o processo, que é realimentado por “gatilhadas” digitais, o que se produz é uma verdadeira marcha da insensatez. A um militar que se preza não se permite essa falta de cuidado e de lealdade para com a instituição a que serve.

A superficialidade é outro aspecto dissonante do comportamento ético. A atividade militar é, por natureza, grave e complexa. Em tempos de paz ou de conflito armado, lida-se com o poder dissuasório da Nação. Soluções simples para problemas complexos não são a regra. Tratar o emprego do Exército com base em análises simplórias de "especialistas" de ocasião, é o caminho mais seguro para se chegar a concepções inoportunas, parciais e ineficazes, o que é inadmissível por quem quer que tenha um mínimo de seriedade no processo de tomada de decisão. Quando um militar extrapola a esfera de suas atribuições, e passa a opinar publicamente sobre o que não é de sua competência, contribui para o descrédito na cadeia de comando e no cumprimento da missão.

O imediatismo, por princípio, não se coaduna com o caráter permanente atribuído às forças armadas no texto constitucional. A relação custo-benefício de se trocar ganhos imediatos por duradouros resultados positivos costuma caracterizar vitória de Pirro. Os preceitos da ética militar indicam claramente que não se pode prejudicar a reputação e a credibilidade do Exército, conquistadas em séculos de História, por conta do oportunismo de uns e do jogo de interesses de outros, algo que tem sido observado em inúmeras postagens veiculadas em tempos recentes.

A conturbação talvez seja o aspecto mais danoso do Mundo PSIC. A excessiva polarização da sociedade e a atuação dos extremos do espectro ideológico no ambiente informacional têm gerado visões radicais, resultando num círculo vicioso de intolerância e de absoluta ausência de diálogo. Essa situação é inaceitável aos membros de uma instituição apartidária, que se orgulha de oferecer oportunidades a todos os brasileiros, sem distinção de classe social, raça, gênero e credo. O inconformismo com a tradicional postura legalista e de neutralidade do Exército tem dado ensejo a insultos a camaradas de longa data, ataques a reputações típicos de regimes totalitários, "vazamentos" de supostas informações, divulgação de memes difamatórios, tudo para tentar atingir a coesão da Força, em flagrante traição ao sacrossanto respeito à hierarquia e à disciplina

Sendo os recursos humanos a força da nossa Força, é imperioso reafirmar diuturnamente a essencialidade da prática e do culto aos princípios e valores característicos da profissão militar para o aprimoramento da capacidade operacional necessária ao cumprimento de suas diversas missões.

Richard Fernandez Nunes, o autor deste artigo, é General de Exército. Publicado originalmente no Blog do Exército Brasileiro. Reproduzido pelo Consultor Jurídico, em 15.02.23

Ministério das Comunicações e Correios enviam chips de celular, mas não há sinal na área Yanomami

Ministério das Comunicações e Correios negam restrições no uso da tecnologia e dizem que localização de equipes do governo que atuam em ação humanitária na região “é dinâmica”

Ministro Juscelino Filho e presidente dos Correios, Fabiano Silva, celebram envio de 1 mil chips para a terra indígena Yanomami Foto: Ministério das Comunicações

O ministro das Comunicações, Juscelino Filho, enviou mil chips de celular para serem utilizados nas operações humanitárias que acontecem na terra indígena Yanomami, em Roraima, mas que não funcionam dentro da área demarcada. A limitação tecnológica deve-se a um fato simples: não há cobertura da operadora celular na terra indígena, localizada a 230 quilômetros de distância da capital Boa Vista.

A informação foi confirmada à reportagem pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). “A região fica em local isolado sem atendimento das prestadoras móveis, que têm obrigações de atendimento nas sedes municipais, localidades e aglomerados urbanos”, declarou o órgão de fiscalização, por meio de nota. Na prática, o que o ministro deu foi um cartão que, sem aparelho celular ou rede de cobertura, não funciona.

