quinta-feira, 12 de maio de 2022

Queremos eleições livres e justas no Brasil

Nuland, responsável por assuntos políticos na diplomacia americana comandada por Antony Blinken, esteve há poucas semanas no Brasil, junto a uma delegação americana de alto nível. Os diplomatas dos dois países trataram, entre outros temas, de cooperação na área de defesa e de agricultura.

Na ocasião, os americanos voltaram a expressar "confiança na democracia brasileira". Segundo Nuland, no entanto, ela alertou o governo e a oposição sobre o risco de interferência russa nas eleições deste ano.


Victoria Nuland, subsecretária de Estado dos EUA

No momento em que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) volta a lançar dúvidas sobre o processo eleitoral, sugerindo que os militares deveriam supervisionar a contagem de votos do pleito presidencial de 2022, a subsecretária de Estado dos Estados Unidos, Victoria Nuland, afirmou em entrevista exclusiva à BBC News Brasil que, no Brasil, "o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando as estruturas institucionais que já serviram bem a vocês (brasileiros) no passado".

Candidato à reeleição e em segundo lugar nas pesquisas, Bolsonaro tem feito uma série de comentários sobre supostas fragilidades das urnas eletrônicas, sem apresentar provas, e atacado o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que conduz o processo.

Na semana passada, a agência de notícias Reuters noticiou que, em julho de 2021, o diretor da agência de inteligência americana, a CIA, William Burns, teria advertido assessores diretos de Bolsonaro de que o presidente, que àquela altura já levantava dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, deveria deixar de questionar a integridade das eleições no país.

Tanto Bolsonaro como o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que teria estado presente na conversa, negam que ela tenha acontecido.

Militantes de direita pedem golpe militar na Avenida Paulista durante manifestações do 7 de setembro (EPA)

Questionada sobre o que os EUA fariam em caso de uma tentativa de golpe no país, Nuland afirmou: "Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e, particularmente, nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil".

Ao citar observadores externos, Nuland toca indiretamente em mais um ponto sensível no atual debate político brasileiro. Depois que o TSE remeteu dezenas de convites para instituições estrangeiras acompanharem o pleito, em outubro, o Itamaraty reclamou do convite à União Europeia, e o TSE teve de recuar. Bolsonaro também disparou críticas públicas à presença dos observadores, que acompanham eleições brasileiras ao menos desde 1994.

Brasil e EUA vivem uma "recalibragem" de suas relações, depois do mal-estar causado nos americanos pela visita do presidente brasileiro a Moscou em fevereiro, dias antes de o líder russo Vladimir Putin ordenar a invasão da vizinha Ucrânia. Entre diplomatas brasileiros existe a expectativa de que Bolsonaro e Biden se falem pela primeira vez pessoalmente em Los Angeles (EUA), em junho, durante a Cúpula das Américas.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.

BBC News Brasil - Os EUA mudaram recentemente de tom em relação à Rússia: falam em 'enfraquecer' o país, enviam altos funcionários e parlamentares (como a presidente da Câmara, Nancy Pelosi) a Kiev, estão treinando soldados ucranianos. Não existe o risco de que essa nova postura contribua para o discurso de Putin de que esta é uma guerra do Ocidente contra a Rússia e aumente as chances de uma guerra nuclear? O que há para os EUA ganharem com essa nova abordagem?

Victoria Nuland - Eu diria que nosso tom em relação à Rússia é uma resposta direta ao fato de que Putin e seus militares invadiram a Ucrânia e à agressão cruel que estão perpetrando no país, incluindo os tipos de crimes de guerra que temos visto em Bucha e Kramatorsk etc. E os Estados Unidos, junto com o Brasil e muitos outros países, 141 países, foram ao Conselho de Segurança da ONU e à Assembleia Geral da ONU e disseram 'não' à agressão da Rússia.

Portanto, temos que chamar as coisas pelos seus nomes, e isso não é apenas uma guerra cruel contra a Ucrânia, mas uma violação de todos os princípios da carta da ONU e da soberania e integridade territorial dos países. Estamos defendendo o Estado de Direito, as regras globais que levaram à paz e à segurança por tantos anos e que a Rússia está violando flagrantemente agora.

Biden e Putin se reuniram em Genebra em meados de 2021, em uma que reunião durou menos do que era previsto e não impediu o início da guerra na Ucrânia em fevereiro de 2022 (Reuters)

BBC News Brasil - O ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, favorito para vencer as eleições de 2022 segundo pesquisas eleitorais, deu uma entrevista recente à revista Time em que critica o presidente dos EUA Joe Biden por não ter embarcado em um avião para Moscou para tentar dissuadir o líder russo Vladimir Putin da guerra. Como os EUA recebem essa crítica?

Nuland - Bem, em primeiro lugar, o presidente Biden falou com o presidente Putin duas, três, quatro vezes antes desta guerra, argumentando com ele. Como você deve se lembrar, os EUA descobriram esses planos de guerra no final de outubro e começaram a alertar o mundo em novembro, dezembro, janeiro, fevereiro que Putin tinha esses planos.

E durante esse período, o presidente Biden trabalhou muito para tentar convencer o presidente Putin a não ir à guerra, e em vez disso, seguir um caminho diplomático, trabalhar conosco, trabalhar com aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), trabalhar com a Ucrânia, negociar quaisquer preocupações que ele tinha sobre as visões de segurança russas na Ucrânia. E nos oferecemos para ajudar. Tivemos uma rodada de conversas.

Enviamos uma proposta de dez páginas analisando todos os tipos de coisas, como preocupações (russas) com armas ocidentais, etc. Mas, em vez de vir à mesa diplomática, o presidente Putin optou por invadir e invadir de uma maneira muito, muito sangrenta. Portanto, não acreditamos que ele esteja ouvindo alguém.

BBC News Brasil - O presidente brasileiro Bolsonaro sugeriu ao governo turco recentemente uma missão conjunta a Moscou para participar das negociações para o fim da guerra. Os EUA diriam que essa tentativa é bem-vinda?

Nuland - Não temos dificuldade com nenhum líder global tentando convencer Putin a acabar com esta guerra. E vários já tentaram. O presidente Putin não está ouvindo. Esse é o problema. Então, torna-se uma questão de, se ao ir a Moscou você não for muito cuidadoso, parece estar dando apoio à guerra de Putin, especialmente visto que ele não mostrou nenhuma evidência de mudança de rumo com telefonemas e visitas recentes.

BBC News Brasil - Cerca de uma semana antes do início da guerra na Ucrânia, dois grandes líderes da América Latina, os presidentes da Angentina e do Brasil, foram a Moscou para se encontrar com Putin. O que isso diz sobre as relações dos EUA com esses países da região?

Nuland - Sabíamos que essas visitas iriam acontecer. Exortamos tanto o Brasil quanto a Argentina a darem a Putin a mesma mensagem que o presidente Biden estava enviando a ele e aos funcionários russos em todos os níveis, pública e privadamente, de que esta guerra seria um desastre, não apenas para a Ucrânia, mas para a Rússia, para a liderança de Putin e para sua economia e sua posição militar. E nosso entendimento é que em ambas as visitas, ambos os líderes, tentaram argumentar com Putin, mas ele não estava ouvindo. Então este é o problema, Putin não está ouvindo ninguém.

BBC News Brasil - Teremos eleições presidenciais este ano no Brasil. Os EUA têm alguma preocupação ou motivo para acreditar que os russos tentarão interferir ou se intrometer no processo?

Nuland - Obviamente, temos preocupações. Vimos a Rússia se intrometer em eleições em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos e na América Latina. Por isso, em minha recente visita ao Brasil, exortei o governo a ser extremamente vigilante, e a oposição também, para garantir que forças externas não estejam manipulando seu ambiente eleitoral de forma alguma. Isso precisa ser uma eleição de brasileiros para brasileiros, sobre seu próprio futuro.

Assim como aconteceu com Trump 2020 nos EUA, o presidente Bolsonaro está lançando dúvidas sobre o processo eleitoral no Brasil antes do pleito (Reuters)

BBC News Brasil - Assim como aconteceu em 2020 nos EUA, Bolsonaro está lançando dúvidas sobre o processo eleitoral no Brasil de antemão, exigindo a participação do Exército na apuração dos votos e dizendo que pode não reconhecer os resultados. Como os EUA veem esse tipo de declaração?

