sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Lula exagera aumento de universitários e outros feitos de seu governo

Ex-presidente reivindicou a criação do Coaf, mas órgão existe desde o governo Fernando Henrique Cardoso

O ex-presidente Lula (PT), candidato à presidência. Foto: Jornal Nacional/Reprodução

O ex-presidente Lula (PT), candidato à Presidência, exagerou a quantidade de pessoas que tiveram acesso ao ensino superior em seu governo. Ele disse ter aumentado a quantidade de alunos universitários de 3,5 milhões para 8 milhões, mas essa marca só foi alcançada em 2015, no governo Dilma. O governo do petista terminou com 6,3 milhões de alunos.

A declaração foi dada durante entrevista no Jornal Nacional nesta quinta-feira, 25. Ao longo de 40 minutos, Lula destacou dados econômicos e sociais de sua gestão. Ele também reivindicou a criação do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), mas o órgão existe desde o governo Fernando Henrique Cardoso.

Nem todas as declarações do ex-presidente puderam ser analisadas. Confira a checagem do Estadão Verifica.

Estudantes universitários

O que Lula disse: que havia 3,5 milhões de estudantes universitários no começo de seu governo e 8 milhões ao fim.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é exagerado. De acordo com o Censo da Educação Superior, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep),entre 2002 e 2015 houve um crescimento considerável do número de pessoas matriculadas em cursos superiores, tanto de instituições públicas como privadas.

Segundo a instituição, em 2002, cerca de 3,5 milhões cursavam o ensino superior. Em 2010, no último período do governo Lula, esse número chegou a 6,3 milhões. O número afirmado por Lula na entrevista no Jornal Nacional, contudo, só foi atingido em 2015, já no segundo mandato de Dilma.

Os números registrados levam em conta todos os estudantes matriculados em cursos superiores de universidades municipais, estaduais, federais e privadas. Para aumentar o acesso dos brasileiros ao ensino superior, a influência dos governos de Lula e Dilma concentrou-se, na época, na criação de instituições federais, na ampliação do número de vagas nas faculdades e em iniciativas como o Programa Universidade para Todos (Prouni) e o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

Criação do Coaf

O que Lula disse: que seu governo criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O Coaf, responsável por atuar como autoridade central do sistema brasileiro de prevenção e combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa, foi criado pela Lei nº 9.613 (Lei de Lavagem de Dinheiro), de 3 de março de 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). O conselho foi reestruturado pela Lei nº 13.974, de 7 de janeiro de 2020, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).

Questionada, a assessoria do candidato disse que Lula estava elencando iniciativas “criadas ou reforçadas no seu governo” quando mencionou órgãos como o Coaf.

Desemprego no governo Dilma

O que Lula disse: o governo Dilma teve o menor desemprego da história do país, 4,5%.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: verdadeiro, mas falta contexto. Segundo a série histórica da Pesquisa Mensal do Emprego (PME), do IBGE, a taxa de desocupação chegou a 4,3% em dezembro de 2014, durante o governo de Dilma Rousseff. Em fevereiro de 2016, último dado coletado pela pesquisa, o índice registrado foi de 8,2%.

Não há como verificar se a administração da ex-presidente conquistou a menor taxa de desemprego da história porque o levantamento informado pelo IBGE começou somente em 2002. Além disso, não é possível comparar os índices de desocupação da PME com dados de desemprego recentes. Atualmente, o IBGE mede o nível de desemprego do país por meio da pesquisa PNAD Contínua, que teve início em 2012 e adota uma metodologia diferente. A menor taxa de desemprego registrada pela PNAD foi de 6,3%, no trimestre de outubro, novembro e dezembro de 2013.

Inflação

O que Lula disse: que a inflação no começo de seu governo era de 12% e que ele reduziu para 4,5%.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: falta contexto. Lula acerta ao afirmar que herdou uma inflação de 12% do governo anterior. Durante os dois mandatos do petista, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação, ficou abaixo do percentual citado por Lula em 2006 (3,14%), 2007 (4,46%) e 2009 (4,31%). Porém, o ex-presidente encerrou o último ano de governo com uma inflação de 5,91%.

Criação do Portal da Transparência

O que Lula disse: que seu governo criou o Portal da Transparência.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é verdadeiro. O Portal da Transparência foi lançado pela Controladoria-Geral da União (CGU) em 2004, durante o primeiro mandato de Lula. 

Lei de Acesso à Informação

O que Lula disse: que seu governo criou a Lei de Acesso à Informação (LAI).

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: falta contexto. A Lei de Acesso à Informação foi sancionada em 18 de novembro de 2011, primeiro ano do governo Dilma Rousseff (PT), mas as articulações realmente começaram em 2003, quando Lula era presidente. O processo de criação do projeto de lei começou no I Seminário Internacional sobre Direito de Acesso a Informações Públicas, em Brasília. Dele, surgiu o Fórum de Direito de Acesso à Informação Pública, de onde se formou um grupo que apoiou a criação do PL 219/2003, do deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG). O projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça em 2004 e passou a tramitar na Câmara. Na época, o deputado Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) alertou que o projeto seria considerado inconstitucional, porque partia da Câmara, mas traria custos à União.

Em 2006, então, durante a campanha para a reeleição, Lula prometeu enviar um projeto de lei sobre o assunto, o que aconteceu em 2009. O PL 5.228/2009 chegou à Câmara, foi apensado ao PL 2019/2003 e a tramitação seguiu. O projeto permitia sigilo eterno em documentos, o que foi retirado em 2010, quando foi aprovado na Câmara, ainda no governo Lula. A matéria chegou ao Senado e foi aprovada no ano seguinte, já no governo Dilma.

Dívida pública

O que Lula disse: que, em seu governo, a dívida pública começou em 60,4% do PIB e terminou em 39%.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é impreciso, mas próximo do que aconteceu de fato. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em dezembro de 2002 a dívida pública total do Brasil era de cerca de 59,93% do Produto Interno Bruto (PIB). A dívida recuou para 37,98% em dezembro de 2010. 

Empréstimo ao FMI

O que Lula disse: que seu governo emprestou US$ 15 bilhões para o FMI.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é exagerado. De acordo com o FMI, o Brasil emprestou dinheiro à instituição pela primeira vez na história em 2009. Contudo, o valor emprestado foi de US$ 10 bilhões, cerca de 1/3 a menos do indicado pelo presidente na entrevista do Jornal Nacional. Na época, o governo Lula já havia quitado todas as suas dívidas com o FMI. 

Dívida com o FMI

O que Lula disse: Em 2003, o Brasil devia US$ 30 bilhões ao FMI.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é verdadeiro. Em 2002, na gestão de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil fechou acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de 15 meses para o empréstimo de US$ 30,4 bilhões em recursos para o País. A dívida foi herdada pelo governo de Lula, em 2003.

Endividamento das famílias

O que Lula disse: que hoje 70% das famílias brasileiras estão endividadas.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: o dado está desatualizado. Pesquisa da Confederação Nacional do Comércio (CNC) concluiu.

O que Lula disse: que 22% das famílias endividadas não conseguem pagar conta de água e luz.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é exagerado. Em julho, segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio (CNC),

10,7% DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS NÃO TINHAM COMO PAGAR SUAS CONTAS

A pesquisa mostra também que 29% das famílias brasileiras estavam inadimplentes. Ou seja, atrasadas no pagamento de algum tipo de conta e/ou dívida.

A assessoria do petista informou que o dado sobre as famílias endividadas que não conseguem pagar luz e água saiu da pesquisa Serasa Experian, divulgada nesta quinta-feira (25). No entanto, os números não dizem que 22% dos endividados não conseguem pagar contas de água e luz, e sim que 22,2% das dívidas dos brasileiros são com as contas básicas, como água, luz e gás. Elas aparecem logo após os bancos e cartões, que respondem por 28,6% do total.

Orçamento secreto

O que Lula disse: que deputados destinam verbas de “R$ 100 milhões, R$ 200 milhões” por meio do orçamento secreto.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é verdade. Em 7 de maio deste ano, o Estadão mostrou que prefeitos tinham negociado R$ 13,1 bilhões por meio do orçamento secreto em ano eleitoral. Na época, o deputado que tinha pedido o maior valor do orçamento secreto era José Nelto (PP-GO), com R$ 176,1 milhões, seguido de Roman (PP-PR), com R$ 152,3 milhões. A cifra de R$ 200 milhões havia sido pedida por um senador, mas não por deputado. O pedido partiu de Wellington Fagundes (PL-MT).

Em maio do ano passado, o Estadão já havia mostrado que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), havia conseguido destinar R$ 114 milhões do orçamento secreto em emendas parlamentares, mas o valor cresceu. O Congresso em Foco publicou em maio deste ano uma lista de parlamentares que conseguiram destinar mais de R$ 100 milhões do orçamento secreto, e Arthur Lira aparece em terceiro lugar, com R$ 357,4 milhões.

Lira aparece atrás apenas de dois senadores: Márcio Bittar (União-AC) e Eliane Nogueira (PP-PI) – mãe do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. Documento enviado pelo Senado ao Supremo Tribunal Federal (STF) em maio deste ano mostra que Bittar destinou R$ 460,3 milhões e Eliane Nogueira, outros R$ 399,3 milhões do orçamento secreto.

Socorro a produtores rurais

O que Lula disse: que seu governo editou MP com socorro de R$ 85 bilhões a produtores rurais.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é impreciso. De fato, o governo Lula enviou ao Congresso Nacional o texto da MP 432/2008 que previa a renegociação de 85% da dívida dos produtores rurais. O valor correspondia a R$ 75 bilhões de um total de dívida de R$ 87,5 bilhões contraídas nas décadas de 1980 e 1990. Foi aprovada e convertida na Lei 11.775/2008.

Clarissa Pacheco, Jorge C. Carrasco, Luciana Marschall, Victor Pinheiro e Denise Chrispim, especial para o Estadão, em 25.08.22 às 23h47

Quem são os indecisos que podem decidir eleição presidencial no 1º turno

Mas o fato de serem poucos, não torna os eleitores indecisos menos decisivos nesta eleição.

Bolsonaro está em segundo, e Lula, em primeiro, nas pesquisas de intenção de votos. Mais de 80% dos eleitores de ambos se dizem definitivamente decididos (Reuters)

"É Lula e Bolsonaro, né?", responde de pronto a diarista Maria Salomé Lopes, de 59 anos, quando a BBC News Brasil pergunta se ela sabe quem está concorrendo à presidência da República nas eleições de 2022. Enquanto a eleição se aproxima e a disputa entre o ex-presidente Lula (PT) e o atual presidente Bolsonaro (PL) se acirra, Maria ainda parece longe da definição sobre quem deve levar seu voto. "Eu sou meio indecisa. Na outra eleição (2018), eu anulei, não confiei nas palavras de ninguém. Esse ano, acho que vou decidir só no dia mesmo", afirmou.