Ação do Ibama avança em terra Yanomami com destruição de aeronaves e balsas do garimpo; veja vídeos 

No dia 9, Juscelino pegou um helicóptero e, ao lado do governador de Roraima, Antonio Denarium, saiu de Boa Vista e sobrevoou a terra indígena. Foram três horas de voo e de tentativas de descer no local, mas o mau tempo impediu a aproximação. Nas suas redes sociais, divulgou os atos e afirmou que cumpria uma convocação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que convocou os ministros a ajudar na crise dos Yanomami.

Na sexta-feira, 10, o ministro fez o anúncio sobre o envio dos chips ao lado do presidente dos Correios, Fabiano Silva, com o objetivo de “facilitar a comunicação entre as equipes que prestam assistência nas terras indígenas Yanomami, localizadas entre os Estados de Roraima e Amazonas”.

Em comunicado conjunto, declararam que os dispositivos “dão acesso à internet, fornecendo conexão aos grupos que precisam se comunicar em meio aos trabalhos de assistência aos indígenas”.

Na prática, o uso dos chips se mostra limitado, porque, dentro da terra indígena Yanomami, a única forma de conexão viável se dá por meio de conexão via satélite. Não por acaso, o próprio Ministério das Comunicações formalizou, em parceria com a Eletrobras, a instalação de 17 antenas móveis dentro do território dos indígenas, que permitirão o acesso à internet sem fio por meio de satélite usando qualquer tipo de aparelho, como celulares e computadores. Isso significa, portanto, que os usuários farão uso de aparelhos celulares que já possuem para se conectarem à rede aberta, ou seja, sem ter a necessidade de utilizar um novo chip ou mesmo de ter um dispositivo.

Essenciais. No anúncio da parceria com o ministério, o presidente dos Correios, Fabiano Silva, disse que seus chips seriam “essenciais” para as ações dos grupos. “Nesses momentos de crise, todo apoio possível será feito. Com os chips Correios Celular, garantiremos agilidade na comunicação, o que facilitará a coordenação dos trabalhos de assistência”, disse.

No evento, o ministro reforçou a ideia. “Estamos empenhando todos os esforços para auxiliar no atendimento a essa crise que assolou os Yanomami e chocou o mundo”, disse Filho. “Já enviamos 17 antenas com conexão banda larga via satélite, livre e gratuita, e agora estamos enviando, junto com os Correios, chips para reforçar a comunicação.”

Desde 2017, os Correios atuam como um tipo de “operadora virtual” de telefonia. Na região de Boa Vista, a estatal faz a locação da estrutura que é fornecida pela empresa Surf Telecom, que, por sua vez, aluga a rede de telefonia móvel da operadora TIM. Isso significa que qualquer celular com chip do Correios Celular só vai funcionar se estiver na área em que a TIM tiver cobertura, o que não inclui a terra Yanomami.

Em Boa Vista, é comum a situação de queda dos serviços de telecomunicações, que ficam sobrecarregados e, muitas vezes, passam horas fora do ar, seja para telefonia ou para internet. Essa situação ocorreu, por exemplo, no dia 1º de fevereiro, quando os serviços ficaram completamente paralisados por cerca de três horas.

Por meio de nota conjunta, o Ministério das Comunicações e os Correios declararam que “os chips foram enviados para facilitar a comunicação entre as equipes humanitárias e de apoi+o que estão prestando assistência à população”. O órgão negou que os itens sejam desnecessários. “Naturalmente, a localização dessas equipes é dinâmica, entretanto, suas bases possuem a cobertura do serviço. Portanto, a informação de que os chips não funcionam não é verdadeira”, afirmou.

Questionados a respeito do custo dos itens, a pasta e os Correios declararam que, “nesta ação específica que tem o objetivo de auxiliar na comunicação das equipes que trabalham na ação humanitária coordenada pelo governo federal, os chips não tiveram custo para os Correios” e cada componente recebeu R$ 40,00 de crédito “para serem utilizados pelas equipes que estão prestando apoio na região”. Se os valores forem utilizados, há previsão de que novos créditos sejam lançados, segundo os órgãos do governo federal.