Nuland - Acreditamos que o Brasil tem um dos sistemas eleitorais mais fortes da América Latina. Vocês têm instituições fortes, salvaguardas fortes, uma base legal forte. Então, o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando suas estruturas institucionais que já serviram bem a vocês no passado. Temos confiança no seu sistema eleitoral. Os brasileiros também precisam ter confiança.

BBC News Brasil - O que os EUA fariam caso alguma tentativa de subversão dos resultados eleitorais acontecesse no país?

Nuland - Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e particularmente nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil. Vocês têm uma longa tradição nisso. E isso é o mais importante para manter a força do Brasil daqui para frente.

BBC News Brasil - Os fertilizantes são um suprimento crítico para a produção de alimentos e o Brasil enfrenta a falta do produto, importado principalmente da Rússia. Os EUA apoiariam a criação de algum corredor seguro ou um salvo-conduto para navios russos carregados de fertilizantes para o Brasil, como o presidente brasileiro solicitou recentemente à diretora da Organização Mundial do Comércio?

Nuland - O fato de haver uma escassez global de fertilizantes - e uma escassez no Brasil - é resultado direto da decisão de Putin de lançar essa guerra. No meu entendimento, a única coisa que impede o fertilizante russo de chegar ao mercado é a guerra que Putin lançou.

Então, o que os Estados Unidos estão tentando fazer é trabalhar com países como o Brasil. E o secretário Blinken terá uma reunião, para a qual o Brasil está convidado, em algumas semanas sobre alimentação, segurança e fertilizantes etc., para ajudar países como o Brasil que precisam de fertilizantes. E então, com fertilizantes, podemos ajudar a alimentar o mundo, porque também temos muitos países com insegurança alimentar que dependem de grãos vindos da Ucrânia.

Quando eu estive no Brasil, nós trabalhamos em um projeto do Departamento de Agricultura dos EUA, para ver como vocês usam os fertilizantes nas lavouras (brasileiras). Estamos tentando aumentar a produção de fertilizantes nos EUA.

Estamos trabalhando com o Canadá e outros países que podem ajudar, para acelerar isso, para que vocês tenham uma safra muito forte, para poder alimentar a si mesmos e seus parceiros de exportação habituais, mas também possa ajudar a alimentar o mundo, (para o Brasil) ser generoso com alimentos, como já foi com o petróleo, com o aumento da produção brasileira de petróleo neste momento de necessidade para o mundo.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington, DC, em 10.05.22

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Bento Albuquerque resistia a 'jabuti' de R$ 100 bi do centrão que beneficia o 'rei do gás'

Ex-ministro queria condicionar obra bilionária à viabilidade econômica e ao preço do produto

O ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, (foto acima), exonerado nesta quarta (11) pelo presidente Jair Bolsonaro, resistia ao projeto bilionário que prevê a construção de gasodutos pelo país.

A proposta, patrocinada pelo centrão, tem um custo de R$ 100 bilhões e é polêmica por beneficiar diretamente Carlos Suarez, ex-sócio da empreiteira OAS e conhecido como o "rei do gás".

O empresário e seus sócios são hoje os únicos donos de autorizações para distribuir gás em oito estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Ele possui ainda quatro autorizações para a construção de redes de gasodutos. Mas precisa de recursos para bancar os dutos que conectariam regiões isoladas onde está o gás com grandes centros, onde estão seus potenciais clientes.

A movimentação do centrão foi antecipada pelo jornal "O Estado de S. Paulo" e confirmada pela coluna.

O projeto é antigo –e polêmico. Por isso, desde 2015 está travado na Câmara dos Deputados, por falta de consenso sobre como criar um fundo que financie as obras bilionárias.

O centrão agora pretende retirar R$ 100 bilhões da exploração do pré-sal que iriam para o Tesouro Nacional e direcioná-los para as obras.

A ideia seria apresentar uma emenda de última hora no projeto de lei que discute a modernização do setor elétrico. Pela possibilidade de ser aprovada sem maiores discussões ela foi apelidada de "jabuti", que não sobe em árvore. Se está em uma delas, ou foi enchente ou foi mão de gente, diz o ditado.

A manobra já teria sido combinada com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).

Bento Albuquerque resistia à ideia, e afirmou a autoridades de Brasília que não aceitaria o pacote da forma como estava sendo fechado no Congresso.

O então ministro negociava uma regra para garantir que a construção do gasoduto estaria condicionada a valores e condições de mercado. E que apenas andaria com o aval do Ministério das Minas e Energia.

A saída repentina dele da pasta está sendo creditada, num primeiro momento, aos aumentos de combustíveis patrocinados pela Petrobras, e que entraram no alvo do presidente Jair Bolsonaro.

O fato de Bento Albuquerque ser substituído por Adolfo Sachsida, homem de confiança do ministro Paulo Guedes, da Economia, no entanto, já leva autoridades de Brasília a ficarem em dúvida sobre a verdadeira motivação de Bolsonaro.

Sachsida era assessor especial de Assuntos Estratégicos do ministério de Paulo Guedes, que sempre reafirma posições de não intervenção no mercado. Não seria um ex-auxiliar dele, portanto, a intervir de maneira direta nos preços da Petrobras.

A equipe econômica tem se posicionado contra um subsídio direto ao preço dos combustíveis, por exemplo, por avaliar que a medida custaria caro e teria pouco efeito nas bombas.

A questão do gasoduto, portanto, também poderia ter contribuído para a queda, na visão de interlocutores do próprio Bento Albuquerque.

Bolsonaro, que pretende buscar a reeleição neste ano, tem criticado a política de preços da Petrobras. Na quinta-feira (5), o presidente afirmou que o lucro de R$ 44,5 bilhões da companhia no primeiro trimestre deste ano é um "estupro" e um "absurdo".

"Petrobras, estamos em guerra. Petrobras, não aumente mais o preço dos combustíveis. O lucro de vocês é um estupro, é um absurdo. Vocês não podem aumentar mais o preço do combustível", disse durante sua live semanal.

O novo reajuste deflagrou uma nova onda de pressões sobre o governo para o lançamento de medidas para conter o preço dos combustíveis em ano eleitoral.

Nos últimos dias, técnicos do governo voltaram a discutir possíveis soluções, entre elas o uso de dividendos pagos pela Petrobras à União para atenuar a alta dos preços nas bombas, mas não há ainda uma definição.

Mônica Bergamo com BIANKA VIEIRA, KARINA MATIAS e MANOELLA SMITH. Publicado originalmente pela Folha de S. Paulo, em 11.05.22

Um mesmo momento longo

A conta da política e de partidos disfuncionais chegou para os brasileiros com o nome de polarização e hiperatividade de interesses.

Entender a psicologia do brasileiro e sua parte de responsabilidade naquilo que vive, a que se submete e de que reclama ajuda a analisar a eleição. Nosso problema não é somente culpa de presidentes com problemas com as Justiças Criminal e Eleitoral, cassados, encarcerados ou processados no exercício do mandato. É, também, do eleitor capturado pelo cansaço de tudo.

O mero sustento da vida que o leva a decidir em quem votar não deveria colocar em segundo plano a preocupação com a melhor chance de vida estável a que tem direito. Submetido à informação truncada e à passividade, ele não percebe que perde todas as forças de análise e defesa. Como animal civilizado que acha que é, sofre contusões, cai em armadilhas e se oferece ao predador de forma tão ingênua e cativa de fazer vergonha a animal solto em seu ecossistema natural.

Um país com tantas florestas e recursos naturais, é nas cidades que a luta pela domesticação se faz de maneira mais selvagem. Eleição entre nós é um circo, bichos trapezistas que atraem o público. E é o público que os paga, a troco de ilusões. Deveria ser possível escolher alguém maior do que aquele com o qual temos interesses pessoais envolvidos em nossa decisão. A angústia da esperança paralisa o bom senso em eleição.

A conta da política e de partidos disfuncionais chegou para os brasileiros com o nome de polarização e hiperatividade de interesses – uma eleição pernilongo, que, como a inflação, pousa, pica e deixa ali coçando, podendo virar infecção. A forma psicológica que a preguiça encontrou de impedir a pessoa de usar a inteligência da negatividade a seu favor é carregar na emoção e obscurecer o discernimento.

A principal carência da rigidez binária em política, muito parecida com o homem ativo de Nietzsche, é que “aos ativos falta usualmente a atividade superior e, nesse sentido, eles são preguiçosos. Os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica”. São máquinas às quais falta a capacidade de hesitar, não admitem interrupções, pausa para pensar. Sua aceleração geral e frenética é impulsionada por analistas de TV, internet, postagens em redes sociais, autores e livros oportunistas.