Maria divide com o marido e a filha, de 38 anos, uma casa alugada em Diadema, na região metropolitana de São Paulo. A renda da família chega a cerca de 3 salários mínimos mensais, somados os salários dele, como vigia noturno, os rendimentos dela, com suas faxinas, e da filha do casal, que trabalha numa confeitaria.

Maria é parda, católica de ir à missa "quase todo domingo" e estudou apenas até a quarta série.

Maria Salomé Lopes, de 59 anos, se diz uma eleitora indecisa em 2022. O perfil socioeconômico dela é o mesmo de boa parte dos brasileiros que dizem ainda não ter escolhido candidato (Arquivo Pessoal)

Ela também é a cara do eleitorado que chega indeciso pouco mais de 40 dias antes de uma das eleições mais discutidas e antecipadas da história recente do Brasil.

Segundo uma pesquisa Genial/Quaest, que entrevistou 2 mil pessoas presencialmente entre os dias 11 e 14 de agosto em todo o país, e à qual a BBC News Brasil teve acesso com exclusividade, a maioria dos atuais indecisos são mulheres (64%), católicos (50%), pardos (48%), vivem na região Sudeste do país (47%), têm renda familiar de até 5 salários mínimos (83%), não concluíram o Ensino Fundamental (40%), têm idade entre 45 e 59 anos (26%).

Diferente de Maria, no entanto, a maioria dos atuais indecisos escolheu alguém em 2018: 34% deles votaram em Bolsonaro, contra 25% que optaram pelo petista Fernando Haddad. Só 14% votaram branco ou nulo, como Maria.

Menor número de indecisos em décadas

As eleições de 2022 ficarão marcadas como aquelas com menor número de indecisos nas últimas décadas.

A tendência já estava clara desde o primeiro semestre deste ano, quando o agregador de pesquisas do site Jota verificou que 58% eleitores brasileiros já sabia indicar, espontaneamente, a quem direcionaria seu voto em outubro. Em 2018, em comparação, eram cerca de 22%.

"Os (totais de) indecisos, principalmente na pergunta espontânea, são os mais baixos da nossa história e os indicadores de interesse são os mais altos em todos os estratos, em todos os segmentos", afirma o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest.

2022 é a eleição com menor número de indecisos na história brasileiras (Abdias Pinheiro / SECOM/TSE)

A pergunta espontânea é aquela feita em um levantamento eleitoral sem que o pesquisador tenha que mostrar ao eleitor um cartão com o nome dos candidatos disponíveis.

É considerada uma medida importante não para descobrir o resultado do pleito em si, mas para saber o grau de consolidação desses votos.

Pessoas que nomeiam seu candidato sem ajuda tendem a ter menos chance de mudar de ideia até o dia da eleição.

Para o cientista político Carlos Melo, do Insper, a escassez de indecisos em 2022 está ligada à antecipação da disputa.

"Esta eleição está colocada para o brasileiro há muito tempo. De fato, a eleição de 2018 parece nunca ter acabado. O presidente Bolsonaro não desceu do palanque, nunca fez um discurso mais amplo, pra abarcar a população toda. E, em março do ano passado, Fachin anulou os processos contra o Lula, o reabilitando pra disputa, o que aumentou a especulação sobre o pleito", afirma Melo.

Mas o fato de serem poucos, não torna os eleitores indecisos menos decisivos nesta eleição.

Primeiro porque eles são um dos poucos bolsões de votos ainda disponíveis para os candidatos, já que as últimas sondagens eleitorais mostram que mais de 80% dos que declaram voto tanto em Lula quanto em Bolsonaro já não consideram reavaliar suas opções.

Segundo porque, embora insuficientes para inverter a ordem entre o primeiro (Lula) e o segundo (Bolsonaro) colocados nas pesquisas, esses quase 11 milhões de pessoas em dúvida, ou 7% do eleitorado, segundo pesquisa mais recente do Ipec, seriam suficientes para liquidar a disputa ainda no primeiro turno.

Mas afinal, o que querem os indecisos?

De acordo com o levantamento da Quaest que mapeou o grupo, os indecisos não estão na classe média ou entre os mais ricos. Não são também, necessariamente, os que estão em pior situação de renda ou escolaridade.

São, na verdade, uma camada intermediária, que sonhou ter consumo de classe média, mas empobreceu recentemente.

"A maior concentração de indecisos está dada nas regiões metropolitanas das capitais, principalmente do Sudeste do Brasil. A gente está falando, portanto, de gente que perdeu renda nos últimos anos", afirma Nunes, mostrando que as campanhas de Lula e Bolsonaro estão afiadas com os dados ao focar suas atenções de campanha na região.

Embora Bolsonaro e Lula tenham feito visitas ao Nordeste, foco das campanhas é o Sudeste, onde está a maior parte dos indecisos (Crédito EPA)

Perguntada sobre o principal problema do Brasil, Maria, que nunca recebeu parcelas do auxílio emergencial, não tem dúvida: "Essa fome do povo, minha filha, essa carestia dessas coisas". E complementa: "As pessoas sem casa para morar, né, sem nada."

Maria diz que no último ano a condição financeira da família piorou, mas não a ponto de passar fome ou não pagar o aluguel. A mesma resposta é dada por 56% dos indecisos, segundo o levantamento da Quaest.

Com base nessa resposta, seria fácil imaginar que esse grupo tenderia a votar em Lula, já que nas pesquisas de intenção de votos ele costuma ser apontado pela maior parte dos eleitores como uma referência no combate à fome.

Mas a escolha do voto é uma questão multifatorial. E, segundo Nunes, a localização geográfica desse grupo ajuda a explicar porque seguem indecisos: as regiões metropolitanas das cidades sudestinas são conhecidas por terem sofrido historicamente com altos índices de violência urbana. E Bolsonaro faz campanha com base na noção do armamento de civis para combater o crime e propagando a redução nacional na taxa de homicídios, que aconteceu nos últimos anos.

"Bolsonaro é visto como quem representa a melhor solução para a violência e o Lula, a melhor solução pra economia. Esse eleitor que está na margem, na borda das grandes cidades, é um eleitor que está dividido entre essas duas questões. Ele sabe o que um representa, sabe o que o outro representa. Mas não sabe o que pesa mais (em sua vida) nesse momento", diz Nunes.

A questão da segurança se torna ainda mais complexa quando olhada pela perspectiva das mulheres, maioria entre os indecisos.

"As mulheres se preocupam muito com o combate à criminalidade, mas não a qualquer custo. Muitas são mães solo e têm filhos que estão na criminalidade ou filhos que podem ser alvo da violência policial nas favelas", afirma Nara Pavão, professora da Universidade Federal de Pernambuco e estudiosa do tema gênero e preferência eleitoral.

Bolsonaro amarga rejeição em torno de 50% entre as mulheres, em parte por sua imagem armamentista.

As mulheres são a maioria entre os eleitores indecisos (Rovena Rosa / Ag. Brasil)

O tema seria um dos motivos pelos quais, mesmo tendo muita identificação com o público evangélico, o presidente ainda encontra resistência entre as fiéis, que vêm sendo cortejadas pelo ex-presidente Lula. De acordo com o mapeamento da Quaest, 29% dos indecisos se dizem evangélicos.

Para as mulheres também pesa negativamente a abordagem de Bolsonaro em relação à saúde pública. Pesquisas têm mostrado que elas são mais propensas a tomar medidas de distanciamento social e prevenção de doenças do que os homens.

"Eu achei um desaforo ele falar que a pandemia, que aquilo tudo, era uma coisinha de nada", afirma Maria, que perdeu um cunhado para a covid-19, referindo-se ao fato de o presidente ter chamado a doença de "gripezinha".

Não é surpreendente que a maior parte dos atuais indecisos seja feminina. Historicamente, mulheres costumam compor a maior parte do eleitorado indeciso no Brasil. A ciência política sempre ofereceu duas razões principais para isso, de acordo com as pesquisas feitas com o eleitorado brasileiro.

A primeira seria uma maior aversão delas ao risco — o que significa que só tomariam uma decisão quando se sentissem bem informadas o suficiente pra dar esse passo.

O segundo motivo é o suposto menor interesse das mulheres pelo cotidiano da política partidária, o que as levaria a ter menos informação de antemão e a tomar uma decisão tardia.

No caso de Maria, no entanto, a falta de informação não parece ser o problema. Embora admita que em seu convívio as pessoas falem pouco de política, ela diz que não gostou "de nada" do que fez Bolsonaro. Questionada sobre Lula, não titubeia: "também não". Afirma que nunca votou em nenhum dos dois.

Segundo Carlos Melo, assim como em 2018, essa será de novo uma eleição pautada pelas rejeições dos eleitores. Há quatro anos, era um voto sobre o antipetismo. Agora, sobre o antibolsonarismo. Os indecisos, ou os nem-nem, nas palavras de Melo, terão que se definir entre o que lhes parece o menos pior entre esses dois mundos.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington, em 23.08.22. Publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-6264088

Como erro da polícia libertou da prisão 138 suspeitos de integrarem o PCC

PCC é uma das três facções que controlam o crime organizado no Ceará

Homens presos atrás do arame farpado (Getty Images)

Quando a polícia entrou na casa, em 28 de dezembro de 2018, encontrou dois gramas de cocaína em uma mesa, duas balanças e comprovantes de depósitos bancários. Na sala estava James Machado Cordeiro, um microempresário conhecido como "Irmão Simpson" e que depois seria apontado pela investigação como um dos chefes da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) no Ceará.

O celular do homem foi imediatamente apreendido. Depois, os policiais vasculharam os contatos e as mensagens que Simpson trocara em grupos de WhatsApp. O material encontrado no aparelho levaria a prisão do empreendedor e de outras 219 pessoas nos meses seguintes, todas sob acusação de pertencerem ao PCC, grupo criminosos que surgiu nos presídios de São Paulo e se espalhou pelo Brasil.

Mas, segundo a Justiça, os policiais da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) cometeram duas irregularidades que colocaram toda a operação em cheque: invadiram a casa de James Cordeiro sem mandado judicial e não tinham autorização da Justiça para acessar os dados de seu celular.

O resultado do "erro" só chegou em maio deste ano: toda a investigação, prisões e condenações foram anuladas pelo Tribunal de Justiça do Ceará (TJ-CE), levando à soltura do "Irmão Simpson" e mais 138 pessoas.

Desde o início, a operação policial "Aditum 3" foi anunciada como um duro golpe da polícia na facção — uma das três que controlam o crime organizado no Ceará, junto ao Comando Vermelho (CV) e aos Guardiões do Estado (GDE).