A respeito da escolha especifica de chips da operadora TIM, o ministério e a estatal afirmaram que o Correios Celular é um serviço prestado no modelo de operadora móvel com rede virtual. “Operamos em parceria com a Surf Telecom, que por sua vez utiliza a rede da TIM nas áreas em que ela não possui rede de cobertura própria.”

A reportagem questionou a operadora TIM sobre a sua estrutura local, alugada para a Surf Telecom e sublocada para os Correios, e a capacidade de suportar, em Boa Vista, a eventual demanda de tráfego de dados de 1 mil novos chips oferecidos pela estatal. Por meio de nota, a TIM limitou-se a declarar que “fornece infraestrutura de rede para várias MVNOs nas áreas onde tem cobertura de rede” e que “ainda que não possui relação comercial com Correios Celular”.

A Anatel declarou que o fornecimento dos chips “pretende facilitar a comunicação entre as equipes humanitárias e de apoio que prestam assistência nas terras indígenas Yanomami”, localizadas entre Roraima e Amazonas. “Os dispositivos dão acesso à internet, fornecendo conexão aos grupos que precisam se comunicar em meio aos trabalhos de assistência aos indígenas”.

Conforme o Estadão revelou, o ministro das Comunicações Juscelino Filho usou R$ 5 milhões do orçamento secreto para asfaltar a estrada que passa em frente a oito fazendas dele e da família, no interior do Maranhão. Além disso, amigos do ministro se beneficiaram do esquema, ao vencerem licitações de R$ 36 milhões em Vitorino Freire (MA), cidade governada pela irmã de Juscelino, Luanna Rezende. O ministro também forneceu informações falsas para a Justiça Eleitoral, ao usar R$ 385 mil do fundão eleitoral na contratação de voos de helicóptero durante a campanha de 2022.

André Borges, dse Brasília - DF para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 15.02.23

O que Centrão quer para apoiar governo Lula

 No momento, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda não tem uma base de apoio sólida no Congresso para garantir a aprovação de matérias do seu interesse, até porque siglas de centro-esquerda são minoria no Parlamento.

Planalto avalia manter indicações políticas nomeadas por Bolsonaro em busca de votos no Congresso (Reuters)

Mudou o presidente, mas cetenas de cargos na administração federal tendem a permanecer nas mãos de indicados do chamado Centrão — grupo de partidos de centro-direita que costumam apoiar diferentes governos em troca de verbas e espaço na máquina pública.

Os órgãos mais desejados são aqueles com grande orçamento e capilaridade no território nacional, ou seja, com verba e alcance para impactar realidades locais e gerar mais dividendos políticos.

É o caso, por exemplo, da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) ou das superintendências do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e da Amazônia (Sudam).

Conseguir que aliados ocupem cargos nesses órgãos permite a políticos ampliar sua influência em suas bases eleitorais, o que tende a se transformar em mais força política nas eleições seguintes.

No momento, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda não tem uma base de apoio sólida no Congresso para garantir a aprovação de matérias do seu interesse, até porque siglas de centro-esquerda são minoria no Parlamento.

Por isso, sua gestão está aberta a negociar esses cargos até mesmo com integrantes de partidos que eram da base do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e hoje se colocam como independentes, como Republicanos e PP. A ideia é conseguir ao menos parte dos votos dessas siglas no Congresso.

Além disso, partidos grandes da centro-direita que receberam o comando de alguns ministérios, como MDB, PSD e União Brasil, mas que não estão integralmente fechados com o Palácio do Planalto, também desejam mais espaço no governo.

E, claro, na disputa por esses cargos, também estão os partidos mais próximos a Lula, como o próprio PT.

Essas nomeações, porém, seguem ainda em ritmo lento, enquanto intensas negociações acontecem nos bastidores.

“Tem deputados reclamando. Por que estão disponíveis, querendo ajudar (o governo), mas nada ainda”, disse um deputado do PP à BBC News Brasil.

“A desconfiança que nós estamos é que os líderes (dos partidos no Congresso), o presidente da Câmara (Arthur Lira, do PP de Alagoas) vão tentar segurar na mão deles essa interlocução por cargos”, afirmou ainda.

