quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Xandão é o ‘Filho do Século’ do Estado de Direito

“Xandão” não se impressionou com os blefes golpistas e suas ameaças de morte. Não tremeu de medo nem vacilou, sem ter vínculos ideológicos com a esquerda

Ministro Alexandre de Moraes, em sessão plenária do TSE. (Foto: Abdias Pinheiro/SECOM/TSE)

Muitas pessoas de dentro das instituições do Estado – aqui quero me referir a estas sem compará-las com aquelas que na sociedade civil e nos partidos lutaram heroicamente para sustar o avanço do fascismo – merecerão serem lembradas ao longo da nossa história por não desistirem da democracia, num momento de avanço do fascismo em nosso pais. São merecedoras de destaque, pela sua coragem e determinação de denunciar e resistir aos assédios do mal, à ira do seu mito e inclusive aos apelos de moderação da sua conduta.

Estes apelos à moderação para resistir eram e são feitos como se estivéssemos enfrentando adversários políticos normais da democracia, não uma grupo criminoso organizado no Estado para dissolver o Estado de Direito e subordinar todos os seus aparatos à direção unívoca e arbitrária do seu líder – megalômano sem projeto – e também diretor criminoso de um grupo político familiar e não familiar, totalmente fora da lei e radicalmente contra a ordem democrática de 88.

O deputado socialista Giacomo Matteotti, radical na luta antifascista, democrata de esquerda e igualmente de oposição à linha dos comunistas italianos, na fervilhante disputa sobre o futuro da Itália no Século XX, apresentara ao Parlamento (sessão de 30 de maio de 1924) provas das ilegalidades, financiamentos criminosos, violências e assassinatos cometidos por Mussolini e suas esquadras na campanha eleitoral. Era o dia em que Matteotti fora à Tribuna fazer mais uma acusação contra o Duce, afirmando que ele “usaria da força” para – a partir da maioria eleitoral obtida mediante violências e fraudes eleitorais – impor uma ditadura à República Italiana.

Mussolini furioso – no ato e ainda no recinto parlamentar – ordenou então aos seus que castigassem Matteotti “por sua insolência”. Depois de pronunciar sua oração, em 30 de maio de 1924 o deputado ameaçado dissera aos seus colegas de bancada: “Agora podem preparar minha oração fúnebre”. Em 10 de junho de 1924, em Roma, ele é assassinado a punhaladas, depois de ter sido espancado por seus múltiplos assassinos. Assassinatos análogos a este, já ocorreram no país e mais ocorreriam não fossem a resistência popular e a coragem de algumas pessoas de dentro e de fora do próprio aparato de Estado.

Prestemos atenção em dois pequenos fatos que caracterizam todo um período neste ciclo: um cidadão indicado como líder de um grupo neonazista em Casca, no Rio Grande do Sul, sente-se à vontade para entrar com violência num escritório de advocacia, neste 23 de novembro de 2022 e espancar uma advogada que denunciara ameaças neonazistas na cidade, seguindo-a até a rua, onde abertamente prossegue com sua explosão de ódio. O cidadão – evidentemente de extrema periculosidade – vai à Polícia, é ouvido e a seguir liberado. No dia da eleição, nas regiões em que o candidato Lula, tem apoio maciço, ônibus são bloqueados, as pessoas são obrigadas a postar-se como presas, com as mãos à cabeça, num processo de intimidação pública à cidadania, que não se via nem nas eleições rituais durante o Regime Militar.

Contraponto: em pleno ano da graça de 1972 em que a ditadura civil-militar no Brasil estava em alta, mas sob a chancela do Ministério da Educação – com a anuência do Conselho Federal de Educação e Cultura – é republicado o livro antológico de Djacir Menezes “O Brasil no pensamento brasileiro” (de 1956), composto por textos lapidares da nossa elite intelectual, das mais variadas origens ideológicas. Parte da esquerda ainda tentava resistir de forma armada à ditadura -sem sucesso por falta de meios e apoio popular – e Golbery ainda não tinha entrado em ação de forma aberta, para encaminhar a distensão “lenta, gradual e segura.”

Na obra estão Moysés Vellinho, José Honório Rodrigues, Alceu de Amoroso Lima, Anísio Teixeira, Pontes de Miranda, José de Alencar, Victor Nunes Leal, Josué de Castro, Gustavo Corção e Caio Prado Júnior, para mencionar apenas alguns dos “grandes” que foram selecionados. Concluam sobre a diferença com o tempo presente: de um lado, nos idos de 70, uma ditadura que tem um projeto autoritário de país, integrado no campo imperialista e antissoviético, que publica textos de diferentes visões de mundo, no auge da sua força.

De outro lado -hoje – num Governo de medíocres incultos, sectários e extremistas de direita, indica-se para Ministério de Educação um tal de Weintraub, que cultuava como seu líder intelectual e moral um “astrólogo” facínora, tido por ele como referência ética e cultural. É o mesmo Governo que designa como Ministro de Relações Exteriores um tipo ignorante como Ernesto Araújo, que aposta que o melhor para o seu país é ser um pária mundial! A identificação do nosso país com Olavo de Carvalho e com a vontade retrógada e medieval de nos tornarmos um país pária mundial vai custar muito para ser superada nos países civilizados, independentemente dos seus Governos, mais ou menos acessíveis à democracia política moderna.

Como isso foi possível? Quando foi implantado o Regime Militar de 64 os militares já tinham uma elite política a seu serviço na sociedade civil, promovendo a organização do Golpe e formando, depois, um poderoso partido político servil ao Governo, cujo funcionamento disciplinado ocorreu por no mínimo dez anos, até desgastar-se, processualmente com as crises sucessivas do modelo econômico. É importante salientar que no Golpe de 64 os militares tinham um projeto para o país e tinham uma representação política forte nos partidos da direita conservadora, que interagiam com a intelectualidade da academia e fora dela e com as lideranças mais proeminentes da sociedade civil orientada para o conservadorismo e o ritualismo democrático.

No golpismo bolsonárico o “líder” se apressou em montar estruturas paralelas junto ao crime organizado e armar civis para disputar o monopólio da força e das armas com as próprias instituições militares. No episódio atual, portanto, Bolsonaro – o “mito” – tentou formar o “partido militar” depois da eleição, buscando cooptar centenas de militares para cargos de Governo, mas sem conseguir dominar a caserna. Sua pobreza moral e intelectual, sua incapacidade de formular um projeto de nação, por mais tacanho que fosse, impediu que ele se tornasse um verdadeiro líder das corporações Armadas, o que impediu a tentativa de mais um golpe clássico, de caráter militar, na América Latina, que poderia ter sucesso se conseguisse acolhimento no exterior.

Talvez aquele volume de Djacir Menezes seja pouco lembrado pelos nossos jovens pensadores da política e da sociologia no Brasil, embora ele possa fazer toda a diferença para marcar a especificidade, entre o que ocorreu no Brasil nos anos do Regime Militar – à época associado plenamente aos desígnios imperialistas dos Estados Unidos – e aquilo que ocorreu de distópico e duplamente decadente, no regime político representativo do nosso país, que redundou na eleição de um Capitão reformado que veio “para destruir”, como ele mesmo declarou em várias oportunidades.

A decadência da nossa representação liberal-democrática ocorreu, de uma parte, primeiramente porque no próprio exercício democrático da política (que se mantém à beira do precipício infinito) a ordem passou a ser rompida sem que fosse rasgada formalmente a Constituição; num segundo momento, tal ruptura processual tornou-se hegemônica, por um largo tempo, com o apoio dos principais meios de comunicação, esperançosos – junto com a maioria dos empresários que os financiam – que Bolsonaro destruísse a proteção social e trabalhista, depois de obter uma ampla maioria popular.

A maioria delegante outorga nas eleições, então, um mandato legítimo para a extrema direita expandir tranquilamente seu ódio assassino, abrigada dentro das instituições do Estado, que estão divididas e vacilantes, entre o oportunismo adesista ao fascismo, como ocorrera na Alemanha e na Itália e a manutenção da legalidade democrática do Pacto de 88. Feitas as principais reformas, todavia, vem o Orçamento Secreto, que traz à tona um projeto de poder que desloca do poder orçamentário as elites capitalistas para fora das “regras do jogo” previsto na Lei Maior, quando estas passam a buscar na chamada “terceira via” uma solução para sua crise de hegemonia política.

A instituição militar, portanto, não gerou de forma organizada uma situação eleitoral favorável para Bolsonaro ser reeleito, nem se entregou em massa para sua defesa incondicional, diferentemente do que ocorrera em 64. As formas de ilegalidade cometidas em 64 – pronunciamento militar seguido da destruição do tecido constitucional legítimo para tentar legitimar outro – foi gerada por militares e civis que se rebelaram “nos idos de março” contra a “causa” comunista, com a defesa de um projeto de Estado-nação forte e autoritário, que – segundo seus líderes civis e militares – integraria o país (por uma ditadura datada) no “mundo ocidental e cristão”.

Já no caso do ascenso do “regime bolsonárico” – um político medíocre que disse ser adepto do assassinato dos seus adversários e ter afirmado que viria para “destruir”, há uma corrosão do sistema “por dentro” das instituições. E ele o faz com o apoio majoritário do Congresso e ergue o fascismo – sem o apoio expresso ou o estímulo das instituições militares – à condição de uma alternativa política concreta, quase consagrada num processo eleitoral de reeleição, no qual ele lutou até o fim para fraudar. Os tempos já eram outros, a grande imprensa e as elites burguesas saturaram da sua vulgaridade e temeram que a destruição do país, que ele já estava executando, pudesse chegar aos seus negócios de uma maneira avassaladora.

“M. o filho do Século”, é o livro de Antonio Scurati, que narra a ação política de Mussolini entre o período que vai de 1919 e 1925, narrativa calcada numa vasta documentação da época, que mostra o ascenso da vontade contra a força das instituições. Aponta os namoros dos velhos políticos liberais italianos com o autoritarismo, a cínica postura dos monárquicos, a tentativa de cooptar os intelectuais – no que M. foi bem-sucedido em parte – a grandeza épica da fala do “mito”, reinventando o passado e redesenhando as promessas para ao futuro, junto aos ouvidos das massas cansadas do liberal–democratismo retórico, sem resultados na sua vida cotidiana.