Segundo a denúncia do Ministério Público (MP), no celular de Simpson havia um grupo de WhatsApp com 400 membros do PCC. Desses, "240 foram identificados, sendo 46 lideranças, dois suspeitos de ocuparem cargos de confiança e 192 membros".

Havia até fichas com o nome dos inscritos na quadrilha, apelido, bairro de origem, data do "batismo" na facção, número de matrícula e "padrinhos". E, nos grupos, supostos integrantes decidiam até se uma pessoa deveria ser assassinada ou não.

Nos meses seguintes, 219 pessoas foram presas e acusadas de integrarem a organização criminosa.

Simpson foi condenado em primeira instância a 12 anos e seis meses de reclusão em regime fechado. Só foi solto neste ano, depois da anulação de todo o processo pela Justiça.

Na denúncia, o MP apontou que ele usava sua "condição de microempresário do ramo de festas e buffet para passar despercebido e se inserir na sociedade". Ele teria entrado na quadrilha ao ser "batizado" por dois "padrinhos" quando esteve preso em uma cadeia no interior do Estado.

"(Ele) descreveu seu papel na mencionada facção como 'geral do estado', que consiste em propagar a disciplina e a ideologia da facção dentro dos presídios e para os integrantes que se encontram soltos. Proclama possuir funções específicas e de destaque", narra a denúncia.

Segundo a investigação, o réu se comunicava com outros chefes do PCC por meio de conferências telefônicas, pelas quais "são tratados assuntos diversos sobre acontecimentos envolvendo membros da facção, tais como: cobranças de dívidas, batismos de novos membros, atualização de cadastro de membros, e as demais decisões."

'Voluntariamente'


(Crédito da foto: Getty Images)

O caso começou no final de dezembro de 2018. A Polícia Civil afirmou que recebeu uma "denúncia anônima" de que um homem conhecido como "Irmão Simpson", morador de uma casa em uma vila de Fortaleza, era um traficante de drogas e ocupava a função de "conselheiro geral" do PCC no Ceará.

O Ministério Público afirmou que os policiais, ao chegarem ao local, encontraram "os portões da vila e da casa abertos". Quando entraram, viram um pó branco, duas balanças de precisão e comprovantes bancários que seriam oriundos do tráfico de drogas.

A Constituição determina que a polícia só pode entrar em uma casa com consentimento do morador ou em posse de um mandado judicial. Mas há exceções, como indícios claros de que algum crime está sendo cometido, como um homicídio, ou para prestar socorro.

"Se os policiais tivessem feito campana na frente da casa poderiam ter elementos para pedir um mandado de buscas para a Justiça. Mas eles só disseram que receberam uma denúncia anônima, e isso não é um elemento que justifica a entrada", explica um defensor público que atuou no caso — ele pediu para não ser identificado nesta reportagem.

Embora o juiz de primeira instância não tenha considerado isso um problema, os desembargadores do TJ-CE concordaram com a tese da Defensoria Pública. "Nesse caso se observa situação de flagrante nulidade absoluta, na medida em que se constata que houve violação injustificada do domicílio do réu", escreveram.

"Fica evidente que a diligência policial foi originada tão somente em virtude de uma denúncia anônima, não tendo sido mencionada a existência de qualquer investigação para apurar a ocorrência do comércio espúrio na localidade ou para monitorar as ações do acusado", disseram os magistrados.

Outro ponto crucial foi o celular.

Os policiais encontram Simpson com um aparelho. "O denunciado voluntariamente teria fornecido a senha para acesso às informações nele contidas", narra a denúncia do MP.

O PCC sugiu dentro dos presídios paulistas e se espalhou pelo Brasil (Reuters)

A palavra "voluntariamente" é a chave para entender por que o processo criminal foi anulado quase quatro anos depois.

O juiz de primeira instância considerou que o microempresário de fato forneceu a senha de seu celular aos agentes.

Mas, na segunda, os desembargadores disseram que todos os dados extraídos do aparelho foram obtidos ilegalmente, porque a polícia não tinha autorização judicial para acessar o celular, como manda a lei.

"Eles consideraram que não fazia sentido o réu ter dado sua senha voluntariamente. Por que ele produziria provas contra ele mesmo? A denúncia também não explica em que circunstâncias isso aconteceu", diz o defensor.

O tribunal então inocentou o microempresário por conta das ilegalidades, o que gerou um efeito cascata nos outros processos que se seguiram.

'Frutos da árvore envenenada'

O argumento seguiu uma teoria jurídica conhecida como "frutos da árvore envenenada". Ela sustenta que se a prova de um crime foi obtida de maneira ilícita, isso contamina todo o processo e invalida outras evidências — ou seja, uma árvore envenenada só dá frutos envenenados.

"Não é apenas uma elaboração teórica, mas uma determinação expressa do Código Processo Penal", explica Maíra Zapater, professora de Direito Penal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

"A lei diz que tudo o que decorre de uma prova ilícita é nulo. Esse é um limite que se coloca para que o Estado investigue um cidadão dentro da lei, que não seja por meio de tortura, por exemplo, ou com invasão de domicílio."

Mas nem sempre a Justiça brasileira segue essa determinação, segundo defensores e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Condenações de réus que tiveram suas casas invadidas por policiais sem mandado, por exemplo, costumam chegar a cortes superiores, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ).

"É muito frequente o uso de provas ilícitas nos processos penais no Brasil. Muitas vezes, isso só é discutido quando o processo chega em tribunais superiores. Quando aplicam a lei, todo aquele conteúdo probatório precisa ser refeito", afirma Zapater.

No caso cearense, os desembargadores disseram que os policiais deveriam ter investigado o empresário antes de entrar na casa dele, e que um pedido de autorização judicial provavelmente seria atendido.

"Teria sido possível obter as provas necessárias validamente para instruir a ação", escreveram.

Segundo eles, os policiais fizeram uma "investigação especulativa, sem objetivo certo ou declarado, que 'lançou' suas redes com a esperança de 'pescar' qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação."

O Ministério Público não recorreu da decisão, e o processo foi encerrado.

Em nota à BBC News Brasil, a Polícia Civil do Ceará afirmou que a operação "Aditum 3" respeitou "as normas do Código de Processo Penal, através de diligências policiais, levantamentos de campo e constatação de denúncias sigilosas da população."

E continuou: "Cabe destacar que o argumento utilizado pelo Poder Judiciário se baseou em um entendimento, ainda não consolidado e vinculante, que somente passou a ser utilizado no início deste ano".

Tribunal do crime

O microempresário foi acusado de participar de 'tribunais do crime', quando membros da facção decidem se uma pessoa deve ou não ser assassinada (Getty Images)

Na denúncia, o MP acusou Simpson de participar dos chamados "tribunais do crime", quando membros de facções decidem em conjunto qual seria a punição para alguém.

Em uma das conversas, Simpson e outros homens discutiram se um rapaz deveria ser assassinado — ele fora acusado de estuprar uma mulher na periferia de Fortaleza. Depois do apelo da mãe do jovem e de um morador do bairro, eles desistiram de cometer o crime.

Em outra discussão, supostos integrantes do PCC, entre eles o microempresário, foram cobrados por uma mulher cujo marido havia sido assassinado por criminosos da quadrilha rival, os Guardiões de Estado. Ela pedia proteção à família, que estava sendo ameaçada.

Relatos como esses e outros dados do celular de James Machado Cordeiro levaram a prisão dele, de 216 homens e mais três mulheres.

A Justiça dividiu os processos em grupos de 10 a 15 réus, mas todos foram absolvidos de serem membros da facção depois da decisão sobre Simpson em maio deste ano. Essas ações secundárias eram os "frutos" da "árvore envenenada" do processo anterior — ou seja, eles foram anulados pela Justiça.

Ao todo, 138 pessoas foram soltas nos últimos meses — o restante cumpre penas por outras condenações.

Quando foram detidos, todos prestaram depoimento à polícia. A grande maioria já tinha cumprido pena em alguma prisão do Ceará — grande parte das cadeias do Estado nordestino é dominada por alguma facção.

Mas a maioria negou ter ligação com a quadrilha, segundo os testemunhos anexados ao processo. Outros disseram que só entraram para a facção para ter proteção nos presídios — um deles relatou que foi obrigado a se filiar, pois "em caso contrário, seria morto."

Um dos acusados, por exemplo, afirmou que o PCC não fazia grandes exigências para batizar novos membros no Ceará. "Só pediam o nome completo, o bairro, e a caixinha", disse.

"Caixinha" é a contribuição que os integrantes têm de pagar mensalmente. Segundo os depoimentos, a taxa variava entre R$ 20 e R$ 30, mas o valor "dependia da situação financeira do preso".

Outro réu contou ter conhecido membros do PCC ao ser mandado para um presídio dominado pela organização. "A depender da cadeia onde você entra, vai para um lado ou para o outro", disse, em referência às outras facções. Mas ele negou a filiação. "Eles exigem que você mate, roube. Falam um monte de baboseiras para te convencer", disse.

Em outro caso, um homem reconheceu sua inscrição, mas disse que isso não rendia muito dinheiro. O que ganhava com o tráfico de drogas só "servia para a subsistência" e para criar uma filha bebê, disse. Embora o PCC exigisse 30% de seu lucro, "não pago nada, porque não sobra nada."

Já uma mulher, mãe de um bebê nascido um mês antes de sua prisão, contou ter feito parte da quadrilha por alguns meses por ordem do ex-marido, que a obrigava a transportar drogas.

"Eu fugi para outro bairro, pois não aguentava mais fazer tudo o que ele mandava. Ele me ameaçou de morte. Fugi dele e da facção", relatou.

Para um defensor que atuou nos processos, a investigação e a denúncia do MP não conseguiram demonstrar como cada um dos acusados atuava na organização.

"Não ficou provado qual era o papel de cada um, quais crimes eles cometeram, o que eles faziam dentro da facção...", disse.

Para outra defensora, que também pediu anonimato, "basicamente, as pessoas foram acusadas porque estavam na lista de contatos do empresário. Em alguns casos havia fotos com eles fazendo símbolos e gestos em alusão à organização, mas não havia outras provas robustas para condenar. O MP sequer recorreu", afirma.

Em nota à reportagem, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará afirmou que a operação Aditum 3 "foi fundamental para a desarticulação da estrutura de uma organização criminosa e as capturas de seus integrantes envolvidos em homicídios, tráfico de drogas, associação para o tráfico e lavagem de dinheiro no Estado."

Facções no Ceará

Caminhões também foram alvo de ataques incendiários na capital cearense em janeiro de 2019 (Crédito da foto: Agencia France Press / AFP)

O PCC divide e disputa o controle do crime organizado no Ceará com outras duas facções, o carioca Comando Vermelho e a local GDE — essa última surgiu em 2016, em contraposição aos dois grupos nacionais.

Nos últimos anos, houve episódios de violência atribuídos às quadrilhas, como assassinatos em série, além de ataques a ônibus e a prédios públicos.

