sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Presidencialismo é "o mais grave problema" institucional do país

Qualquer que seja o próximo presidente do Brasil, ele terá dificuldades de negociar com o Congresso Nacional.


Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, constitucionalista

Na campanha eleitoral de 2018, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vendeu uma imagem de candidato antissistema — embora fosse parlamentar, de atuação inexpressiva, havia 29 anos. Ao começar a governar, percebeu que não conseguiria manter essa postura e fez aliança com o Centrão, que deverá prosseguir em um eventual novo mandato. Por outro lado, se o ex-presidente Lula (PT) obtiver uma terceira gestão, terá uma Câmara dos Deputados e um Senado com maioria bolsonarista.

A dificuldade de negociar com o Congresso e de governar é fruto do presidencialismo, o "mais grave problema brasileiro" no âmbito institucional, segundo o advogado e professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo Manoel Gonçalves Ferreira Filho.

"Sem dúvida, o presidencialismo foi responsável por um autoritarismo e por um poder pessoal do presidente da República, dos quais não desapareceram os traços, embora tenham se atenuado. Hoje, ele é responsável por — diga-se o mínimo — uma dificuldade na governança, ou — diga-se o máximo — uma distorção na governança", aponta o jurista.

Quando há necessidade de apoio parlamentar, essa seria uma dificuldade para o governo; no entanto, quando o caso é de interferência dos interesses de deputados, senadores e partidos na aprovação de projetos de lei, entra-se no terreno das distorções.

Para tornar o sistema brasileiro menos sujeito a crises, o constitucionalista defende a adoção do semipresidencialismo — medida apoiada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Em tal sistema, o presidente da República, eleito por voto direto, seria o chefe de Estado, das Forças Armadas e responsável por sancionar projetos de lei, entre outras competências. Já o chefe do governo seria o primeiro-ministro, eleito pelo Congresso, e cuidaria do dia a dia da administração do país.

"Assim, o presidente asseguraria a estabilidade das instituições — seria um poder moderador; o primeiro-ministro exerceria a governança no seu importante dia a dia, sob o controle do Parlamento. Este poderia afastá-lo se governasse mal ou irregularmente, sem necessidade de impeachment, desde que em seu lugar apoiasse um sucessor, com apoio para servir ao bem comum", explica Ferreira Filho.

Até porque o processo de impeachment "sempre tem sequelas políticas graves", e paira sobre ele a pecha de "golpe", avalia. A Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950), de acordo com o professor, está desatualizada tanto quanto à definição dos crimes de responsabilidade quanto ao procedimento. Tanto que uma comissão de juristas, sob a presidência do ministro do STF Ricardo Lewandowski, proporá a atualização da norma. Dessa reforma, Ferreira Filho espera que, no mínimo, se suprima a possibilidade de o presidente da Câmara reter por tempo indeterminado a apreciação da denúncia e que, em caso de indeferimento, seja cabível recurso para o Plenário.

Integrante do panteão dos constitucionalistas brasileiros, Ferreira Filho foi professor de inúmeros profissionais do Direito que viraram referência em suas áreas, como os ministros do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Dias Toffoli.

Tem no currículo também passagens pela política. Na virada dos anos 1960 para os 1970, foi secretário-geral do Ministério da Justiça e secretário do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Posteriormente, foi vice-governador do estado de São Paulo no governo Paulo Egydio, entre 1975 e 1979, e secretário estadual da Justiça.

Leia a entrevista:

ConJur — Qual é o papel do presidencialismo nas crises políticas brasileiras?

Manoel Gonçalves Ferreira Filho — No plano das instituições políticas, o mais grave problema brasileiro é, sem dúvida, o do sistema de governo. Ou seja, o presidencialismo que a República adotou.


Sem dúvida, ele foi responsável por um autoritarismo e por um poder pessoal do presidente da República, dos quais não desapareceram os traços, embora tenham se atenuado. Hoje, ele é responsável por — diga-se o mínimo — uma dificuldade na governança — ou diga-se o máximo — uma distorção na governança.

A primeira deriva de que, em um Estado Democrático de Direito, a governança do presidente necessariamente presume um apoio parlamentar, pois ela somente pode ser exercida de acordo com a lei. A ambiciosa meta do Estado de Bem-Estar reclama uma atuação positiva no plano econômico e social que não pode ocorrer senão se autorizada pela lei (nas democracias, evidentemente). No primitivo Estado Liberal, ela devia se limitar a garantir a ordem. Esse objetivo era simplesmente realizado pela possibilidade de emprego da força, segundo admitido pela lei processual e pelo Código Penal.

A segunda deriva — simplificadamente — da necessidade de obter do Congresso a aprovação das leis que ensejem a governança para o bem-estar, na medida em que isto pretende ser feito pelo presidente. Ora, nisto interferem interesses dos membros do Congresso e de seus partidos (afora a pressão dos beneficiados ou prejudicados pelas medidas tomadas em prol do bem-estar de todos e não raramente de alguns).

A governança, portanto, presume não a separação entre o Executivo e o Legislativo, mas uma colaboração entre ambos. Isso exclui o presidencialismo puro, bem como o êxito da governança, pois o programa desta pode deixar de ser realizado, ficando a "culpa" por conta do governante. Tal colaboração, com efeito, para que ocorra ou não, depende de o presidente ter ou não maioria parlamentar que o apoie ou a obtenha como puder. Isso remete ao sistema partidário, e este, ao sistema eleitoral.

Acrescente-se que o presidencialismo enseja, pelo mandato de prazo fixo, do presidente da República a dificuldade de afastá-lo se não estiver à altura do cargo ou exercê-lo indevidamente. O único remédio para fazê-lo é o impeachment — um processo formalmente jurídico que por isso pode-se tornar tortuoso e substancialmente político, pois, o mau governante que tenha suficiente apoio parlamentar dele escapa ou se sai bem.

E isso não somente enseja crises, tanto quanto à sua necessidade, como quanto à sua efetivação, pois sempre é visto pelo lado vencido como um “golpe”.

Ademais, como observa Afonso Arinos, a eleição do presidente tende a ser um “plebiscito entre dois demagogos”, que é frequentemente vencido por quem mais promete a grupos do que se preocupa com o interesse geral.

ConJur — O parlamentarismo seria mais benéfico ao Brasil?

Ferreira Filho — O parlamentarismo, alternativa sempre apresentada pelos adversários do presidencialismo, naturalmente enseja a colaboração entre os poderes. Nele, quem exerce a governança é o primeiro-ministro e seu conselho de ministros, com o apoio da maioria parlamentar e enquanto conta com esta.

A governança, assim, está sob o imediato acompanhamento do Parlamento. O êxito ou fracasso do governo se reflete no partido ou partidos que o apoiou. A substituição do governo é simples, desde que exista maioria unida disposta a dar o poder a outro primeiro-ministro e a outro ministério.

Aqui se há de considerar o sistema de partidos. Quando existe um bipartidarismo, o partido majoritário faz o governo e o apoio necessário à governança. Mas esse partido deve estar solidamente unido — e o atual quadro inglês mostra que nem sempre está. Se há multipartidarismo, necessariamente o governo dependerá de uma coalizão e as coalizões, segundo mostra a experiência universal, são instáveis. Desfazem-se fácil e frequentemente por motivos que vão desde a ambição dos membros dos partidos de assumirem o comando a divergências ideológicas, muitas vezes meros pretextos. Para impedi-lo, ocorrem aos mesmos artifícios de que se utilizam os governos presidencialistas sem maioria parlamentar.

Num polipartidarismo, como o brasileiro, é previsível que o governo parlamentarista seria extremamente instável, impotente e teria de negociar por todos os meios o apoio parlamentar.

Tal instabilidade, como mostra a experiência francesa da Quarta República (1946-1958), leva os gabinetes a não enfrentarem os problemas graves ou difíceis e a ficar no mais do mesmo. Ou seja, uma governança impotente e rotineira, incapaz de enfrentar os grandes problemas do desenvolvimento econômico e da ordem social. Foi isso que levou ao fim o parlamentarismo do Império, que seus opositores criticavam como o “governo do palavrório e da intriga”.

ConJur — O semipresidencialismo poderia ser um sistema que reduziria esses problemas?

Ferreira Filho — A ideia de superar esses dois sistemas que não tiveram êxito no Brasil por um que combine seus eventuais méritos e evite os seus defeitos é inspirada pelo êxito da Constituição francesa de 1958, que vigora ainda hoje. É o semipresidencialismo que proponho e que já se discute. Não há espaço para desenvolver em pormenor tal discussão, o que fiz em artigos e livros.

É um sistema que separa a chefia do Estado — incumbida dos interesses permanentes da nação, atribuída democraticamente ao eleito do povo — da chefia do governo, incumbida dos interesses imediatos e transitórios da governança, atribuída a um chefe de governo, cabeça de um ministério e necessariamente com o apoio da maioria parlamentar. Assim, o primeiro asseguraria a estabilidade das instituições — seria um poder moderador; o segundo exerceria a governança no seu importante dia a dia, sob o controle do Parlamento. Este poderia afastá-lo se governasse mal ou irregularmente, sem necessidade de impeachment, desde que em seu lugar apoiasse um sucessor, com apoio para servir ao bem comum.

ConJur — O sistema de partidos políticos no Brasil permitiria a adoção do semipresidencialismo?

Ferreira Filho — Os partidos políticos são considerados essenciais para a democracia moderna. Certamente o são como já se entreviu ao tratar da sua influência sobre os sistemas de governo. Duas são as razões principais que justificam, inclusive sua regulação nas Constituições modernas. Uma, de ordem teórica, outra, de ordem prática.

A primeira é que, tendo eles programas de governo, o eleitor ao votar num de seus candidatos está ao mesmo tempo exprimindo a linha que pretende para a governança e que deve ser seguida por aqueles que se elegerem. Estes não serão meros representantes dele eleitor, mas prepostos para a realização de uma determinada linha de governança. Entretanto, a realidade demonstra que não é regra geral que o programa seja observado pelo eleito, seja por mudança da situação, seja em decorrência de uma coalizão para a atuação governamental, seja pela percepção de sua viabilidade (o que é raro). Entretanto, em boa parte do mundo, incluído o Brasil, o programa hoje não exprime ou cria uma ideologia, como ocorreu com o Manifesto Comunista de Marx em 1848. De modo geral, o programa é um agregado de ideias gerais e vagas, que visam agradar à maioria do eleitorado. Nem são mais estabelecidos por pensadores, mas obra de especialistas em manipulação da opinião, no Brasil designados por “marqueteiros”.


A outra razão — a de ordem prática — é a mais importante para a eleição e governança. O partido cria uma agregação de candidatos a diferentes postos que assim trabalham em conjunto e usam em conexão os recursos financeiros para a eleição. E, posteriormente, forma blocos mais ou menos poderosos em relação à governança, seja para a formação do governo, seja para negociações com o governo.

Esse peso é evidentemente maior quando são isoladamente majoritários — aí, sim, podem impor o seu programa. Quando são disciplinados, comandam a governança no parlamentarismo, tendo em mãos o ministério e a maioria parlamentar. Nesse caso, o primeiro-ministro, que comanda o Executivo, também comanda o Legislativo. No presidencialismo, o mesmo ocorre em favor do presidente (como sucedia no Brasil, ao tempo da República Velha). De modo geral, isto somente se dá quando das eleições surge um sistema bipartidário, em que, mesmo havendo mais de dois partidos, apenas dois têm realmente condições de alcançar o poder. É raro, sendo, porém, o que a experiência mostra ocorrer no Reino Unido e nos Estados Unidos. Por meios artificiais, o regime militar o pretendeu estabelecer no Brasil, quando extinguiu os partidos então existentes e "inspirou" a criação de apenas dois.

Mais comum pelo mundo afora é não haver partido isoladamente majoritário, mas diversos partidos, maiores ou menores, que pesam na governança. Nesse caso, o sistema é multipartidário, o que importa, no parlamentarismo, em uma coalizão para exercer o poder; no presidencialismo, em uma base de apoio para o presidente — mesmo que o seu partido tenha o maior número de eleitos —, para que ele tenha uma base de sustentação e assim possa ver aprovadas as leis que pretende para sua atuação governamental.

Ora, a experiência aponta que as coalizões são instáveis e exigem uma constante negociação que sempre tem preço. Tal situação gera instabilidade no parlamentarismo, com as consequências apontadas nas reflexões anteriores. No presidencialismo — dito de coalizão — é este igualmente movediço e exige negociação constante, com custos políticos evidentes.

ConJur — Qual é o impacto dos sistemas eleitorais para os sistemas de partidos? E como isso funciona no Brasil?

Ferreira Filho — Indo mais a fundo, os sistemas de partidos são amoldados, senão gerados, pelos sistemas eleitorais. Conforme assinalou Maurice Duverger, o sistema de votação em turno único em que se elege o mais votado leva naturalmente ao sistema bipartidário. Se há mais de um turno, a necessidade de coalizão para a vitória leva a um sistema multipartidário. Neste, coexistem vários partidos, mas que são impelidos a se associar para o turno decisivo.