“Você viu o que fulano disse?” e “E a pesquisa, hein?” são o início da conversa mais corriqueira e burra dos últimos tempos. Um ser doente de certeza sempre começa assim sua catequese para impedir que se manifeste a negatividade sadia. Negar é o que põe dúvida ao lugar-comum para emergir a novidade, a liberdade da mudança.

Assim como na famosa frase caluniai, caluniai, alguma coisa sempre fica, o mal da polarização como um sistema é produzir medo, confusão e distorção. Os polarizados não são personagens de dois momentos diferentes da nossa história, mas de um mesmo momento longo, produzido pela polarização. Assim, um quer a volta dos militares, outro, o jingle de 1989, eleição polarizada, sem governadores e parlamentares.

Até agora, o que predomina é o rosário de traços discordantes com a normalidade democrática e hostis aos pilares da civilização ocidental – democracia, racionalidade e competitividade econômica. O risco de ser governado por quem tem identidade com Putin, o engolidor do sol do outro, é eclipse e nudez.

Enfim, em situação não heroica ninguém sente a perda do presente. Se tudo é eterno retorno, falta força para pensar alternativa reflexiva. E a pobreza do cardápio de ideias quer dar ao prato feito a aparência de saciedade. É uma histeria da sociedade extenuada, contida pela política dos partidos financiados pelo Estado que apostam tudo na rixa entre eleitores.

Não é hora de elogiar candidato. Com a política tão excessiva e cotidiana entre nós, as ideias fora do lugar, instituições civis fora do eixo, militares sensualmente provocados em suas emoções e a economia a Deus-dará, melhor olhar o futuro. Até agora, são interesses políticos privados que impõem ao inconsciente do eleitor tal noção de preferência, ordem e hierarquia. Tal fato alterou definitivamente o sistema imunológico do cidadão, tornando-o incapaz de distinguir entre ele e o outro, o cru e o cozido. O inessencial é visível aos olhos.

A política da pressa e sem filosofia gosta de fato consumado. É só observar a baixa vocação para o progresso no caso de cidades e Estados onde líderes populistas, manipuladores, mandam e desmandam até o fim da vida, sem deixar os moradores em paz. Não existe liberdade nesta coisa do “tudo em um”. É uma coação desmedida expor-se ao interesse insaciável do outro que vê o eleitor como uma tralha velha.

Quando a política de preservação do poder prevalece sobre todos os outros objetivos, não há interesse nacional. Prevalece a lógica da nomenklatura burocrática dos partidos. Não importam direita, esquerda, masculino, feminino, farda ou terno. Já tivemos de tudo e demos com os burros n’água. O eleitor disperso, cansado, que se acha vivo demais para morrer na mão do outro, é tratado como morto demais e não consegue mudar nada. Política dos políticos, a morta-viva que esmaga e impede o cidadão de ajudar o Brasil desinteressadamente.

Paulo Delgado, o autor deste artigo, é sociólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 11.05.22.

Os limites da imunidade parlamentar

Preocupação do STF com proliferação de discursos contra as instituições e a democracia é justificada pela despreocupação do Congresso em punir a quebra de decoro de seus membros

Na semana passada, a 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) recebeu seis queixas-crime contra o senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) por críticas feitas ao senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) e ao ex-deputado, também por Goiás, Alexandre Baldy. Kajuru agora é réu por difamação e injúria (artigos 139 e 140 do Código Penal).

Prevaleceu no julgamento o voto do ministro Gilmar Mendes. Para ele, a imunidade parlamentar não comporta discursos difamatórios, mas apenas declarações vinculadas ao mandato político. Daí, segundo o ministro, não estarem acobertadas por essa imunidade (nem pela liberdade de expressão) as declarações do senador Kajuru, que chamou Baldy de “vigarista” e chefe de uma “quadrilha” no Detran de Goiás. Já Cardoso foi chamado por Kajuru de “inútil” e “idiota incompetente”, além de ter sido acusado de usar o mandato de senador para fazer “negócio”.

O caráter ofensivo e o mau gosto das declarações de Kajuru são inegáveis, e contribuem para o empobrecimento do debate político. O mesmo se afirmaria se o senador tivesse sugerido que um procurador-geral da República é alcoólatra, como já fez o próprio Gilmar Mendes durante sessão do STF, ou se tivesse dito que um colega anda com “capangas”, como fez o ministro Joaquim Barbosa a respeito de Gilmar Mendes também no plenário da Corte.

Como se vê, é necessário distinguir os limites da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar. Entretanto, no julgamento de Jorge Kajuru, o Supremo não indicou um critério para separar a crítica ofensiva, mas própria do exercício do mandato (e recorrente na interação parlamentar), da violação aos limites daquela imunidade.

Se algumas das declarações de Kajuru extrapolaram a imunidade parlamentar, o Tribunal deveria tê-las indicado. Se feriram o decoro parlamentar, é o Congresso quem tem de agir. Se apontaram alguma malversação, cabe ao Ministério Público investigar. Por outro lado, se expressões duras como “inútil” ou “pateta bilionário” não podem ser ditas por um parlamentar a respeito de um adversário político do mesmo Estado, sob pena de configurar crime contra a honra, o que os demais cidadãos estariam livres para dizer?

Também é importante separar o caso Jorge Kajuru do caso Daniel Silveira. O parlamentar bolsonarista, diferentemente de Kajuru, não se limitou a qualificações esdrúxulas como “pateta desprezível xumbrega” ou afirmações de que o patrimônio do adversário político foi amealhado num “golpe do baú”.

Daniel Silveira foi condenado não por ter proferido “suas opiniões, palavras e votos” (artigo 53 da Constituição Federal), mas por ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo. Num infame vídeo, Silveira, entre outras tantas ameaças, instiga a população a entrar no STF, agarrar o ministro Alexandre de Moraes pelo colarinho, sacudir sua cabeça e jogá-la dentro de uma lixeira. Para o deputado, “qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada” na cara do ministro Edson Fachin, “de preferência após cada refeição, não é crime”.

Essa grande diferença entre as duas situações aponta o exagero cometido pela 2.ª Turma do STF ao afastar a imunidade parlamentar no caso de Kajuru. É verdade que vivemos tempos em que alguns parlamentares se aproveitam dessa imunidade para conturbar a democracia. Ou seja, instalam-se no Parlamento e recorrem à liberdade de atuação parlamentar para defender não a democracia, mas sua supressão (Daniel Silveira, por exemplo, defende o ditatorial Ato Institucional n.º 5).

Daí a preocupação do STF com a proliferação de discursos atentatórios às instituições e à democracia, preocupação que é justificada pela despreocupação do Congresso Nacional em punir a quebra de decoro de seus membros. Ainda assim, o Supremo precisa considerar que seus pronunciamentos sobre a liberdade de expressão e a imunidade parlamentar não se reportam apenas aos acontecimentos da atualidade; eles também pavimentam a compreensão mais ampla desses institutos, imprescindíveis ao futuro da nossa democracia.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 11.05.22

The Economist: Exército da Rússia está em estado lastimável, e não aprendeu com erros

Fiasco na Ucrânia poderia ser reflexo de má estratégia ou de uma força de batalha ruim

O trabalho de organizar o maior exercício militar da Otan desde o fim da Guerra Fria manteve o almirante James Foggo, então comandante das forças navais americanas na Europa e na África, ocupado durante o verão de 2018. O Trident Juncture deveria reunir 50 mil soldados, 250 aeronaves e 65 navios de guerra no Ártico europeu em outubro. A movimentação logística de tamanha magnitude foi café-pequeno em comparação ao que a Rússia planejava fazer em setembro na Sibéria. Os exercícios Vostok deveriam ter sido os maiores organizados por Moscou desde os colossais exercícios Zapad, de 1981, gabou-se o ministro da Defesa russo, SergUei Shoigu - deveriam envolver 300 mil soldados, mil aeronaves e 80 navios de guerra.