Segundo Luiz Fábio Paiva, coordenador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC), as facções atuam em diversas frentes no Estado: tráfico de drogas e de armas, roubos de carga, assaltos a bancos, venda de serviços em bairros da periferia e extorsão de comerciantes.

"Já tivemos períodos de enfrentamento entre essas facções, gerando violência e assassinatos. Mas hoje há consolidação dos grupos nacionais, pois a facção local, a GDE, não teve força e estrutura para se tornar hegemônica como pretendia", diz.

Ele explica que há diferentes níveis de vinculação às organizações — pessoas de fato envolvidas com ações criminosas e outros que "vestem a camisa" por proteção ou proximidade geográfica.

"Há pessoas que se dizem do PCC porque moram em um bairro controlado por ele, mas isso não significa que elas tenham uma ligação estreita com o grupo, e que participam ou planejam atividades criminosas. Funciona mais ou menos como vestir a camisa de uma torcida organizada", diz.

"Há outros que entram para se proteger na cadeia ou mesmo no território onde vive. Às vezes a pessoa se filia para não ser assassinado por membros da própria facção. Ou seja, elas vendem proteção contra elas mesmas", afirma.

Em nota à reportagem, a Polícia Civil cearense disse que, nos últimos quatro anos, "um total de R$ 187 milhões em bens pertencentes a organizações criminosas foram confiscados, o que fortalece o trabalho de descapitalização desses grupos, por meio das ações de inteligências e de investigação."

Segundo a pasta da Segurança Pública, o número de homicídios diminuiu 18,3% no Ceará no ano passado em relação a 2020. Ao todo, 3.299 pessoas foram assassinadas no Estado em 2021.

Leandro Machado para a BBC News em São Paulo.  Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62654177 - (26.08.22)

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Tebet promete acabar com reeleição, critica polarização e defende desmatamento zero da Amazônia

Candidata ressalta ausência de Lula e Bolsonaro em sabatina do GLOBO, Valor e CBN: 'Os dois não têm coragem por não terem proposta'

Em entrevista, Tebet promete acabar com reeleição, critica polarização e defende desmatamento zero da Amazônia Simone Tebet na sabatiba do O GLOBO, Valor e CBN Brenno Carvalho / Agência O Globo

Consolidada em quarto lugar nas pesquisas de intenção de voto, a candidata da terceira via à Presidência Simone Tebet (MDB) fez duras críticas à polarização das eleições entre Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e à ausência de ambos na sabatina promovida, nesta quinta-feira, pelo GLOBO, Valor e CBN.

Na entrevista, Tebet garantiu ainda que, caso eleita, vai acabar com a reeleição. Ela condenou os governos do PT que fizeram de tudo para continuar no poder, citando casos como o mensalão e o petrolão.

— Quero apresentar propostas reais e acabar com essa polarização que está levando o Brasil para um populismo. Os dois que mais pontuam não estão tendo coragem de se apresentar ao Brasil, porque não têm proposta. Eles têm projeto de poder, não de país — disse a candidata.

Entre suas bandeiras para conquistar o eleitor que ainda está indeciso, Tebet destacou a proposta de desmatamento ilegal zero da Amazônia, a defesa do investimento em Ciência, Tecnologia e Inovação fora do teto de gastos e a manutenção de estatais importantes e superavitárias, como a Petrobras.

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A candidata manteve um discurso mais conservador ao tratar de aborto — só é a favor dos casos previstos em lei — e feminismo. Tebet reafirmou que a legalização ampla do aborto não tem condições de passar no Congresso.

Confira os principais momentos da entrevista:

'Sou liberal na economia, mas não sou fiscalista sem alma'

Apesar de ser a favor do teto de gastos implementado nos últimos governos, Tebet pretende tratar Ciência, Tecnologia e Inovação como investimento. Segundo a candidata, esse setor não pode ser considerado gasto.

— O Brasil precisa voltar a crescer. Brasil não cresce sem indústria. Nos últimos 15 anos, tivemos decréscimo da participação da indústria. Temos que investir muito em agenda de tecnologia e produtividade. Garantindo ensino médio de qualidade para que o jovem esteja preparado para produzir bem e receber melhores salários. E por outro lado, garantir minimamente condições para que indústria possa produzir. É possível enxugar a máquina sem furar o teto, a única questão é a Ciência, Tecnologia e Inovação. Não podemos aceitar que isso seja custo, é investimento, isso é muito claro — declarou.

Candidata a presidente, Simone Tebet é entrevistada no GLOBO — Foto: Brenno Carvalho/Agência O Globo

A senadora também se posicionou contra a privatização da Petrobras e criticou o ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes:

— Sou liberal na economia, mas não sou nem fiscalista sem alma e muito menos me aproximo desse pseudo liberalismo do atual ministro da economia — criticou.

Simone Tebet na sabatiba do O GLOBO, Valor e CBN — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

Tebet explicou que são necessários critérios no processo de privatização de estatais, destacando que há as deficitárias e as superavitárias.

— Temos mais ou menos 49 estatais, mais de 100 subsidiárias. Queremos critérios, não é privatizar por privatizar. Não é Estado mínimo ou máximo, é aquilo que ele se propõe a fazer: regular o mercado, fiscalizar e controlar, mas o grande papel do Estado é prestar serviço de qualidade à população. Qual é a grande responsabilidade do Estado? Garantir futuro do Brasil com uma segurança de qualidade, investir em saúde pública, habitação, em segurança pública. As deficitárias, que não são de estratégia nacional, vamos privatizar — disse.

Terceira via

Mesmo com o baixo percentual de intenção de votos nas pesquisas atuais, Simone Tebet afirmou acreditar haver espaço para uma candidatura fora do atual cenário polarizado entre Lula e Bolsonaro, principalmente pelo alto número de indecisos.

— Um terço do eleitor ainda não fez sua escolha. Essa é uma campanha curta, mas é uma campanha sim polarizada. Estamos com medo votando em um para não ter o outro. É uma campanha do ódio, da segregação, da polarização e do extremismo. Uma campanha hoje em que os dois mais rejeitados se despontam e é ai que nós vamos nos apresentar — disse.

A senadora criticou a desistência de outras candidaturas tidas como terceira via ainda no ano passado.

— No desespero, jogaram a toalha muito cedo em relação à terceira via. Tínhamos oito pré-candidatos, todos com grandes nomes e eu era café com leite, era a "azarona", o azarão do processo. Não aceito o Brasil na maior crise do país ter que escolher o menos pior. Isso não vai dar certo. Qualquer um que ganhar vai arrastar o segundo turno para o dia 31 de dezembro de 2026. Não passa reforma, tudo vai ser difícil — argumenta.

'Sou contra invasão de qualquer lado'

Sobre as invasões em áreas indígenas demarcadas e não demarcadas na Amazônia, Tebet foi taxativa:

— Sou contra invasão de qualquer lado. Tanto a invasão na Amazônia de áreas públicas de grileiros, mineradores ilegais, invasores de áreas públicas que desmatam a Amazônia. E, portanto, no meu governo, vai ser desmatamento ilegal zero da Amazônia e dos biomas brasileiros porque venho do Pantanal e sei o que está acontecendo inclusive no meu bioma. Tudo se resolve dentro da lei, com diálogo,moderação e equilíbrio. Sou a favor de toda demarcação de terra indígena, mas sou contra toda invasão dessas áreas antes, seja por um lado, seja por outro — disse a senadora.

Com relação ao meio ambiente, Tebet afirma que é possível colocar de pé o projeto do desmatamento ilegal zero da Amazônia e justifica a ausência do Cerrado em seu plano de governo. Esse é o bioma mais afetado pelo desmatamento na região Norte e Centro-Oeste do país.

— O desmatamento ilegal é zero. Só isso já resolve o problema com o Acordo de Paris. Se é ilegal, não pode servir para o Cerrado, para a Caatinga, para os Pampas gaúchos, para nada. Temos que fazer duas distinções: o desmatamento ilegal é responsável por praticamente 98% dos problemas, inclusive de emissão de CO2. Esse é o objetivo central. A partir daí é uma discussão com o Congresso Nacional de legislação. Meio ambiente é vida, ou entendemos isso ou as portas se fecham para o Brasil — justificou.

Projetos para educação

Tebet destacou a reforma feita pelo ex-presidente Michel Temer no ensino médio, e que não foi totalmente implementada. Ainda prometeu garantir período integral aos jovens.

— No ensino médio, é colocar para funcionar a reforma do ensino médio. Toda escola estadual que garantir período integral para os nosso jovens, vai ter R$ 2 mil reais por aluno pago para o estado. Isso não é ideia minha, está lá (na reforma do ensino médio). A história vai reconhecer a maior reforma que o presidente Temer fez, que foi a reforma do ensino médio no Brasil, que vai ser implementada pelo nosso governo no ano que vem — garante.

No projeto de governo, a candidata ressaltou ainda a poupança jovem que será de responsabilidade do governo.

— Vamos depositar, todo final do ano, um dinheiro para cada ano que jovem concluir no Ensino Médio: o primeiro ano, o segundo e o terceiro. No final, ele vai tirar esse dinheiro para comprar um celular novo, para dar entrada em uma moto ou para fazer a viagem que ele quiser, mas é para estudar. Nós já temos recursos, não tem a ver com o teto, o dinheiro da educação está fora do teto. Isso está muito bem organizado pelos melhores economistas liberais do Brasil. Acredito que a gente consiga chegar, em três anos, a algo em torno dos R$ 4,5 mil. Estando na poupança, a gente não sabe o que renderia, mas é um valor para fazer o que ele quiser — afirmou.

Orçamento secreto

Questionada sobre o orçamento secreto, Tebet prometeu dar mais transparência e detalhar as aplicações dos valores destinados. Porém, não pretende acabar com as emendas de relator.

— Temos que dar transparência. O político só tem medo de uma coisa: o povo, o que o povo vai dizer. Quando você der a transparência, com uma canetada, para o orçamento secreto, você vai ver quem é que realmente levou esse dinheiro mas foi bem aplicado, sem problemas, mas a maioria desses recursos foi para os rincões mais distantes do Nordeste onde o serviço não foi executado — propõe.

'Sou vítima de misoginia e violência política quase todo dia'

Apesar de sofrer com a misoginia na política, Tebet não considerou misógino o comportamento dos seus correligionários em relação a sua aparência no lançamento de candidatura. Na ocasião, alguns políticos disseram ter prestado atenção na forma como ela e sua vice, Mara Gabrilli (PSDB), se produziram para o evento.

A candidata, inclusive, relembrou que o lema da sua campanha é "Com amor e com coragem", afirmando que o Brasil precisa de uma mulher para "arrumar a casa".