Por sua vez, o sistema de representação proporcional, que, como o nome indica, distribui as cadeiras numa câmara em proporção ao número de votos que cada partido obteve, gera infalivelmente uma pluralidade de partidos, que podem ter ou não tendência a se associar. Em geral, não a possuem, pois o mais das vezes surgem novos partidos de cisões dos já existentes. Isso se viu no Brasil sob a Constituição de 1946, com a multiplicação de Partidos trabalhistas e ocorre também sob a Lei Magna em vigor. Veja-se na atualidade a "guerra" entre PT e PDT, e ontem a do PT contra o Psol.

O sistema de representação proporcional tem a virtude de não deixar sem representação correntes ideológicas que, por exemplo, preguem o novo. Mas tem o defeito de aumentar incessantemente o número de novos partidos, com a consequência de fracionar cada vez mais a representação e assim de, mesmo pela negociação, dificultar a base de sustentação sem a qual nenhum governo pode atuar no Estado de Bem-Estar, seja parlamentarista, seja presidencialista. Não é outra a razão por que a Alemanha que adota como sistema eleitoral a representação proporcional (combinada com a eleição distrital majoritária), não confere representação a partido que não haja obtido 5% dos votos.

Tal multiplicação de partidos acaba por resultar na sua "pequenização", o que desvaloriza a sua importância e reduz a nada o valor de seus programas. É o que sucede no Brasil onde, registrados, há cerca de trinta partidos, o maior tendo elegido nas eleições de 2018 cerca de 10% da Câmara dos deputados.

Cientistas políticos assim distinguem dos sistemas pluripartidários, os sistemas polipartidários, que dificultam extremamente a governança e mesmo inviabilizam o parlamentarismo.

É, sem dúvida, polipartidário o sistema atual brasileiro e por essa, entre outras razões, é custoso reunir uma maioria para a aprovação de uma lei e inviável conceber o estabelecimento de um parlamentarismo. Ademais reduz o partido a uma exigência formal pois, permite que o eleito por um passe amanhã para outro, o que nulifica o valor do programa.

Esse polipartidarismo combinado com o financiamento público, não só faz a criação de um partido um bom negócio, como acresce desmesuradamente o custo das eleições e posteriormente o da governança.

ConJur — O presidente Jair Bolsonaro foi alvo de ao menos 145 pedidos de impeachment. Contudo, nenhum foi adiante por decisões dos presidentes da Câmara dos Deputados — Rodrigo Maia (2019 a 2021) e Arthur Lira (de 2021 em diante). A seu ver, seria positivo reduzir a concentração nas mãos do presidente da Câmara da decisão sobre o prosseguimento dos pedidos de impeachment? E que outras mudanças poderiam ser feitas na Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079/1950)?

Ferreira Filho — Uma das características do presidencialismo é o fato de que o presidente da República tem mandato de duração certa. Disso decorre uma vantagem, qual seja, a estabilidade governamental por um período que permita levar a cabo uma política de governo, ao contrário do que se passa no parlamentarismo, quando o primeiro-ministro pode ser afastado por uma deliberação do Parlamento. Assim, a governança pode sofrer falta da continuidade necessária para ter êxito, ou ser manipulada para manter no poder o chefe do governo e seu ministério.

Na verdade, o presidente da República somente pode ser afastado em caso de crime de responsabilidade por meio do processo sempre designado, em inglês, como impeachment.

O impeachment é um processo formalmente jurídico, de modo que presume crime de responsabilidade previsto em lei e se desenvolve com a observância de todas as garantias constitucionais, como ampla defesa, inquirição de testemunhas, entre outras, o que obviamente o torna lento. Mas ele não se desenvolve perante o Judiciário, e sim perante o Congresso, cabendo ao Senado o julgamento. Isso evidentemente o torna político, eis que um presidente com apoio parlamentar suficiente escapa ileso do processo. É o que tantas vezes se viu na história, mesmo nos Estados Unidos, de onde o Direito brasileiro o importou.

Na verdade, no Brasil nem é preciso esse apoio parlamentar para que o mau governante seja colhido pelo impeachment. Basta que ele conte com o apoio do presidente da Câmara dos Deputados, porque deste depende o recebimento da renúncia e sem prazo para fazê-lo ou recusá-lo. Disso há exemplos conhecidos.

Rege o processo do impeachment no Brasil a Lei 1.079/1950, que está desatualizada, tanto quanto à definição dos crimes de responsabilidade quanto ao processo. Essa necessidade já foi apercebida, pois funciona no Congresso uma comissão a tratar do assunto. Dela se espera, no mínimo, que se suprima a possibilidade de o presidente da Câmara reter por tempo indeterminado a apreciação da denúncia e que se preveja, caso o indefira in limine, que caiba recurso para o Plenário.

Deve-se ter presente, todavia, que o impeachment sempre tem sequelas políticas graves. Como seu desenvolvimento é tortuoso e envolve manobras dos partidários do mesmo e a inconformidade dos seus adversários, seja de ordem jurídica, seja de ordem partidária, sempre paira sobre ele a pecha de "golpe".

Enquanto, não raro, a denúncia é a seu turno um golpe publicitário, quer de políticos, quer de não políticos que querem ver o nome nos meios de comunicação de massa.

STF profere "frequentes" decisões que não obedecem à Constituição

O ativismo judicial é um fenômeno que se manifesta em todo o Judiciário brasileiro, inclusive no Supremo Tribunal Federal. A Corte profere "numerosas e frequentes" decisões "que não obedecem à Constituição, na letra ou no seu espírito", afirma o advogado e professor emérito de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo Manoel Gonçalves Ferreira Filho.

"O ativismo em matéria constitucional importa, no fundo, em negar a supremacia da Constituição enquanto lei estabelecida pelo poder constituinte e somente sujeita a mudanças — quando o é — por um poder constituinte derivado, com formalidades especiais, algo que não é dado a corte alguma", aponta o jurista.

Entender que o Supremo pode, segundo a sua vontade, dizer o que é a Constituição e não pode ser desobedecido é o mesmo que dizer que a Corte "é o mais poderoso dos poderes", avalia o constitucionalista.

"Pior, que [o STF] detém um poder ilimitado e arbitrário, pois pode dizer o que quer, mesmo contra o texto claro da Constituição, e pode impor a observância do que quiser, sem quaisquer limites. Só o restraint, de que falam os juristas americanos, a deteria, e este é algo que depende de uma cultura que não é a nossa."

Para reduzir o ativismo, Ferreira Filho é favorável a atribuir o controle de constitucionalidade a uma corte especial, composta por julgadores não vitalícios, escolhidos "com ampla participação dos três poderes, e não apenas pelo chefe de um deles [Executivo] e com a aprovação pro forma de uma única das casas do Congresso [Senado]".

Ele também diz ser preciso abolir as decisões monocráticas de ministros do STF ou prever que elas percam a validade se não forem confirmadas pelo Plenário rapidamente. Além disso, o advogado é favorável à eliminação dos pedidos de vista sem prazo de retorno do julgamento.

Em 34 anos, a Constituição Federal de 1988 já foi alterada por 131 emendas, incluídas as seis da revisão de 1994. Tantas mudanças justificam que se questione se a Carta Magna ainda está em vigor — ou se a que vale é outra que se faz passar por ela, destaca.

Ferreira Filho analisa na segunda parte de sua entrevista (clique aqui para ler a primeira) que o Brasil merece uma Constituição melhor, mais ajustada às suas condições socioeconômicas e mais adequada a uma governança eficiente, que impeça as sucessivas crises que dificultam o seu desenvolvimento. Como isso não parece possível no momento, o professor afirma que uma boa medida inicial seria promover uma revisão constitucional, com a reforma do sistema de governo (para o semipresidencialismo), completada pelo sistema de partidos decorrente da mudança do sistema eleitoral.

ConJur — Muitos criticam o ativismo judicial, afirmando que o Judiciário constantemente interfere em políticas públicas, que são de atribuição do Executivo e do Legislativo. Como o senhor avalia o fenômeno?

Ferreira Filho — A convicção de que ocorre no Brasil o fenômeno que se denominou de ativismo judicial é generalizada entre os juristas. Ele se manifesta em decisões em todos os níveis do Judiciário.

Consiste esse ativismo essencialmente na desobediência ao Direito positivo estabelecido pela lei em nome de uma "justiça" concebida de modo subjetivo — e não raro ideológico — pelo judicante. Disfarça-se isso por meio de "interpretações" que muito se afastam do disposto na lei tal qual ela reza ou sempre foi entendida. Ou pela aplicação de "princípios" — também subjetiva e ideologicamente interpretados, que prevaleceriam sobre as normas legais.

Na verdade, esse ativismo resulta na criação de um novo "Direito" — às vezes "achado na rua" — por parte de um poder que deveria fazer cumprir a lei, expressão da vontade geral editada pelo poder competente, obviamente o Legislativo. Esse é um poder que, por força da Constituição, exprime a soberania popular — a democracia — conforme o seu artigo 1º, parágrafo único, o que não é dado ao Judiciário.

Os males que daí decorrem são muitos e evidentes. O primeiro é violar o Estado de Direito, pois importam em pôr de lado o princípio de legalidade, o primeiro dos princípios em que ele se baseia. Gera assim insegurança para os cidadãos, porque quebra a confiança que há de gerar quanto à conduta que devem seguir.

Claro é que tal proceder, além de violar a democracia, fere os princípios básicos em que ela se estrutura, assim como desnatura o Estado de Direito.

Esse ativismo, nas instâncias inferiores do Judiciário, tem significativo impacto, particularmente em relação a leis que dispõem sobre políticas públicas. Estas, mesmo que previstas no texto constitucional, têm aspectos dependentes de questões de conveniência e oportunidade, que têm de ser apreciados segundo o momento e as condições, mormente financeiras, do Estado como um todo. Tudo isto é desconsiderado frequentemente em razão de uma prioridade subjetiva.

ConJur — O STF também pratica ativismo judicial?

Ferreira Filho — O ativismo judicial não se limita às instâncias inferiores, mas transparece em decisões sobre questões constitucionais por parte do próprio guardião da Constituição [o STF]. Pode-se afirmar que numerosas e frequentes são decisões tomadas por ele que, em seu teor, não obedecem à Constituição, na letra ou no seu espírito. São, assim, substantivamente inconstitucionais, porque contrariam a Constituição. Sem dúvida, são elas válidas e de eficácia jurídica, mas tão somente formalmente constitucionais. Isso por terem sido tomadas pelo órgão que tem a última palavra sobre a matéria — o "guardião da Constituição"—, mas isso não as faz substancialmente constitucionais. Hão de ser cumpridas porque a ordem pública o exige, para se evitar o caos e a insegurança no plano jurídico-processual.

O ativismo em matéria constitucional importa, no fundo, em negar a supremacia da Constituição enquanto lei estabelecida pelo poder constituinte e somente sujeita a mudanças — quando o é — por um poder constituinte derivado, com formalidades especiais, algo que não lhe é dado a corte alguma.

Entender que a Corte [STF] pode, a seu talante, dizer o que é a Constituição e não pode ser desobedecido é o mesmo que dizer que ela é o mais poderoso dos poderes. Pior, que detém um poder ilimitado e arbitrário, pois pode dizer o que quer, mesmo contra o texto claro da Constituição, e pode impor a observância do que quiser, sem quaisquer limites. Só o restraint, de que falam os juristas americanos, a deteria, e este é algo que depende de uma cultura que não é a nossa.

Note-se, ademais, que o constituinte de 1988 não admitiu que a Corte sequer suprisse a omissão legislativa. Com efeito, a ação de inconstitucionalidade por omissão, instituída pelo texto de 1988, não admite que o STF senão advirta o poder competente da omissão, e não que faça as vezes de legislador.

Tal ação está "morta" desde que se regulamentou a arguição de descumprimento de preceito fundamental. Ora, como inexiste critério objetivo para distinguir na Constituição o que é preceito fundamental ou o que não o é — e, teoricamente, todos são, porque o constituinte assim entendeu —, a sua acolhida está à mercê do relator sorteado. Este decide o que é fundamental, o que se deduz do fundamental e o que se deduz do fundamental deduzido. E assim ad infinitum. Preceito fundamental é o que o relator quer que seja. Desse modo, tal arguição serve para legitimar a apreciação de tudo.

A situação ainda se torna mais grave porque pode o relator monocraticamente decidir o que é fundamental e pode também regular como bem entende a matéria fundamental em despacho liminar. Este deve ser submetido ao Plenário, mas às vezes isso é esquecido — e por anos e anos. Mas se for para o Plenário um pedido de vista, pode-se também manter em vigor a decisão monocrática liminar por anos e anos.

Não é necessário dar exemplos, porque todo o mundo jurídico o sabe. Basta lembrar que, por liminares — umas aprovadas por espírito de corpo, outras que nunca vieram ao Plenário ou só vieram muito tempo depois de alcançarem o seu objetivo —, já se determinaram atos que importam em violação de direitos fundamentais, como a expressão do pensamento, importando em censura; outras que instituem um poder inquisitorial, determinando inquéritos e outras medidas, até prisões. E — não se esqueça — um despacho monocrático pode suspender ad aeternum a eficácia de uma lei aprovada pelas duas casas do Congresso e sancionada pelo chefe do Executivo. Igualmente não há necessidade de dar exemplos — até leigos o sabem.