Foi um feito enorme. “Para nós, foi um esforço enorme transportar 50 mil pessoas para o campo de batalha”, recordou-se o almirante Foggo. “Como eles tinham conseguido aquilo?”. A resposta, ele eventualmente descobriu, foi que eles não fizeram aquilo. Uma companhia de soldados (150, no máximo) foi contabilizada em Vostok como um batalhão ou até um regimento (de aproximadamente 1.000 homens). Navios de guerra foram registrados como esquadras inteiras. Essa trapaça pode ter sido um sinal de alerta de que nem tudo é o que parece nas Forças Armadas russas, antes mesmo delas terem atolado nos subúrbios de Kiev.

“Não é um Exército profissional que combate por lá”, afirmou o almirante Foggo. “Eles parecem um bando, uma ralé indisciplinada.” Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro, as forças russas conseguiram capturar apenas uma cidade grande, Kherson, juntamente com ruínas de Mariupol e fatias do Donbas, a região industrial do leste ucraniano que os russos ocuparam parcialmente em 2014 e agora esperam conquistar totalmente. Esse resultado pífio custou 15 mil vidas de soldados russos, de acordo com uma recente estimativa britânica, excedendo em dois meses as perdas soviéticas em uma década de guerra no Afeganistão. A invasão foi claramente um fiasco. Mas em que medida reflete as verdadeiras capacidades militares da Rússia? Perguntam-se generais ocidentais estupefatos.

Na véspera da guerra, a força de invasão russa era considerada formidável. Agências de inteligência americanas estimavam que Kiev cairia em questão de dias. Algumas autoridades europeias pensaram que a capital ucraniana resistiria poucas semanas. Ninguém imaginou que a cidade receberia autoridades como Antony Blinken e Lloyd Austin, respectivamente os secretários americanos de Estado e da Defesa, dois meses após o início dos combates. Todos acreditaram que a Rússia faria na Ucrânia o que os EUA fizeram no Iraque em 1991: uma campanha de choque e pavor, de força avassaladora, que submeteria o país de maneira rápida e decisiva.

Essa crença tinha como base a presunção de que a Rússia havia realizado o mesmo tipo de reforma militar, de cabo a rabo, que os EUA haviam feito durante o hiato de 18 anos entre sua derrota no Vietnã e sua vitória na primeira Guerra do Golfo. Em 2008, a guerra da Rússia contra a Geórgia, um país com menos de 4 milhões de pessoas, apesar de finalmente bem-sucedida, expôs vicissitudes do Exército russo. A Rússia usou em batalha equipamentos obsoletos, teve dificuldade para localizar a artilharia georgiana e se atrapalhou em seu comando e controle. Num estágio determinado, o Estado-Maior russo alegadamente ficou sem conseguir contato com o ministro da Defesa por dez horas. “É impossível não notar um lapso entre teoria e prática”, reconheceu um comandante militar russo na época. Para encerrar esse lapso, as Forças Armadas diminuíram em tamanho e ganharam um lustro.

Espadas de ambição

O gasto militar russo, quando mensurado de maneira apropriada — ou seja, em taxas de câmbio ajustadas em função do poder de compra —, quase dobrou entre 2008 e 2021, aumentando para mais de US$ 250 bilhões, cerca de três vezes os níveis do Reino Unido ou da França. Aproximadamente 600 aviões, 840 helicópteros e 2,3 mil drones novos foram adicionados ao arsenal entre 2010 e 2020. Novos tanques e mísseis foram ostentados em paradas militares em Moscou. A Rússia testou técnicas e equipamentos novos no Donbas, após sua primeira invasão à Ucrânia, em 2014, e em sua campanha para sustentar o ditador sírio, Bashar Assad, no ano seguinte.

Um general europeu aposentado afirma que assistir esse Exército reformulado fracassar o recorda de uma visita à Alemanha Oriental e à Polônia depois do fim da Guerra Fria, quando ele viu o inimigo de perto. “Percebemos que o 3.º Exército de Choque era uma m...”, afirmou ele, referindo-se a uma renomada formação militar soviética com base em Magdeburgo. “Permitimo-nos novamente tropeçar na propaganda que eles colocam no nosso caminho.” Era sabido que o Exército russo tinha problemas, afirma Petr Pavel, general checo aposentado que presidiu o comitê militar da Otan entre 2015 e 2018, “mas a abrangência desses problemas surpreendeu muitos, incluindo a mim mesmo — pois achei que os russos tinham aprendido a lição”.

Corpo de um soldado russo é abandonado em vilarejo na região de Kharkiv, na Ucrânia 

A interpretação benevolente é que o Exército russo não tem cambaleado na Ucrânia tanto por conta de suas próprias deficiências, mas em razão das ilusões de Putin. Sua insistência em planejar a guerra secretamente complicou o planejamento militar. A FSB, sucessora da KGB, disse-lhe que a Ucrânia estava repleta de agentes russos e cairia rapidamente. Isso provavelmente produziu a insensata decisão de iniciar a guerra enviando paraquedistas com armas leves para a tomada de um aeroporto na região de Kiev e colunas solitárias de blindados avançarem sobre a cidade de Kharkiv, o que causou baixas pesadas em unidades de elite.

Ainda assim, com esse malogrado coup de main, o Exército escolheu então invadir o segundo maior país da Europa por várias direções, dividindo cerca de 120 grupos táticos de batalhão (BTGs) em contingentes de forças isoladas e ineficazes. A tática ruim, por sua vez, combinou-se a uma estratégia ruim: blindados, infantaria e artilharia combateram em campanhas desconectadas. Tanques que deveriam ter sido protegidos com infantaria terrestre vaguearam solitários e acabaram emboscados e capturados pelos ucranianos. A artilharia, principal esteio do Exército russo desde o período czarista, apesar de direcionada com ferocidade contra cidades como Kharkiv e Mariupol, não foi capaz de romper as linhas ucranianas em torno de Kiev.

Problemas em profusão

Nas semanas recentes, autoridades e especialistas debateram as causas do fracasso russo. Alguns estabeleceram comparações com o colapso do Exército francês em 1940. Mas esta analogia não cabe, afirma Christopher Dougherty, ex-estrategista do Pentágono. “A França fracassou porque seguia uma doutrina ruim”, afirma ele. “O fracasso da Rússia se deve em parte ao seu Exército não adotar nenhuma doutrina nem princípios básicos de guerra.”

Falta de experiência é parte do problema. Conforme notou certa vez o historiador Michael Howard, a técnica que um oficial militar aprimora “é quase singular, no sentido de que ele somente terá de exercê-la uma vez em sua vida, se chegar a tanto. É como se um cirurgião praticasse a vida inteira em bonecos para realizar uma única operação”. Os EUA têm segurado o bisturi quase continuamente desde o fim da Guerra Fria; no Iraque, nos Bálcãs, no Afeganistão, na Líbia, na Síria etc. A Rússia não combate numa guerra dessa magnitude contra um Exército organizado desde que tomou a Manchúria do Japão, em 1945.

Estratégias das quais a Rússia conseguiu se valer em guerras menores, no Donbas e na Síria — como usar sensores eletrônicos em drones para localizar alvos para sua artilharia — provaram-se mais difíceis numa escala maior. E coisas que pareciam fáceis nas guerras dos EUA, como aniquilar defesas antiaéreas do inimigo, são na realidade bastante difíceis de fazer. A Força Aérea russa está realizando centenas de missões diariamente, mas ainda tem dificuldades para detectar e atingir alvos em movimento e depende muito de bombas não guiadas, ou “burras”, que só podem ser lançadas com precisão a partir baixas altitudes, o que expõe suas aeronaves ao fogo antiaéreo.

Todos os Exércitos cometem erros. Alguns mais que outros. A característica distintiva dos bons Exércitos é que eles aprendem rapidamente com os próprios erros. Ao abandonar Kiev, colocar o foco no Donbas e instaurar um único general, Alexander Dvornikov, no comando de uma campanha cacofônica, a Rússia dá sinais tardios de adaptação. No início de abril, uma autoridade ocidental, ao ser questionada se a Rússia estava melhorando taticamente, observou que colunas de blindados ainda estavam sendo enviadas sem apoio e em filas únicas para atravessar território controlado pelos ucranianos — uma manobra suicida. Em 27 de abril, outra autoridade afirmou que as forças russas no Donbas pareciam indispostas ou incapazes de avançar sob chuva forte.