— Não tive problema em relação a isso, embora eu combata qualquer forma de misoginia. Me senti muito bem acolhida por eles porque foram os primeiros a entender o dever de haver uma chama 100% feminina. Eles podem ter exagerado sim (nos comentários), mas foram extremamente corretos na condução. Mas o que falaram sobre o amor, eles tem razão. Ninguém ama como uma mulher, ninguém ama como uma mãe. E é disso que o Brasil tá precisando, de uma mãe ou uma mulher para arrumar a casa. Mas sou vítima de misoginia e de violência política quase todo dia — falou.

Tebet aproveitou para alfinetar a postura do presidente Jair Bolsonaro para destacar a falta de cuidado dele com a população.

— Nunca imaginei que no momento que o Brasil mais precisasse do seu presidente, que ele virasse as costas para o seu povo, fazendo brincadeira com a dor alheia, com os momentos de falta de ar de alguém acometido pela Covid. Atrasando 45 dias a copra de vacinas, querendo comprar uma vacina que não era eficiente com suspeitas gravíssimas de corrupção. Se quiser me processa de novo, fui processada por (falar) isso. Eu estou do lado da verdade. Essa falta de sensibilidade, essa falta empatia foi uma das razões que me moveu a sair candidata à Presidência da República — disse.

'Não sou candidata à reeleição'

A candidata garantiu que não irá se candidatar à reeleição caso seja eleita. Tebet afirmou que irá levar um documento ao TSE se comprometendo com o fim da reeleição. A senadora afirmou que era favorável ao segundo mandato, mas mudou de ideia após os governos do PT:

— Eu era a favor da reeleição. Até entender que o Lula criou o mensalão para se reeleger, depois o petrolão... A Dilma quase quebrou uma estatal. Agora, o presidente Bolsonaro e sua trupe, o orçamento secreto. É uma ganância de poder, numa escalada de corrupção virando as costas para o povo brasileiro. Aí me veio a luz quando Temer assumiu. Ele fez, em dois anos, as reformas que ninguém tinha feito. Não é porque ele é melhor, e ele é um grande estadista. Não havia uma perspectiva no Congresso Nacional de que ele ia continuar — afirma.

Ameaça de golpe e segurança das urnas

Tebet afirmou que não acredita na possibilidade de um golpe por parte do presidente Jair Bolsonaro, caso ele não vença as eleições.

— Todos nós temos que cumprir a Constituição, fizemos um juramento quando entramos na vida pública. Eu estou pronta para isso, sou escudo em qualquer momento. Ninguém mais vai fechar o Congresso Nacional, ninguém mais vai fechar a casa mais democrática do Brasil, caixa de ressonância da população brasileira. Eu acredito nas instituições, que elas estão fortes — avalia.

Anos atrás, Tebet também questionou a segurança das urnas eletrônicas. Porém, mudou de opinião e diz ser a primeira a defender o processo eleitoral.

— Em 2015, todos nós estávamos dizendo isso. Naquele momento, falhou uma interlocução com o próprio TSE. Sou da época analógica, não sabia naquela época sequer que as urnas não estavam ligadas na internet, mas não tenho compromisso com erros. Dos 81 senadores, se não me engano, 50 votaram assim, não foi qualquer coisa. É evolução, somos da geração da fita cassete. Hoje sou a primeira a defender. Foi feita auditagem, colocaram hackers para tentar furar a segurança das urnas, não conseguiram. O TSE esteve no Congresso Nacional, as urnas são absolutamente seguras — ponderou.

Aborto só nos casos previstos na lei

Auto-declarada progressista, Tebet foi questionada a respeito da sua posição contrária à legalização do aborto. Em entrevista recente, a candidata afirmou que o Brasil não está pronto para discutir o tema profundamente.

— Conhecendo o Congresso Nacional, um projeto de legalização do aborto não passa, inclusive porque a bancada feminina no Senado, hoje, não aceita. Sou contra o aborto a não ser nos casos previstos na legislação. A porta do SUS tem que estar aberta para toda mulher que foi estuprada e que tem o direito a abortar, assim como todo criança que sofreu pedofilia ou toda mãe, que em situação de risco à própria vida, opte por abortar do que perder a própria vida. Nos casos legais, tivemos retrocessos neste governo. A política pública tem que estar aberta para cumprir a lei. E vai ter absoluta certeza que a saúde pública, o SUS do Brasil, estará aberto para dar condições igualitárias para as mulheres ricas, para as mulheres humildes, a terem o seu direito previsto na Constituição e no Código Penal Brasil — explicou.

Sabatinas

Na sexta-feira, será a vez da sabatina com o candidato Ciro Gomes (PDT), que será conduzida por alguns dos mais importantes jornalistas do país, colunistas dos três veículos: Lauro Jardim, Merval Pereira, Vera Magalhães, Milton Jung, Maria Cristina Fernandes e Fernando Exman. Foram convidados para as sabatinas os cinco candidatos melhor posicionados na última pesquisa Datafolha, com pontuação mínima de 1%. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) não confirmaram presença. Na quarta-feira, Vera Lúcia (PSTU) foi a entrevistada; na quinta-feira, Simone Tebet (PDT).

As duas próximas semanas serão dedicadas às sabatinas relativas aos governos do Rio, com participação também do jornal EXTRA, e de Minas Gerais. No dia 29 de agosto, segunda-feira, Rodrigo Neves (PDT) será o primeiro candidato da corrida fluminense, seguido na terça-feira por Marcelo Freixo (PSB) e por Cláudio Castro (PL), na quarta-feira.

No dia 5 de setembro, os jornais entrevistam Alexandre Kalil (PSD), seguido de Romeu Zema (Novo), na terça-feira, 6. Em função do Dia da Independência, a sabatina com Carlos Viana (PL) será na quinta-feira, dia 8.

Também já foram realizadas sabatinas com os candidatos ao governo de São Paulo. Rodrigo Garcia (PSDB) foi ouvido no dia 15 de agosto, Tarcísio de Freitas (Republicanos) no dia 16 e Fernando Haddad (PT) no dia 17.

Debates

Em setembro, O GLOBO, Valor e CBN também promoverão debates aos governos de Minas Gerais (15/9), São Paulo (20/9) e Rio (22/9), este último também com participação do jornal EXTRA. Os eventos, que começarão às 10h, serão transmitidos pela rádio e pelas páginas e redes sociais dos veículos.

Para eles, estão convidados todos os candidatos cujas coligações tenham mais de cinco congressistas: Romeu Zema, Alexandre Kalil, Carlos Viana, Marcus Pestana (PSDB) e Lorene Figueiredo (PSOL), em Minas Gerais; Fernando Haddad, Tarcísio Freitas, Rodrigo Garcia, Elvis César (PDT) e Vinícius Poit (Novo), em São Paulo; e Cláudio Castro, Marcelo Freixo, Rodrigo Neves e Paulo Ganime (Novo), no Rio.

O Globo / Matéria da redação. Publicada orieginalmente em 25.08.22, às 16h30

Por que a defesa da democracia não basta?

Permaneceremos reféns de uma casta financeira de 'homens bons' intocáveis e inimputáveis?

O Latinobarómetro de 2021, a mais importante medição da satisfação dos latino-americanos com a democracia, evidenciou um amplo descontentamento da população.

O relatório mostrou que na região há um repúdio generalizado ao desempenho das elites (70% estão insatisfeitos com a atual gestão de seu país), apenas 22% afirmam que seus governantes se preocupam com os demais, e só 17% acreditam que a distribuição de riquezas de seus países é justa.

A pesquisa também evidenciou a deterioração democrática do Brasil sob a presidência de Jair Bolsonaro. Contra as ameaças golpistas de Bolsonaro e seus partidários, diferentes setores da sociedade têm se manifestado publicamente em defesa da democracia brasileira, sinalizando, inclusive, na direção de um voto plebiscitário já no primeiro turno das eleições presidenciais de outubro. Embora importante e necessária, trata-se de uma agenda defensiva, limitada aos contornos de um debate público pautado pela agenda destrutiva de Bolsonaro.

Trata-se de uma defesa da democracia que não se mostra capaz de dialogar com o desejo da população de mudanças profundas no país, incapaz de expor a farsa antissistêmica do bolsonarismo. E por quê?

Porque, simplesmente, não expõe e tampouco atinge os que, de fato, concentram o poder e sequestram qualquer possibilidade de mudança em favor das maiorias. Leia-se, a oligarquia financeira que drena cada vez maiores parcelas da renda da população, valendo-se, mais recentemente, das políticas ultra neoliberais de Bolsonaro.

Não por acaso, tais oligarquias, apoiadoras do governo Bolsonaro, são também hoje signatárias de manifestos e pronunciamentos públicos em favor da democracia. No debate atual, entre democratas e bolsonaristas, as oligarquias financeiras estão não apenas à salvo, como são, muitas vezes, protagonistas. Levando o argumento um pouco mais longe, a defesa da democracia, sem que se ponha em questão a hipertrofia do poder de tais oligarquias, corre o risco de se revelar, tal qual a defesa antissistêmica de Bolsonaro, uma farsa.

O ponto aqui não é o de fulanizar a oligarquia financeira. Nem tampouco de relembrar, conforme o relatório "A distância que nos une" da Oxfam de 2017, que seis brasileiros têm uma riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país e que os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda dos demais 95%.

No âmbito global, nas duas décadas do século XXI, a dominância financeira no interior da dinâmica capitalista vem ganhando uma magnitude sem precedentes, algo que se acelerou no pós-crise de 2008.

De fato, relatório de 2021 do Conselho de Estabilidade Financeira, criado pelo G20 para acompanhar o sistema financeiro internacional no pós-crise, revela que o valor total dos ativos financeiros globais saltou de 230, em 2009, para mais de 400 trilhões de dólares, em 2019, alcançando quase cinco vezes o PIB mundial daquele ano.

Considerada por liberais, mais ou menos ortodoxos, apenas um excesso ou uma falha de mercado, tal lógica rentista-financeira tem dominado, igualmente, a dinâmica do nosso capitalismo periférico e feito avançar a concentração da propriedade e renda. Estudo recente do Fonacate mostra que no Brasil, em 2020, de cada um real alocado em investimento ou formação bruta de capital, existem mais de seis reais aplicados em ativos financeiros (títulos de dívida pública ou privada, ações de empresas, contratos de câmbio e commodities).

É PRECISO DEMOCRATIZAR A ECONOMIA E AS FINANÇAS

Mas de onde os agentes financeiros extraem a sua enorme rentabilidade? Em 2021, 60% do estoque total de ativos financeiros no Brasil estavam aplicados em títulos da dívida pública. Algo que, certamente, explica a razão de termos a maior taxa de juros real da economia global, a dita autonomia do Banco Central e o estrangulamento dos gastos sociais com o "teto de gastos". Um assalto à poupança pública acompanhado da precarização de direitos.