Segundo este parlamentar, mesmo o senador Ciro Nogueira, presidente do PP e ex-ministro de Bolsonaro, dizendo que o partido deve ficar na oposição, parte da sigla pretende apoiar o novo governo. No entanto, ressaltou, esses deputados podem inicialmente votar contra o Planalto.

“O que vai acontecer na prática: uns quatro ou cinco deputados do PP vão votar contra. Por que, se a gente vota a favor, os caras vão inverter a gente (da ordem de prioridades)”, calcula.

Outras lideranças falam abertamente do desejo por cargos. Segundo o presidente do União Brasil, Luciano Bivar (PE), seu partido tem interesse por Codevasf, Dnocs e Sudene.

“O PT é feito por pessoas inteligentes, que sabem que, para fazer política é necessário ter espaços. Quanto mais espaços tivermos no governo, mais apoios poderemos garantir”, disse em entrevista recente ao jornal O Globo.

Indicações antigas ‘podem ser aproveitadas’, diz ministro

Questionado pela BBC News Brasil, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), confirmou o diálogo com todos que tenham interesse em colaborar com o governo.

Ele afirmou, inclusive, que o Planalto pode manter pessoas que foram nomeadas na administração anterior.

Na Codevasf, por exemplo, há nomes indicados por políticos do União Brasil e do PP.

“Às vezes, já tinham pessoas indicadas, que já tinham um papel em determinadas áreas, estão sendo avaliadas. Se forem competentes, tecnicamente competentes do ponto de vista político, têm capacidade de diálogo com a sociedade, podem ser aproveitadas”, disse o ministro.

Padilha afirmou ainda que o governo tem interesse em acelerar as nomeações e que há muitos “currículos” sendo analisados, indicados por “movimentos sociais, segmentos econômicos, entidades e parlamentares”.

“Estamos trabalhando a partir dessas indicações, e são os ministros que definem, chamam as pessoas para serem entrevistadas, avaliam os currículos. Se aliar competência técnica com a competência política para construir uma política pública e, além disso, reforçar uma indicação do Congresso Nacional, melhor ainda”, ressaltou.

Por que esses cargos são tão visados?

A Codevasf tornou-se um caso emblemático que ilustra bem o apetite político.

Criada originalmente em 1974 para apoiar o desenvolvimento regional da bacia do rio São Francisco, sobretudo com projetos de irrigação em áreas afetadas pela seca, a companhia aumentou fortemente sua área da atuação nos últimos anos.

Durante o governo Bolsonaro, passou a executar bilhões de reais em emendas parlamentares, dentro do chamado Orçamento Secreto, em ações como pavimentação de vias ou doação de tratores e caminhões para prefeituras.

Sua expansão começou a partir de 2000, quando o Congresso passou a aprovar a inclusão de novas bacias hidrográficas na área coberta pela Codevasf, elevando o número de municípios atendidos. Mas esse processo se intensificou nos últimos anos, quando a quantidade de municípios alcançados deu um salto em 2018 (de 1.020 para 1.641) e em 2020 (de 1.641 para 2.675).

Isso resultou em mais escritórios e superintendências nos Estados e mais cargos comissionados disponíveis para indicações políticas, além de ampliar a possibilidade de destinação de recursos pelo país.

Na mudança mais recente, aprovada a partir de um projeto de lei do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), a Codevasf passou a atuar no seu Estado, o Amapá, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, além de aumentar a área atendida em mais nove Estados.

Na ocasião, Alcolumbre disso à TV Senado que a ampliação serviria para obras de infraestrutura hídrica, revitalização de orlas de cursos d'água, construção de barragens, saneamento básico, além de estruturar as cadeias produtivas pela economia criativa, artesanato e do cultivo de hortaliças e frutos orgânicos.

Segundo a Codevasf, a companhia já destinou R$ 360 milhões para o Amapá, com investimento mais expressivo em rodovias e doação de máquinas.

Já a inclusão do Rio Grande do Norte na área de atuação da companhia viabilizou, por exemplo, a doação de equipamentos de apoio à atividade agrícola para a cidade de Mossoró, como tratores, caminhões-pipa e caminhões, no total de R$ 5 milhões.