Em parte, as dificuldades da Rússia devem-se à heroica resistência ucraniana, apoiada pela torrente de armamentos e informações de inteligência dos ocidentais. “Mas o crédito quanto pela ruína das ilusões russas jaz, tanto quanto, num fenômeno bem conhecido pela sociologia militar”, escreve Eliot Cohen, da Universidade Johns Hopkins, “de que Exércitos, de modo geral, refletem as qualidades das sociedades das quais emergem”. O Estado russo, afirma Cohen, “assenta-se sobre corrupção, mentiras, ilegalidade e coerção”. Todos esses elementos foram revelados pelo Exército russo nesta guerra.

“Eles injetaram muito dinheiro em modernização”, afirma o general Pavel. “Mas grande parte desse dinheiro se perdeu no processo.” A corrupção certamente ajuda a explicar por que os veículos russos são equipados com pneus baratos de fabricação chinesa e por isso acabam atolados em lamaçais na Ucrânia. Também é capaz de explicar por que tantas unidades russas encontraram-se sem rádios criptografados e foram forçadas a substituir sua comunicação por mecanismos civis sem segurança ou até apelar para as redes de telefonia celular ucranianas. Isso, por sua vez, pode muito bem ter colaborado para as baixas entre os generais russos (a Ucrânia alega ter matado dez deles), já que as comunicações dos comandantes nas linhas de frente foram fáceis de interceptar.

Soldados ucranianos conversam em front na região de Zaporizhzhia 

Ainda assim, a corrupção não explica tudo. A Ucrânia também é corrupta, e não muito menos que a Rússia: os países se colocam respectivamente nas 122.ª e 136.ª posições no Índice de Percepção de Corrupção da ONG Transparência Internacional, um grupo de pressão. O que realmente distingue os dois países é o espírito de luta. Os soldados ucranianos estão lutando pela existência de sua nação. E muitos russos nem sabiam que entrariam em guerra até que receberam a ordem para atravessar a fronteira. Uma autoridade europeia de inteligência afirma que os conscritos russos — que Putin prometeu repetidamente que não iria mandar para a guerra — resistiram à pressão de assinar contratos que os transformaram em soldados profissionais; outros se negaram a servir absolutamente. A autoridade afirma que as unidades afetadas incluem a 106.ª Divisão de Guarda Aerotransportada e o 51.º Regimento de Paraquedistas, que são parte da suposta elite das Tropas Aerotransportadas da Federação Russa (VDV), e o 423.º Regimento de Fuzileiros Motorizados, que compõe uma importante divisão de tanques.

Dificuldades em massa

Soldados mal treinados e pouco motivados são um inconveniente em qualquer conflito; especialmente inadequados às complexidades da guerra moderna de armas combinadas, que requer tanques, infantaria, artilharia e poder aéreo trabalhando em sincronia. Tentar uma coordenação de tamanha magnitude na Ucrânia com adolescentes amuados, coagidos ao serviço, alimentados com rações de validade expirada e equipados com veículos com péssima manutenção foi o pico do otimismo.

Tamanha tarefa exige, no mínimo, liderança consistente. E isso também está em falta. Oficiais não comissionados — homens maduros alistados, que treinam e supervisionam os soldados — são a espinha dorsal das Forças Armadas da Otan. A Rússia não possui um quadro militar comparável. “Há coronéis demais e cabos de menos”, afirma uma autoridade europeia de defesa. O treinamento é rígido e antiquado, afirma ele, com obsessão na 2.ª Guerra e pouca atenção em conflitos mais atuais. Isso pode explicar por que a doutrina foi jogada pela janela. Manobras que pareceram fáceis em Vostok e outros exercícios conduzidos pelo Estado russo provaram-se mais difíceis de reproduzir sob fogo e longe de casa.

Se os oficiais russos estudaram a história militar de seu país, parecem ter depreendido as piores lições das guerras no Afeganistão, na Chechênia e na Síria. Durante sua ocupação do norte da Ucrânia, os soldados russos não apenas ingeriram grandes quantidades de bebidas alcoólicas e saquearam lares e comércios, mas também assassinaram grandes números de civis. Alguns deles foram recompensados por isso. Em 18 de abril, a 64.ª Brigada de Infantaria Motorizada, acusada de massacres de civis em Bucha, foi condecorada por Putin por seu “extremo heroísmo e coragem”, que lhe conferiu a honra de se tornar uma unidade de “Guarda”.

Crimes de guerra nem sempre são irracionais. Eles podem servir a propósitos políticos, como aterrorizar a população para sua submissão. Também não são incompatíveis com destreza militar: a Wehrmacht da Alemanha nazista era boa tanto em combater quanto em assassinar. Mas a brutalidade também pode ser contraproducente, inspirando o inimigo a lutar implacavelmente, em vez de se render e arriscar ser morto mesmo assim.

Ataques atingiram o porto, principal porta de entrada de armas e grãos da Ucrânia

A selvageria e a confusão das forças russas na Ucrânia são consistentes com sua recente conduta na Síria. Seus bombardeios contra hospitais ucranianos ecoam os bombardeios contra instalações médicas na Síria. Ainda assim, oficiais militares israelenses que assistiram atentamente a Força Aérea russa atuar na Síria ficaram surpresos por suas atuais dificuldades em defesa antiaérea, localização de alvos e decolagens frequentes. Num determinado estágio, eles consideraram que o envolvimento de sírios em operações aéreas era a única explicação plausível para um nível de profissionalismo tão baixo.

No fim, os israelenses concluíram que falta aos russos treinamento, doutrina e experiência para aproveitar plenamente suas avançadas aeronaves. Pilotos militares israelenses ficaram impressionados, tanto em suas missões de combate quanto nos seus empregos cotidianos como pilotos comerciais, pela tosca abordagem russa em relação à guerra eletrônica, que envolveu bloquear sinais de GPS sobre grandes faixas do leste do Mediterrâneo, às vezes por semanas a fio. Quando a invasão russa à Ucrânia empacou, analistas israelenses perceberam que as forças terrestres da Rússia eram afligidas por muitos desses mesmos problemas.

Alguns amigos dos russos parecem ter a mesma percepção. Syed Ata Hasnain, um general indiano aposentado que comandou as forças da Índia na Cachemira, nota uma “incompetência da Rússia no campo de batalha”, fundamentada em “arrogância e relutância em seguir noções militares básicas já comprovadas”. Um painel de diplomatas e generais indianos aposentados afiliados à Vivekananda International Foundation, um instituto de análise nacionalista próximo ao governo indiano, discutiu recentemente a “visível e abjeta falta de preparo” da Rússia e a “severa incompetência logística” do país. O fato de a Índia ser a nação que mais importa armas russas conferiu um peso especial à conclusão: “a qualidade da tecnologia russa que anteriormente era considerada superlativa está sendo cada vez mais questionada” — apesar da Ucrânia, evidentemente, utilizar em grande parte esse mesmo equipamento.

Ucranianos desmantelam tanque russo nas proximidades de Kiev 

Um processo similar de reavaliação ocorre neste momento nas Forças Armadas ocidentais. Um campo argumenta que a ameaça russa à Otan não é tão grande quanto temeu-se. “O Exército russo teve a reputação abalada e levará uma geração para se recuperar”, afirma uma análise recente de um governo da Otan. “Ele provou valer menos do que a soma de suas partes num espaço de batalha moderno e complexo.” Mas outra escola de pensamento alerta contra julgamentos precipitados. É cedo demais para tirar conclusões absolutas, alerta uma graduada autoridade da Otan, com a guerra ainda se desdobrando e ambos os lados se adaptando.

Se um dos erros da Rússia foi depreender uma falsa confiança de seu sucesso ao tomar a Crimeia da Ucrânia, em 2014, e em evitar a queda do regime de Assad, na Síria, em 2015, segundo este argumento há um risco similar de que os inimigos da Rússia infiram exageradamente das atuais desordens na Ucrânia. Michael Kofman, do CNA, um instituto de análise, reconhece que ele e outros especialistas “superestimamos o impacto das reformas…e subestimamos a podridão sob Shoigu”. Mas contexto é tudo, nota ele. Nos anos recentes, os cenários que têm preocupado estrategistas da Otan não são guerras na escala do atual conflito, mas operações mais modestas e realistas, com objetivos limitados e pequenas conquistas de território, como uma invasão russa em partes dos Estados bálticos ou uma tomada de ilhas como a norueguesa Svalbard.