O filho do século, no protofascismo brasileiro, todavia, não estava próximo às estruturas do Estado, nos lugares onde se reproduzia o golpismo bolsonárico (Congresso e Executivo), nem na sociedade civil, que as lideranças fascistas tentavam se organizar com dinheiro e com as promessas utópicas da volta ao passado medieval. Nem era um partido de oposição, nem um mito, nem um grupo; nem era um político de vulto e de responsabilidade como Lula. O filho do século não estava fascinado em observar diretamente o “fascismo societal” em curso, pois era “por dentro do Estado”, submetendo Executivo e as representações do Parlamento que o golpe poderia prosperar. Não tremeu de medo nem vacilou: usou e usa capa preta e não tem vínculos ideológicos com a esquerda.

“Xandão”, sem se impressionar com os blefes golpistas e suas ameaças de morte, é o nosso Filho do Século nas instituições do Estado, de modo inverso ao de Mussolini, descrito por Scuratti: sua arma foi e é a Constituição e sua vontade corajosa dentro do STF, foi a maior de todas, desde que a Constituição de 88 foi proclamada por Ulysses Guimarães, que tinha ”nojo da ditadura” e de todos os ditadores. Provisoriamente, a democracia venceu, mas agora temos que vencer o ódio que os fascistas disseminaram como uma peste medieval, cuja vacina – desdobrada no tempo – deve ser mais democracia, mais comida na mesa, mais educação, liberdade e reconciliação com um futuro de segurança e paz: sem armas e sem gangues de assassinos daqueles “filhos do século” que cultuam a morte e a violência infinita.

(*) Tarso Genro, o autor deste artigo, foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. / Nota do editor do blog: o título mais aplicável à personagem deste artigo, o Ministro Alexandre de Moraes, tirado do primeiro volume de Antonio Scurati, seria "o homem da providência" (segundo volume da trilogia de Scurati.) E não "o homem do século". Falei hoje sobre esse artigo do Ministro Tarso Genro com o Ministro Alexandre de Moraes no TSE e ele me disse que gostou muito.

Os inimigos do Estado

Dados reunidos pela equipe de transição sobre o governo Bolsonaro expõem mais que cortes orçamentários: trata-se de profunda desestruturação do Estado em suas várias dimensões

Passeando de moto no horásrio de trabalho

A derrota de Jair Bolsonaro parece ter livrado o País das amarras que o modus operandi do presidente impunha ao funcionamento das instituições de Estado. Já se sabia dos efeitos do descalabro bolsonarista em políticas públicas voltadas ao meio ambiente, educação, ciência e cultura, mas o que surpreende é o quão bem-sucedido o governo foi em destruir áreas que não pareciam estar na mira presidencial, como saúde e assistência social.

Ainda na campanha, a apresentação do Orçamento de 2023 já era um prenúncio de tempos difíceis, com tesouradas brutais em programas como o Farmácia Popular e a ausência de recursos para garantir o piso do Auxílio Brasil. O gabinete de transição do futuro presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no entanto, tem sido alimentado com relatos diários sobre o caos generalizado que terá de enfrentar no que diz respeito ao provimento de serviços públicos essenciais.

Com quase 700 mil mortes, uma nova onda de casos e cobertura vacinal insuficiente, o País pode ter de descartar 13 milhões de doses de imunizantes contra a covid-19 com prazo de validade prestes a expirar. O prejuízo, segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), pode chegar a quase R$ 2 bilhões. Alegando tratar-se de informações reservadas, o Ministério da Saúde resiste ao pedido de informações dos integrantes do governo eleito sobre o estoque de medicamentos na rede pública, desde analgésicos a antirretrovirais para o tratamento de HIV. A pasta tampouco apresentou dados sobre a fila de pessoas em busca de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre a previsão de aquisição de vacinas do Programa Nacional de Imunizações (PNI).

A equipe de transição recebeu a informação de que há 5 milhões de processos referentes a benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) com análise atrasada. O jornal Valor mostrou que beneficiários do Auxílio Brasil têm tido os pagamentos bloqueados sem motivo aparente. Solucionar o problema exige meses de espera para agendar um atendimento presencial nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) – filas que devem explodir com a tardia investigação sobre o crescimento de famílias unipessoais no Cadastro Único (CadÚnico), convenientemente iniciada somente depois do segundo turno.

Há muitos outros casos a confirmarem o quadro, e talvez não seja por acaso que o gabinete de transição tenha reunido mais de 400 pessoas – a imensa maioria trabalhando sem remuneração – dispostas a fazer um diagnóstico das urgências a serem enfrentadas em 2023. A substituição da figura agressiva, vingativa e desagregadora de Bolsonaro pelo vulto apático que o revés eleitoral evidenciou parece ter encorajado muitos servidores até então silenciados a colaborar na descrição das consequências práticas da balbúrdia a que o País foi submetido nos últimos quatro anos.

Toda a prioridade do governo eleito tem sido dada à construção de acordos pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, solução escolhida para recompor a verba de programas prioritários do Orçamento de 2023. As informações reunidas pelo gabinete de transição revelam mais do que simples cortes de verbas e necessários remanejamentos orçamentários, mas uma profunda e generalizada desestruturação do Estado em suas mais diversas dimensões – em especial das raras políticas públicas que venciam todos os obstáculos até chegar efetivamente às famílias mais carentes.

“Quanto mais Estado, pior”, vaticinou o presidente, em uma entrevista que concedeu à revista Veja entre o primeiro e o segundo turno da eleição. Em vez de proporcionar mais foco, prioridade, eficiência e qualidade ao gasto público, o bolsonarismo apostou em uma sociedade quase feudal, em que cada um deve lutar pela sobrevivência literalmente com suas próprias armas. Diante dos péssimos resultados que o País colheu, cabe perguntar como Bolsonaro conquistou quase metade dos votos na disputa presidencial, bem como refletir sobre o que isso revela sobre as noções brasileiras de cidadania e coesão social.

Editorial / Notas e Informações - O Estado de S. Palo, em 30.11.22

Como 13º salário surgiu de greve geral após vitória do Brasil na Copa de 1962

Mas pouca gente conhece a história de uma outra conquista daquele ano: a do 13º salário, benefício garantido em lei sancionada pelo presidente João Goulart em 13 de julho de 1962.

Benefício completa 60 anos em 2022 e foi conquistado sob protesto de empresários e do mercado financeiro (Reprodução O Globo / Acervo Digital)

Em 1962, o Brasil conquistou o bicampeonato na Copa do Mundo. O título veio num 3 a 1 de virada contra a Tchecoslováquia, com Garrincha jogando com febre de 38 graus e o time desfalcado de seu principal craque — Pelé havia se lesionado ainda no segundo jogo.

"O 13º salário é um desses casos de reivindicação surgida no chão da fábrica, legitimada nas relações costumeiras entre patrões e empregados em algumas firmas, transformada em lei às custas de greves, demissões, abaixo assinados, prisões e cuja memória é depois ofuscada pelo brilho da lei que supõe-se, como toda lei, deve ter sido iniciativa de algum presidente, deputado ou senador", escreve o historiador Murilo Leal Pereira Neto.

1ª greve geral do país, em 1917, foi iniciada por mulheres e durou 30 dias

Conheça a história de como, num ano de inflação em alta e embates aguerridos entre direita e esquerda na política, trabalhadores foram à greve geral 18 dias após o bicampeonato mundial e conquistaram o benefício que deve injetar R$ 250 bilhões na economia este ano.

Tudo isso aconteceu sob protestos dos empresários e do mercado financeiro da época, conforme registrou o jornal O Globo, que no dia 26 de abril de 1962 estampou na sua manchete: "Considerado desastroso para o País um 13º mês de salário".

O desastre não veio e hoje 85,5 milhões são beneficiados com o rendimento adicional, segundo o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

Origem do abono de Natal e início da luta no Brasil

A gratificação de Natal é uma tradição que tem origem em países de maioria cristã, onde alguns patrões tinham o costume de presentar seus funcionários com cestas de alimentos na época das festas de fim de ano.

Essa doação antes voluntária se tornou obrigatória na Itália em 1937, durante o regime fascista de Benito Mussolini, quando o acordo coletivo de trabalho nacional passou a prever um mês adicional de salário para os empregados das fábricas.

Em 1946, o benefício seria estendido às demais categorias de trabalhadores italianos, sendo consolidado através de decreto presidencial em 1960.

No Brasil, os primeiros registros de greves e demandas pelo abono de Natal são de 1921, na Cia. Paulista de Aniagem e na indústria Mariângela, ambas empresas do setor têxtil.

Sob inspiração da Carta del Lavoro (1927) da Itália fascista, o Brasil aprovaria em 1943 sua Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas dela não constava o 13º salário.

Greves e pedidos de demissão em massa: o movimento que pode resultar em ‘CLT’ nos EUA

Naquele mesmo ano, no entanto, o abono de Natal foi conquistado pelos trabalhadores da fabricante de pneus Pirelli, o que levaria a uma greve geral no ano seguinte em Santo André (SP) pelo pagamento do benefício.

"Na onda de greves que se alastrou de dezembro de 1945 a março de 1946, a luta pelo prêmio de final de ano era a principal reivindicação na maioria delas, envolvendo categorias como ferroviários da Sorocabana, trabalhadores da Light, tecelões, metalúrgicos, gráficos e químicos em São Paulo", lembra Pereira Neto, em sua tese de doutorado A reinvenção do trabalhismo no 'vulcão do inferno': um estudo sobre metalúrgicos e têxteis de São Paulo.

'Exigimos o 13º salário para todos os ferroviários', diz faixa em manifestação dos ferroviários de Bauru (SP), em greve pela gratificação natalina

Ferroviários de Bauru (SP) em greve pela gratificação natalina (Acervo do Museu Ferrroviário Regional de Bauru)

"Os patrões ganhavam aquele dinheiro no fim do ano, tudo, chegava e dava um panetone e dava um vinho ruim pro cara. Então nós mostramos a realidade: o trabalhador também precisava passar um Natal melhor", conta João Miguel Alonso, líder metalúrgico, em depoimento recuperado por Pereira Neto, sobre os argumentos usados com os patrões à época.

"Nós sempre levantávamos esse problema desde antes: o trabalhador, no fim de ano, precisava comprar um sapato melhor pro filho, precisava comprar um vestido pra mulher. 'Oh, meu deus do céu, vocês têm que entender, vocês não vão dar a empresa para eles, vocês vão dar apenas o essencial para esse coitado viver, passar um Natal melhor com a família'."

Benefício pago em laranjas

Larissa Rosa Corrêa, professora do Departamento de História da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), observa que a luta dos trabalhadores brasileiros por uma gratificação de Natal não começou já conquistando um salário extra logo de cara.