ConJur — O senhor já defendeu atribuir o controle de constitucionalidade a uma corte especial, composta por juristas com mandato limitado. Isso ajudaria a conter o ativismo judicial do STF?

Ferreira Filho — Dizem que o controle de constitucionalidade sempre tem um quantum político. Admita-se isso, mas, em decorrência, atribua-se, como se faz na esmagadora maioria dos Estados do mundo, tal controle a uma corte especial — um tribunal constitucional — com julgadores não vitalícios (para que não se crie o espírito de corpo), escolhidos com ampla participação dos três poderes, e não apenas pelo chefe de um deles e com a aprovação pro forma de uma única das casas do Congresso.

E que sejam evidentemente abolidas as decisões monocráticas — ou caduquem elas se não confirmadas pelo Plenário num prazo curto — e se eliminem os pedidos de vista ad aeternum.

ConJur — Na epidemia de Covid-19, o Supremo, diante da omissão do presidente Jair Bolsonaro, assumiu a vanguarda e estabeleceu que estados e municípios poderiam impor medidas sanitárias, proibiu publicidade do governo federal contra o isolamento social e decidiu que a vacinação obrigatória é constitucional. Em um cenário de omissão do Executivo, não cabe ao STF resguardar os direitos fundamentais dos cidadãos?

Ferreira Filho — A questão do combate à Covid é um magnífico exemplo de como a omissão no cumprimento de norma constitucional e de suas decorrências é negativa para a governança e danosa para a população.

A Covid foi — talvez ainda seja — uma calamidade pública, isso ninguém negará. Ela causou centenas de milhares de mortes, outras tantas de doentes, disputas judiciais e políticas, abalou a economia nacional, importou em dispêndio elevado de recursos públicos, em prejuízo da nação brasileira.

No plano jurídico, provocou incontáveis polêmicas; no plano político, incontáveis acusações e críticas contundentes. Tudo isso, do ângulo constitucional, é consequência de uma omissão legislativa, relativa ao cumprimento do prescrito no artigo 21, XVIII, da Constituição. E essa omissão, que ainda persiste, poderia ter sido corrigida pela ação de inconstitucionalidade por omissão, prevista no artigo 103, parágrafo 2º, da Lei Magna vigente.

O artigo 21, XVIII, da Constituição, estabelece que compete à União "planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações". Note-se o "especialmente", que dá um exemplo do planejamento e promoção de toda e qualquer calamidade pública. Está aí a regra geral que, em 34 anos de vigência, não foi editada, nem por projeto do Executivo nem do Legislativo, pois a matéria não é da competência privativa da União. Tal omissão a seu turno poderia ser colmatada por meio de uma ação de inconstitucionalidade por omissão, conforme o disposto no artigo 103, parágrafo 2º, da Carta. Jamais o foi.

A norma citada teria certamente imposto ao Executivo a imediata tomada das medidas já planejadas para o caso de calamidade pública, o que teria acelerado o enfrentamento dessa peste que é a Covid. E teria organizado e coordenado a atuação da União, estados e municípios no exercício da defesa da saúde pública, que é de competência comum a todos esses entes, conforme o artigo 23, II, da Constituição. Dessa maneira, cada ente federativo teria definida a medida de sua participação, evitando superposição e dispersão de esforços, que prejudicaram o combate à calamidade.

Por sua vez, isso teria evitado que a Corte constitucional interviesse de modo inadequado na questão, proibindo (em maiúsculas na decisão, coisa raramente vista num ato judicial) que o poder competente estabelecesse normas gerais para a luta contra o vírus.

Tudo isso demonstra como é daninho para a sociedade ignorar determinação constitucional e fixar arbitrariamente a competência dos entes federativos. É essa a lição jurídica que se pode extrair do combate à calamidade pública que foi a Covid.

ConJur — Em quase 34 anos, a Constituição Federal recebeu 125 emendas. Isso desfigurou seu espírito original? Como avalia a Carta após quase três décadas e meia de sua promulgação?

Ferreira Filho — Certamente o fato de que a Constituição de 1988 já foi alterada por 131 emendas, incluídas as seis da revisão de 1994, num período que ainda não atingiu 34 anos, afora as mudanças informais que tem sofrido, não favorece um julgamento sobre o seu valor como definição da ordem política, econômica e social adequadas e necessárias ao país. E reflete-se isso na fragilidade de sua supremacia, que facilmente é contornada formal ou informalmente.

Uma das razões disso decorre de ser ela detalhista — dirigente no sentido do modelo que Canotilho prescreveu para uma lei magna. Ou seja, uma Constituição que não apenas fixasse sinteticamente as bases fundamentais da ordem política, econômica e social, mas também, antecipando-se à lei, detalhasse as linhas que a governança deveria pôr em prática. Para o mestre português, então militante da extrema esquerda, seria o caminho pacífico para a implantação de uma sociedade socialista, como pretendeu a redação primitiva da Carta portuguesa de 1976. Desse objetivo há no texto de 1988 vários sinais. A ação de inconstitucionalidade por omissão seria o instrumento por excelência para a imposição aos governos dessa "direção".

Outra foi o sistema engendrado para o trabalho constituinte. Em lugar de um anteprojeto, ou mesmo de um projeto, elaborado por meio de uma comissão — uma comissão de "notáveis", que houve, mas cujo trabalho não foi a base dos trabalhos da constituinte. Estabeleceu-se uma divisão da matéria a ser tratada na Constituição entre várias comissões, cujos textos deveriam ser integrados por uma comissão de sistematização, de onde sairia o projeto final. Este seria a base para a discussão no Plenário e a atuação do relator.

E propiciou que grupos de pressão inserissem nele disposições favoráveis às pretensões que defendiam e privilégios, por exemplo, para setores do serviço público.

A ideia parecia boa e democrática, mas resultou, ao final, num texto mal escrito, generoso além dos recursos do Estado, com repetição de disposições, num amálgama de princípios para todos os gostos e ideologias que justificam mudanças informais da própria Constituição

Ora, a aplicação da Constituição assim estabelecida se revelou complexa e difícil, senão impossível. Em razão disso, os sucessivos governos constitucionais se viram obrigados a reclamar modificações no texto por meio de emendas — são eles os proponentes da maioria destas, em grande parte destinadas a ajustar o custo das vantagens concedidas no texto às possibilidades financeiras do Estado. Grande parte das despesas claramente o mostram.

Evidentemente, o desacerto de normas nos planos político, econômico e social foram a razão de ser de muitas outras emendas, afora o seu uso para a concessão de novas vantagens e privilégios a grupos específicos. Afora as exigências do combate à Covid. Essas mudanças formais, somada às informais, justificam a indagação se ainda vigora a Constituição de 1988, ou outra que se faz passar por ela.

Certamente o Brasil mereceria uma Constituição melhor, mais ajustada às suas condições socioeconômicas e mais adequada a uma governança eficiente, que impeça as sucessivas crises que dificultam o seu desenvolvimento para que se torne, realmente, o "país do futuro". Isso não parece ser possível no momento. Uma revisão constitucional, com a reforma do sistema de governo, completada pelo sistema de partidos decorrente da mudança do sistema eleitoral, já seria um grande passo à frente. O primeiro, não o último.

ConJur — Nos últimos tempos, foi retomado o debate sobre o artigo 142 da Constituição e as situações em que as Forças Armadas podem ser usadas para garantia da lei e da ordem. Há quem defenda que os militares podem ser empregados para conter um Poder que esteja extrapolando as suas funções. Outros sustentam que as Forças Armadas não podem se sobrepor a Executivo, Legislativo ou Judiciário. Como o senhor interpreta o dispositivo?

Ferreira Filho — Em tempos tumultuados, o que seria uma disputa jurídico-acadêmica pode se tornar tema de debates políticos. É o que se passa acerca da interpretação do artigo 142 da Constituição, mormente se ele atribui ou não poder moderador às Forças Armadas.

Ora, se, como deve ser feito, se entender poder moderador como um quarto poder, um poder neutro, como o imaginou Constant, e a Constituição do Império consagrou, não existe tal poder no Direito brasileiro. Na verdade — lembre-se —, a sua instituição foi idealizada por Constant como necessária para sanar conflitos entre os três poderes clássicos. Estes devem ser "independentes e harmônicos entre si", mas às vezes entram em grave conflito, possibilidade que a República menosprezou.

Tal poder não é conferido às Forças Armadas pelo texto constitucional vigente nem pode ele ser deduzido da mera afirmação que a elas cabe assegurar, em caso extremos, a "lei e a ordem". Com efeito, embora sejam elas voltadas para o primeiro e indispensável interesse de um povo, ou seja, a existência e sobrevivência do "seu" Estado, no sistema republicano, adotado desde 1891, as Forças Armadas estão integradas no Poder Executivo, cujo chefe é o presidente da República e, como está expresso no artigo 64, XIII, da Lei Magna, também é o seu comandante supremo. Assim, não podem ser um poder neutro em relação aos dois outros. A referida interpretação levaria ao absurdo de que um dos poderes prevaleceria sobre os demais, que não seriam "independentes", como preceitua o artigo 2º da Carta.

Entretanto, do ângulo histórico ou sociológico, podem-se identificar episódios em que as Forças Armadas exerceram um papel — papel, não poder moderador —, permitindo a superação pacífica de acerbas radicalizações políticas que ameaçavam degenerar em graves conflitos, até armados. Fizeram-no — é certo — sem autorização constitucional, mas em intervenções pontuais, sem tomar para si o poder. Feita a intervenção, tornada necessária pelas circunstâncias, o modelo constitucional voltou imediatamente à normalidade. Os exemplos são vários. Em 1955, na crise relativa à posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek; em 1961, na que resultou da renúncia de Jânio Quadros, em face da oposição à posse do vice, João Goulart, são casos típicos.

Entretanto, a mesma história revela que elas, em várias oportunidades, foram agentes revolucionários, dispondo-se a tomar o poder, seja para a transformação do regime ou sua proteção em casos de ameaças graves à sua idoneidade. Seria o caso de 1889, quando substituíram a monarquia pela República e levaram ao poder o marechal Deodoro; em 1964, quando editaram o Ato Institucional de 9 de abril e levaram ao Poder o Marechal Castelo Branco.

Nesses casos, certamente não exerceram o papel de moderador, mas um papel revolucionário — está isso, por exemplo, claro no preâmbulo do Ato Institucional 1, de 9 de abril de 1964, que é uma aula sobre o direito à revolução. E foram assumida e declaradamente o elemento de sustentação do chamado regime militar, o da "revolução", como então se dizia.

Note-se que tal papel revolucionário teve fim, seja em 1889, com a Constituição de 1891, seja o de 1964, com a Constituição de 1967, depois com a emenda constitucional de 1969, para afinal ensejar a Constituição vigente, por meio da Emenda Constitucional 26/1985, dando poderes constituintes ao Congresso Nacional na legislatura a se iniciar em 1987.

Assim, de jure, as Forças Armadas não detêm poder moderador, embora, de facto, em várias oportunidades tenham agido como tal.

É, aliás, pouco sabido que, no governo Geisel, quando se deram os primeiros passos para uma reabertura democrática, discutiu-se a implantação numa futura Constituição de um verdadeiro poder moderador. A ideia não vingou, porque não houve acordo sobre como institucionalizá-lo num sistema presidencialista. Dificuldade que inexiste num regime semipresidencialista, como já se apontou. É sua instituição um dos objetivos deste sistema.

Sérgio Rodas para o Consultor Jurídico, em 09.10.22

domingo, 9 de outubro de 2022

Desconfiança endêmica

Descrédito generalizado do poder público e da imprensa, dois pilares da democracia, conclama ambos a revigorar as fontes de sua credibilidade – competência e valores – com humildade


Prensa de Gutemberg, democratizou o conhecimento

O mais recente Barômetro de Confiança do Grupo Edelman, que mede anualmente índices de confiança, informa que “a desconfiança é agora a emoção padrão da sociedade”. Há um “colapso da confiança nas democracias”: menos da metade da população mundial acredita nas instituições públicas; mesmo os povos desenvolvidos creem que suas famílias estarão piores em cinco anos. Ansiedades sociais estão se tornando agudas: 85% se preocupam com a perda do emprego e 75%, com as mudanças climáticas. A preocupação com a desinformação como arma atingiu um pico histórico de 76%.

Pior: o ciclo de desconfiança parece abastecido justamente por duas instituições fundantes da democracia: o governo eleito e a imprensa independente. Um em cada dois entrevistados vê o governo e a mídia como forças divisivas. Seja percepção ou realidade, esse descrédito conclama todos a um amplo e profundo exame de consciência.

Em um mundo de polarizações e redes sociais, uma nova geração de jornalistas vem questionando o ideal da objetividade em nome de uma certa “clareza moral”. “Os repórteres deveriam focar em ser justos e contar a verdade”, resumiu o articulista Wesley Lowery. A princípio, isso parece não tanto um abandono da objetividade, mas a sua apoteose. É fácil ver, porém, que, se essa “clareza moral” se degenera em moralismo e subjetivismo, antes de gerar empatia com o público e engajá-lo, acabará por aliená-lo ainda mais. Quando se demitiu do New York Times no ano passado, a editora Bari Weiss ecoou a descrença de muita gente na mídia ao criticar o que lhe parece o novo consenso no jornal: “Que a verdade não é um processo de descoberta coletiva, mas uma ortodoxia já conhecida por uns poucos iluminados cuja tarefa é comunicá-la a todo o resto”.