Essa, entre outras ações do governo federal, foram lembradas na eleição pelo prefeito da cidade, Allyson Bezerra (Solidariedade), ao manifestar seu apoio à candidatura ao Senado de Rogério Marinho (PL-RN), que foi ministro do Desenvolvimento Regional de Bolsonaro, pasta à qual a Codevasf está submetida. Marinho foi eleito.

“Rogério tem trabalho prestado a Mossoró e, com o apoio do nosso povo mossoroense, chega ao Senado Federal com 47.089 obtidos em Mossoró”, escreveu em seu Instagram o prefeito, destacando as doações de máquinas agrícolas.

A forte expansão da Codevasf foi, porém, acompanhada por denúncias de corrupção. Em janeiro, a Polícia Federal realizou uma operação contra um grupo acusado de fraudes nas doações de tratores pela companhia, por meio de emendas parlamentares, para prefeituras do interior da Bahia.

O governo Lula ainda não trocou o comando da Condevasf. A nomeação do atual presidente, o engenheiro Marcelo Moreira, no governo Bolsonaro é atribuída a uma indicação do deputado federal Elmar Nascimento, líder do União Brasil na Câmara.

Ele chegou a ser indicado por seu partido para ser ministro de Lula, mas foi barrado devido ao forte apoio que deu ao ex-presidente na eleição.

As superintendências estaduais também seguem sob comando de indicados de governos anteriores. A de Pernambuco é chefiada desde julho de 2016 (governo Michel Temer) por Aurivalter Pereira da Silva, indicado pelo então senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), depois de ter atuado em seu gabinete.

Coelho e sua família têm longa tradição de apoio a diferentes presidentes: ele foi ministro da Integração Regional de Dilma Rousseff; seu filho, o deputado federal Fernando Coelho Filho (União Brasil-PE), foi ministro de Minas e Energia de Michel Temer; e depois Bezerra Coelho foi líder da gestão Bolsonaro no Senado.

Já a superintendência de Alagoas continua sob comando de João José Pereira Filho (PP), o Joãozinho Pereira, primo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, a Codevasf pavimentou uma via na pequena cidade de São Sebastião, no interior alagoano, com verbas de emenda parlamentar indicada por Lira, nas proximidades de fazendas do próprio deputado.

Lira, que participou da inauguração da obra no ano passado, disse ao jornal que era uma “inverdade” relacionar a obra federal com sua propriedade, sem prestar maiores esclarecimentos.

Questionada sobre as críticas e as suspeitas contra a atuação da Codevasf, a companhia disse, por meio de nota que “ações e projetos da empresa contribuem para a redução de desigualdades e são empreendidas com abordagem técnica e em resposta a demandas da sociedade, independentemente da origem dos recursos orçamentários”.

A Codevasf afirmou ainda que “possui sólida estrutura de governança implantada” e que “nomeações para cargos de direção observam requisitos técnicos e de experiência estabelecidos pela Lei nº 13.303/2016 e por normas complementares”.

“A diretoria é composta por pessoas com qualificação e experiência cujos nomes são aprovados pela instância de nomeação e destituição, que é o Conselho de Administração da Companhia. A ocupação de cargos em comissão ocorre de acordo com as disposições do Plano de Funções e Gratificações da Empresa e das demais normas aplicáveis”, acrescentou.

Mariana Schreiber, de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 15.02.23

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Só cuida das pessoas quem cuida das contas

Recomendaria ao gestor público privilegiar comunicação e transparência

Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, durante entrevista a podcast da XP - paulohartung no Instagram

Nesta terça-feira (14), recebo a maior honraria do Tribunal de Contas da União (TCU), o Grande-Colar do Mérito. Agradeço à corte e a seu presidente, ministro Bruno Dantas, pela homenagem, significativa menos pelo que tem de pessoal e muito mais pelo que busca distinguir na vida nacional: o bom governo e a política de bases republicanas.

Nesse contexto, minha trajetória tem se traduzido no paradigma de cuidar das contas, ou da efetiva governabilidade, para cuidar das pessoas, de modo que o fazer político dialogue com o seu espírito essencial, que é a "felicidade" dos cidadãos, conforme salientou Aristóteles.



Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo, durante entrevista a podcast da XP - paulohartung no Instagram

A partir das oito eleições que disputei, exerci oito mandatos, quatro no Executivo (prefeito de Vitória e governador do Estado do Espírito Santo —2003-2010 e 2015-2018) e quatro no Legislativo (deputado federal, deputado estadual e senador). Fato comum a todos: a ação republicana em prol do avanço da civilização de bases humanísticas.

No cenário histórico brasileiro, esse caminho enfrenta imensos desafios que, em linhas gerais, podem ser reunidos sob a rubrica da irresponsabilidade e da inconsequência político-governativa sustentadas pelo desprezo à maioria de nosso povo. Tal contingência é visível no desarranjo fiscal e no descompromisso com políticas públicas, baseadas em evidências, de reestruturação da nossa sociabilidade —tão marcada por desigualdades e injustiças socioeconômicas.

Se há algo comum na cena governativa do país é o enfrentamento da agenda oriunda de desequilíbrios fiscais. Ao longo de minha trajetória, tive de efetivar três ciclos de ajustes. Primeiramente, na Prefeitura de Vitória, que, após a Constituição de 1988, havia perdido completamente a capacidade de investimento.

Em minhas duas primeiras gestões estaduais, fiz dois ajustes, mas, ao voltar ao governo, em 2015, tive de fazer outro. Os dois primeiros foram no campo da despesa e da receita. Já no terceiro não havia espaço para esse movimento, pois estávamos no meio de uma recessão econômica. Só havia um caminho: ajustar a despesa para o Estado voltar a funcionar e prover os seus serviços

Objetivamente, nesses processos, recomendaria a qualquer gestor público privilegiar a comunicação

—para dentro, na administração, e para fora, junto à sociedade—, além de transparência, sempre. A partir daí, com a boa política e a boa técnica, mais do que fazer ajustes fiscais, é possível efetivá-los com o respeito da sociedade e ainda ganhar eleição.

Em todos os ciclos de ajuste que promovi, fizemos entregas de reconhecido mérito. Para exemplificar, concomitantemente ao ajuste de 2015-16, temos um "case" na educação: saímos do 11º lugar no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e fomos para o 1º na prova de português e matemática. Também registramos a menor mortalidade infantil do Brasil, segundo o IBGE, e o segundo maior índice em expectativa de vida.

Ademais, com Nota A do Tesouro Nacional, demos início ao terceiro ciclo da economia espírito-santense, diversificando o rol de atividades, atraindo novos negócios e adensando cadeias produtivas já existentes.

Assim como fizemos na prefeitura da capital capixaba, também organizamos e efetivamos um sistema de fomento de ciência, pesquisa e tecnologia, contemporâneo do nosso tempo, seja na sua agenda, seja na sua formatação.

No campo da sustentabilidade, algo crucial às atuais e futuras gerações, fomos pioneiros no Pagamento por Serviços ambientais (PSA), alocando recursos de royalties de petróleo em um fundo específico de preservação e recuperação de florestas em áreas estratégicas do estado do Espírito Santo, notadamente regiões de captação de água de chuvas e nascentes.

Então, volto a destacar: só cuida das pessoas quem cuida das contas. Isso a partir de muita dedicação e diálogo para fazer o que precisa ser feito, na imperiosa obra republicana.

A centralidade dos valores humanísticos e fundamentos da política democrático-republicana são meus guias e farol na caminhada que dedico ao propósito de contribuir para a construção de um hoje diferente do que já vivemos como sociedade, sempre somando à formação das bases de um futuro ainda mais distante do agora; próximo, portanto, de um tempo de ampla oferta de oportunidades por uma realidade de prosperidade compartilhada e sustentável.

Paulo Hartung, o autor deste artigo, é economista, presidente-executivo da Iba e membro do Conselho Consultivo do RenovaBR; ex-Governador do Espiríto Santo (2003-2010 3 2015-18). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 14.02.23.