Por outra parte, estes mesmos agentes financeiros buscam avançar seus "investimentos" em políticas sociais (previdência, saúde, educação, energia e saneamento). Na privatização da Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro), ocorrida em abril de 2021, a grande vitoriosa do leilão foi a Águas do Rio, que pertence à AEGEA, que, por sua vez, é controlada por instituições financeiras, a exemplo do Banco Itaú e Fundo Soberano de Cingapura.

Mais recentemente, com a privatização da Eletrobras, o maior controlador privado da empresa passou a ser a 3G Capital, do Jorge Paulo Lemann, o brasileiro mais rico segundo a Forbes. Não haverá melhor forma de lastrear a rentabilidade financeira do que acessando serviços públicos tarifados, capturando também por aí a renda do trabalho.

Tal lógica financeira, especulativa, que tem seus operadores privilegiados nos grandes bancos e fundos de investimento, comanda hoje também os grandes grupos privados não financeiros, mas que possuem na sua estrutura societária instituições financeiras – como no caso da mineradora Vale, que tem o Banco Bradesco como um dos seus controladores. Assim, grandes corporações têm parte significativa dos seus lucros voltada ao pagamento de dividendos aos seus acionistas, à recompra de ações da própria empresa e às aplicações financeiras.

Tais comportamentos desestimulam o investimento produtivo e alteram as práticas de gestão em favor da alocação e rentabilização financeiras, redundando em pressão dos acionistas, proprietários, por uma extração máxima de valor do trabalho e espoliação da natureza. Daí a legalização do trabalho precário, pela reforma trabalhista de Michel Temer, e as pressões, diuturnas, por flexibilização do direito ambiental e dos povos indígenas.

Com a renda comprimida, destituída de direitos e com uma reprodução cada vez mais a cargo do setor privado, a maioria da população se vê refém do endividamento, que já atinge mais de 77% das famílias brasileiras. Dívidas que alimentam ainda mais a predação usurária, especulativa, dos rentistas.

A oligarquia financeira, que vem posando hoje de democrata é a mesma que opera e se beneficia das políticas macroeconômicas, fiscais, previdenciárias, trabalhistas e de privatização dos últimos governos, verdadeiras máquinas de moer gente.

Antes da independência brasileira, havia os chamados "homens bons", grandes proprietários de terra e gentes que cuidavam da administração local. Será que, após 200 anos, permaneceremos reféns, agora de uma casta financeira, de "novos homens bons" a comandarem toda a República, uma espécie de intocáveis, inimputáveis?

João Roberto Lopes Pinto, o autor deste artigo, é Professor de ciência política da Unirio e da PUC-Rio, e coordenador do Instituto Mais Democracia. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 25.08.22, às 8h00.

Bolsonaro critica ação da PF por medo de faltar patrocínio a atos golpistas

O presidente da República saiu, nesta quarta (24) em defesa de empresários bolsonaristas que foram alvo de operação da Polícia Federal, autorizada pelo STF, em meio à investigação do financiamento de ataques à democracia. 

Mostra-se, assim, preocupado com o patrocínio às micaretas golpistas que ele planeja para o 7 de Setembro.

Para tanto, cutucou os signatários da carta e do manifesto pela democracia e em defesa do sistema eleitoral brasileiro, que foram lançados na Faculdade de Direito da USP, em 11 de agosto, reunindo sociedade civil, acadêmicos e empresários.

"Somos ainda um país livre. Eu pergunto a vocês: 'O que aconteceu no tocante aos empresários agora?' Esses oito empresários. Dois eu tenho contato com eles, o Luciano Hang [Havan] e o Meyer Nigri [Tecnisa]. Cadê essa turminha da carta pela democracia? A gente sabe que, época de campanha, continuam lobos em pele de cordeiro. Acreditar que eles são democratas e nós não somos? Cadê a turminha da carta pela democracia?", afirmou em comício em Betim (MG).

Como escrevi aqui, nesta terça, a operação da PF é fundamental para entender se há ricos empresários apoiando ações antidemocráticas a serem realizadas no Bicentenário da Independência da mesma forma que houve aqueles que as bancaram no 7 de Setembro do ano passado. De aluguel de ônibus para transporte de manifestantes, fornecimento de carros de som e produção de material de divulgação - além de impulsionamento dos convites em redes sociais.

Vale ressaltar que golpismo deve ser investigado e, caso detectado, desarticulado no momento em que está sendo construído. Da última vez, isso não foi feito, e tivemos uma noite que durou 21 anos.

Por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF, além de mandados de busca e apreensão, também ocorreram o bloqueio de contas bancárias, a suspensão de contas em rede sociais, a quebra de sigilo bancário e a tomada de depoimentos.

Entre os alvos da operação, além de Hang e Nigri, estão José Isaac Peres (Multiplan), Ivan Wrobel (W3), José Koury (Barra World Shopping), André Tissot (Grupo Seerra), Marco Aurélio Raimundo (Mormai) e Afrânio Barreira (Coco Bambu).

A série de reportagens de Guilherme Amado, Bruna Lima e Edoardo Ghirotto, no portal Metrópoles, mostrou as entranhas do grupo "Empresários & Política", confirmando que uma parte da elite econômica está agarrada ao capitão não apenas para garantir vantagens econômicas, mas por cumplicidade ideológica. No grupo, houve de tudo, de defesa de golpe de Estado até sugestão de compra de votos.

A pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, Moraes arquivou o inquérito dos atos antidemocráticos que corria no Supremo, em 2021, e atingia em cheio apoiadores e aliados do presidente Jair Bolsonaro, inclusive empresários. Mas determinou a abertura de uma outra investigação sobre a existência de uma organização criminosa que opera na disseminação de notícias falsas na forma de milícias digitais.

As ações contra os empresários beberam nesse inquérito e também devem subsidiá-lo. Caso a investigação descubra que houve transferência de recursos ou pagamento de fornecedores, os empresários devem ser corresponsabilizados pela violência gerada. A ação, em si, contudo, já tem poder de reduzir o financiamento a um 7 de Setembro golpista.

Aras, amigo de Nigri e aliado de Bolsonaro, entrou em embate público com Moraes por conta da operação da PF.

É pitoresco, por fim, que o presidente da República chame "a turminha da carta pela democracia" para ajuda-lo no momento em que seus aliados empresários são investigados por atacar a democracia. Convoca, assim, quem defende a tolerância para ajudar a garantir tolerância à intolerância.

Basicamente apela para o "paradoxo da tolerância". O problema é que se uma sociedade tolerante aceita a intolerância como parte da liberdade de expressão ela pode vir a ser destruída pelos intolerantes. Como analisou o filósofo Karl Popper, a liberdade irrestrita leva ao fim da liberdade da mesma forma que a tolerância irrestrita pode levar ao fim da tolerância.

E defesa de golpe e de golpistas é algo que não pode ser tolerado, pelo bem da tolerância e da democracia.

Leonardo Sakamoto, o autor deste artigo, é colunista do UOL. Publicado originalmente em 24.08.22. às 18h17. Atualizado em 25.08.22, às 07h15.


Horário eleitoral vai de coadjuvante em 2018 a decisivo na eleição de 2022, avaliam campanhas

Marqueteiros desenvolvem estratégias para cativar eleitores indecisos, que, segundo analistas, recorrem menos às redes sociais; programação começa nesta sexta-feira no rádio e na TV

Simone Tebet aposta em imagem de uma chapa 100% feminina no horário eleitoral  Foto: MDB / Divulgação

Após chegar ao segundo turno em 2018 com um tempo irrisório de exposição no horário eleitoral gratuito na TV e no rádio - 8 segundos contra 5mins32 de Geraldo Alckmin, então no PSDB -, o presidente Jair Bolsonaro (PL) aposta agora todas as suas fichas nos 207 comerciais que serão distribuídos na programação das emissoras de sinal aberto para reduzir a vantagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com quem espera estar no 2° turno da disputa presidencial.

Apesar da ampliação do alcance das redes sociais, a TV e o rádio ainda são considerados por especialistas, políticos e marqueteiros de todas as campanhas os instrumentos mais poderosos do processo eleitoral, e por isso estão no centro das estratégias. O horário eleitoral estreia nesta sexta-feira, 26, com a divulgação da propaganda regional; no sábado, inicia a propaganda dos candidatos a presidente. Que, aliás, pode abrir com a participação de um candidato em prisão domiciliar.

Em conversas reservadas, os bolsonaristas admitem que o fato de Lula ter cerca de 80 inserções a mais no cômputo geral que o presidente é um ativo importante. A coligação Brasil da Esperança, de Lula, terá 3min39s em cada bloco e 286 inserções, segundo dados do TSE. Bolsonaro terá 2mins38s e 207 inserções.

Bolsonaristas admitem que Lula ter mais tempo de propaganda na TV é ativo importante Foto: Miguel SCHINCARIOL

“A TV vai decidir a eleição. Os indecisos que não votam nem em Lula nem em Bolsonaro se informam pela TV. Os eleitores que têm o voto mais consolidado é que recorrem às redes sociais”, disse o pesquisador Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, especialista em aferir a classe C.

Estratégias


Bolsonaristas admitem que Lula ter mais tempo de propaganda na TV é ativo importante Foto: Miguel SCHINCARIOL

No horário eleitoral, a campanha de Bolsonaro vai investir na imagem da primeira dama, Michelle Bolsonaro, e puxar o tema da economia para o centro do debate, além de reforçar o antagonismo com Lula, os valores da família e o patriotismo.

Marqueteiro da senadora Simone Tebet (MS), candidata do MDB à presidência, Felipe Soutello avalia que a TV foi decisiva em 2018, quando a facada em Bolsonaro em Juiz de Fora (MG) empurrou toda a mídia para o saguão do hospital onde estava o candidato.

Essa exposição, segundo ele, transformou Alckmin, dono do maior espaço na TV após fechar um acordo com o Centrão, em um nanico. “A exposição na mídia espontânea para o Bolsonaro foi enorme após a facada em 2018″, disse o publicitário.

A campanha de Simone Tebet aposta todas as suas fichas nas 184 inserções que ela terá direito na programação da TV aberta. Nesse caso, a estratégia é basicamente torná-la conhecida e reforçar a identidade de uma chapa 100% feminina - já que a senadora Mara Gabrilli (PSDB) é a candidata a vice.

Para Renato Meirelles, o fato de Lula ter mais inserções que Bolsonaro na TV pode fazer a diferença em uma disputa acirrada. “Vão ser comerciais onde o PT pode usar imagens de Bolsonaro e testar a lembrança afetiva do eleitor, além de mostrar o Alckmin como uma apólice de seguros do Lula, uma nova carta aos brasileiros”, disse o pesquisador.

Marqueteiro de João Doria em 2016, na disputa pela prefeitura, e de Alckmin em 2018, na eleição presidencial, o publicitário Lula Guimarães assumiu em 2022 a campanha de Soraya Thronicke (UB) à Presidência.