No artigo Abono de Natal: gorjeta, prêmio ou direito? Trabalhadores têxteis e a justiça do trabalho, ela resgata o relato do líder sindicalista Antonio Chamorro. Ele conta que, quando era operário numa fábrica têxtil em 1946, a primeira vez que os trabalhadores reivindicaram ao patrão uma gratificação de fim de ano, receberam em troca sacos de laranja.

No ano seguinte, pediram cortes de tecido no lugar das laranjas, mas receberam panos considerados de má qualidade e muito quentes para o final de ano. No ano seguinte, os trabalhadores reivindicaram um tecido mais leve e adequado ao verão.

"Aí ele [o patrão] cedeu. Foi uma outra vitória nossa", contou Chamorro, em depoimento ao Centro de Memória Sindical, recuperado pela historiadora.

O líder sindical têxtil Antonio Chamorro em recorte do jornal Voz Operária (RJ), de 1954 (Reprodução "Voz Operária" / Acervo Biblioteca Nacional)

"É interessante observar como os trabalhadores organizados aproveitavam todas as brechas deixadas pelos patrões", observa a professora da PUC-Rio, no estudo. "No caso relatado, o empregador cedeu uma vez; na próxima ele não teve argumentos para não fornecer o benefício novamente, e, desta vez, a gratificação teria que ser melhor, e assim por diante."

A luta pelo abono de Natal atravessaria a década de 1950 e chegaria fortalecida nos anos 1960, em meio ao avanço da inflação, empoderamento dos sindicatos e contexto político inflamado pelas disputas ideológicas da Guerra Fria.

O Brasil dos anos 1960

Naquele início dos anos 1960, uma série de fatores contribuíam para uma crise econômica profunda. Entre eles: um endividamento externo crescente, herdado das políticas desenvolvimentistas do governo Juscelino Kubitschek (1956-61); elevados déficits comerciais; e um aumento da inflação que se agravava desde o final dos anos 1950.

Em 1960, a inflação acumulada foi de 30,5%; no ano seguinte, de 47,8%. Em 1962, ano da conquista da lei do 13º salário, a alta de preços chegaria a 51,6%.

Inflação no Brasil nos anos 1950 e 1960. Variação acumulada no ano, em %.  .

"É um momento de alta inflação e os trabalhadores sentiam que o custo de vida vinha aumentando drasticamente", diz Larissa Rosa Corrêa, em entrevista à BBC News Brasil.

"É um Brasil que estava enfrentando a dívida externa, todas as dívidas provocadas pelo governo Juscelino, com a construção de Brasília", lembra a professora da PUC-Rio.

"Ao mesmo tempo, a indústria nacional passava por um processo de expansão. Então, de um lado os trabalhadores estavam perdendo poder de compra, lutando pela melhoria do custo de vida e, do outro, observavam o lucro das empresas. Embora, no discurso patronal, os empregadores reclamassem sistematicamente da dificuldade de sobrevivência do empresariado brasileiro, sempre argumentando incapacidade financeira."

Na conjuntura internacional, o mundo estava bipolarizado entre Estados Unidos e União Soviética, com um anticomunismo crescente que, no Brasil, se desdobraria no golpe militar de 1964, observa a historiadora.

"Por outro lado, temos a ascensão do movimento sindical e dos movimentos sociais, tanto no campo como no espaço urbano, com sindicalização crescente e muitas greves que marcaram esse período", diz Corrêa, citando como exemplos a Greve dos 300 mil de 1953, a Greve dos 400 mil em 1957 e a Greve dos 700 mil em 1963.

É nesse contexto que João Goulart chega à presidência em 1961, sucedendo Jânio Quadros, que renunciou após apenas sete meses. Jango assume, porém, destituído de parte dos poderes presidenciais, sob um regime parlamentarista, com Tancredo Neves como primeiro-ministro.

"O contexto aí era de embate entre um governo reformista nacionalista e as forças da UDN [União Democrática Nacional, partido conservador], da direita, que resistiam aos projetos das reformas de base", lembra Murilo Leal Pereira Neto, atualmente professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Pressionado pelo conservadorismo, Jango fortaleceu o sindicalismo e os movimentos sociais como base de apoio para seu projeto reformista, o que se configurou num ambiente propício às conquistas trabalhistas.

Mobilização pelas reformas de base teve sempre forte vigilância das Forças Armadas (Arquivo Nacional / Correio da Manhã)

A greve pelo abono de Natal de 1961

Em 1951, um projeto do deputado Muniz Falcão (PSP-AL) sobre a gratificação natalina foi considerado inconstitucional pela Comissão de Constituição da Câmara, que avaliou que a Constituição Federal não permitiria "a interferência do Estado nos encargos financeiros de particulares".

Em 1959, um novo projeto sobre o tema foi apresentado pelo deputado Aarão Seteinbruch (PTB-RJ), já num cenário de acúmulo de lutas por esse direito no chão de fábrica. Assim, já a partir de 1960, a mobilização se concentra em pressionar o Congresso pela aprovação da lei.

Em 13 de dezembro de 1961, os trabalhadores vão à greve pelo abono de Natal, com a mobilização puxada pelos sindicatos dos metalúrgicos e dos têxteis de São Paulo.

"A greve foi um resultado de um processo de luta que durou cerca de oito anos. Durante todos os anos passados, o abono de Natal tinha constado das listas de reivindicações nos dissídios coletivos e sido pauta nas assembleias dos sindicatos", escreve a professora da PUC-Rio.

"Os trabalhadores tinham consciência de que a gratificação jamais seria fruto das negociações com os patrões e muito menos de uma decisão da Justiça do Trabalho", aponta Corrêa, citando avaliação de Afonso Delellis, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, cassado pelo golpe militar de 1964.

A greve foi duramente reprimida, com ao menos 1.300 presos, 50 sindicalistas detidos e o Sindicato dos Metalúrgicos cercado e mantido incomunicável pela polícia.

Cerco policial ao Sindicato dos Metalúrgicos na greve deflagrada por metalúrgicos e têxteis em São Paulo para lutar pelo 13º salário (Memorial da Democracia)

Já no dia 12, o ministro da Justiça, Alfredo Nasser, declarou o movimento grevista ilegal. A Câmara dos Deputados, que havia aprovado o projeto em primeira votação, entrou em recesso, alegando estar sendo coagida e adiando a segunda votação, relata Pereira Neto

Após a greve, a Fiesp recomendou que seus membros pagassem voluntariamente o abono, em um boletim de dezembro de 1961, mas não admitia a aprovação do projeto de lei, acusando o governo de demagogia por apoiá-lo, lembra o professor da Unifesp.

O projeto só viria a ser aprovado em segundo turno na Câmara em 24 de abril de 1962 e no Senado, em 27 de junho daquele ano. Mas ainda faltava a sanção presidencial.

E então veio a greve geral de 5 de julho de 1962.

A greve geral de 1962 e a conquista do 13º salário

Em meio à pressão crescente, o primeiro-ministro Tancredo Neves renuncia e João Goulart indica San Tiago Dantas para substituí-lo. Dantas tinha o apoio da esquerda do Congresso e do movimento sindical, mas sua indicação foi vetada pelos conservadores.

Em resposta ao veto e à indicação para o cargo do conservador Auro de Moura Andrade, o movimento sindical convoca a greve geral de 5 de julho.

Manifestação de bancários grevistas no Rio de Janeiro, em 1961 (Crédito: Memorial da Democracia

"A greve, deflagrada 18 dias após o Brasil conquistar o bicampeonato mundial de futebol — o que desmente análises rasteiras que vinculam os sucessos no futebol a uma 'apatia sócio-política' da população —, afetou sobretudo empresas estatais ou sob controle do governo, embora o setor privado não tenha passado incólume", escreve Rubens Goyatá Campante, doutor em sociologia pela UFMG e pesquisador do Núcleo de Pesquisas da Escola Judicial do TRT-3ª Região, no artigo O 13º veio de uma greve geral.

No Rio de Janeiro, a greve teria sérios impactos. Diante da paralisação dos trens, em meio ao avanço da fome e à crise econômica, a Baixada Fluminense explodiu em uma onda de saques, que deixaria 42 mortos, 700 feridos e mais de 2 mil estabelecimentos atingidos.

"Enquanto a greve se desenrolava no Rio de Janeiro, e em outras unidades da Federação, uma comissão de líderes do comando nacional de greve se encaminhou para Brasília, com o objetivo de manter conversações com João Goulart sobre a crise política nacional e pressionar pelas reivindicações da greve, ocasião em que o presidente também se comprometeu a assinar a lei do 13º salário, que fora aprovada no Senado alguns dias antes (em 27 de junho)", relata o pesquisador Demian Bezerra de Melo, na tese de doutorado Crise orgânica e ação política da classe trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de 1962).

Goulart cumpriria o compromisso alguns dias depois, em 13 de julho, quando foi sancionada a Lei 4.090 de 1962.

'Sancionado o projeto do 13º mês de salário', noticiava o jornal O Globo em 14 de julho de 1962 (Reprodução O Globo / Acervo Digital)

Inicialmente, a lei só dava direito ao 13º aos empregados urbanos do setor privado. Trabalhadores rurais e servidores públicos não eram contemplados, lembra o Dieese.

Em 1963, João Goulart estende o direito aos aposentados. E em 1965, já em plena ditadura, lei sancionada pelo presidente Castello Branco estabelece o pagamento em duas parcelas, sendo a primeira entre fevereiro e novembro, e a segunda até 20 de dezembro de cada ano.

A Constituição de 1988 garante o 13º a todos os trabalhadores urbanos e rurais, direito formalmente estendido aos servidores públicos por meio da Emenda Constitucional 19 naquele mesmo ano.

"Para nós hoje, o processo de conquista do 13º causa estranheza", avalia Larissa Corrêa, da PUC-Rio.

"Estamos vivendo um contexto de alta precarização do trabalho e aquelas lutas dos anos 1960 parecem quase um outro mundo para a gente, haja visto a reforma trabalhista e todo o processo de terceirização das relações de trabalho. Mas é curioso também que, na reforma trabalhista de 2017, a lei do 13º permaneceu intocada. Isso diz muito sobre o patrimônio das leis trabalhistas e o que elas representam até hoje", acrescenta a historiadora.

Os aprendizados da luta pelo 13º salário

Para Pereira Neto, da Unifesp, o principal aprendizado da conquista do 13º salário é que as leis trabalhistas "não nascem no Congresso".