Algo análogo se passa na política. Para recobrar a credibilidade, os governos precisam entregar mais bem-estar social, crescimento inclusivo, liberdades pessoais, acesso à justiça e à paz. Mas tão importantes quanto esses resultados são seus processos. É crucial expandir mecanismos que removam barreiras à representação coletiva, deem mais voz aos cidadãos e tornem o Estado mais responsivo. Ademais, muitas pessoas percebem seus governos não só como distantes, mas corruptos e capturados por interesses privados. Por isso, eles precisam distribuir a elas mais instrumentos de responsabilização e transparência. Participação, transparência e confiança sempre se reforçam mutuamente.

Para os Três Poderes ou para o Quarto (a mídia) não se trata de reinventar a roda, mas de revigorar as fontes de toda credibilidade: competência e integridade. Os cidadãos confiam na imprensa quando sentem que ela está lhes contando a verdade, e confiam no Estado quando sentem que ele está lhes provendo a justiça. Mas verdade e justiça são realizações coletivas. Leitores e eleitores precisam se perceber e, sobretudo, ser partícipes nesses processos. Por isso, a pedra angular para jornalistas e estadistas reconstruírem sua credibilidade é a mesma e uma só: humildade.

A confiança é vital para o desenvolvimento da sociedade. A confiança entre os cidadãos permite que se compreendam e cooperem. A confiança permite que o poder público planeje políticas e entregue serviços. Num ecossistema confiável, investidores investem e consumidores consomem, gerando trabalho e prosperidade. Já a desconfiança leva à desintegração social, ao “cada um por si”: cada qual buscando a felicidade por si só para si só. Mas isso é ilusão. O inverso do “Um por todos, todos por um” é o reverso da fortuna.

“Há muitos membros, mas um só corpo. O olho não pode dizer à mão: ‘Não preciso de você’; nem a cabeça aos pés: ‘Não preciso de vocês’. Ao contrário, os membros que parecem mais baixos são indispensáveis”, advertia o apóstolo Paulo. “Deus dispôs o corpo dando mais dignidade aos membros que não a tinham, para que não haja dissensões no corpo e os membros tenham o mesmo cuidado uns pelos outros. Se um sofre, todos padecem com ele; e se um é revigorado, todos se regozijam com ele.” Assim é em uma sociedade sadia.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 09.1o.22, às 03h00

Como alguém ainda vota em Bolsonaro?

Boa parte do eleitorado releva as atitudes mais inflamadas do presidente

Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman publicada na Folha de S.Paulo neste domingo (9 de outubro) - Annette Schwartsman

Um vulcano que chegasse à Terra desconfiaria das capacidades lógicas da espécie humana. Pelas pesquisas, 75% dos eleitores brasileiros consideram a democracia a melhor forma de governo e 25% são contrários ou indiferentes a ela ou não opinaram. Entretanto, 41% dos nossos conterrâneos sufragaram o nome de Jair Bolsonaro nas urnas (votos totais, incluindo brancos e nulos). Uma conclusão possível é que 16% ignorem o princípio da não contradição (se você é pró-democracia, não deve votar em quem a ameace), outra é que as pessoas são mais complicadas.

Confesso que tenho dificuldades para compreender como alguém pode votar em Bolsonaro após ter vivido quase quatro anos e uma pandemia sob sua gestão. Mas são justamente os fenômenos mais intrigantes que mais demandam explicação. Ela vem em duas etapas.

Em primeiro lugar, boa parte do eleitorado bolsonarista releva as atitudes mais inflamadas do presidente. Elas não passariam de arroubos retóricos, que não devem ser interpretadas literalmente. Ele pede paredão para 30 mil, mas não daria a ordem de fuzilamento; ameaça descumprir decisões da Justiça, mas não o fez. Não haveria, pois, razão para vetar Bolsonaro por fustigar as instituições. O risco não seria real.

Em segundo lugar, as pessoas votam em várias dimensões. Para alguns eleitores religiosos, defender os valores tradicionais da família é o que há de mais importante; para espíritos mais pragmáticos, o fundamental é a economia; há ainda setores da esquerda para os quais a prioridade deve ser o combate ao racismo. Cada eleitor tem sua hierarquia própria de dimensões, e, se você quer provocar uma briga, diga a seu interlocutor que aquilo que ele mais preza é insignificante.

Eu até vislumbro raciocínios que expliquem por que uma pessoa vota em Bolsonaro sem vê-la num monstro, mas acho que os vulcanos têm razão. Quem preza a democracia deveria rechaçar o atual presidente.

 Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…"Publicado originalmente em 08.110.22, às 15h00

Novo, Patriota, Pros, PSC, PTB e Solidariedade perdem dinheiro do fundo partidário

A cláusula de barreira, adotada em 2018, prevê escalonamento dos requisitos em cada eleição geral até 2030

(crédito: Minervino Junior/CB/D.A Press)

O aumento das exigências para ultrapassar a cláusula de desempenho nessas eleições ampliou o número de legendas que perderam acesso às verbas públicas do fundo partidário, da possibilidade de dispor dos espaços de liderança no parlamento e do precioso tempo na propaganda eleitoral gratuita em rádio e televisão. Os seis novos nanicos (Novo, Patriota, Pros, PSC, PTB e Solidariedade) elegeram, juntos, 21 parlamentares para a Câmara dos Deputados, mesmo assim perdem cerca de R$ 140 milhões do fundo partidário ao ano.

Dos 32 partidos com registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), depois das eleições desse ano, apenas 13, alguns por causa de federações, vão manter o acesso aos fundos públicos. Nas eleições anteriores já tinham ficado de fora do reparte 10 legendas, entre eles a Rede Sustentabilidade, que mesmo com representantes no Congresso, não tinham direito ao espaço para liderança nem acesso ao tempo de propaganda no rádio e na TV. Na próxima legislatura, a Rede, com dois deputados, volta a receber verbas com a união na federação partidária com o PSol.

Além da Rede com o PSol, só conseguiram superar a cláusula de barreira por meio de federações, o PCdoB, com seis parlamentares eleitos; e o PV, também com seis, em função da federação com o PT. Cidadania, que elegeu cinco deputados, escapa da cláusula de desempenho em função da federação formada com o PSDB.

Já o Novo viu encolher a bancada de oito para apenas três parlamentares. A legenda recebeu do fundo partidário, só este ano até setembro, mais de R$ 21 milhões em recursos públicos, de acordo com os dados publicados pelo TSE, que poderá contar com esse financiamento já em 2023. O Pros, que no apoio o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) protagonizou uma disputa pública em que chegou a lançar o influenciador Pablo Marçal como candidato à Presidência da República, também não conseguiu superar a cláusula de barreira e sai deste pleito com a bancada reduzida para três deputados.

Partidos excluídos em 2018

Dos 32 partidos registrados no TSE, 10 já não tinham alcançado a cláusula de desempenho, foram eles: PCO, PSTU, UP, PCB, PMB, DC, Agir, PMN, PRTB e a Rede, que agora volta ao reparte.

Prefeito de cidade mineira ameaça servidores por voto no PT

Com a inclusão da Rede em uma federação, sobraram 15 legendas que não atingiram o mínimo necessário. Assim, dos 32 partidos registrados sobraram apenas 17, mas, desses, sete estão unidos em três federações, o que fará o bolo do fundo partidário ser rateado por 13 agremiações nos próximos quatro anos.

A cláusula de barreira, adotada em 2018, prevê um escalonamento dos requisitos em cada eleição geral até 2030. Em 2022, o índice de desempenho exigido, foi de atingir no mínimo 2% dos votos válidos para deputado federal, em ao menos nove unidades da Federação, e alcançado em cada uma delas ao menos 1%, ou, alternativamente, eleger 11 deputados federais, em no mínimo nove UFs.

Nas próximas eleições, os índices a serem atingidos sobem. Em 2026, será preciso alcançar o índice mínimo de 2,5% ou 13 parlamentares, já em 2030 fica em 3% ou 15 deputados federais.

A cláusula de barreira ou desempenho não impede o registro dos partidos políticos no país, mas torna muito mais difícil a manutenção, que precisará contar com recursos de doações dos filiados. Sem conseguir manter uma estrutura permanente, uma das saídas para as pequenas siglas é a fusão com outras até que atinjam as condições estabelecidas.

Henrique Lessa, repórter, para o Correio Braziliense, em 09.10.22, às 03h:00

sábado, 8 de outubro de 2022

Lula faz aceno à participação de Simone Tebet no governo e senadora defende âncora fiscal

Ex-presidente afirma que não montará equipe antes de ganhar, mas adiantou que ministério não será formado por ‘uma única ideologia’

Simone Tebet apoia Lula no segundo turno da eleição presidencial contra Bolsonaro Foto: ALEX SILVA/ESTADÃO

O ato conjunto de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Simone Tebet (MDB) para selar o apoio da senadora à candidatura do ex-presidente aconteceu nesta sexta-feira, 7, com acenos dos dois lados sobre o encaminhamento da campanha eleitoral contra o presidente Jair Bolsonaro (PL). Lula sinalizou que a emedebista pode ser convidada a participar de eventual governo, se for eleito. Simone, por sua vez, defendeu a adoção pelo PT de uma “âncora fiscal mínima” em substituição ao teto de gastos.

Datafolha no segundo turno: Lula tem 49% das intenções de voto; Bolsonaro, 44%

Lula disse que não poderia “montar governo antes de ganhar”, mas reiterou que o Brasil “não será governado por um único partido, uma única ideologia, esse país é muito grande, precisamos juntar muitas pessoas para montar um governo”. O petista também disse esperar que Simone “esteja junto para ajudar a executar” as propostas que pediu que a senadora pediu que a campanha de Lula incorporasse.

“Com muita tranquilidade eu vou trabalhar para ganhar as eleições. A participação da Simone vai nos ajudar muito. Depois que a gente ganhar, vamos sentar numa mesa e vamos começar a discutir como a gente monta a equipe para dar vazão aquilo que são nossas propostas”, afirmou Lula, que se encontrou com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso depois do ato conjunto com Simone Tebet – o tucano já declarou voto no petista no segundo turno.

O encontro dos dois diante da imprensa foi celebrado por aliados de Lula, que consideram este o maior trunfo da campanha no segundo turno. Dois dias antes, os dois almoçaram na casa da ex-prefeita Marta Suplicy e Simone anunciou seu voto no candidato do PT à Presidência.

Simone apresentou propostas a Lula na quarta-feira e, no mesmo dia, o ex-presidente disse que elas seriam incorporadas em seu plano de governo e abriu caminho para o evento público desta sexta-feira, que aconteceu em um hotel em São Paulo. A senadora irá participar dos programas de Lula na TV, durante o horário eleitoral, e estará em palanques com o ex-presidente.

Segundo ela, o encontro é “exigido pela história”. “Temos nossas diferenças políticas, econômicas, mas são infinitamente menores do que nos une”, disse, ao lado do petista.

“Hoje eu estou aqui muito feliz para dizer que o presidente Lula, a sua equipe econômica, de assessores, acaba de receber e incorporar todas as sugestões que fizemos no nosso programa de governo ao seu programa de governo. Com isso, o que nós estamos dizendo aqui é que pensamos da mesma forma o Brasil que queremos”, afirmou.

Já Lula agradeceu o apoio de Simone e disse que as mulheres do País devem ter sentido orgulho de ver o desempenho da senadora na disputa presidencial deste ano. Em fala direcionada à Tebet, ele disse que a missão de recompor o Brasil não será fácil visto que o adversário, o presidente Jair Bolsonaro (PL), não é um “adversário qualquer” ou um “político normal”. “Estamos diante de um homem sem alma, sem coração”, afirmou o petista.

Senadora pelo Mato Grosso do Sul, Simone Tebet disse que assumirá as missões que a campanha exigir, incluindo na articulação com o agronegócio, e garantiu que irá se engajar, afirmando que seu apoio não é apenas uma declaração de voto. Ao lado de Lula, ela afirmou não ter dúvidas de que é possível reverter a vantagem do presidente Jair Bolsonaro (PL) no ramo. “Sou do agronegócio e estou pronta, inclusive, para desmistificar essa tese equivocada que só interessa ao atual presidente, que o agronegócio ou o meio ambiente. Quando, na verdade, os dois andam juntos”, disse.

Lula endossou a fala da senadora e disse que o agronegócio pode ser sua própria vítima se não tiver empresários com preocupação sustentável, “com mentalidade que Planeta pede socorro e que clima não é mais questão secundária”.

Em entrevista ao Estadão publicada nesta sexta-feira, Simone Tebet criticou a falta de detalhamento do programa de Lula e afirmou que “ao olhar apenas para o retrovisor e falar dos possíveis acertos do passado”, o petista “menosprezou e não deu conforto para o eleitor”. Nesta sexta-feita, questionado se pretendia detalhar propostas no segundo turno, Lula afirmou que “o detalhamento das propostas já está no programa de governo”.