Sabatinas

Políticos afirmam que entrevista do presidente teve mais intervenções e ele, consequentemente, menos tempo de fala dentro dos 40 minutos do telejornal

Sem espaço nas sabatinas, entre elas a do Jornal Nacional, a candidata que chegou na última hora para substituir Luciano Bivar teve que montar uma estrutura de campanha em cima da hora.

Para o União Brasil, a TV, que deve consumir a maior parte dos R$ 60 milhões destinados para Soraya, é a única chance de a candidata se tornar conhecida. “A TV é o único veículo capaz de alcançar o Brasil inteiro em todos os segmentos. As redes sociais se tornaram bolhas”, disse Lula Guimarães.

Bate e assopra

Líder nas pesquisas, o ex-presidente Lula vai evitar o confronto no horário eleitoral, em um primeiro momento. Vale a regra comum entre os marqueteiros de campanha de que quem bate também ganha mais rejeição.

Por isso, o petista não deve lançar mão de uma artilharia mais pesada contra o presidente Bolsonaro em menções a escândalos do governo e o caso das “rachadinhas” investigado pelo Ministério Público do Rio.

Mesmo assim, as provocações não vão ficar de fora, apesar de sutis. Como mostrou a colunista Vera Rosa, o petista deve fazer menções mais discretas inclusive ao escândalo dos pastores no Ministério da Educação. Mesmo este gesto preocupa petistas, que preferem evitar o confronto.

Segundo um petista, deve passar uma “mensagem de esperança”. Nos bastidores, Lula, a direção do PT e o marqueteiro Sidônio Palmeira têm preferido focar a superação de problemas como a fome e o desemprego. Para isso, também vão recorrer a períodos de maior estabilidade dos dois primeiros governos petistas.

Há, dentro do partido, dúvidas sobre qual seria hoje o peso do horário eleitoral, se comparado à internet. Até hoje, petistas afirmam que o disparo de mensagens com notícias falsas teve peso relevante na derrota de Fernando Haddad (PT) para Bolsonaro.

Atualmente dividindo o comando da comunicação da campanha com o prefeito de Araraquara, Edinho Silva (PT), o ex-presidente do partido, Rui Falcão (PT) diz ao Estadão que a “TV tem grande importância, até porque também está conectada com as redes”. A respeito da mensagem que Lula deve passar na campanha, Falcão diz não ser “o caso de passar “spoilers””.

Em São Paulo o candidato do PSDB, o governador Rodrigo Garcia, deve ter a maior fatia do tempo de TV e aposta nisso para se consolidar como o adversário do ex-prefeito Haddad no 2° turno.

“A poluição das redes e as fake news fazem com que a sociedade cada vez mais se informe pelos canais tradicionais de comunicação. Pela imprensa, jornais e o programa eleitoral de TV. Acredito que com o horário eleitoral gratuito vai haver um interesse maior da sociedade para a campanha” , disse Garcia ao Estadão.

O ex-ministro Tarcísio de Freitas (Republicanos), candidato de Bolsonaro, rebate. “Tem um misto de TV e redes sociais, que terão uma importância muito grande. As pessoas estão muito conectadas na rede. O engajamento será muito grande. A diferença do Rodrigo será neutralizada pela capilaridade que temos nas redes sociais e a capacidade de mobilização, que é bem maior que a dele”.

Pedro Venceslau e Luiz Vassallo para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 25.08.22.

A herança maldita de R$ 430 bilhões

Medido em estudo da FGV, eis o tamanho do descalabro fiscal que Bolsonaro deixará para próximo governo; com isso, ganha força necessidade de licença temporária para aumentar gastos

O descalabro fiscal que o governo Jair Bolsonaro deixará como herança para quem vencer as eleições pode atingir inacreditáveis R$ 430 bilhões em 2023, o equivalente a 4,3% do Produto Interno Bruto (PIB). A estimativa foi calculada pelos economistas Braulio Borges e Manoel Pires e consta da edição de agosto do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). O número inclui despesas não cobertas no Orçamento e que colocam em dúvida o cumprimento do teto de gastos; propostas que reduzem a arrecadação e afetam o superávit primário; eventos com impacto financeiro negativo e que pioram o déficit nominal; e incertezas com o potencial de produzir impactos relevantes caso sejam materializadas. A manutenção do piso do Auxílio Brasil em R$ 600, o reajuste dos salários do funcionalismo público e a revisão das despesas discricionárias devem ultrapassar R$ 120 bilhões, valor para o qual não há cobertura e que exigirá uma sétima mudança no teto e na Constituição para que seja viabilizado. Tudo indica que o enterro do atual arcabouço fiscal é uma questão de tempo, independentemente do presidente que vier a ser eleito.

Nesse contexto, tem ganhado força a tese segundo a qual será necessário permitir uma licença temporária para aumentar o gasto público no ano que vem enquanto a equipe do futuro presidente elabora um novo regime fiscal, um entendimento que tem reverberado mesmo entre economistas que não costumam concordar em praticamente nada. Se há divergências a respeito da âncora a ser adotada, não restam dúvidas de que o teto deixou de servir como uma referência de austeridade para as contas nacionais. Eis um legado positivo – e por isso mesmo inesperado – gerado pelo atual governo: seu ímpeto destrutivo extrapolou todos os limites, a ponto de unir o País na busca de consensos para tirá-lo do buraco.

Como mostrou o Estadão, representantes de bancos e de fundos de investimento estão dispostos a aceitar uma ampliação do gasto público de até R$ 70 bilhões em 2023. O “Grupo dos Seis”, formado pelos economistas Bernard Appy, Pérsio Arida, Francisco Gaetani e Marcelo Medeiros, pelo advogado Carlos Ari Sundfeld e pelo cientista político Sérgio Fausto, sugeriu algo semelhante, mas limitado a R$ 100 bilhões, o equivalente a cerca de 1% do PIB. Técnicos do Tesouro Nacional propuseram a adoção de um regime de metas para a dívida bruta, a exemplo do sistema de bandas inflacionárias que orienta o trabalho do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC). Já o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa defendeu a definição de uma meta para o crescimento real do gasto primário – em vez de fixar um objetivo para o saldo entre receitas e despesas, excluídos os juros da dívida. Independentemente da âncora que vier a ser escolhida, fato é que ela precisa sinalizar um compromisso verdadeiro com a credibilidade fiscal no médio e longo prazos. O boletim da FGV Ibre faz um alerta: “Se esse for o caminho a ser seguido, é importante que se chegue a um bom acordo político porque o cenário de juros e inflação ainda requer muito cuidado”.

Um debate sério sobre a âncora fiscal merece ser tratado com prioridade na campanha eleitoral. Adotar políticas públicas que proporcionem dignidade e uma porta de saída a milhões de famílias vulneráveis e que garantam qualidade para a educação e a saúde passa necessariamente pelo resgate da responsabilidade fiscal, sem a qual o financiamento dessas ações se torna impossível. Um aspecto a ser considerado nas discussões é a construção de um arcabouço perene, que possa ser seguido pelo governo eleito em outubro e pelos que vierem a suceder-lhe no futuro, e que simbolize o abandono de manobras contábeis que não enganam ninguém. Superávits primários pontuais, gerados a partir de receitas extraordinárias, de calote nos precatórios e do efeito da inflação na arrecadação, não têm nenhum impacto na redução dos juros. Produzir uma deflação temporária e concentrada em preços administrados não convence nem o eleitor nem o mercado.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 25.08.22

Tchutchuca: ontologia e faniquito

De que modo podemos entender as fontes pulsionais de tamanho siricutico presidencial na saída do Palácio da Alvorada, na quinta-feira passada?

Na manhã de quinta-feira passada, um jovem ativista digital de direita, Wilker Leão, foi até a portaria do Palácio da Alvorada e xingou o presidente da República de “Tchutchuca do Centrão”. (A rima em “ão” não há de ser em vão.) O que veio na sequência foi uma arruaça lastimável, que todo mundo já viu no celular ou nos telejornais.

O presidente saía de sua residência para o expediente diário. O provocador, que se define nas redes como um “adepto do militarismo”, gritava repetidamente a palavra esdrúxula, tentando se aproximar do carro oficial do chefe de Estado. De celular em punho, filmava tudo. No muque, os seguranças procuravam contê-lo.

Enquanto transcorria o empurra-empurra, o governante ouviu a alcunha que lhe dirigiam e se irritou. Mandou parar o automóvel, saiu furibundo pela porta de trás e avançou na direção de Leão. Com uma das mãos, tentou agarrar o moço pelos colarinhos, mas não havia colarinho nenhum – a vítima vestia uma reles camiseta do São Paulo Futebol Clube, em cuja gola a iracunda autoridade fechou os dedos. Com a outra mão, o mandatário buscava arrancar o celular do são-paulino, intento no qual fracassou.

Não foi difícil de perceber que o governante estava possesso. Depois de contidos os ânimos de um e outro, é verdade, os dois até trocaram palavras duras entre si, sem se estapear, mas, naquele primeiro ato, quando irrompeu do veículo em estado colérico, o homem deu um chilique histórico.

Por que será? Já o chamaram de negacionista, de fascista, de genocida e ele apenas faz cara feia e resmunga, quando muito. Desta vez foi diferente. Por que um estrilo tão desmedido? De que modo podemos entender as fontes pulsionais de tamanho siricutico presidencial?

Essas perguntas nos conduzem necessariamente a uma reflexão acerca da essência do ente misterioso que responde pelo nome de – você já sabe – “tchutchuca”. O que define esse estranho ser? Em outras palavras, qual a sua natureza ôntica?

Na cultura funk, em que o termo se fixou para depois se popularizar, o ente foi consagrado por um hit, lançado há anos pelo grupo carioca denominado Bonde do Tigrão. A letra tem um jeito nada sublime de traduzir a afeição do poeta por sua musa: “Vem, vem, tchutchuca / Vem aqui pro seu tigrão / Vou te jogar na cama / E te dar muita pressão”. (Não, a rima em “ão” não há de ser em vão.) Tangendo sua lira de pancadão, o menestrel diz, então, que quer “um rala quente” e pede à sua amada que escute o “refrão”.

Já se falou bastante sobre o caráter onomatopaico do substantivo em questão. Sua sonoridade, sua prosódia, evoca o verbo “chuchar”, que é onomatopeia pura, sugerindo que o amor dos corpos é como um cilindro que suga um pistão. (Agora, a rima virá em profusão.) Essa metáfora mecânica de motor a combustão faz uma espécie de exaltação de uma forma de dominação que o macho exerce ao dar “pressão”, certo de que a mulher, tomada de paixão, sente prazer na servidão. O nome do macho é “tigrão”.