"Temos uma ideia no Brasil de que as conquistas trabalhistas não são conquistas, são um favor. Há um modelo interpretativo de que o Estado ou a classe dominante fazem concessões, ao invés de reconhecer direitos", diz o pesquisador.

"O que a luta pelo 13º mostra é que essas pautas até podem começar como um favor [das empresas aos funcionários], mas elas se constituem como um direito no percurso da experiência. E esse direito, antes de se transformar em lei, vai sendo legitimado na sociedade. Então existe uma construção política do direito", avalia o professor da Unifesp.

Para Larissa Corrêa, da PUC-Rio, a estratégia dos sindicatos na luta pelo 13º também deixa um aprendizado.

"O movimento sindical naquele contexto atuava nas duas frentes: tanto na parte jurídica, parlamentar, quanto nas greves e nos movimentos de rua. Eles não apostavam no projeto de lei sem deixar de fazer greve. Isso era uma estratégia muito importante e, de fato, foi bem sucedida", avalia a historiadora.

Para Miguel Torres, atual presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi das Cruzes, da CNTM (Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos) e da Força Sindical, a conquista do 13º salário é uma referência para a luta os trabalhadores até hoje.

"Essa conquista ensina que temos sempre que estar lutando e que, se tem organização suficiente, a possiblidade de êxito é muito maior", diz Torres.

"Para os trabalhadores, a luta faz a lei. Foi o que aconteceu em 1962 — a luta fez a lei, que vigora até hoje."

Thais Carrança - @tcarran da BBC News Brasil em São Paulo, em 30.11.22. / Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63802323

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Estados e empresas de um homem só estão arruinando o mundo

Uma década atrás, as bandas de um homem só tinham saído de moda; então vieram Putin, Xi Jinping, Zuckerberg e Musk

Elon Musk, acionista majoritário do Twitter, é quem manda agora

"Comprar o Twitter é um acelerador para a criação do X, o aplicativo de tudo", explicou Elon Musk em 4 de outubro, no Twitter. Quatro semanas depois, quando o escritor Stephen King se recusou a pagar US$ 20 por mês para ser autenticado pelo Twitter, Musk estava em retirada. "Que tal US$ 8?", ele tuitou de sua "sala de guerra" na sede da empresa em San Francisco, na Califórnia. Desde então, o Twitter interrompeu a verificação paga.

Às vezes, Musk se parece cada vez mais com uma versão abençoadamente sem sangue de Vladimir Putin. A compra do Twitter por ridículos US$ 44 bilhões lembrou a oferta de aquisição muito hostil de Putin pela Ucrânia, na qual o autocrata daria uma lição à sua presa. Mas enquanto Musk destrói sua própria empresa, o exército de Putin foge da recém-anexada Kherson, lugar que deveria ser a Rússia "para sempre".

As duas formas organizacionais dominantes de hoje são praticamente as mesmas: o estado autocrático de um homem só e a empresa autocrática de um homem só. Ambos têm a mesma vulnerabilidade: a idiossincrasia de um solitário superestimado.

As bandas de um homem saíram de moda há muito tempo. A China e a Rússia passaram décadas sob liderança coletiva depois que os governantes solitários Mao e Stalin mataram milhões de pessoas. Nos negócios há uma década, nenhuma das dez empresas mais valiosas do mundo ainda era administrada por seus fundadores.

Mas nessa altura Putin, Xi Jinping, a Meta de Mark Zuckerberg, a Tesla de Musk e a Amazon de Jeff Bezos já estavam em ascensão. Então Mohammed bin Salman tornou-se o único governante da Arábia Saudita e controlador de fato da segunda empresa mais valiosa do mundo, a Saudi Aramco. Seu colega herdeiro, Donald Trump, tentou administrar os Estados Unidos como uma imobiliária familiar.

Estados e empresas de um homem só têm ciclos semelhantes. A princípio, mesmo que o objetivo do autocrata seja o autoenriquecimento, ele quer aprovação, então evita a autossabotagem. Livre de regras, ele parece mais ágil do que seus rivais governados coletivamente. Com sucesso, ele adquire uma aura. Ele estabilizou a Rússia/inventou o Facebook/construiu carros elétricos. Ora, ele é um gênio! Se ele quiser se tornar presidente vitalício ou atribuir a si mesmo ações com dez vezes os direitos de voto de outras ações, bem, o que pode dar errado?

Mas o sucesso inicial se deveu geralmente a uma confluência única de sorte, pessoa e momento. Poucos humanos têm mais de uma habilidade. Pior, a arrogância toma conta. Tendo desafiado os pessimistas na primeira vez, o autocrata os ignora na segunda. "Mova-se rápido e quebre coisas" foi o lema inicial de Zuckerberg, mas acabou se tornando o de Putin também. Além disso, o autocrata fica entediado. Depois de administrar a Rússia ou o Facebook para sempre, cada dia começa a parecer igual. Presumivelmente, foi por isso que Bezos saiu. Ele colocou Andy Jassy no comando da Amazon, disparou para o espaço e agora está apostando num time de futebol.

Musk, Zuckerberg e Putin permaneceram no cargo, mas, como Bezos, buscaram novos estímulos. Embora os acionistas ou os policiais secretos russos imaginassem que o autocrata ainda era totalmente dedicado a ganhar dinheiro para eles, na verdade ele havia progredido para coisas mais elevadas. Zuckerberg, por exemplo, parece ter decidido que seria muito legal construir um "metaverso" de realidade virtual, sem pensar em custos.

A pandemia provavelmente acelerou esses processos de desenvolvimento pessoal. Enquanto Putin passou o bloqueio estudando a história ucraniana, Musk parece tê-lo passado no Twitter: sua média de tuítes por dia disparou. Enquanto isso, o isolamento se instalou. O investidor Chris Sacca tuitou na semana passada: "Um dos maiores riscos de riqueza/poder é não ter mais ninguém ao seu redor que possa recuar... Uma visão de mundo cada vez menor, combinada com isolamento intelectual, leva a uma merda fora de alcance... Recentemente, observei as pessoas ao seu redor se tornarem cada vez mais bajuladoras e oportunistas... Concordar com ele é mais fácil e há mais vantagem financeira e social". Sacca estava falando sobre Musk, mas poderia muito bem estar se referindo a Putin.

Ex-apoiadores horrorizados não conseguem conter o autocrata. Zuckerberg está livre para queimar o dinheiro dos acionistas porque controla os direitos de voto da Meta, assim como Putin efetivamente controla os da Rússia, enquanto Musk dissolveu o conselho do Twitter. Se tudo isso é assustador, espere até que o mais poderoso autocrata, Xi Jinping, descubra uma paixão.

As organizações não precisam ser tão disfuncionais. Para um modelo alternativo, veja a Apple. Seu governante, Steve Jobs, provavelmente preservou sua reputação ao morrer antes que a arrogância o atacasse. A Apple hoje não é muito inovadora, mas se tornou a empresa mais valiosa do mundo ao monetizar sucessos do passado, principalmente o iPhone. Sua liderança coletiva está atenta aos riscos. Quando a Apple faz besteiras, como o teclado borboleta de 2015, acaba se autocorrigindo. Um dia, Tim Cook abrirá espaço para um novo e desinteressante CEO. Na verdade, a Apple é administrada como a Alemanha. "Feliz é a terra que não precisa de heróis", escreveu o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Feliz é a companhia, também.

Simon Kuper, o autor deste artigo é colunista do Financial Times. Publicado em portugues do Brasil pela Folha de S. Paulo - Folha Mais, em 28.11.22. / Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

Qatar busca se consolidar como potência regional com diplomacia agressiva

Ascensão do pequeno país do Golfo resulta de décadas de estratégias ousadas, aliadas a um esforço de relações públicas

Prédios modernos no centro de Doha, a capital do Qatar - Wang Dongzhen - 15.jun.22/Xinhua

Sediar a Copa do Mundo representa o passo mais largo do Qatar na tentativa de consolidar uma política externa diversificada, projetando globalmente o pequeno país do Golfo para colocá-lo no caminho de se tornar uma potência geopolítica na região, mesmo em cenário considerado adverso.

O Qatar tem 11,5 mil quilômetros quadrados, metade da área de Sergipe, e menos de 3 milhões de habitantes, similar ao Mato Grosso do Sul. Geograficamente, enfrenta limitações em função de a única fronteira terrestre se dar com a Arábia Saudita —mas o país conseguiu ganhar importância a ponto de, em certa medida, rivalizar com o vizinho.




A ascensão no xadrez geopolítico resulta de décadas de estratégias diplomáticas ousadas, aliadas a um esforço de relações públicas, com o propósito de não deixar o país restrito à esfera de influência saudita.

O projeto é liderado pelo atual emir, Tamim bin Hamad al-Thani, no poder desde 2013. Ele dá continuidade ao trabalho do pai, Hamad bin Khalifa, que comandou o regime a partir de 1995 —o Qatar é uma monarquia absolutista na qual o emir concentra todo o poder.

O país tem boas relações com potências da Otan, abrigando bases militares de EUA e Turquia, ao mesmo tempo que dialoga com o Irã, rival dos americanos, e grupos fundamentalistas como a Irmandade Muçulmana e o Talibã, que tem até uma representação em Doha —o que leva a acusações de que o regime apoia extremistas, entre os quais o Estado Islâmico e a Al-Qaeda.

Lá fora

Ativa e diversificada, essa política externa visa garantir segurança e evitar o isolamento político em função do tamanho e da posição territorial, diz Danny Zahreddine, pesquisador libanês e professor de relações internacionais da PUC Minas.

"A Arábia Saudita, grande potência, esperava de todos os demais membros do Conselho de Cooperação do Golfo [organização econômica da qual o Qatar faz parte] uma relação de quase tutelagem", explica. "As políticas de Riad, dos Emirados Árabes Unidos e do Bahrein são convergentes; o Qatar diverge por sentir que a diversificação da política externa cria mais segurança."

Essa posição catariana aparentemente dúbia é também considerada estratégica para Washington, que usa o país como ponte para diálogos com grupos rivais e discussões de temas sensíveis à região. Do outro lado, o preço se fez cobrar na forma de atritos com os sauditas.

Foi numa tentativa de aproximação com Riad que Doha, em 2015, passou a reforçar a coalizão militar liderada pelos vizinhos que atua no Iêmen com o objetivo de evitar o avanço do grupo rebelde houthi, apoiado pelo Irã e que participou da derrubada do governo local.