Simone defendeu a existência de “alguma âncora fiscal mínima”. A campanha Lula-Alckmin já indicou que irá revogar o teto de gastos e que adotará nova regra fiscal. Em reportagem publicada nesta quinta-feira, o Estadão mostra a divisão que existe dentro da campanha sobre o novo arcabouço fiscal para substituir o teto de gastos. A coordenação do programa de governo da chapa Lula-Alckmin informou ao Estadão que o formato de uma nova regra fiscal para as contas do governo dependerá das condições das contas públicas que o novo governo irá encontrar, caso seja eleito, e do processo de negociação com o Congresso e a sociedade brasileira.

“Entendo a posição do PT que é contra o teto de gastos, mas também é preciso entender que é preciso alguma âncora fiscal mínima até para que o orçamento público - hoje, privado e no bolso de meia dúzia -, possa voltar para o Executivo”, afirmou Simone Tebet, ao lado de Lula. “O orçamento secreto de R$ 19 bilhões neste ano só não virou R$ 30 bilhões porque quando bateu lá no Ministério da Fazenda eles viram que batia no teto de gastos que eles não tinham condições de liberar”, afirmou a senadora, indicando que a âncora fiscal é também um instrumento para limitar o orçamento secreto.

Tebet afirmou que a equipe econômica “tem que entender qual é o melhor caminho” e que “não necessariamente” é um teto de gastos. “Alguma âncora mínima que dê conforto ao mercado, tranquilidade para os investidores para que a gente possa ter uma economia equilibrada, mas isso é por conta da própria equipe econômica . E isso vai fazer com que tenhamos uma forma de blindar da má política de parte do Congresso Nacional”, defendeu a emedebista.

Lula voltou a citar seus governos passados para indicar que tem compromisso com a responsabilidade fiscal. “Quando eu peguei esse país em 2003, a gente tinha uma dívida pública interna de 60,5% e reduzimos para 37,7%. A gente tinha uma dívida do FMI de 30 bilhões. Pagamos e emprestamos ao FMI. Levamos a inflação à meta e reduzimos o desemprego gerando 22 milhões de empregos”, afirmou Lula. “E você sabe que dentro do PT esse negócio de fazer superávit primário fez com que muita gente saísse do PT. O PSOL foi criado disso, de racha do PT por causa do superávit primário. Eu passei a vida toda contra superávit primário, quando cheguei na Presidência eu vi que era preciso fazer e fizemos”, afirmou o petista.

“Então, responsabilidade fiscal temos e não precisamos de lei garantindo isso”, disse Lula, repetindo o discurso que tem mantido sobre o tema. O petista também afirmou que uma âncora fiscal não pode significar o fim do investimento em saúde e educação. “É preciso definir o que é investimento e o que é gasto”, disse Lula.

Beatriz Bulla, Luiz Vassallo e Giordanna Neves para O Estado de S. Paulo, em 07.10.22, às 19h44

Riscos e oportunidades do Supremo

Senado bolsonarista traz riscos para a separação dos Poderes. É hora de o Supremo renovar, livre e corajosamente, sua compreensão sobre seus limites e seus deveres constitucionais

As eleições geraram uma nova camada de pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF). Jair Bolsonaro, o político que, desde a redemocratização do País, mais enfrentou e atacou o Supremo, elegeu 20 aliados para o Senado, entre as 27 cadeiras disputadas neste ano. Na composição da próxima legislatura, o PL, partido de Jair Bolsonaro, terá a maior bancada da Casa, com 13 senadores, seguido por União Brasil (12), PSD (10), MDB (10), PT (9), PP (7) e Podemos (6). As outras legendas somam 14 cadeiras.

O novo cenário traz riscos para o funcionamento do Estado Democrático de Direito. Não custa lembrar que, no ano passado, Jair Bolsonaro apresentou ao Senado uma denúncia de crime de responsabilidade contra o ministro Alexandre de Moraes. O pedido de impeachment não tinha nenhum fundamento. Foi uma tentativa nada sutil de constranger o magistrado responsável por inquéritos envolvendo bolsonaristas e o próprio Bolsonaro. Felizmente, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, rejeitou prontamente a denúncia, por absoluta inépcia. No entanto, a depender de quem venha a ocupar a chefia da Casa no próximo biênio, esse tipo de denúncia pode ter outros encaminhamentos, interferindo na separação dos Poderes. Com a turma bolsonarista, todo cuidado é pouco.

Ao mesmo tempo, a composição do Senado após as eleições pode ser uma excelente oportunidade para que o STF renove, sem medo e sem acanhamento, sua compreensão sobre suas próprias competências. Mais do que nunca, é necessário que a Corte esteja consciente de seus limites e seus deveres constitucionais.

Não é fácil a posição do Supremo. A Constituição de 1988 é abrangente e, ao longo do tempo, o Congresso ampliou ainda mais seu alcance. Ou seja, o STF tem, por força do próprio texto constitucional, uma amplíssima competência sobre o Estado e a sociedade. Não há como escapar disso, seja qual for a composição política do Senado. Afinal, a missão do Supremo é defender a Constituição.

Para piorar, o próprio Executivo e membros das Casas Legislativas recorrem muitas vezes ao Supremo para tentar reverter derrotas políticas sofridas no Congresso. Há uma frequente judicialização da política, com a tentativa de que o STF seja instância revisora da política. Trata-se de manobra que viola a independência dos Poderes. Cabe ao Supremo sumariamente rejeitá-la.

No Estado Democrático de Direito, questões políticas são decididas por quem recebeu voto – e os ministros do Supremo não receberam nenhum voto. A função dos magistrados é aplicar o Direito, e não arbitrar disputas políticas. Infelizmente, como este jornal alertou diversas vezes, o Supremo não tem sido, ao longo deste século, muito rigoroso em seus limites, usando interpretações expansivas para dar a algumas matérias o encaminhamento político da preferência dos magistrados – ou de parte da população que os pressiona.

A renovada compreensão por parte do STF de suas competências constitucionais não significa, no entanto, apenas reduzir sua atuação. É também uma maior consciência de seus deveres. Seja qual for a composição do Congresso, o Supremo tem a tarefa de defender a Constituição. Não foi por acaso que Jair Bolsonaro transformou o STF em seu adversário político. Toda a trajetória política do presidente está centrada na rejeição da Constituição de 1988 e de suas garantias fundamentais. Alguém que louva a ditadura e homenageia torturadores certamente atritará com o Supremo. Assim, um Senado mais bolsonarista é alerta para os ministros do STF.

A maior consciência de seus deveres – a percepção da relevância de seu trabalho para o País – deve levar o Supremo a ter uma nova velocidade. Os processos precisam ter duração de tempo razoável. Liminares não podem durar anos. A Justiça que tarda não é justiça. Em concreto, o STF deve enfrentar, de forma técnica e articulada, sem deixar brechas para novas manobras, a inconstitucionalidade gritante do orçamento secreto. Que a nova legislatura possa estrear num outro ambiente de moralidade e transparência, plenamente constitucional.

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 08.10.22, às 03h00

Duelo de rejeições de Lula e Bolsonaro afunila na largada do 2º turno

Disputa tem faixa considerável de eleitores disposta a olhar vitrines antes de decidir

Montagem combina fotos do presidente Jair Bolsonaro, à esq., e do ex-presidente Lula - Adriano Machado e Ueslei Marcelino/Reuter

Numa disputa consolidada como um duelo de rejeições, a nova pesquisa Datafolha deve reforçar os apelos de Lula (PT) e Bolsonaro (PL) a quem ainda pode escolher um lado para evitar a vitória do outro.

A concorrência entre os candidatos recomeça relativamente apertada nesse quesito. Segundo o Datafolha, 42% dos eleitores afirmam rejeitar apenas Lula, enquanto 48% dizem que só não votam em Bolsonaro. Outros 3% declaram que não votam em nenhum dos dois, e 6% não rejeitam nenhum.

As cifras sugerem que as campanhas têm um caminho para brigar por 9% dos votos –somados os 6% que estão abertos a ambos e os 3% que recusam os dois, mas podem ser convencidos a optar por um lado.

Nas intenções de voto, boa parte da vantagem de Lula se explica pela votação construída no primeiro turno. O ex-presidente mantém a preferência dos eleitores de baixa renda (54% a 37%) e do Nordeste (66% a 28%) –região em que saiu das urnas com uma frente de quase 13 milhões de votos sobre Bolsonaro

O novo embate direto com o petista, no entanto, oferece ao atual presidente um clima menos árido do que aquele dos últimos meses. A avaliação do desempenho do governo se tornou um peso menor para a campanha de Bolsonaro, com sua taxa de reprovação caindo de 44% para 40% desde a semana passada.

A melhora desses indicadores é um fator a ser monitorado no segundo turno. Se houver menos gente disposta a punir Bolsonaro por sua passagem pelo governo, o presidente pode investir em outros elementos para obter novos votos, como a rejeição ao rival.

Uma das principais metas do candidato à reeleição na atual fase da disputa é aumentar os números negativos de Lula, uma aposta do presidente para conquistar eleitores que não votaram em nenhum dos dois candidatos no primeiro turno, mas também uma maneira de manter o engajamento de seus apoiadores –aumentando as chances de que eles apareçam para votar, com o objetivo de derrotar o PT.

Os novos índices de rejeição não podem ser comparados com os de pesquisas anteriores porque o Datafolha muda a forma de fazer essa pergunta. No primeiro turno, os eleitores são instados a apontar numa cartela os nomes dos candidatos nos quais não votariam. No segundo, cada entrevistado deve dizer se "votará com certeza", "talvez vote" ou "não votará de jeito nenhum" em Lula e Bolsonaro.

Essa divisão ajuda a medir o grau de incerteza das preferências dos eleitores neste segundo turno, além de permitir a identificação de potenciais focos de crescimento para cada candidato

Os dados indicam que, apesar de boa parte do eleitorado já ter escolhido um lado, há espaço para mudanças. Com Lula, há 47% que se dizem convictos e outros 6% que poderiam votar no petista. Com Bolsonaro, 42% afirmam votar nele com certeza, enquanto outros 6% dizem que podem fazer o mesmo.

Há bolsões de eleitores em potencial para Lula entre os jovens (13%), entre apoiadores de Ciro Gomes e Simone Tebet (24%) e até entre os evangélicos (8%). Já Bolsonaro tem chance de conquistar os votos de 10% dos entrevistados mais jovens, 8% dos evangélicos e 22% dos eleitores de Ciro e Simone.

Com quatro semanas de duração, a campanha para o segundo turno dá aos eleitores a oportunidade de olhar mais uma vez as vitrines antes de fazer uma escolha. No início dessa etapa, alguns grupos específicos se mostraram mais interessados em refletir antes de decidir o voto.

Os eleitores de 16 a 24 anos são aqueles que estão menos decididos: 12% podem mudar de voto –acima da média de 7% detectada no universo da amostra. Já 9% dizem que podem mudar de ideia.

Uma parcela larga dos eleitores de Ciro e de Simone começou a se posicionar cedo, ainda que haja a chance de muitos deles mudarem de ideia. Entre aqueles que optaram pela senadora do MDB no primeiro turno, 69% se dizem decididos, enquanto 31% admitem trocar o voto. Esses entrevistados se dividem em fatias praticamente iguais entre votos em Lula, Bolsonaro e nulos.

Já os apoiadores de Ciro pendem levemente para Bolsonaro –e muitos deles também já estão decididos. Entre eleitores do pedetista, 73% dizem ter escolhido seu candidato, e 26% falam em mudar de ideia.

+DATAFOLHA PRESIDENCIAL

Lula tem 49%, e Bolsonaro, 44%; indecisos somam 2%, e brancos e nulos, 6%

51% dizem não votar em Bolsonaro de jeito nenhum, ante 46% em Lula

Aprovação de Bolsonaro sobe para 37%; reprovação recua para 40%

93% dizem já estar totalmente decididos sobre voto a presidente

Confiança total nas falas de Bolsonaro tem pico e vai a 28%

53% dos eleitores acham que Tebet deve apoiar Lula no segundo turno

Bruno Boghossian, o autor deste artigo é colunista da Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 07.10.22, às 18h25

Celso de Mello diz ser inaceitável fala de Bolsonaro sobre Nordeste e lista filhos ilustres da região

O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello divulgou mensagem com repúdio às declarações em que o presidente Jair Bolsonaro (PL) associa o analfabetismo no Nordeste à votação de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na região.

O ex-ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal - Carlos Moura/SCO/STF

No texto, Mello chama as declarações de Bolsonaro de "reprováveis, preconceituosas e inaceitáveis", além de caracterizar seu comportamento de "indigno e vergonhoso". O ex-decano do STF lista na mensagem brasileiros ilustres nascidos no Nordeste.

"Torna-se necessário fazer, para repelir suas insultuosas alegações, breve relação de alguns nomes dos incontáveis nordestinos ilustres que, para honra do Brasil, brilharam na história de nosso país nos diversos setores da atividade humana", afirma.