Guerras como essas podem se desenrolar de maneiras muito diferentes que o conflito na Ucrânia. Começariam com um front mais estreito, envolveriam menos forças e colocariam menos pressão sobre logística, afirma Kofman. O Kremlin e o Estado-Maior russo não subestimariam a Otan necessariamente da maneira equivocada com a qual desprezaram o Exército ucraniano. E se o governo russo não estivesse tentando minimizar um futuro conflito, qualificando-o como nada além de uma “operação militar especial”, como faz na Ucrânia, poderia mobilizar muito mais forças e conscritos. Não há informação de que muitas das principais capacidades militares dos russos, como armamentos antissatélites e submarinos avançados, tenham sido testadas na Ucrânia de nenhuma maneira.

O Exército ucraniano

A view of damaged building after the shelling is said by Russian forces in Ukraine's second-biggest city of Kharkiv on March 3, 2022. - Ukraine and Russia agreed to create humanitarian corridors to evacuate civilians on March 3, in a second round of talks since Moscow invaded last week, negotiators on both sides said. (Photo by Sergey BOBOK / AFP)

População se junta a Exército ucraniano 'disposta a tudo' para resistir à invasão russa

Moscou não conseguiu dominar a capital, Kiev, nem a segunda maior cidade ucraniana, Kharkiv



Ucranianos que deixaram suas casas embarcam em trem na tentativa de voltar para casa na estação de Lviv. Recuo das tropas russas e avanço do exército da Ucrânia estimula refugiados a voltar para Kiev, capital do país, mesmo com aviso do Prefeito Vitali Klitschko de que ainda não é seguro o retorno. O mesmo movimento é visto em regiões sem combate ou ataques. FOTO - STEFAN WEICHERT / ESTADÃO

Ganhos militares da Ucrânia permitiram a volta para casa de muitos que fugiram da guerra

Geografia também é importante. Enquanto a logística russa “remete assustadoramente” ao antigo Exército soviético, afirma Ronald Ti, um especialista em logística militar que leciona no Baltic Defence College, na Estônia, sua dependência de ferrovias seria um problema menor em um ataque contra os Estados bálticos. “Uma operação ‘fato consumado’, em que eles extirpem uma fatia de território estoniano, está perfeitamente dentro de suas capacidades”, afirma Ti, “porque eles são capazes de alimentá-la com facilidade por terminais ferroviários”. (Se a Força Aérea russa, com sua falta de experiência e fragilidades agora expostas, seria capaz de proteger esses terminais dos ataques aéreos da Otan é outra questão.)

Lições em abundância

Kofman acredita que a pergunta sobre “quanto dessa guerra decorre de um Exército ruim, o que de importantes maneiras acho que claramente é o caso, e quanto disso é fruto de um plano verdadeiramente terrível” ainda não foi respondida. E ainda assim, é essencial respondê-la. Num artigo seminal, de 1995, o cientista político James Fearon, da Universidade Stanford, na Califórnia, argumentou que guerras caras e destrutivas que governos racionais prefeririam evitar por meio de negociação podem, apesar disso, ainda ocorrer, graças a erros de cálculo sobre capacidades do outro lado. Na teoria, um acordo de paz que evite a guerra refletiria o poder relativo de dois possíveis beligerantes. Mas as partes podem fracassar em alcançar tal barganha, porque esse poder relativo nem sempre é óbvio.

“Líderes sabem coisas a respeito de suas capacidades militares e disposição para a luta que outros Estados não sabem”, escreve Fearon, “e em situações de barganha, eles podem ter incentivos para deturpar tais informações para conseguir um acordo melhor”. Isso ajuda a explicar por que a Rússia inflou tão loucamente sua suposta destreza nos exercícios de Vostok. E isso pode funcionar. “Suspeito que muitos de nós nos deixamos levar pelas paradas do Dia da Vitória que nos mostraram todos os elementos escolhidos estrategicamente desse kit”, afirma o general europeu.

A batalha pelo Donbas não encerrará inteiramente este debate. Um Exército russo que prevalece numa guerra de desgaste por meio de seu poder de fogo superior e maior contingente poderia estar longe daquela força ágil e de alta tecnologia propagandeada ao longo da última década. É mais provável que os passos pesados e desajeitados das forças russas se exauriam muito antes de alcançar objetivos no sul e no leste da Ucrânia, sem mencionar outra tentativa de conquistar Kiev. Estrategistas militares de todo o mundo estarão assistindo de perto, para observar não apenas quão longe a Rússia chegará nas próximas semanas, mas também o que seu desempenho revelará sobre a resiliência, a adaptabilidade e a liderança de suas forças. Como uma faca enfiada num tronco caído, o progresso da campanha revelará a profundidade da podridão. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Publicado originalmente por The Economist. Reproduzido no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 11.05.22. © 2022 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

Como Rússia e China distorcem a história

A manipulação de sua própria história nacional serve tanto a Xi Jinping quanto a Vladimir Putin para garantir o poder e justificar suas políticas.

"Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado." Esta citação do livro mundialmente famoso 1984, de George Orwell, descreve em uma frase a importância da história para a política. E a jornalista Katie Stallard destaca essa citação em seu livro recém-publicado Dancing on Bones – History and Power in China, Russia, and North Korea. Nele, ela descreve como os poderosos da Rússia, China e Coreia do Norte usam a história para seus propósitos.

Em entrevista à DW, ela diz que "regimes autoritários sabem o poder da história, que é uma ferramenta crucial para obter apoio da população". A história gera legitimidade, está intimamente ligada à identidade dos cidadãos e tem a vantagem para os governantes autoritários de poder ser manipulada de acordo com as necessidades. "Os sucessos econômicos vêm e vão. Já a história é no que você pode confiar", afirma Stallard.

A história como justificativa para a guerra na Ucrânia

A agressão russa na Ucrânia é o exemplo atual de que uma compreensão revisionista da história pode ter consequências mortais. Mesmo antes da eclosão da guerra, Putin publicou em julho de 2021 um ensaio intitulado "Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos".

No texto, o presidente russo acusa o Ocidente de um "revisionismo perigoso". Segundo o historiador Andreas Kappeler em uma análise para a revista Osteuropa, Putin quer se contrapor a essa alegação como um "estadista onisciente" que conhece a "única verdade histórica".

A verdade, segundo Putin, é que russos e ucranianos sempre foram uma única entidade espiritual, e o Ocidente está tentando transformar a Ucrânia em uma "anti-Rússia" – e Moscou nunca permitirá isso e, se necessário, impedirá pela força das armas.

Em 9 de maio, quando a Rússia comemorou a vitória sobre a Alemanha nazista seguindo a tradição da União Soviética, Putin reiterou seu ponto de vista e foi além ao afirmar que o Ocidente havia planejado um ataque contra a Rússia.

Um tanque histórico da era soviética também participou do Dia da Vitória deste anoFoto: Alexander Nemenov/AFP/Getty Images

A visão de mundo soviética de Putin

A narrativa da suposta unidade russo-ucraniana – que o Ocidente ignora – faz parte de uma visão de mundo bipolar e de pensar em termos de grandes categorias de poder, afirma Kappeler. Para Putin, apenas os países poderosos – como Rússia, EUA e China – desempenham um papel, e "pequenos" Estados, como a Ucrânia, não têm agenda própria. Além disso, as grandes potências, por sua vez, estariam envolvidas numa competição ideológica que está sendo travada com todos os meios à disposição.

Essa visão de Putin, que Kappeler classifica como teoria da conspiração, está associada ao nacionalismo étnico e à tese de que os nazistas supostamente tomaram o poder na Ucrânia. Nela, o líder russo faz uso de supostos nazistas para o que, segundo Kappeler, é "o elemento mais importante da ideologia de integração russa: a vitória soviética sobre a Alemanha de Hitler". A visão de mundo de Putin é a de um agente do serviço secreto da extinta União Soviética.

Xi Jinping: timoneiro da história

Muitos padrões da visão etnonacionalista da história de Putin e seus apoiadores no Kremlin também podem ser encontrados entre as autoridades chinesas. A China quer fazer melhor do que a União Soviética, que o presidente chinês Xi Jinping cita repetidamente como um exemplo de alerta. A União Soviética teria se desintegrado porque seus líderes não conseguiram erradicar o "niilismo histórico" que minou a crença na causa comunista.

Para evitar o destino da União Soviética, o Partido Comunista Chinês (PCC) escreveu, entre outras coisas, uma história oficial atualizada do partido em 2021, fortemente feita sob medida para Xi Jinping. O Diário do Povo Chinês, um órgão de imprensa do partido, escreve sobre o líder da China: "Nesta nova era, o secretário-geral Xi Jinping nos ajudou a compreender os mecanismos da evolução e as leis da história em ação no longo e tortuoso fluxo do tempo e a tempestade global. Ele tomou a decisão certa em cada encruzilhada." A narrativa do PCC é difundida na imprensa, redes sociais, cinema e jogos de computador. Visões alternativas são ilegais.