Três anos depois, porém, a relação entre Arábia Saudita e Qatar azedou, com o hoje anfitrião da Copa expulso da aliança. Al-Thani foi acusado de dar declarações em apoio a grupos terroristas —o que autoridades catarianas negam, apontando que os sauditas levaram em conta fake news divulgadas em uma ação de hackers na Qatar News Agency, a agência estatal do país.

China, terra do meio

A ruptura foi seguida por outros países, como Egito, Bahrein e Emirados Árabes, numa tentativa de isolar o Qatar. Doha conseguiu driblar os efeitos de embargos diplomáticos, comerciais e de viagens graças às relações construídas ao longo das últimas décadas, segundo Zahreddine. Durante o período de bloqueios, Turquia e Irã foram algumas das nações que providenciaram suprimentos.

Com o fracasso da tentativa de asfixiar o Qatar, a ação da diplomacia fez com que as sanções fossem suspensas e as relações, retomadas. A reabertura foi mediada pelo ex-presidente dos EUA Donald Trump —o republicano concentrou esforços em buscar acertos na região para aproximar os países árabes de Israel e, assim, isolar ainda mais o Irã.

Ato simbólico da reaproximação se deu na terça-feira (22), quando o emir catariano colocou uma bandeira da Arábia Saudita sobre os ombros para comemorar a histórica vitória do país sobre a Argentina.

Se as relações exteriores são complexas, internamente a relativa estabilidade se dá às custas do absolutismo hereditário, com restrições à atividade democrática. Observadores apontam violações sistemáticas aos direitos humanos e supressão de liberdades civis, especialmente para mulheres e grupos LGBTQIA+ —a homossexualidade é passível de prisão.

A demonstração de força em relação à Fifa, no veto à venda de bebidas alcoólicas durante partidas do Mundial, foi um lembrete do peso que tem a sharia, a lei islâmica, no país. Acusações de descaso, remuneração ruim e abusos trabalhistas com operários que atuaram nas obras dos estádios acenderam o alerta para a desigualdade.

Isso apesar de o país se vender como cosmopolita e de alto nível de renda. Segundo o Banco Mundial, o PIB per capita é de US$ 61,2 mil (R$ 327,4 mil), um dos mais altos do mundo; no Brasil, é de US$ 7.518 (R$ 40,2 mil).

Rico em petróleo, o Qatar tem aumentado os investimentos na produção de gás natural liquefeito nos últimos anos —condensado, o produto é transportado em navios, eliminando a necessidade de gasodutos. Beneficia o país o fato de o gás do Oriente Médio estar cada vez mais cobiçado devido à crise energética que atinge a Europa após a redução no fornecimento russo no contexto da Guerra da Ucrânia.

Não só. No último dia 21, China e Qatar anunciaram um acordo de 27 anos para levar gás do Oriente Médio ao gigante asiático. Parte dos lucros é revertida nas ações de soft power, segundo Monique Sochaczewski, especialista em Oriente Médio e professora do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa).

Doha investe em estádios e times de futebol europeus, como o francês PSG, de Neymar. Mantém ações com marcas famosas e hotéis de luxo. Despeja recursos em infraestrutura e educação ao redor do mundo.

Só nos EUA, o Qatar Investment Authority, fundo soberano do país, investiu mais de US$ 30 bilhões (R$ 160,5 bilhões), mais da metade disso nos setores imobiliário e de infraestrutura, segundo o Departamento de Estado americano —a cifra deve alcançar US$ 45 bilhões (R$ 240,7 bilhões) com ações já planejadas.

Ainda mais importante é a emissora Al Jazeera, criada por um decreto do emir em 1996. Principal canal de notícias do mundo árabe, ela consegue transmitir a visão catariana para o mundo.

Zahreddine afirma que o diálogo da linha editorial da rede com o Ocidente é fundamental na boa aceitação. "No caso da Ucrânia, o tom é muito mais favorável a Kiev, não a uma visão russa ou chinesa", diz. "Mas isso não é considerado positivo por autocratas do Oriente Médio, que em alguns casos se sentem atacados."

Não à toa, durante a crise de 2017, uma das exigências para a retomada das relações era o fechamento da Al Jazeera, o que foi ignorado por Doha. Com a Copa, o país agora consegue a maior projeção em âmbito global de sua história.

Renan Marra para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 28.11.22

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

‘Não adianta apelar para os quartéis, para extraterrestres’, diz Barroso sobre manifestações

Ministro do STF criticou protestos contra resultado das eleições em evento no Tribunal Regional Eleitoral da Bahia

Ministro Luís Roberto Barroso diz que ‘humanamente perdeu a paciência’ após ser seguido e questionando em Nova York. Foto: Carlos Moura/SCO/STF

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), criticou nesta sexta-feira, 25, os protestos antidemocráticos organizados próximo a instalações das Forças Armadas por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) inconformados com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

“Não adianta apelar para os quartéis, apelar para extraterrestres”, ironizou o ministro ao pregar o respeito ao resultado das eleições.

Barroso também disse que “humanamente perdeu a paciência” com o bolsonarista que o seguiu em Nova York e fez questionamentos sobre a segurança das urnas eletrônicas.

Manifestantes protestam contra o resultado da eleição presidencial próximo ao Comando Militar do Sudeste. Foto: Felipe Rau/Estadão Conteúdo

A resposta “Perdeu, mané. Não amola” viralizou nas redes sociais. O ministro afirmou que a reação veio após uma série de abordagens agressivas durante a viagem. Ele chamou os manifestantes de uma “horda de selvagens”. O ministro contou que, naquele dia, o celular da filha foi invadido e ela sofreu ameaças.

“Sim, eu falei ‘Perdeu, mané. Não amola’. Gostaria de dizer que só perdi a paciência depois de três dias em que uma horda de selvagens andava atrás de mim, me xingando de todos os nomes que alguém possa imaginar, e exatamente no dia em que os mesmos selvagens tinham invadido o telefone celular da minha filha com ameaças e grosserias que essa gente considera normal. Portanto eu humanamente perdi a paciência”, explicou em evento no Tribunal Regional Eleitoral da Bahia.

Outro vídeo que circula nas redes sociais mostra o ministro sendo seguido por uma brasileira na Times Square.“Nós vamos ganhar esta luta. Cuidado! Você não vai ganhar o nosso País. Foge!”, grita a mulher enquanto filma Barroso, que retruca: “Minha senhora, não seja grosseira. Passe bem.”

Barroso disse que “respeita” os eleitores de Bolsonaro, mas que “os humanos têm o direito de perderem a paciência em alguns momentos da vida”.

“Eu, como todas as pessoas, tenho o maior respeito e consideração pelos 58 milhões de pessoas que votaram em um candidato. Porque, como eu disse antes, a democracia não é um modelo de alguns, é o governo de todos e, portanto, todos merecem respeito e consideração”, afirmou.

Barroso também disse que a liberdade de expressão não pode servir de proteção para discursos de ódio e fake news. “A mentira não é uma forma legítima de defender qualquer posição. Tudo o que é bom, justo e legítimo pode ser defendido com educação, com respeito ao outro, aceitando a divergência”, concluiu.

Rayssa Motta / O Estado de S. Paulo, em 25.11.22, à 19h40

Trump, Bannon e aliados aconselharam Bolsonaro a contestar eleição, diz jornal

Segundo Washington Post, ex-presidente americano se encontrou com Eduardo Bolsonaro em resort na Flórida

Donald Trump e Eduardo Bolsonaro durante encontro nos Estados Unidos em 2019 - Joyce N. Boghosian-30.ago.19/White House

O ex-presidente americano Donald Trump teria aconselhado a família Bolsonaro a contestar o resultado da eleição à Presidência no Brasil, segundo o jornal The Washington Post, dos Estados Unidos. Ele chegou a se encontrar com o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro (PL).

Segundo o jornal, em reportagem publicada nesta quarta (23), Eduardo Bolsonaro fez reuniões depois do segundo turno da eleição no resort de luxo Mar-a-Lago, que pertence a Trump, em Palm Beach, na Flórida. Ele também teria conversado com outros aliados políticos por telefone.

Ao jornal o ex-estrategista de Trump e organizador da ultradireita global Steve Bannon confirmou que se encontrou com o deputado, no estado americano do Arizona, e discutiu com ele o poder dos protestos pró-Bolsonaro e os desafios relacionados ao resultado da eleição —da qual Luiz Inácio Lula da Silva (PT) saiu vencedor.

Em julho, Bannon foi condenado à prisão pela Justiça dos Estados Unidos por se recusar a entregar documentos e a depor à comissão da Câmara americana que investiga a invasão do Capitólio.

Outro ex-assessor de Trump, Jason Miller, também confirmou ao Washington Post que almoçou com Eduardo Bolsonaro, na Flórida, para debater "censura digital e liberdade de expressão".

O texto também destaca as manifestações antidemocráticas pelo país, que questionam o resultado das eleições, e diz que os aliados de Bolsonaro estão divididos em relação a como agir após a derrota nas urnas. Bannon, diz o jornal, é a favor da contestação do resultado, que "provavelmente falhará, mas pode encorajar apoiadores".

Outros aliados preferem centrar os esforços em ações que podem ter maior apelo internacional. Entre eles, estaria o ataque à legitimidade das supremas cortes do país.

Nem Trump nem Eduardo Bolsonaro responderam aos contatos do Washington Post.

Lucas Brêda para a Folha de S. Paulo, em 24.11.22

"Candidatura de Bolsonaro era a melhor opção", diz Moro

Em entrevista à DW (Deutsche Welle Brasil), o ex-juiz fala da sua reaproximação com o bolsonarismo, defende reforma no Judiciário que imponha mandatos para novos ministros do STF e diz que protestos devem servir de alerta para o governo Lula.

Ex-juiz federal, ex-ministro, ex-consultor e ex-pré-candidato à Presidência, Sergio Moro vai estrear em 2023 em um novo papel: o de senador pelo estado do Paraná.

Eleito com pouco menos de 2 milhões de votos, Moro garantiu no primeiro turno de 2022 sua primeira vitória pessoal desde que deixou o governo Jair Bolsonaro de maneira bombástica em 2020, acusando o presidente de interferir politicamente na Polícia Federal e ganhando a pecha de "traidor" entre a base de extrema direita do Planalto.

Nos dois anos seguintes, Moro ainda veria o Judiciário anular parte significativa das decisões da Operação Lava Jato, que investigou um esquema bilionário de lavagem e desvio de dinheiro envolverendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos. As decisões anuladas incluíram a condenação contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), abrindo caminho para que o petista disputasse e vencesse a eleição presidencial de 2022.