Confira a relação feita por Mello:

Josué de Castro, Aloísio Azevedo, Anísio Teixeira, Frei Caneca, José de Alencar, Manuel Bandeira, Nise da Silveira, Irmã Dulce, Paulo Freire, Ariano Suassuna, Augusto dos Anjos, Tobias Barreto, Clovis Beviláqua, Bárbara de Alencar, Deodoro da Fonseca, Epitácio Pessoa, Ruy Barbosa, Pedro de Araújo Lima (Marquês de Olinda) , Visconde de Rio Branco, Condessa de Barral, Jorge Amado , Gonçalves Dias , Cipriano Barata, Matias de Albuquerque , Gilberto Freyre , Pontes de Miranda, Francisco de Paula Batista, Aníbal Bruno, Braz Florentino Henriques de Souza, Luiz Pinto Ferreira, Sílvio Romero, Gilberto Amado, Graça Aranha, Anibal Freire da Fonseca, Laudelino Freire, Francisco de Assis Rosa e Silva , Zacarias de Góis e Vasconcelos, José Higino Duarte Pereira, Franklin Dória, Odylo Costa Filho, Arthur Azevedo, Raimundo Correia, José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, João Maurício Wanderley (Barão de Cotegipe), Freitas Henriques, Nísia Floresta , Cardeal Dom Eugênio Sales, Dom Helder Câmara, Cardeal Dom Joaquim Arcoverde, Manoel de Carvalho Pais de Andrade, Conselheiro João Alfredo, José de Barros Lima, Cruz Cabugá, Henrique Dias, André Vidal de Negreiros, Antonio Felipe Camarão, general José Inácio de Abreu e Lima.

Publicado originalmente no PAINEL, coluna da Folha de S. Paulo, em 07.10.22, às 15h50

Abuso de poderes desequilibrou eleição em favor de Bolsonaro

Em escala global, 80% dos governantes que pleiteiam a recondução têm sucesso

O presidente Jair Bolsonaro em coletiva de imprensa com Datena no Palácio da Alvorada - Gabriela Biló/Folhapress

O pleito presidencial deste ano ainda não foi concluído, mas já tem um grande derrotado, o equilíbrio da corrida eleitoral. Em teoria, um presidente não deveria em hipótese nenhuma se servir do cargo que ocupa para obter vantagem na disputa por votos. A teoria não funciona.

O problema é em alguma medida insolúvel, pois a própria democracia já vem com um forte viés situacionista. Em escala global, 80% dos governantes que pleiteiam a recondução têm sucesso. O destaque na mídia, o controle da máquina pública e até a psicologia conspiram a seu favor.

No caso brasileiro, o desequilíbrio é agravado por outros fatores. A reeleição aqui surgiu através de um casuísmo, o que deixou uma trilha de assimetrias na legislação. Um exemplo: o governante que pretende renovar seu mandato não é obrigado a se desincompatibilizar. De fato, seria esquisito forçá-lo a renunciar para depois voltar ao cargo. O problema é que seus adversários, se tiverem postos no Executivo, são. No caso do pleito presidencial, o postulante mais poderoso tem o privilégio de fazer campanha no cargo e seu eventual desafiante, não.

Tudo isso, porém, é brincadeira de criança perto do que fez e faz Jair Bolsonaro. Sem temor ou pudicícia, ele colocou verbas e instituições públicas a serviço da reeleição. Aprovou uma série de propostas que visam essencialmente a mantê-lo no cargo, como a PEC dos Precatórios, o Auxílio Brasil só até dezembro, a redução de impostos sobre a energia etc. Levou até as Forças Armadas para atos de campanha. Agora está perdoando dívidas.

O remédio contra esses abusos seria a cassação da chapa por abuso de poder político e econômico. Mas o TSE reluta em utilizá-lo. É de fato complicado tirar no tapetão um candidato que recebeu mais de 50 milhões de votos.

O retrocesso institucional é brutal. Pelos precedentes estabelecidos, o próximo candidato à reeleição que não barbarizar é um trouxa.

 Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. E autor de "Pensando Bem…". Publicado originalente em 07.10.22 às 16h15

Uma forte explosão destrói parte da única ponte que liga a península da Crimeia à Rússia

As autoridades russas denunciam que a explosão de um caminhão danificou a principal infraestrutura de comunicação do território anexado por Moscou. O governo ucraniano não assume responsabilidade por um possível ataque

Danos à ponte sobre o Estreito de Kerch que liga a Crimeia à Rússia, neste sábado. (Foto AFP)

A Ucrânia acordou neste sábado com uma das notícias mais esperadas por suas forças armadas: a ponte do Estreito de Kerch, a única que liga a Rússia à Crimeia, foi seriamente danificada por uma forte explosão e incêndio em vários vagões de trem. Essa infraestrutura é fundamental no fornecimento de recursos para a península anexada ilegalmente por Moscou em 2014e para a máquina de guerra do invasor. Autoridades russas na Crimeia acusam Kyiv de estar por trás de um ataque com caminhão-bomba. O governo ucraniano não confirma a responsabilidade pela ação, como fez em ataques anteriores contra alvos russos na Crimeia, embora tenha comemorado os danos causados ​​à ponte sobre o estreito de Kerch, inaugurada em 2018, com várias mensagens nas redes sociais. pelo Presidente Vladimir Putin como símbolo da anexação da península e da ocupação das forças russas na Ucrânia.

Os vídeos divulgados pela mídia russa e contas do Telegram relacionadas a Moscou mostram uma forte explosão nesta manhã na ponte quando um caminhão passou. As imagens tiradas horas depois confirmaram que uma parte da rodovia havia sido destruída, caída na água, enquanto outra havia sido danificada. A explosão ocorreu também quando um comboio de comboios com camiões-cisterna que transportavam combustível passou pela via férrea da ponte, na parte superior da infraestrutura, segundo a polícia russa, que também danificou aquele troço. A explosão provocou um incêndio em vários carros do comboio e uma espessa coluna de fumaça preta na ponte.

A equipe da promotoria russa responsável pela investigação informou que pelo menos três pessoas morreram na explosão. Seriam os passageiros de um veículo que passou pelo local da detonação, segundo a agência estatal russa Ria Novosti. Os investigadores encontraram documentação no local sobre o caminhão e seu proprietário, morador da região russa de Krasnodar, para onde as investigações também foram transferidas.

O presidente do Parlamento pró-Rússia da Crimeia, Vladimir Konstantinov, atribuiu o evento à sabotagem da Ucrânia. A explosão ocorreu ao lado da ponte em território ucraniano, tomada por Moscou em 2014. Kiev não confirmou sua autoria, embora Mikhailo Podoliak, conselheiro do presidente Volodymyr Zelensky, tenha escrito no Twitter : “Crimeia, a ponte, o começo. Tudo ilegal deve ser destruído, tudo roubado deve voltar para a Ucrânia, tudo que foi ocupado pela Rússia deve ser expulso”.

Mensagens confusas de Kyiv

Mais tarde, Podoliak surpreendeu ao assegurar que a responsabilidade pelo ataque tinha que ser encontrada na Rússia, e que por trás da sabotagem estava a luta pelo poder entre os serviços secretos russos e o Ministério da Defesa: “Não é óbvio quem fez a explosão? O caminhão veio da Rússia.” Apesar disso, o Ministério da Defesa publicou uma mensagem no Twitter assumindo implicitamente a responsabilidade pela deflagração: “O cruzador Moskva e a ponte Kerch, dois importantes símbolos do poder russo na Crimeia, caíram. O que vem a seguir, russos? O Moskva , o carro-chefe da frota russa do Mar Negro, foi afundado em abril por um Neptune, um míssil de fabricação ucraniana .

As Forças Armadas da Ucrânia planejaram ataques à ponte de Kerch no passado, sem sucesso, em parte devido às defesas antiaéreas que protegem essa infraestrutura. Analistas de mídia influentes na região, como Nexta ou Bellingcat, enfatizaram que o método de ataque pode ser diferente porque a ponte possui sistemas de segurança tecnológica em suas entradas que detectam a presença de explosivos nos veículos.

O Ministério dos Transportes da Rússia garante que a comunicação rodoviária através da ponte será restabelecida neste sábado. Apenas uma via será habilitada em direção ao continente e a infraestrutura será reforçada. O governador russo da Crimeia, Sergei Aksionov, também garantiu que as linhas de ferry entre o território russo e a península anexada serão reforçadas. Alexander Kots, uma das vozes mais conhecidas da propaganda russa que acompanha as tropas invasoras desde o início da guerra, escreveu em sua conta do Telegram que o mais significativo sobre o ataque é que a Ucrânia provou que a segurança da ponte e da Crimeia como um todo eles não são garantidos: “Nada é impossível, os ucranianos provaram isso”.

Golpe na logística russa

O certo é que os danos causados ​​à ponte do Estreito de Kerch complicam ainda mais a logística do exército russo. A ponte da Criméia facilita a passagem tranquila de trens e caminhões militares sem a constante ameaça de guerrilheiros ucranianos, membros da resistência que lutam contra Moscou desde 2014. A outra alternativa é a faixa de terra conquistada no sul da Ucrânia, a rota que passa por Mariupol e Melitopol e abastecendo a frente de Kherson, embora esteja mais perto da artilharia e dos sabotadores. Algumas semanas atrás, uma grande explosão destruiu um trecho de trem próximo à estação de Nizyana. Essa ação dificultou o transporte de suprimentos militares e obrigou as forças russas a reforçar sua segurança na área. “Mais uma vez o regime criminoso em Kyiv atinge a infraestrutura em Zaporizhia”,

A Ponte Kerch foi inaugurada em 2018 pelo presidente russo Vladimir Putin. É uma obra faraônica de quase 17 quilômetros de extensão, e era uma prioridade do Kremlin para que a península ucraniana ilegalmente anexada fosse rapidamente incorporada à Rússia. Neste verão, a Ucrânia realizou os primeiros ataques contra a frota do Mar Negro , com base na Crimeia, o mais significativo, que ocorreu em 9 de agosto contra a base aérea de Saki . Também nesta ocasião, Kyiv evitou relatar como os ataques ocorreram.

A conexão da Crimeia é um dos símbolos de duas décadas de Putinismo. O presidente a inaugurou dirigindo um caminhão em mais uma de suas demonstrações de poder, e sua propaganda chegou a filmar filmes sobre essa infraestrutura. Atualmente, existem cerca de 50.000 turistas russos na Crimeia. Cerca de 4.000 estavam programados para deixar a região nos próximos quatro dias. "Estamos trabalhando para garantir que os hotéis e resorts da Crimeia ofereçam acomodações gratuitas aos seus hóspedes", anunciou o chefe do órgão de turismo russo Rosturism nas redes sociais.

A logística interna da península também preocupa seus cidadãos. A Procuradoria-Geral da Rússia ordenou que as autoridades da cidade independente de Sebastopol e da própria península monitorem qualquer possível aumento nos preços dos alimentos e combustíveis nos próximos dias. Por sua vez, o Ministério do Comércio russo tentou tranquilizar seus habitantes com uma declaração dizendo que há "comida suficiente" na região.

A explosão também ocorreu na retirada total das tropas em Kherson , uma província na qual as forças russas foram empurradas para as margens do Dnieper. "[O ataque] foi planejado pelo Serviço de Segurança ucraniano com a intenção não apenas de cumprir seu desejo simbólico de destruir a ponte da Crimeia, mas também de dificultar a logística e o reforço do exército russo nas fronteiras de Kherson", disse ele. O primeiro vice-presidente do Comitê de Segurança da Duma do Estado, Yuri Afonin, disse à agência Tass.

O ataque no coração da Crimeia coincidiu com uma nomeação muito significativa no alto comando russo. O ministro da Defesa, Sergei Shoigu, promoveu o chefe das Forças Aeroespaciais, Sergei Surovikin, a comandante do grupo conjunto de forças que realiza a campanha na Ucrânia. Sua eleição vem além de outras grandes mudanças nas últimas semanas, incluindo vários chefes de distritos militares russos e o chefe de logística desde 1997. Surovikin é mais conhecido por seu papel na repressão dos protestos em 21 de agosto de 1991 contra o golpe comunista. Liderança. Seu batalhão de fuzileiros foi responsável pelas únicas mortes naquele dia, as de três civis que mais tarde foram reconhecidos como heróis da União Soviética. Surovikin,

Sepultura em massa em Donetsk

A nordeste desta província, à medida que o exército ucraniano avança pela frente oriental, novos horrores da invasão russa continuam a surgir. Pavlo Kirilenko, governador de Donetsk, anunciou este sábado a descoberta de 200 sepulturas e uma vala comum nas proximidades de Liman, um dos municípios de Donbas reconquistados pela Ucrânia nas últimas semanas, após meses de ocupação por tropas do Kremlin.

Kirilenko compartilhou imagens das 200 sepulturas e do poço, em uma área de campo. As sepulturas estão marcadas com cruzes, e o governador de Donetsk adiantou que são corpos civis. Na vala comum, segundo Kirilenko, haveria um número indeterminado de cadáveres, tanto civis quanto soldados. Nas ruas e parques da vizinha Sviatohirsk, também foram exumados cerca de vinte corpos que não puderam ser enterrados no cemitério devido ao perigo causado pelas operações militares dos últimos meses.

A descoberta de Liman ocorre apenas três semanas depois que em Izium, outro município libertado no leste do país, cerca de 400 corpos não identificados foram encontrados em uma área arborizada , alguns com sinais de tortura. A província de Kharkov, onde fica Izium, foi reconquistada em setembro pelas tropas ucranianas. Até agora, 534 corpos civis foram recuperados na região, segundo as autoridades locais. Uma investigação das Nações Unidas descobriu no mês passado que as forças russas cometeram crimes de guerra em pelo menos 16 municípios nas províncias de Kiev, Chernihiv, Kharkov e Sumi.