Com muita pompa, atores encenaram os 100 anos de história do Partido Comunista Chinês em junho de 2021 (Foto: Thomas Peter/Reuters)

Partido Comunista Chinês garante a unidade do país

O partido oficial determina há anos o que pode ser pensado e escrito na China. Em essência, trata-se de uma "estrutura ideológica que justifica intervenções cada vez maiores e mais abrangentes do partido na política, economia e política externa", segundo o ex-chanceler australiano e especialista em China Kevin Rudd.

Os superpoderes do PCC são historicamente justificados: antes de os comunistas tomarem o poder, a China era fraca e dividida, e a desunião permitiu que o Ocidente humilhasse o país. Somente o PCC, de acordo com o subtexto, é capaz de unir o país e, assim, reconduzi-lo à sua antiga força.

Dessa forma, o PCC continua o que os nacionalistas chineses começaram no século 19, como evidencia Bill Hayton em seu livro The Invention of China. Naquela época, a China multiétnica foi reinterpretada como uma cultura uniforme han-chinesa, e as tradições manchus, mongóis e de muitos outros povos foram extraídas da história para dar lugar à visão de uma China que sempre esteve unida. Assim, hoje, os efeitos desse desejo de unidade são vivenciados por uigures e tibetanos, que estão sendo colocados em campos de reeducação e têm sua língua e cultura reprimidas.

É apropriado que Xi Jinping, falando ao Comitê Central do PCC em 2013 sobre a importância da história, tenha citado o estudioso confucionista Gong Zhishen ao dizer que "para destruir um país é preciso primeiro apagar sua história". Foi um aviso para questionar a unidade de 5 mil anos da China, o que é, claro, uma ficção na versão do PCC.

Embora seja verdade que havia uma certa continuidade da língua e da doutrina confucionista, é falso dizer que a cultura chinesa han sempre foi dominante no que é hoje o território da República Popular da China.

Na verdade, a Dinastia Ming (1368-1644) foi a última em que os chineses han governaram. Antes disso, durante séculos, dinastias de outros povos, como os mongóis, prevaleceram na maior parte do que hoje é a China. A última dinastia foi fundada pelos manchus e governou de 1644 até a proclamação da república, em 1º de janeiro de 1912.

No desejo de criar uma história unificada na qual a Rússia de hoje e a República Popular da China emergiram sem ruptura, fecha-se o círculo com Putin, que nega ou distorce a história da Ucrânia para declarar que russos e ucranianos são um só povo.

China Xi Jinping Porzellan China Xi Jinping Porzellan 

Uma loja de souvenirs em Pequim oferece pratos de porcelana de Xi Jinping (à esquerda) e do fundador do Estado chinês Mao Tsé-Tung (Foto: Andy Wong/AP Photo/picture alliance)

"Território recuperado"

Há também uma obsessão por questões territoriais em ambos os sistemas. As afirmações históricas de Putin omitem em grande parte os crimes da era Stalin, mas dedicam considerável atenção ao território da União Soviética, que também incluiu a Ucrânia, Belarus, Estados bálticos, Estados da Ásia Central e outros.

A China, por exemplo, usa há anos argumentos históricos sobre o Mar da China Meridional. O país declara um mar do tamanho do Mar Mediterrâneo como seu território, citando evidências históricas questionáveis. Ao mesmo tempo, Pequim se recusa a reconhecer a decisão da Corte Internacional de Arbitragem, que declarou nulas todas as reivindicações históricas.

Para Stallard, voltar-se para as questões territoriais tem duas funções: por um lado, enfatizar as humilhações do passado, em que nos foi tirado algo que é nosso por direito. E, ao mesmo tempo, enfatizar a força dos atuais líderes – estamos retomando o que é nosso. "Trata-se de defender sua soberania, sentir-se forte e ter orgulho de defender seu próprio país", afirma.

Repressão contra opiniões divergentes

Mesmo que existam diferenças no conteúdo das narrativas históricas na Rússia e na China – por exemplo, o culto à personalidade mais pronunciado da China em torno de Xi –, os padrões são claros.

Ambos os sistemas reivindicam uma unidade e continuidade que nunca existiram. Qualquer um que questiona isso na Rússia ou na China enfrenta punições severas. E esses países constroem um inimigo externo – o Ocidente – do qual apenas eles – Putin ou Xi – podem proteger a nação e vincular a história com as reivindicações territoriais.

"A vontade de manipular a história para fins políticos não é vista apenas em sistemas autoritários", afirma Stallard. Mas apenas sistemas autoritários reprimem opiniões divergentes.

Rodion Ebbighausen para Deutsche Welle Brasil, em 10.05.22

terça-feira, 10 de maio de 2022

A cama está feita

A farsa golpista encenada por Bolsonaro chegou à página em que a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro estaria condicionada ao exame por auditoria a ser contratada pelo partido de Valdemar Costa Neto. Por Carlos Andreazza

Processo cuja legitimação dependerá da supervisão das Forças Armadas, o Poder Moderador empossado pela leitura pervertida do Artigo 142 da Constituição e, até outro dia, comandado pelo general candidato a vice na chapa de Bolsonaro à reeleição.

A cama está feita.

Mais do que se considerarem, as Forças Armadas agem como Poder da República. Poder da República especial, cujo alcance moderador foi investido por ministros de tribunal superior que avalizaram burocratas armados e ressentidos como interlocutores com status para formular questões cujo pressuposto é a desonestidade da Justiça Eleitoral. Uma tocaia em que, independentemente das respostas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a tese de fraude restará provada.

A cama está feita.

As Forças Armadas que agem como Poder Moderador são as mesmas a serviço de minar a credibilidade do sistema eleitoral. A serviço, pois, dos interesses de Bolsonaro.

O ministro da Defesa já é outro. Não importa quem seja o da vez. O governo é militar e não se move senão sob o entendimento viciado — desde há muito explicitado — segundo o qual as Forças Armadas seriam conjunto com poder interventor sobre Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional. São generais zelosos dessa competência arbitrária — de representantes de um Poder acima do equilíbrio republicano, com direito a tutela sobre a concertação republicana — os que Luís Roberto Barroso e Luiz Fux convidaram a participar do processo eleitoral.

É uma obviedade: militares não são autoridades em matéria eleitoral; nem compõem um Poder, muito menos um Moderador. O problema, porém, é maior. Há má intenção. Sob o que já chamei de 7 de Setembro permanente, um estado mesmo de ameaça golpista que sustenta a instabilidade institucional como modo de o populismo bolsonarista prosperar, os militares aceitaram o papel de fundação para que o arruaceiro lastreasse o conspiracionismo com que espalha desconfiança contra uma das expressões concretas da República.

Parêntese importante aqui. Não é à toa que Bolsonaro ataca as culturas brasileiras de vacinação e eleição, ambas sólidas manifestações de um país que chega igualmente a todos. Ambas, portanto, materializações — manifestações de sucesso e fortaleza — da ideia de República. E ele é, antes de tudo, um antirrepublicano.

O presidente da República é, sobretudo, um mentiroso. Prometeu várias vezes — e há tempos não fala disso — apresentar provas de que a eleição que venceu fora fraudada. Nunca o fez. Nunca foi punido por criminalizar o TSE.

Prometeu também que sossegaria — aceitaria — qualquer que fosse o resultado da votação no Parlamento sobre adoção do voto impresso; pacificação em que só acreditou quem não compreende que a existência competitiva de Bolsonaro se alimenta de choques e imprevisibilidades. Arthur Lira nunca acreditou. Compôs o teatro. É sócio e está bom assim, bem servido pela multiplicação de orçamentos secretos que o antirrepublicanismo favorece.

Escorado num Congresso amansado, Senado de Pacheco incluído, por Orçamento da União sem teto para gastos de natureza patrimonialista em ano eleitoral, Bolsonaro declara que “as Forças Armadas não vão fazer o papel de chancelar apenas o processo eleitoral”. Note-se como evolui a corrosão da ordem constitucional. Convidadas — pelo TSE — a “chancelar” a qualidade do sistema, algo que nunca lhes coube, as Forças Armadas, orientadas pelo presidente e “bastante zelosas” de suas prerrogativas assaltadas à Constituição, tomaram o que jamais lhes foi função e ora vão deitadas na cama, de coturno e tudo, endossando previamente o que será acusação de fraude na eleição de outubro.