O Supremo Tribunal Federal (STF) ainda entendeu, com base nas mensagens vazadas pelo caso Vaza Jato, que Moro atuou de maneira parcial no processo contra o político de esquerda.

Após atuar de maneira controversa como consultor para a empresa Alvarez & Marsal, Moro ensaiou uma pré-candidatura à Presidência. Seu nome não chegou a decolar nas pesquisas, e ele acabou se contentando em disputar o Senado.

Para garantir sua eleição, a antiga estrela da Lava Jato liderou uma campanha que mesclou nostalgia pela operação, críticas ao PT e afagos no eleitorado bolsonarista do Paraná.

Mesmo após ser eleito, continuou a se reaproximar do bolsonarismo, chegando a assessorar o atual presidente nos debates televisivos com Lula no segundo turno.

Em entrevista à DW, Moro afirma que continua a enxergar que Bolsonaro era a melhor opção eleitoral em 2022, considerando como a corrida se afunilou. Ele diz que ainda "mantém" as razões para seu rompimento com o governo, mas que era preciso "fazer uma escolha".

Agora no Senado, Moro ainda afirma que não pretende fazer uma oposição "irracional" ao futuro governo Lula. Entre os projetos que pretende promover estão antigas bandeiras da Lava Jato, como a execução de penas em segunda instância e o fim do foro privilegiado.

Há outras bandeiras, que se aproximam do bolsonarismo, como a defesa de uma reforma no Judiciário, especialmente no STF, com a imposição de mandatos para novos ministros da corte mais alta do país. Moro, no entanto, afirma que eventuais reformas não devem ser feitas em "confronto com o Judiciário".

Durante protesto no Rio de Janeiro, onde se vê pessoas vestidas de verde e amarelo com árvore ao fundo, apoiador do presidente Jair Bolsonaro levanta cartaz dizendo Durante protesto no Rio de Janeiro, onde se vê pessoas vestidas de verde e amarelo com árvore ao fundo, apoiador do presidente Jair Bolsonaro levanta cartaz dizendo 

Para Moro, "protestos revelam uma grande insatisfação com o resultado das eleições e uma oposição à proposta do PT para o país" e deveriam servir de alerta para o novo governo "buscar posições moderadas"Foto: Silvia Machado/TheNEWS2/ZUMA/picture alliance

O senador eleito também diz ser contra protestos golpistas que tentam contestar o resultado da eleição presidencial fazendo uso de bloqueios em rodovias. Por outro lado, afirma que faz "parte de uma democracia as pessoas poderem protestar" e que as manifestações devem servir de "alerta" para o novo governo ser "cauteloso" e "buscar posições moderadas".

DW: Em janeiro, quando ainda contemplava disputar a Presidência, o senhor disse que "eleger Lula ou Bolsonaro" seria um "suicídio". No entanto, meses depois o senhor passou até mesmo a assessorar Bolsonaro em debates. Por que o senhor se reaproximou do presidente? 

Sergio Moro: Desde o início eu me coloquei como um defensor da terceira via, até coloquei uma pré-candidatura presidencial, porque acredito que essa polarização é ruim para o país, que ela leva a radicalismos. E a gente precisa de uma posição moderada, de centro. Mas não se viabilizou – nem a minha candidatura, no final, mas também a candidatura de outros da terceira via. Tanto que o resultado, mesmo daqueles que mantiveram as candidaturas, foi muito tímido. 

E aí nós tivemos num segundo turno apenas duas opções: Bolsonaro e Lula. E tem que se fazer uma escolha. Não seria nenhum deles o meu candidato a presidente.

Mas, tendo que fazer uma escolha, eu me coloquei ao lado do presidente Bolsonaro. Não mudo minha opinião sobre o passado. Mantenho as razões do meu rompimento com o governo. Mas, dentre as opções que estavam ali à disposição, entendo que a candidatura de Bolsonaro seria a melhor.

Não seria uma base do governo necessariamente. Por exemplo, eu acho que há falhas gritantes em matéria de preservação ambiental. Tínhamos que avançar também em outras pautas, em uma agenda de reformas mais ambiciosas para o Brasil. 

Mas, entre as duas opções, Bolsonaro ainda seria melhor. Não vejo o Lula com essa agenda modernizante ou algo positivo para a própria democracia brasileira.

Por que o Brasil falha no combate à corrupção

Como será sua atuação sob Lula presidente? 

Eu vou ser oposição. Claro que não é uma oposição irracional. O que nós entendermos que é bom para o país, não é porque veio do governo a que a gente se opõe, que nós vamos necessariamente rejeitar.

Agora, é claro que não vejo vindo desse governo [de Lula a partir de 2023] propostas na área anticorrupção. Então pretendo ser um senador vigilante. É um pouco numa linha de guardião da República, como tem que ser o Senado.

Como o senhor encara os protestos de bolsonaristas que contestam o resultado das eleições? 

Acho que esses protestos revelam uma grande insatisfação com o resultado das eleições e uma oposição à proposta do PT para o país.

Quem ganhou, no final das contas, não foi tanto o PT, mas essa rejeição ao governo Bolsonaro – [que] fez coisas boas também, a gente tem que destacar isso. A economia não estava numa situação exatamente ruim, o desemprego estava caindo, mas existia uma série de falhas que acabaram comprometendo a reeleição.

Essas manifestações, desde que elas não sejam violentas, sendo elas pacíficas – não concordo também lá, com algumas coisas, como os bloqueios –, revelam essa insatisfação. Faz parte de uma democracia as pessoas poderem protestar. 

As manifestações deveriam ser interpretadas da forma apropriada, no sentido de alertar o novo governo de que ele requer cautela, prudência e buscar posições moderadas, já que existe uma grande oposição e insatisfação da população em relação ao resultado das eleições. 

A eleição resultou na chegada de uma bancada "lavajatista" ao Congresso, que inclui sua esposa, Rosângela, e o ex-procurador Deltan Dallagnol. Quais projetos vocês pretendem defender?

Nós temos que buscar no espaço político possível a retomada do combate à corrupção, dos instrumentos, das condições necessárias, para que a gente tenha não só prevenção, mas também repressão qualificada contra a corrupção – porque ela continua sendo um grande problema.

Eu tenho defendido o fim do foro privilegiado: o privilégio para os agentes políticos, que não se justifica mais numa República e acaba sendo uma blindagem para pessoas que fazem coisa errada. Agora, como senador, eu terei esse foro privilegiado, mas eu acho que é um mal para o país, e defendo a supressão desse mal.

[Também defendo] a volta da prisão em segunda instância, que é uma forma de você dar uma resposta à sociedade para aqueles casos intermináveis na Justiça.

Além disso, existe uma série de medidas pontuais que podem ser feitas, por exemplo, criar programas de whistle-blowing, como existem em outros países, e que aqui no Brasil ainda são muito precários.  Medidas, por exemplo, como a gente resguardar autonomia da Polícia Federal. Então eu defendo, por exemplo, mandato fixo para o diretor da Polícia Federal, assim como existe no de diretor do FBI.

Entre esses projetos há alguma ideia sobre reformar o STF? Essa é uma pauta cara ao eleitorado bolsonarista que ajudou a eleger o senhor. 

Eu acho que é um tema importante. Discutir reforma da Justiça é sempre positivo. O que não deve ser feito, no entanto, é uma discussão de reforma da Justiça em confronto com o próprio Judiciário.

Se a gente for olhar o próprio STF, vários ministros defendem, por exemplo, o fim do foro privilegiado; vários ministros defendem uma limitação da sua competência para que a competência fique mais restrita a casos constitucionais. São discussões saudáveis que podem ser feitas em qualquer democracia, sem que isso necessariamente implique alguma espécie de confronto com o STF.

No fundo, o que a gente precisa no Brasil é de mais diálogo. Por exemplo, eu sou contra a discussão de ampliar o número de ministros do Supremo. Sempre achei que isso não era o caminho, mas você [pode] discutir, por exemplo, a fixação de mandatos, como existem nas cortes constitucionais europeias, para ministros do Supremo – especialmente para os novos que forem nomeados.

Você estabelecer mandatos fixos de 10 a 12 anos é uma discussão saudável – e sequer os ministros do Supremo atuais são refratários a esse tipo de proposta, pelo menos até onde eu sei.

Durante a sua campanha ao Senado, o senhor adotou uma postura bastante próxima do bolsonarismo em temas como aborto e o que a direita chama de "ideologia de gênero". O senhor pretende manter essa postura de alinhamento ao bolsonarismo em temas da pauta dos costumes no Congresso? 

Eu me qualifico como um político de centro-direita. Então, de algumas dessas pautas eu compartilho. Outras, nem tanto. Eu tenho um compromisso com o eleitorado.

Eu sou particularmente contra a ampliação das hipóteses que autorizam a prática do aborto no Brasil. Isso não é uma pauta, por exemplo, de extrema direita ou necessariamente de um eleitor bolsonarista. Existem eleitores que se identificam com Bolsonaro, que têm essa pauta, mas essa pauta transcende essa questão personalista. 

Após a anulação das sentenças contra o presidente eleito Lula e com o escândalo da Vaza Jato, a Operação Lava Jato perdeu credibilidade. Como o senhor avalia esses desdobramentos? 

São duas lições que nós temos que extrair desse episódio: nós temos uma tradição histórica de impunidade no Brasil, do crime de colarinho branco e da grande corrupção. Então, vários escândalos criminais se sucederam no tempo. E a Lava Jato mostrou que o combate à corrupção é possível, sim, num país como o Brasil. Que nós não estamos fadados a ser um país corrupto. É preciso ter vontade política e vontade institucional.

A outra lição que se extrai disso é que tem que ser uma luta perene, e nessa luta perene nós podemos ter avanços e podemos ter também retrocessos. Mas a Lava Jato revelou um sistema de corrupção que estava entranhado na administração pública, não só no governo federal, mas em governos estaduais, e é algo que impactava o nosso desenvolvimento econômico e erosionava (sic) a fé que as pessoas tinham na democracia.

Mas gerou uma onda anticorrupção mundial: teve impactos aqui na América Latina e na África, principalmente, enormes. Nós tivemos aí quatro presidentes do Peru que foram processados por corrupção, por provas que nós descobrimos na Lava Jato e compartilhamos. Tivemos reflexos em países como Equador, Colômbia, em maior ou menor grau também ali na região da América Central, além de termos também reflexos em países como os EUA, Suíça e Luxemburgo.