Lula precisa começar a governar

Definir as metas de inflação nesta semana é melhor forma de encerrar um assunto que tem dominado o noticiário e servido de desculpa para o governo não apresentar nova âncora fiscal

A primeira reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN) deste ano será na próxima quinta-feira. Será o primeiro encontro do órgão em sua nova composição, com os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, e o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto. E depois da saraivada de críticas que o presidente Lula da Silva disparou sobre a autonomia da instituição, o atual nível da taxa básica de juros e as metas de inflação, a reunião, que tinha tudo para ser rotineira, será acompanhada com muita expectativa pelo mercado.

Responsável por formular a política monetária e creditícia, o CMN tem várias atribuições, entre as quais a definição das metas de inflação para os próximos anos. Elas são anunciadas, tradicionalmente, em junho, mas é inegável que Lula antecipou esse debate. Quando o presidente critica as metas atuais e não anuncia as novas, os investidores veem no discurso um aumento da percepção de risco e perdem as referências com as quais trabalhavam para nortear seus negócios. A essa incerteza eles respondem com a proteção de seus investimentos. Assim, ainda que o BC tenha mantido a Selic em 13,75% ao ano, a curva de juros futuros, que precificava uma redução no médio prazo, voltou a subir, e o dólar, que chegou a ser cotado a menos de R$ 5, retomou a valorização ante o real.

Em uma entrevista no mês passado, Lula mencionou ser favorável a uma meta de 4,5%, que vigorou na maior parte de seus dois primeiros mandatos. Não foi um porcentual aleatório. Entre 2005 e 2010, quando a meta estava neste patamar, o governo nunca deixou de cumpri-la – nem mesmo após a crise de 2008, quando o BC, sob a presidência de Henrique Meirelles, passou a operar com taxas de juros mais baixas para aquecer a economia. As condições da economia mundial, no entanto, eram em tudo muito diferentes da situação atual. Nos últimos dias, enfim, o governo sinalizou ter a intenção de elevar a meta de 2024 e de 2025 de 3% para 3,5%. Tal mudança contaria, inclusive, com o apoio de Campos Neto.

Como já dissemos inúmeras vezes neste espaço, o importante neste debate não é exatamente o porcentual. O mais relevante é que o País tenha uma meta de inflação crível – seja de 3% ou de 3,5%. Embora haja metas fixadas para os próximos dois anos, elas perderam valor de face quando Lula passou a considerá-las rígidas demais. No CMN, o presidente da República tem dois dos três votos garantidos; ademais, o governo tem prerrogativa e legitimidade para ajustar esses objetivos.

Seria muito positivo, portanto, que o CMN adiantasse essa decisão de uma vez e anunciasse as novas metas já nesta semana. Não se trata apenas de traçar referências para guiar o mercado e ancorar expectativas. Seria a melhor forma de encerrar um assunto que tem dominado o noticiário econômico há semanas e servido como desculpa para o governo não apresentar aquilo de que o País realmente precisa. Já se passou um mês e meio desde a posse de Lula, mas não há nem sinal sobre a âncora fiscal que a equipe econômica vai propor para substituir o surrado teto de gastos.

No Brasil, ter um mecanismo para controlar o avanço das despesas públicas é fundamental para conter a deterioração das expectativas sobre a evolução da dívida pública e, consequentemente, sobre a curva de juros futuros. Metas de inflação, juros, gastos fiscais e endividamento são temas interligados e que geram impacto sobre câmbio, bolsa, crédito, emprego e o Produto Interno Bruto (PIB).

É conveniente, para Lula, culpar Campos Neto – e o ex-presidente Jair Bolsonaro – pelo provável desempenho ruim da economia neste ano. Em parte, ele até tem alguma razão. Há que reconhecer o mérito do governo anterior em destruir o arcabouço fiscal e as duradouras consequências da gastança desenfreada sobre a economia. Mas a eleição acabou e um novo mandato se iniciou. Recolocar o País na rota do desenvolvimento depende das ações e sinalizações do governo atual, sobretudo de Lula, que precisa abandonar a estratégia de criar conflitos e começar a governar.

Editorial /  Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 14.02.231