CRISTIAN SEGURA e JAVIER G. CUESTA, de Kyiv e Moscou para O EL PAÍS, em 08.10.22, às 11:37hs 

Como "Deus, Pátria e Família" entrou na política do Brasil

Manifesto divulgado 90 anos atrás pelo autor Plínio Salgado lançou o integralismo. Movimento de extrema direita é antecessor de discursos ultraconservadores da atual política nacional.


Plinio Salgado (o magrelo ao centro na foto) inspirou-se em Mussolini, o criador do fascismo na Itália, para lançar a sua Ação Integralista Brasileira (AIB). A farda, no entanto, em cor esverdeada, remete aos camisas pardas de Hitler, na Alemanha. O lema "Deus, Pátria e Familia" foi tirado do fascismo italiano, o qual nunca quis confronto com a Igreja Católica, poderosamente majoritária entre os italianos. Naquele tempo, muitos religiosos se aliaram aos fascistas.

Eram princípios conservadores, de inspiração cristã e fortemente influenciados pelo fascismo italiano e pelo integralismo português, os formulados pelo escritor e jornalista Plínio Salgado (1895-1975). Ele chamou seu arrazoado de Teoria do Estado Integral, e em 7 de outubro de 1932 lançou o Manifesto de Outubro. Ali nascia a Ação Integralista Brasileira (AIB), a versão nacional da extrema-direita que ganhava corpo na Europa.

Dividido em dez partes, o manifesto trazia já em seu primeiro item a importância da valorização de Deus, da Pátria e da Família – os três termos com inicial maiúscula. Salgado tinha a companhia de outros intelectuais na elaboração dessa doutrina, entre eles o escritor e advogado Gustavo Barroso (1888-1959) e o advogado, filósofo e professor Miguel Reale (1910-2006).

Com seus símbolos ultranacionalistas, os trajes verdes e o discurso de oposição ao comunismo, o movimento cresceu. Estimativas publicadas pela imprensa dão conta de que, em 1936, eram quase 1 milhão os adeptos e simpatizantes. "Os integralistas alçaram cargos políticos, com vários prefeitos e vereadores integralistas pelo país", enfatiza o historiador Leandro Pereira Gonçalves, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de O fascismo em camisas verdes: Do integralismo ao neointegralismo.

Manifestações públicas eram organizadas e havia um interesse claro de Salgado em cada vez mais influenciar os rumos da nação. "Fazia parte do cotidiano do brasileiro. É considerado o primeiro movimento de massa da história do Brasil, a primeira grande organização política do século 20", sublinha Gonçalves.

Trajetória de Plínio Salgado

Salgado se apresentou como pré-candidato à presidência para as eleições de 1938 – mas a disputa não ocorreu porque Vargas deu o autogolpe que criaria o Estado Novo – e chegou a pleitear o posto de ministro da Educação no governo Getúlio Vargas (1882-1954).

Como não conseguiu seus objetivos e ainda viu Vargas decretar a proibição dos partidos políticos, deixando a AIB na clandestinidade, Salgado e outros integralistas organizaram um levante. Em 11 de maio de 1938, atacaram o Palácio da Guanabara, cerca de 1.500 foram presos. Salgado exilou-se em Portugal.

"Oficialmente, o ataque representa o fim do integralismo, que já havia sido encerrado com o decreto do Estado Novo, quando passou para a ilegalidade", diz Gonçalves. Mas é claro que a ideologia não desapareceu.

"Milhares de seguidores e simpatizantes permaneceram ativos e ocuparam cargos fundamentais no Estado", ressalta o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coautor do livro Passageiros da tempestade: fascistas e negacionistas no tempo presente. "Nas Forças Armadas, a Marinha, seu oficialato era dominantemente integralista. Muitos integralistas, com seu ideário, permaneceram ativos na magistratura, nas academias militares e na política."

Apoiadores de Bolsonaro festejam na rua com bandeiras brasileiras e camisas verde-amareloApoiadores de Bolsonaro festejam na rua com bandeiras brasileiras e camisas verde-amarelo

Historiadores traçam analogia entre farda verde dos integralistas e apropriação do verde-amarelo pelo bolsonarismoFoto: Bruna Prado/AP/picture alliance

Em Portugal, Salgado aprofundou sua doutrina, num intercâmbio com a intelectualidade católica conservadora. Quando, em 1945, partidos tornaram a ser permitidos no Brasil, o integralismo voltou, mas com outra roupagem.

"No pós-Segunda Guerra, um partido fascista não teria sucesso no Brasil. Então eles formam o PRP [Partido de Representação Popular], com formação fascista, com grupos fascistas, mas sem dizer que era fascista. Foi um fascismo legalizado, mas no discurso se dizia democracia cristã", relata Gonçalves. Pela legenda, Salgado candidatou-se à presidência em 1955. Depois acabaria eleito deputado federal.

O idealizador do integralismo foi um dos oradores da famosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 1964, e apoiador do golpe militar que instauraria a ditadura naquele mesmo ano.

"Na ditadura, o destino político dos integralistas foi a Arena [partido da Aliança Renovadora Nacional]. Com a morte de Salgado [em 1975], há o fim do integralismo, já que os adeptos ficam sem o chefe, a referência", explica Gonçalves.

Neointegralismo e Bolsonaro

Segundo o historiador, os anos 1980 assistem ao início de um movimento que pode ser qualificado de neointegralismo, quando os simpatizantes das ideias se relacionando com skinheads neonazistas nas grandes cidades brasileiras. "Na década de 1990, eles voltam a participar de partidos políticos existentes, como o Prona [Partido da Reedificação da Ordem Nacional], de Enéas Carneiro e também o PRTB [Partido Renovador Trabalhista Brasileiro], de Levy Fidelix. Eles tentam, sem sucesso, fundar um partido político próprio", contextualiza Leandro Pereira Gonçalves.

Nessa época, grupos integralistas passam a utilizar a ainda incipiente internet para divulgar suas ideias e congregar os simpatizantes. No início do século 21, com o advento das redes sociais, eles também ingressam nessas plataformas.

De acordo com o pesquisador, em 2022 há três grupos integralistas relevantes em atividade: a Frente Integralista Brasileira (FIB), o Movimento Integralista e Linearista Brasileiro (Milb) e a Associação Cívica e Cultural Arcy Lopes Estrella (Accale).

"Nas eleições deste ano, o legado integralista está presente no PTB [Partido Trabalhista Brasileiro]. Padre Kelmon, que foi candidato do partido, participou de reuniões integralistas e possui relações [com o movimento]", destaca Gonçalves.

Em texto publicado em seu site em setembro, a FIB recomendou nominalmente o voto nos candidatos "que demonstram compromisso de lutar por Deus, pela Pátria, pela Família" e citou nominalmente a pastora e ex-ministra Damares Alves, eleita senadora pelo Distrito Federal, entre outros nomes.

Da farda verde à camisa da Seleção

Gonçalves lembra que essa ética integralista é enfatizada de forma recorrente nos discursos do presidente e candidato a reeleição Jair Bolsonaro. "'Deus, Pátria e Família' é o slogan fascista mais repetido ao longo deste governo. Foi naturalizado dentro da política. O integralismo representa a extrema direita mais ideologicamente consistente da história do Brasil."

Para o historiador e sociólogo Wesley Espinosa Santana, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, é possível fazer uma analogia com o uso do uniforme da seleção brasileira em manifestações políticas de direita hoje com a farda verde dos integralistas de Plínio Salgado.

"Temos uma situação muito parecida: o Bolsonaro dizendo que é o dono do verde-amarelo, que quem é adepto dele é Brasil e quem é contra não é Brasil. Isso é integralismo puro, psicológico e simbólico. O discurso é :'Ou você está ao meu lado ou é contra a pátria'. O fascio italiano e a AIB previam isso, em meio à tríade Deus, pátria, família."

Na visão de Teixeira da Silva, "o fascismo à brasileira é um amálgama complexo de fatores culturais de longa duração". "A extrema direita e o bolso-fascismo brasileiro hoje possuem várias fontes doutrinárias", comenta, citando o integralismo, suas inspirações portuguesa e italiana, e o nazismo alemão. "Mas possui também bases puramente nacionais, como o racismo anti negros e pardos."

Santana vê, nas pautas de Bolsonaro, o legado do integralismo, expresso no conservadorismo, do militarismo, da defesa das armas e do que ele chama de "cristianismo enviesado". Além, é claro, do ultranacionalismo.

Edison Veiga, o autor deste artigo é jornalista. Publicado originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 07.10.22 / |A legenda da foto é da autoria do editor do blog.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Tebet é aplaudida em restaurante reduto da elite paulistana

Senadora foi ovacionada no Parigi durante encontro com economistas de seu programa de governo

A senadora Simone Tebet, ao lado da economista Laura Muller Machado, que participou da redação de seu programa de governo, no restaurante Parigi, em SP - Acervo pessoal

A senadora Simone Tebet (MS), que disputou a Presidência da República pelo MDB, foi aplaudida de pé na quarta-feira (5) no restaurante Parigi, reduto da elite no Itaim Bibi, em São Paulo.

Ela foi ao local para encontrar integrantes da comissão que fez seu programa de governo, que se reuniam para uma confraternização.

Tebet chegou para a sobremesa, após ter almoçado na casa da ex-prefeita de São Paulo Marta Suplicy com Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a quem manifestou apoio. Ao entrar no restaurante, recebeu aplausos de clientes que estavam no local.

Tebet divulgou na campanha ideias liberais na economia, defendidas por empresários e agentes do mercado financeiro.

Texto do Painel, coluna da Folha de S. Paulo, em 07.10.22, às 12h50. Editado por Fábio Zanini, espaço traz notícias e bastidores da política. Com Guilherme Seto e Juliana Braga.

Antibolsonarismo X Antipetismo

Lula e Bolsonaro não deveriam ignorar a ojeriza que despertam em alguns cidadãos

À esquerda, o ex-presidente Lula participa de evento do PT, à direita, o presidente Jair Bolsonaro participa do Dia do Soldado na Concha Acústica do Exército, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira e Gabriela Biló/Folhapress

Jair Bolsonaro tem um adversário maior do que Lula, ele mesmo. Na última pesquisa Ipec, 50% dos entrevistados disseram que não votariam nele de jeito nenhum. A rejeição enfrentada pelo candidato do PT bate nos 40%.

Você pode estar desconfiado dos institutos, mas essa eleição é tão atípica que parece evidente que os votos têm mudado de destino por variáveis difíceis de serem detectadas. Uma coisa é certa: a força do antibolsonarismo e do antipetismo. Os dois candidatos não deveriam ignorar a ojeriza que despertam num punhado importante de cidadãos.

Bolsonaro sabe o quanto é odiado e se movimentou rapidamente. Adotou de imediato uma fala mansa, mesmo ao criticar os institutos de pesquisa, o STF e a imprensa. Acenou aos eleitores que não votaram nele. De lá pra cá, elogiou a mídia, chamou nordestinos de "irmãos", depois de relacioná-los ao analfabetismo.

Sua rejeição cai quando ele diminui o tom. Tivesse dito as atrocidades que perfilou nos últimos anos em voz baixa e com sorriso no rosto, estaria eleito. É difícil entender o que passa na cabeça de quem vota num sujeito desse. Por outro lado, o antipetismo é uma realidade que o partido e seus apoiadores precisam encarar e a essa altura ainda parecem não saber como lidar.

O anúncio de tentar mobilizar a militância para bater de porta em porta na periferia é uma boa estratégia. Maravilha, mas os voluntários estarão preparados para responder questões sobre corrupção, sobre o desastre econômico do governo Dilma? Vão chamar de golpe o impeachment apoiado por potenciais novos eleitores? É sobre isso.

Vídeo de artista fazendo L, foto com 13 livros empilhados, Dilma no palanque funcionam para deixar quentinho o coração do convertido. O eleitor que não sabe se odeia mais Bolsonaro do que Lula precisa ser ouvido, orientado, convencido. Pergunto novamente, querem ganhar a eleição ou ter razão?

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é Jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na  Folha de S. Paulo, em 06.10.22, às 21h30

A urna e o cofre

Bolsonaro compromete o erário por reeleição e realimenta teorias conspiratórias


Jair Bolsonaro (PL), em entrevista após o primeiro turno da eleição  (Ueslei Marcelino/Reuters)

A tentativa desesperada de reeleger o presidente Jair Bolsonaro (PL), que terminou o primeiro turno em desvantagem inédita para um incumbente, compromete cada vez mais o futuro das contas públicas. O Planalto empilha promessas que não cabem no Orçamento.

Não bastassem os múltiplos furos já produzidos no teto de gastos federais e as carências de recursos para despesas humanitárias básicas —inexiste, por exemplo, previsão de receitas para manter o Auxílio Brasil de R$ 600 a partir de janeiro de 2023—, o mandatário flerta com mais irresponsabilidades na sanha de arrebatar o pleito.