Então a corrupção foi real, é talvez o maior caso de corrupção descoberto na história, e o Brasil deu uma lição ao mundo naquela época, mostrando que mesmo um país com uma tradição de impunidade pode ter a capacidade de mudar a sua história. O que veio depois foi uma reação política que, claro, nos entristece, mas ela é a causa e motivo apenas de nós retomarmos na luta e seguirmos adiante. 

A condenação, a prisão e a consequente inelegibilidade de Lula alteraram os rumos da eleição presidencial de 2018.

Foi uma consequência indesejada porque, no fundo, o Judiciário aplica a lei. Eu apliquei a lei naqueles casos, a própria condenação do ex-presidente, ela foi exarada não só por mim, mas por outros juízes. Foi mantida no tribunal de apelação em Porto Alegre, foi mantida em Brasília, o próprio STF na época autorizou a prisão do ex-presidente.

Então foi uma consequência, no fundo indesejada, mas uma consequência decorrente não da aplicação da lei, mas da prática dos crimes descobertos na Operação Lava Jato. 

Em março de 2021, o STF anulou as condenações de Lula, com base nos entendimentos da Corte de que os casos tramitaram fora da jurisdição correta. Depois o tribunal entendeu que o senhor foi parcial, comprometendo o direito da defesa a um julgamento justo. Qual é sua opinião sobre a decisão do STF? 

Para mim foi um erro judiciário a anulação das condenações, mas é aquele momento que a gente tem que olhar para frente. Vamos olhar para frente e vamos ver como é que a gente consegue construir depois disso, retomar as condições necessárias para que a gente tenha prevenção e repressão qualificada à corrupção no Brasil, que é um objetivo de qualquer país.

Não tem nenhuma democracia moderna que se sustenta baseada em corrupção, não tem nenhuma economia que se mostra eficiente se você tem o desperdício inerente ao suborno disseminado. Mas tudo isso significa que agora teve uma eleição e a gente tem que olhar para frente, não adianta a gente ficar remoendo esse passado.

Eu tenho a minha consciência tranquila em relação àquilo que eu fiz e a minha decisão na época, ela foi confirmada por outros juízes de outros tribunais, mas agora é o momento da gente olhar para a frente. 

Sua pré-candidatura à Presidência em 2022 não chegou a avançar de maneira decisiva, levando o senhor a se candidatar ao Senado. Suas pretensões políticas vão se limitar a esse mandato no Congresso? Pensa em voltar a concorrer à Presidência algum dia? 

Não. Eu vou ser franco com você, eu nunca pensei num cargo cogitando o seguinte. No fundo, a minha intenção é fazer um bom mandato como senador.

Então não penso no que a gente vai fazer daqui a quatro, daqui a oito anos. Então, não tem essa cogitação em mente.

Marina Oliveto, de Curitiba - PR e Jean-Philip Struck para Deutsche Welle Brasil, em 25.11.22

Mais ausente que 'pato manco': a reclusão de Bolsonaro após derrota para Lula

Pato manco é a tradução para lame duck, expressão usada nos Estados Unidos para se referir ao presidente em final de mandato — ou seja, um mandatário que ainda está no cargo, mas com seu poder e prestígio esvaziados.

Bolsonaro no Palácio do Alvorada, em 1° de Novembro: em fala curta, não reconheceu vitória de Lula (Reuters)

Em quatro semanas após fracassar em sua tentativa de reeleição, o presidente Jair Bolsonaro (PL) pouco apareceu em público ou em suas redes sociais.

De 31 de outubro, dia seguinte à vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), até a manhã desta sexta-feira (25/11), o presidente havia feito apenas dois pronunciamentos, que somaram menos de cinco minutos, e ido três vezes ao Palácio do Planalto, que é o seu local oficial de trabalho.

No sábado (26/11), deve sair de Brasília pela primeira vez. Há expectativa de que participe da cerimônia de formação dos aspirantes da Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ).

A postura mais reclusa contrasta com o estilo nada discreto de governar que marcou seu mandato.

Nos últimos quatro anos, o Brasil acompanhou diariamente declarações e aparições, seja na porta do Palácio do Alvorada, sua residência oficial, em motociatas pelo país ou em lives nas redes sociais.

No entanto, até mesmo a tradicional transmissão ao vivo que fazia toda quinta-feira de noite foi interrompida em novembro.

Alguns críticos têm desconfiado do silêncio. Acusam Bolsonaro de tentar costurar nos bastidores uma espécie de conspiração para tentar anular a eleição.

Essas críticas ganharam fôlego quando Bolsonaro apresentou na terça-feira (22/11), junto com seu partido, o PL, um pedido para invalidar 59% dos votos do segundo turno.

A reação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), porém, foi dura. O presidente da Corte, ministro Alexandre de Moraes, aplicou uma multa de R$ 22,9 milhões ao PL e aos outros dois partidos que integraram a coligação que apoiou a tentativa de reeleição, Republicanos e PP.

Na avaliação de Moraes, não foram apresentados indícios suficientes de irregularidades que justifiquem o pedido para anular os votos.

'Pato manco'

Por causa desse esvaziamento de força política, é natural que o o governo de um presidente em final de mandato perca ritmo, explica a cientista política Beatriz Rey, pesquisadora visitante da Universidade Johns Hopkins, em Washington.

Ela considera, porém, que a ociosidade de Bolsonaro nas últimas semanas é anormal e ainda pior que o comportamento do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que também não reconheceu a derrota em 2020 para o atual presidente americano, Joe Biden.

Na sua avaliação, a ausência de Bolsonaro está relacionado a um inconformismo com a derrota e a dificuldade em reconhecer publicamente a vitória de Lula.

Até o momento, o presidente não parabenizou o adversário pela eleição, postura que é praxe em regimes democráticos.

"O que essa reclusão mostra é que realmente ele não é digno do cargo que ocupa. Porque ocupar a Presidência da República significa respeitar a instituição da Presidência da República. Essa reclusão dele é um desrespeito, na minha visão", afirma Rey.

Para além do cenário político adverso, Bolsonaro foi diagnosticado com erisipela, uma infecção bacteriana nas pernas, logo após a eleição, segundo relatos da imprensa brasileira.

O diagnóstico não foi confirmado oficialmente pelo Palácio do Planalto, mas, de acordo com seu vice, o general Hamilton Mourão, a doença o impedia de vestir calças e seria o motivo de o presidente ter passado quase 20 dias sem sair do Palácio do Alvorada, sua residência.

No dia 16 de novembro, por exemplo, Mourão assumiu a tarefa de receber cartas credenciais de embaixadores estrangeiros no Brasil, protocolo que costuma ser realizado pelo presidente.

Dois dias depois, o general Braga Netto, que concorreu neste eleição a vice na chapa de Bolsonaro, disse a apoiadores que o presidente estaria bem, recebendo visitas no Alvorada.

Seja pelo abatimento pós-derrota ou por questões de saúde, o fato é que Bolsonaro teve, em média, menos de duas horas de compromissos oficiais por dia útil desde 31 de outubro. É o que mostra levantamento a partir de sua agenda pública.

E todos esses compromissos foram reuniões fechadas com integrantes do governo ou aliados políticos, quase sempre no Alvorada.

O presidente esteve apenas três vezes no Palácio do Planalto, primeiro em uma reunião com Paulo Guedes em 31 de outubro. Depois, no dia 3 de novembro, quando se encontrou brevemente com o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, fora da agenda oficial. E voltou só no dia 23, quando sua agenda registrou apenas um encontro com seu ex-ministro e agora senador eleito, Rogério Marinho.

Fora isso, fez duas aparições públicas no dia primeiro de novembro. Primeiro, para um pronunciamento de cerca de dois minutos, em que não mencionou diretamente Lula nem reconheceu a derrota. E, depois, em um encontro com ministros do Supremo Tribunal Federal na sede da Corte.

Protesto contra a eleição de Lula em Anápolis, Goiás, no feriado de 2 de novembro Ueslei Marcelino / Reuters)

No curto pronunciamento, Bolsonaro legitimou protestos que bloqueavam estradas pelo país ao dizer que aqueles movimentos populares eram "fruto de indignação e sentimento de injustiça, de como se deu o processo eleitoral".

Esses atos, porém, têm viés antidemocrático, pois os manifestantes costumam pedir intervenção militar contra o resultado das eleições.

Por outro lado, Bolsonaro repudiou em sua fala práticas como "invasão de propriedade, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir".

No dia seguinte, 2 de novembro, fez outro rápido pronunciamento nas redes sociais, com teor semelhante.

Disse que entendia os manifestantes, que também estava triste, afirmou que os protestos eram legítimos, mas pediu a liberação das estradas para não afetar a economia e o direito de ir e vir da população. Mais uma vez, não reconheceu a vitória de Lula nem repudiou a contestação do resultado eleitoral.

Nesse período de reclusão, o presidente faltou, inclusive, a dois grandes encontros internacionais: a Cúpula do Clima realizada pela ONU no Egito, da qual Lula participou com destaque. E também deixou de ir à Indonésia para a Cúpula do G20, reunião das maiores economias do mundo.

Não é de hoje, porém, que Bolsonaro é criticado por ter uma agenda pouco carregada de compromissos oficiais.

Um levantamento liderado por Dalson Figueiredo, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, divulgado em abril, mostrou que, desde sua posse até fevereiro deste ano, o presidente havia trabalhado, em média 4,8 horas por dia útil, considerando os compromissos públicos divulgados em sua agenda.

Isso não incluía lives nas redes sociais nem compromissos de campanha, que não havia começado naquela época.

No passado, live até do hospital

Bolsonaro não reduziu apenas os compromissos públicos. Se em outras ocasiões em que teve questões de saúde, o presidente fez transmissões ao vivo de dentro do hospital, dessa vez sua presença nas redes sociais, vista como um trunfo político, também despencou.

O presidente interrompeu, por exemplo, o hábito de realizar uma live todas as quintas-feiras à noite, momento em que comentava medidas do governo e temas da semana, além de atacar adversários.

Crítico do papel da imprensa, ele usava essa transmissão como um canal direto de comunicação com seus apoiadores, sem precisar responder perguntas de jornalistas sobre temas incômodos.

Até a manhã de 25 de outubro, foram apenas três mensagens compartilhadas no feed do Twitter, duas no do Instagram e quatro no do Facebook, redes que o presidente costumava atualizar quase todos os dias.

Desde a derrota, Bolsonaro tem priorizado outros canais, como o Tik Tok, em que vem compartilhando basicamente vídeos com imagens suas em fundo musical.