A “tchutchuca”, por definição, se deleita na submissão. Sua feminilidade reside na plena concessão, na aceitação, na passividade com sofreguidão, na objetificação sem restrição. Vai daí que o presidente aceitaria ser xingado de tudo, mas disso, não. Disso, nunca. Para piorar sua situação, a ofensa lhe soou ainda mais grave quando ele ouviu o complemento: “do Centrão”. Aí não.

Nesse ponto, é preciso ter em conta o peso insuportável do aumentativo masculino, em “ão”, para conferir um signo de hombridade ao que quer que seja. Especialmente na política. O Partido Comunista Brasileiro, por exemplo, o velho PCB, começou a ser chamado lá pelas tantas de “Partidão”. O apelido o tornou mais másculo, mais irrecorrível. O mesmo princípio linguístico valeu para a corrupção: um mensalinho seria suportável, mais ou menos como um chopinho, um torresminho – não um mensalão. Tendo sido chamado de mensalão, pelo simples sufixo, o episódio adquiriu algo de tenebroso, de apocalíptico, de escandalosão. Em matéria de perversidade, ou de perversão, perdeu apenas para o petrolão.

Para pesadelo do inquilino do Alvorada, o Centrão se chama Centrão, de modo retumbante, feito maldição, e, neste namoro, o dele com o Centrão, o papel que lhe cabe não é bem o de Tigrão. Haja danação.

Com isso, chegamos ao final da nossa brevíssima investigação ontológica. Resulta mais do que evidente que o xingamento dirigido ao sujeito que passava no automóvel é, antes de uma ofensa a ele, uma ofensa à condição feminina. A carga semântica do substantivo que deu título a este modesto artigo já traz, sem que se diga mais nada, um preconceito atávico de todo tamanho, um preconceitão: mulher é um ser subalterno, heterônomo, que se derrete ao sentir a pressão do machão.

Pois foi em nome do mesmo preconceito que veio o faniquito, como se o tal se pusesse em brios: “O quê? Você está me xingando de mulher? Vem cá, seu bestalhão!” Nesse instante mágico, a extrema-direita caiu na armadilha da extrema-direita. De supetão. Que serviço Leão prestou para a Nação.

Eugênio Bucci, o autor deste artigo, é Jornalista e Professor da Escola de Comunicações e Artes - ECA da Universidade de S. Paulo - USP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.08.22

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Ação sobre empresários visa estrangular financiamento ao 7 de Setembro

Em grupo, empresários associavam união do 'povo' e dos 'militares' a caminho para contestar eleições

A ação autorizada pelo ministro Alexandre deMoraes e executada pela Polícia Federal teve como intuito principal estrangular o financiamento de empresários bolsonaristas a atos antidemocráticos que vêm sendo convocados pelo presidente Jair Bolsonaro e por sua rede de apoiadores para o 7 de Setembro e cujo principal tema é a contestação à Justiça Eleitoral e às urnas eletrônicas.

Investigações em curso nos inquéritos das fake news e das milícias digitais já comprovaram que existe uma rede de empresários de diversos setores que bancaram, na campanha de 2018 e ao longo de 2020 e 2021 atos em apoio a Bolsonaro e que tiveram pregações de golpe militar, a defesa do AI-5, palavras de ordem pela deposição de ministros do STF e o fechamento da Corte e do Congresso, entre outras temáticas antidemocráticas.

Alguns desses atos contaram com a convocação, a presença e até discursos do próprio Bolsonaro, como foi o caso de manifestações realizadas em Brasília no auge da pandemia e, de forma mais ostensiva e agressiva, no Sete de Setembro do ano passado.

Monitoramento da Justiça e da PF em redes sociais e aplicativos de mensagens mostra que a mobilização para que, de novo, o feriado da Independência, este ano o de seu Bicentenário, virasse um ato de incentivo a que o resultado das eleições não seja aceito, que as Forças Armadas sejam chamadas a realizar apuração paralela de votos e todas as demais pregações golpistas de Bolsonaro.

No grupo de empresários em que alguns disseram preferir um golpe de Estado a uma volta do PT ao poder, cujas mensagens foram tornadas públicas pelo colunista Guilherme Amado, do portal Metrópoles, o que levou à ação da PF e de Moraes não foram nem essas mensagens, mas aquelas em que vários empresários associam um ato unindo o "povo" e os "militares" no 7 de Setembro em Copacabana seriam o motor de alguma reação contra o que eles classificam como evidência de que o Judiciário estaria agindo para favorecer fraudes nas eleições.

A ação é classificada, na PF e no STF, como preventiva. As referências, de novo, são os atos já realizados e também o que ocorreu no Capitólio, em Washington, após a derrota de Donald Trump. Lá como aqui, as ações se desdobraram em duas frentes: uma mais visível, da exortação do próprio Trump à não aceitação do resultado das urnas e reação de seus apoiadores e, no submundo, o apoio logístico, ideológico e, sobretudo, financeiro ao que está sendo investigado como crime de conspiração.

No Brasil, admitem procuradores, delegados da PF, advogados e ministros com os quais venho conversando sobre a complexa tarefa de defender a democracia diante de ameaças cada vez mais explícitas, mas inéditas em termos de enfrentamento, faltam instrumentos claros nas leis para definir quais as iniciativas cabíveis e em que casos.

Por isso, pessoas próximas a Alexandre de Moraes dizem que ele não determinaria ações tão imediatas e incisivas se não houvesse da parte da PF elementos a apontar para a organização de novos atos antidemocráticos. Essas pessoas lembram que, em seu discurso de posse no TSE, o próprio Moraes avisou que não seriam tolerados pela Justiça atos e discursos dessa natureza.

"Ficou mais difícil financiar atos golpistas no próximo Sete de Setembro", resumiu uma pessoa próxima às investigações.

Os elementos que justificaram as ações estão sendo mantidos em sigilo justamente para evitar que os alvos da operação consigam destruir provas ou se precaver para evitar que conexões com atos antidemocráticos sejam detectadas pela PF.

Ministros colegas de Moraes estão convencidos de que, quando o sigilo for levantado, as conexões com os atos anteriores e a maquinação para a repetição de manifestações com aluguel de caminhões de som, palco, confecção de material impresso e pagamento de passagem e hospedagem para militantes, entre outras estratégicas, ficarão evidenciadas.

Outras medidas estão sendo adotadas para garantir a segurança de autoridades, candidatos, prédios públicos e cidadãos não apenas no 7 de Setembro, mas também na campanha e, sobretudo, nos dias de votação. Esse é o sentido, por exemplo, de reuniões realizadas entre Moraes e o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, e os comandantes das Polícias Militares -- inédita reunião de um comandante da Justiça Eleitoral com os comandos das PMs, aliás. Os relatos das corporações é de que tanto a PF quanto as PMs estão fechadas contra a ideia de atos golpistas daqui até o fim de outubro.

Bolsonaro tem insistido em convocar as pessoas às ruas no 7 de Setembro, embora o prefeito Eduardo Paes tenha cortado na raiz a ideia de misturar a celebração oficial do Bicentenário da Independência com militantes radicais do bolsonarismo tendo Copacabana como palco. Os próprios militares, diga-se, caíram fora da ideia.

O presidente vem sendo aconselhado pela ala política do governo e da campanha a não repetir os xingamentos a ministros e a pregação anti-urnas nos eventos do 7 de Setembro. Se vai seguir ou não, dizem esses mesmo aliados, é outra coisa. Mas a operação da PF e do STF tem sido um argumento a mais usado por eles -- ao mesmo tempo em que também inflamou a veia revoltada e inconformada de Bolsonaro, que tem exortado os empresários a reagirem e apontado o "extremismo" das buscas e dos bloqueios determinados contra os empresários.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é jornalista. Apresentadora do Roda Viva da TV Cultura e colunista de assuntos políticos n'O Globo. Publicado originalmente, em 24.08.22 às 16h37


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As grandes taxas de rejeição de Lula e Bolsonaro expõem os imensos problemas envolvendo as duas candidaturas. É tempo de o eleitor conhecer bem os outros candidatos e suas propostas

Conforme mostrou o Estadão, grande parte do eleitorado diz ter medo da volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder e da reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). Os dois candidatos à frente nas pesquisas de intenção de voto têm grandes taxas de rejeição: 45% dos eleitores têm medo da continuidade do atual governo e 40% temem um novo mandato de Lula.

Tais rejeições não se baseiam em fake news. O eleitor tem motivos de sobra para temer ambos os candidatos. Assim, esse sentimento de temor não é necessariamente algo ruim para o exercício dos direitos políticos. Antes, representa a democracia em seu normal funcionamento, com o eleitor sabendo identificar, na prática, o que faz mal ao País.

Segundo as pesquisas de opinião, os motivos do medo a Lula e a Bolsonaro relacionam-se com fatos concretos das trajetórias dos dois candidatos. O eleitor teme que, com o retorno do PT ao poder, voltem a corrupção, o alinhamento internacional com ditaduras de esquerda e o fortalecimento de pautas minoritárias, como a descriminalização do aborto e das drogas. Com eventual reeleição de Bolsonaro, o medo é de aumento da pobreza, acirramento do discurso de ódio, isolamento internacional, incompetência na gestão pública e, no limite, uma ruptura com a ordem constitucional democrática.

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Perante essa situação de amplas taxas de rejeição aos dois primeiros colocados nas pesquisas de opinião, duas conclusões se impõem. A primeira é a de que escolher um candidato simplesmente por rejeição ao outro pode ser um grande equívoco, uma vez que tanto Lula como Bolsonaro têm grandes problemas – que são percebidos e temidos por grandes parcelas da população. Os erros de um não tornam o outro uma boa solução para o País.


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As grandes taxas de rejeição de Lula e de Bolsonaro devem ser um estímulo para a população conhecer a fundo, durante o período de campanha eleitoral, os demais candidatos, suas trajetórias e suas propostas. Há um regime de pluripartidarismo, com múltiplos candidatos. Nada obriga o eleitor a limitar sua escolha entre duas opções ruins, que despertam grandes e fundados temores. É precisamente para assegurar a mais ampla possível liberdade de escolha que a Constituição de 1988 prevê a possibilidade de dois turnos, em caso de um candidato não alcançar, no primeiro escrutínio, a maioria absoluta dos votos válidos nas eleições para presidente da República, governador e prefeito (nos municípios com mais de 200 mil eleitores).

Não há nenhum problema no chamado “voto útil”, quando o eleitor antecipa, no primeiro turno, sua definição última de prioridades e rejeições. O problema está quando o voto, seja no primeiro ou no segundo turno, é definido por simples medo, sem atentar para as reais qualidades e deficiências do candidato no qual se vota. E é sempre bom lembrar: até o dia das eleições, nenhum candidato tem um voto sequer. Todos estão na mesma situação. Que o eleitor possa escolher livre e responsavelmente quem ele considera ser a melhor opção para o País.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 24.08.22