Se o problema imediato do candidato situacionista é a rejeição das mulheres e do eleitorado mais pobre, ele não hesita em financiar a sua resposta no Tesouro Nacional. Promete um 13º pagamento do auxílio que substituiu o Bolsa Família, mas direcionado apenas às beneficiárias do programa.

Uma ação mais descaradamente eleitoreira seria possível apenas caso se exigisse da receptora do pagamento extraordinário uma comprovação de voto no presidente.

O ciclo eleitoral de 2022 terá sido um marco do enfraquecimento das instituições fiscais e políticas que refreiam o uso da máquina e dos dinheiros públicos para finalidades eleitorais. As chamadas emendas de relator, o fundo partidário recorde, as soberbas reduções de impostos e a abrupta elevação de gastos desequilibram a disputa a favor de quem tem mandato e dos oligarcas que controlam as siglas.

Às favas também foram mandadas as preocupações com a manutenção dos programas e das organizações federais. Corta-se sem pestanejar verba para fármacos e educação, e semeiam-se descontinuidades de políticas públicas para os meses vindouros, a fim de alimentar o vórtice da caça ao voto.

Mesmo com toda a vantagem extraída do erário, o presidente não parece contentar-se com a hipótese de vencer ou perder a reeleição nas urnas no próximo dia 30.

Voltou a ventilar a ideia estapafúrdia de que teria sido vítima de fraude na apuração dos votos no primeiro turno, como se uma conspiração implantada no mecanismo de divulgação da Justiça Eleitoral lhe tivesse tirado a vitória à medida que a contagem avançava.

A pilhéria não resiste à constatação de que as regiões mais bolsonaristas do país tiveram a sua votação divulgada antes das mais petistas. O resultado de uma eleição é o mesmo independentemente da ordem em que se contam os votos.

A maluquice propagada pelo presidente da República se presta a manter acesa a centelha da baderna em caso de derrota nas urnas. Arrombar seja o cofre, seja a institucionalidade democrática, continua em seus planos delirantes.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 07.10.22 / e-mail: editoriais@grupofolha.com.br

Eduardo Leite decide por neutralidade e diz que não vai declarar seu voto

O petista Tarso Genro afirmou que as negociações com Leite não avançaram, mas declarou voto no tucano para o governo do RS

O ex-governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB)O ex-governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB) Reprodução/Facebook

As investidas do PT e da campanha de Lula sobre o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, não avançaram e o tucano decidiu pela neutralidade.

— Não vou abrir o meu voto para presidente para não contaminar o debate, para que não se discuta o Rio Grande do Sul, apenas o Brasil (…). Nem o Lula nem o Bolsonaro vão vir aqui resolver os problemas do Rio Grande. Vou continuar no lado onde sempre estive, no centro — disse Leite em entrevista nesta manhã na sede do comitê da campanha, em Porto Alegre. Ele afirmou que não se trata de “ficar em cima do muro”, mas de não permitir que se “ergam muros para dividir os gaúchos”.

Nesta sexta-feira, o ex-governador gaúcho Tarso Genro, uma das lideranças petistas que vinha conversando com Leite, disse no Twitter que as negociações não avançaram. Mesmo assim, declarou que votará no tucano, que disputa o segundo turno com o bolsonarista Onyx Lorenzoni (PL).

— Governador Leite me ligou ontem, como fará com todos os ex-governadores, para avaliação do quadro político no Estado. Não avançamos, é óbvio, para nenhuma "negociação", pois não tenho mandato do PT para isso. Agradeci a sua gentileza e confirmei que meu voto será dele, pois sustento que os tempos que atravessamos recomenda que devemos compor uma Frente Eleitoral em defesa do Estado de Direito, contra os radicais extremistas e neofascistas, que querem acabar com a democracia de 88, já sob ataque do bolsonarismo.

No primeiro turno, Lorenzoni teve 37% dos votos e o governador 26,81%. Nos bastidores, a avaliação feita pelo tucano e seus aliados é que o posicionamento a favor de Lula teria mais potencial de lhe tirar votos do que dar, já que a maioria de seus eleitores é de centro-direita. Além disso, Bolsonaro teve uma votação mais expressiva do que Lula no estado, com 48,89% dos votos, contra 42,28% do petista.

Mesmo sem a declaração de voto em Lula, uma associação regional de prefeitos do estado do PT irá manifestar apoio a Leite. O PSB e PDT já anunciaram que estão com o governador no segundo turno.

Bela Megale para O Globo, em 07.10.22, às 10h27

A guerra da Rússia na Ucrânia ilumina um novo projeto europeu

44 líderes europeus lançam as bases de uma comunidade política que simboliza o isolamento de Putin e a rejeição da disputa do Kremlin

Chefes de Estado e de Governo de 44 países no Castelo de Praga, numa cimeira da nova Comunidade Política Europeia, esta quinta-feira. (Crédito foto: Felipe Singer / EFE)

Com a guerra da Rússia na Ucrânia , as ameaças nucleares e o apetite imperialista de Vladimir Putin como catalisador, a Europa está lançando as bases para uma nova comunidade política. Com um encontro simbólico para tornar visível uma frente unida contra a agressão do Kremlin, 44 líderes reuniram-se esta quinta-feira em Praga para lançar uma constelação europeia destinada a encontrar soluções para as profundas divisões no continente em matéria de migração, segurança ou energia.

O líder russo, encurralado por suas derrotasna Ucrânia e com frentes cada vez mais abertas em casa, conseguiu o que há apenas um ano parecia impensável: unir, apesar das diferenças, os 27 parceiros da UE com um país que decidiu abandoná-los, o Reino Unido; com outro, a Turquia, que não tem clareza sobre querer entrar no clube comunitário apesar de seu status de candidato e aproveitou uma cúpula em um momento crítico para a segurança da Europa para tornar visível sua fratura com a Grécia às custas de Chipre ; e ao lado de vários países que têm a adesão à UE em sua lista de tarefas – como Ucrânia, Macedônia do Norte ou Geórgia – mas não têm data de entrada à vista. A Rússia e sua aliada Bielorrússia, governada por outro autocrata que justificou a invasão e que praticamente se tornou um satélite de Moscou,

“Esta reunião, a Comunidade Política Europeia, tem uma possibilidade real de se tornar uma Comunidade Europeia de Paz”, disse o presidente ucraniano, Volodímir Zelenski, que, novamente simbolicamente, abriu a sessão com um discurso por videoconferência. "Membros de todos os formatos de cooperação existentes na Europa, baseados em nossos valores comuns, participam da reunião", observou o líder ucraniano, "e não há representantes da Rússia, um Estado que geograficamente parece pertencer à Europa, mas que desde o início ponto de vista de seus valores e comportamento, é o estado mais anti-europeu do mundo”.

"Isso não significa que queremos excluir a Rússia para sempre", enfatizou o Alto Representante da UE para Política Externa, Josep Borrell, "mas esta Rússia, a Rússia de Putin, não tem assento". O presidente russo provavelmente se orgulhará da exclusão de um grupo que pode simbolizar aquele Ocidente que, em sua opinião, é o culpado por todos os males. Mas o chefe do Kremlin, que sempre descartou a UE como interlocutor e optou pelas relações bilaterais, para fragmentar e desestabilizar, pode encarar como desafio a presença no novo projeto de países que considera parte de sua esfera de influência , da Moldávia e da Armênia à Geórgia, passando pelo Azerbaijão.

O novo projeto, ainda borbulhante, incipiente, carece de linhas claras de prospecção além da cola russa que os une e da crise energética. Tanto a sua magnitude como a sua variedade - também de certa forma a componente geográfica - levantam a questão de saber se a chamada Comunidade Política Europeia avançará para uma comunidade de valores ou interesses, com incertezas como as provocadas pela presença de O Azerbaijão, com sérios problemas de direitos humanos, mas com grandes reservas de gás e interesse em novos acordos de fornecimento com os Vinte e Sete, ansioso por encontrar novos fornecedores para se desvincular do gás do Kremlin.

Turquia e um começo difícil

Uma dualidade encenada nesta quinta-feira pelo presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que depois de receber o toque de países como a França por ajudar a Rússia a pular as sanções, acrescentou que "uma paz justa não tem perdedores". Erdogan protagonizou um duro discurso contra a Grécia em Chipre —onde mantém a chamada República Turca de Chipre do Norte, ocupada em 1974 pela Turquia , e reconhecida apenas por Ancara— durante o jantar oficial, que foi respondido pelo primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, numa intervenção que não foi planeada e que irritou o líder turco, que aproveitou a conferência de imprensa após o jantar para sublinhar que a Turquia se opõe à entrada da Suécia na NATOe acusar a Grécia de “basear suas políticas em mentiras” e emitir uma ameaça velada ao apontar que Atenas entendeu a mensagem de Ancara quando seus funcionários disseram que “poderíamos chegar de repente uma noite”. Erdogan coroou assim um início nada pacífico para o novo projeto europeu.

A Comunidade Política Europeia, que começou em Praga – capital da presidência rotativa da UE, mas também da Tchecoslováquia, que era um país ocupado pela URSS, que viu como os tanques soviéticos ceifaram sua primavera reformista em 1968 – e que continuará na Moldávia em seis meses e na Espanha em um ano, foi ideia do presidente francês, Emmanuel Macron, em maio passado. O chefe do Eliseu propôs então uma nova estrutura política que permitiria aos países que estão a décadas de cumprir os requisitos de entrada na UE em um quadro de cooperação sem precedentes. "É um passo muito importante reforçar esta cooperação solidária muito além da UE, com países com os quais a União mantém relações muito intensas e muito importantes há muitos anos", disse o presidente espanhol, Pedro Sánchez, que listou: "A Balcãs, Turquia, Reino Unido agora desde a sua partida e também todos os países da frente oriental".

O resultado ainda está para ser visto. Por enquanto, apesar de muitos terem visto isso como um prêmio de consolação para, por exemplo, os Balcãs Ocidentais ou a Geórgia, esses mesmos países apoiam a iniciativa que lhes permitiu um vínculo tangível e mais imediato e outro fórum de encontro. É, disse o presidente lituano, Gitanas Nauseda, como as “Nações Unidas na Europa”. Um "evento histórico", disse sua contraparte islandesa, Katrin Jakobsdóttir. Uma ágora que servirá, salientou Macron, para se defender contra ameaças e encontrar potenciais projetos - comuns e bilaterais - e avançar noutras linhas, como a que reuniu esta quinta-feira os líderes do Azerbaijão e da Arménia,

A participação na cimeira da primeira-ministra britânica, Liz Truss, que falou de "unidade e determinação" face à "maior crise na Europa desde a Segunda Guerra Mundial", foi também um sinal das perspetivas do novo projeto. E é visto como um sinal de que Londres pode estar aberta a fazer concessões em acordos comerciais na Irlanda do Norte. A Truss, que propôs o Reino Unido como uma das próximas sedes do novo projeto europeu, enfrenta sérios problemas internos, buscando manter seus pactos energéticos com a UE e a Noruega, e também um quadro de cooperação com a França em matéria de migração.

Crise de energia

Apesar do simbolismo do evento, a crise energética também marcou profundamente a agenda da cúpula às portas de um inverno que se espera complicado e no qual muitos líderes temem que acenda a chama do descontentamento que acabará por fragmentar não só a unidade demonstrada até agora, e que se cristalizou na reunião desta quinta-feira, mas também a sua posição na política interna. O primeiro-ministro polonês Mateusz Morawiecki criticou a injeção da Alemanha em sua economia para combater o aumento dos preços da energia, que pode estar colocando em risco o mercado único. Chove muito, aliás, segundo várias capitais revoltadas porque há cada vez mais evidências de que Berlim dita parte da política energética comunitária.

E nessa dualidade da nova constelação europeia, entre uma união de valores e outra de interesses, Macron, que já fez um mantra de criticar o gasoduto trans-Pireneus Midcat —desta vez, como outros, com dados tendenciosos, posteriormente refutado da Espanha pela Ministra da Transição Ecológica, Teresa Ribera —, falou da prioridade de construir mais conexões elétricas na Europa e reduzir os preços do gás. “Partilhamos o mesmo espaço, a mesma história. Estamos destinados a escrever nosso futuro juntos”, disse ele. "Espero que consigamos projetos comuns", lançou. Projetos como a caixa de “ferramentas conjuntas” que Noruega e Bruxelas assinaram esta quinta-feira para enfrentar a crise do gás na Europa.

A Comunidade Política Europeia, especificou o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, não pretende substituir a UE nem ser um fórum dos Vinte e sete com satélites. Mas com 44 líderes, os formatos de discussão não são fáceis. Na cúpula desta quinta-feira, os chefes de Estado e de governo se reuniram por tema em duas mesas. Uma dedicada à energia, clima e economia, na qual participou o espanhol Pedro Sánchez, e outra à paz e segurança no continente europeu.

Maria R. Sahuquillo, de Praga para o EL PAÍS, em 06.10.22, às 17h:49. Maria é chefe da sucural do EL PAÍS em Bruxelas. Antes, trabalhou em Moscou, de onde lidava com Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e o resto do espaço pós-soviético. Ela cobre a guerra na Ucrânia, desde o início. Desenvolveu quase toda a sua carreira no EL PAÍS. Além de questões internacionais, é especialista em igualdade e saúde.