Apesar de não haver qualquer fala do presidente, apoiadores tentam desvendar nas imagens possíveis mensagens subliminares. Em um desses vídeos, por exemplo, em que Bolsonaro aparece abraçado com pessoas fantasiadas de Power Rangers, personagens de um programa infantil, uma pessoa sugere que isso representaria o apoio dos "super-heróis das Forças Armadas".

Já no Telegram, desde 7 de novembro ele tem feito atualizações diárias, com mensagens focadas em divulgar feitos do seu governo. O mesmo na sua conta no Linkedin, rede voltada para o mercado de trabalho. Lá, atualizações frequentes também destacam ações da sua gestão.

Sua presença mais forte no Linkedin até provocou piadas de que estaria procurando um novo emprego. Seu futuro, porém, já estaria acertado com a direção do PL, seu partido.

Segundo notícias da imprensa brasileira, Bolsonaro terá um cargo remunerado na sigla, que bancará com recursos do fundo partidário também o aluguel de uma casa e de um escritório para ele em Brasília. O valor do salário não foi divulgado.

Sua renda deve ser complementada com duas aposentadorias que Bolsonaro tem direito a acumular e somam R$ 42 mil.

Uma ele já recebe, de quase R$ 12 mil, como capitão reformado do Exército. A outra, de cerca de R$ 30 mil, Bolsonaro tem direito pelos quase trinta anos que atuou como deputado federal. Ele já disse que pretende solicitar essa aposentadoria quando deixar a Presidência.

Tentativa de anular urnas

A reclusão, para alguns aliados, seria "estratégica", para organizar a oposição ao futuro governo Lula, ao mesmo tempo que tenta reverter a derrota, repetindo os argumentos de que as urnas eletrônicas não seriam seguras - apesar de a lisura das eleições ter sido confirmada por entidades como o Tribunal de Contas da União, a Ordem dos Advogados do Brasil e observadores internacionais, como a Organização dos Estados Americanos.

Na última semana, o PL, partido de Bolsonaro, ingressou com uma ação no Tribunal Superior Eleitoral pedindo a invalidação de 59% dos votos do segundo turno das eleições.

O principal problema detectado pela consultoria contratada pelo partido foi o fato de que as urnas de modelos anteriores a 2020 não gerariam arquivos de log que permitam saber, pelo nome do arquivo, a qual urna ele se refere.

"Arquivo log" é um arquivo de texto que contém uma espécie de "biografia" da urna. Ele informa, por exemplo, dados sobre quantas vezes ela foi ligada, desligada e em que momento os programas foram inseridos. Esse arquivo é considerado importante porque qualquer tentativa de acesso irregular à urna ficaria registrada nele.

Segundo a petição do PL, as urnas fabricadas antes de 2020 não estariam gerando arquivos log com um nome individualizado e, por isso, não seria possível relacionar um arquivo log específico a uma determinada urna.

No entanto, especialistas em segurança eleitoral ouvidos pela BBC News Brasil, dizem que o relatório do PL é falho. Segundo eles, bastaria abrir os arquivos de log para encontrar outras informações precisas que também permitem identificar a qual urna ele pertence. Além disso, afirmam que a questão apontada no relatório não significa que houve qualquer adulteração ou erro de contagem de votos.

"É como se, em vez de cada urna diferente dizer seu nome no arquivo de log, todas elas dissessem o nome 'Enzo'. Porém, elas ainda assim dizem seu RG e CPF, que permitem a sua identificação", explica Marcos Simplício, professor de Engenharia de Computação da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). Ele é pesquisador nas áreas de cybersegurança e criptografia, e vice-coordenador do convênio USP-TSE que analisa a segurança do sistema de votação brasileiro.

Esses especialistas também criticaram o PL por ter focado seu pedido apenas na votação do segundo turno, sendo que as mesmas urnas foram usadas no primeiro turno das eleições, quando 99 deputados federais do próprio partido foram eleitos, formando a futura maior bancada da Câmara.

Em decisão desta quarta-feira (23/11), Moraes afirmou que coligação de Bolsonaro demonstrou 'má-fé [...] em seu esdrúxulo e ilícito pedido' (Reuters)

O ministro Alexandre de Moraes, inclusive, reagiu ao pedido do PL dizendo que a ação só teria validade se abrangesse também o primeiro turno. O partido, porém, manteve a solicitação apenas para o segundo turno.

Com isso, o presidente do TSE multou o PL e os outros dois partidos da coligação que apoiou a reeleição de Bolsonaro — o PP e o Republicanos — em R$ 22,9 milhões e suspendeu o fundo partidário das três legendas.

A justificativa é que teria havido litigância de má-fé no pedido do PL, ou seja, a Justiça teria sido acionada de forma irresponsável pelo partido.

É bastante improvável que o pedido do PL invalide o resultado das eleições de 30 de outubro, então talvez você esteja se perguntando qual é o cálculo do partido ao questionar as urnas.

Apesar do fracasso na tentativa de reverter o resultado eleitoral, a ação do PL pode servir de combustível para manter os apoiadores mais fiéis de Bolsonaro engajados.

Para críticos do presidente, essa seria a principal finalidade da iniciativa: manteria uma base de apoio mobilizada, seja para liderar a oposição a Lula, seja manter seu poder de barganha político, algo que pode ser útil tanto em em possíveis batalhas futuras na Justiça.

Atualmente, há quatro inquéritos autorizados pelo STF em que o presidente é investigado por suspeitas de diferentes crimes. Bolsonaro também enfrenta as acusações de crimes feitas pela CPI da Covid, que estão em apuração pela PGR.

No entanto, a partir do momento em que deixar a Presidência da República, Bolsonaro passa a responder por todas essas suspeitas na Justiça Comum. Ou seja, a Polícia Federal pode continuar as investigações sem autorização do Supremo, as apurações que estão sendo feitas pela PGR passam para a competência de instâncias inferiores do Ministério Público e os processos no TSE passam para o TRE da região onde houve a suspeita.

Se o Ministério Público decidir fazer uma denúncia contra Bolsonaro, ele será julgado por um juiz de primeira instância.

Mariana Schreiber - @marischreiber de Brasília - DF para a BBC News Brasil, em 25.11.22, 16h:00

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Molecagem

O PL mostra-se tacanho e golpista ao defender que as urnas cujos votos rejeitaram Bolsonaro não devem ser computadas no resultado final. Não cabe na democracia tal molecagem

Neste ano, o PL elegeu 99 deputados federais e 8 senadores. Com o resultado, a legenda de Valdemar Costa Neto terá, a partir de 2023, a maior bancada da Câmara e do Senado, com 14 senadores ao todo. No entanto, o partido parece não apenas indiferente ao apoio recebido nas urnas, como também alheio à responsabilidade que o voto confere em uma democracia, portando-se como um grupo golpista. Na terça-feira, o PL pediu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a anulação dos votos de 279,3 mil urnas eletrônicas no segundo turno, sob a alegação de “mau funcionamento” do sistema.

A ação do PL é um deboche do início ao fim. No sábado passado, ao anunciar a propositura do pedido de anulação, Valdemar Costa Neto reconheceu a lisura e a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro. “Eu disputo eleições desde 1990 e as urnas estão aí desde 94. Nunca tive preocupação com isso”, disse. No entanto, a “insistência de Bolsonaro para ver esse assunto” teria levado o partido a descobrir algum possível questionamento perante a Justiça Eleitoral.

“Eles insistiram comigo, aí insisti com o pessoal, eles foram lá e descobriram isso aí”, disse o presidente do PL, escancarando a seriedade e a motivação da descoberta do suposto problema envolvendo 279,3 mil urnas eletrônicas. E qual foi o gravíssimo problema encontrado pelo PL a justificar a anulação de todos os votos depositados nessas urnas? Não se sabe. A rigor, não foi apresentado nenhum problema ou fraude. A legenda disse apenas que as urnas anteriores a 2020 têm o mesmo número de patrimônio. Como isso pode ter interferido no resultado do pleito a justificar o extravagante pedido de anulação dos votos, ninguém explicou.

Eis a irresponsabilidade do PL. Um devaneio golpista de Jair Bolsonaro é suficiente para que a legenda peça à Justiça Eleitoral a anulação dos votos de 279,3 mil urnas eletrônicas, urnas estas que funcionaram perfeitamente nas eleições de 2018 e no primeiro turno de 2022. Segundo o pedido do PL, o problema nas urnas – que ninguém sabe exatamente qual foi – teria ocorrido apenas e tão somente quando o candidato do PL à Presidência da República perdeu.

Perante tão evidente disparate, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, determinou que o PL apresentasse um relatório completo sobre as eleições, e não apenas sobre supostas irregularidades no segundo turno. Afinal, como menciona o despacho da Justiça Eleitoral, as urnas foram usadas nos dois turnos e, portanto, o pedido deve, por princípio, abranger todo o pleito, sob pena de indeferimento.

A pronta resposta do TSE ao PL foi muito oportuna. Não cabe dar nenhuma margem a esse tipo de golpismo, cujo objetivo é criar confusão e instabilidade. Neste momento, o País precisa justamente do oposto. Todos, muito especialmente as autoridades e lideranças políticas, têm o dever de respeitar plena e incondicionalmente a voz da população manifestada nas urnas.

A resposta do PL à demanda da Justiça Eleitoral é irrelevante, pois a iniciativa do partido, em si mesma, não passa de uma rematada farsa, arquitetada para satisfazer a psicopatia golpista do bolsonarismo, movimento liberticida do qual o PL se tornou hospedeiro. Antidemocrática e irresponsável, a ação do PL revela, de forma cristalina, o valor que o bolsonarismo confere ao voto do eleitor. Quando os votos não são favoráveis a Jair Bolsonaro, então não valem nada.

É desolador que o presidente da República – eleito precisamente pelo voto depositado nas urnas que agora contesta – e o maior partido do Congresso manifestem tamanho descompromisso com o regime democrático e com o interesse público. Revelam-se assim não apenas tacanhos, incapazes de reconhecer uma derrota eleitoral, mas inaptos a funções públicas num regime democrático. Não cabe no Estado Democrático de Direito tal molecagem, tal desprezo pelo eleitor, tal indiferença com a lei.

Em sua inépcia, a ação do PL reitera uma vez mais a lisura das urnas eletrônicas. Não há rigorosamente nada a contestar. O que falta a alguns é a honradez de aceitar a vitória do adversário – mas isso não é um problema técnico, e sim de caráter.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 24.11.22, às 03h00