A cama está feita e ocupada.

Bolsonaro é claro sobre como explorará a armadilha que o Supremo levantou ingenuamente e a que o Supremo se oferece: “As Forças Armadas não estão se metendo no processo eleitoral. Elas foram convidadas”. Foram mesmo; convidadas a participar de comissão de transparência — um erro imensamente apontado — e agora se projetam como habilitadas a não validar o resultado de eleição.

Não validarão. Está dado. Ou não avançamos no capítulo em que as Forças Armadas — sob gestão explícita de Bolsonaro — plantam, na forma de perguntas diabólicas (em que a Justiça Eleitoral teria de provar a lisura de seu sistema de votação), que um tribunal superior é corrupto? Não se trata de outra coisa.

Desnecessário, a esta altura, será dizer que ninguém ali — presidente à frente — está preocupado com a segurança das eleições, como jamais esteve com a segurança da população a ser vacinada. Só a auditoria de Valdemar poderá nos salvar.

Carlos Andreazza é Jornalista.  Publicado originalmente n'O Globo, em 10.05.22.

Em vez de golpe com militares, não se descarta instabilidade com bolsonaristas armados nas ruas

É assustador assistir a Bolsonaro e sua gente ameaçando Supremo, TSE, ministros e as próprias eleições. O Brasil está normalizando o que não tem nada de normal. Leia aqui o artigo de  Eliane Catanhede, pubicado no Estado de S. Paulo hoje.

Foto: DEFESAGOVBR-TWITTER

Que confusão a Defesa está fazendo! É uma trapalhada atrás da outra, uma ameaça atrás da outra, um recuo atrás do outro e a imagem que fica é que “os militares” fazem qualquer coisa para agradar ao capitão insubordinado que assumiu a Presidência e pinta e borda com eles. “Qualquer coisa” incluiria até golpe. Pode uma coisa dessas?

É assustador assistir ao presidente Jair Bolsonaro e sua gente ameaçando Supremo, TSE, ministros e as próprias eleições, assim como atacaram a saúde e a vida na pandemia. O Brasil está normalizando o que não tem nada de normal. Os presidentes de Supremo, TSE, Senado e até Câmara, enviesadamente, têm de defender a democracia todo santo dia e o foco nacional não é inflação e fome, é como e quando vai ser o golpe...

A pergunta deve ser outra: com quem? A escalada de Bolsonaro, filhos, séquito e robôs é clara, mas, se a gente olha os comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica e se fixa no Alto-Comando do Exército, é difícil encontrar ao menos um disposto a jogar seu nome na lama da história contra a democracia.

Em vez de golpe com militares, o que não se pode descartar é que Bolsonaro esteja criando um clima de tumulto e instabilidade com sua turba civil, que armou com revólveres e fuzis e pode entrar em ação em caso de derrota. Ele está em segundo lugar, com recorde de rejeição.

O que acontece nesse caso? “Cerca os caras, julga, condena e prende todo mundo. Acabou-se a história”, responde um oficial, parte de um grupo grande de militares que é contra o PT e o ex-presidente Lula pelo petrolão e “otras cositas más”, mas não louva Bolsonaro, muito menos golpes.

O problema é que, quando o general da ativa Eduardo Pazuello dizia que “um manda, outro obedece”, os militares ficavam indignados com a sabujice e agora, quando é a democracia em jogo, a Defesa passa a ideia de que “um manda, todos obedecem”.

Bolsonaro diz que o TSE tem uma “sala escura” para contar votos, quer uma justiça eleitoral paralela e um duto dos votos para um computador das Forças Armadas. O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Oliveira, encampa, quer mandar no TSE, tira e põe de novo um general na comissão de transparência e usa slogan bolsonarista: “Brasil acima de tudo”.

A Defesa reclama do sigilo de suas demandas sobre as urnas, mas o pedido foi da própria Defesa. Reclama que o ministro Edson Fachin não recebeu o general Paulo Sérgio, mas seria exatamente no último dia de prazo para o título de eleitor. Imaginem a agenda do presidente do TSE! Seria cômico, não fosse trágico.

Eliane Cantanhede, a autora deste artigo, é comentarista de política na Rádio Eldorado (SP),e Rádio Jornal (PE) e no telejornal "Em Pauta", da Globo News.

O prestígio e o papel das Forças Armadas

É grave erro usar o prestígio dessa instituição para fins incompatíveis com suas atribuições constitucionais. Militares devem estar distantes da política e de assuntos eleitorais

As Forças Armadas têm prestígio junto à população. Trata-se de um fato bem conhecido. Esse prestígio foi conquistado e é preservado, entre outras causas, pela exemplar lealdade da Marinha, do Exército e da Aeronáutica à Constituição de 1988 e aos princípios republicanos, com a estrita obediência às suas atribuições constitucionais, bem longe da política. É de justiça reconhecer: depois da redemocratização do País, as Forças Armadas entenderam o seu papel dentro da organização de um Estado Democrático de Direito. Não são guarda pretoriana, tampouco poder moderador. Destinam-se, assim o estabelece a Constituição de 1988, “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Por óbvio, é muito bom – muito saudável institucionalmente – que a população confie nas Forças Armadas. O prestígio dos militares é um bem para o País e merece ser zelosamente preservado. No entanto, deve-se advertir que há quem queira usar o prestígio das Forças Armadas para outros fins não previstos na Constituição, o que representa um perigoso desvio da função militar. 

O caso mais grave é o bolsonarismo, que tenta continuamente se identificar com as Forças Armadas, identificação esta que é rigorosamente inconstitucional. As Forças Armadas não têm orientação político-partidária, e menos ainda são um grupo político. No entanto, com frequência, Jair Bolsonaro refere-se às Forças Armadas com um “nós”, como se fossem uma só coisa. Entre outros danos, expressar-se assim é descarada manobra para atrair a si a confiança que a população deposita nos militares.

Além da inconstitucionalidade, há uma notória contradição nessa atitude de Jair Bolsonaro. Ele quer os louros políticos da imagem pública das Forças Armadas, mas nunca se dispôs a cumprir o que fundamenta o prestígio da instituição militar: a disciplina, a hierarquia e a obediência à lei. Como se sabe, Jair Bolsonaro foi um mau militar.

Para piorar, nos últimos meses, Jair Bolsonaro tem tentado envolver as Forças Armadas em seus devaneios golpistas, em especial na campanha para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. No fim do mês passado, em ato público no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro defendeu a contagem paralela de votos pelas Forças Armadas, o que é uma aberração institucional. Não cabe às Forças Armadas a função de revisor da votação.

A inusitada tentativa do Palácio do Planalto de envolver as Forças Armadas em assuntos eleitorais remete, por sua vez, à iniciativa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de convidar, em agosto do ano passado, o Ministério da Defesa para participar, com um representante, da Comissão Externa de Transparência da Justiça Eleitoral. O convite foi um modo de o TSE aproveitar o prestígio das Forças Armadas para fortalecer a confiança da população no sistema eleitoral, que na época estava sendo ostensivamente atacado pelo bolsonarismo. O motivo da Justiça Eleitoral era justo e necessário, mas os meios, não. Não é papel dos militares atuar nesse tipo de matéria, de natureza essencialmente civil.

O equívoco do TSE ficou ainda mais em evidência quando, meses depois, as Forças Armadas decidiram não participar de um teste público de segurança da urna eletrônica. De fato, não tinham de participar, mas a recusa desvelou a insensatez de toda a situação: as Forças Armadas estavam sendo colocadas no papel de garantidoras da lisura das eleições. Mais recentemente, soube-se que, ao longo dos últimos meses, os militares enviaram dezenas de questionamentos sobre supostos riscos das urnas, que foram devidamente respondidos pelo TSE.

Se tudo o que veio à tona corrobora o bom trabalho da Justiça Eleitoral, provendo um sistema de votação confiável, há nessa história um importante aprendizado. As Forças Armadas devem estar apenas em suas funções constitucionais. Não há motivo, por mais nobre que seja, a justificar exceções. Para o bem do País e das Forças Armadas, para que possam continuar desfrutando de seu merecido prestígio.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 10.05.22

Guerra está ficando mais perigosa para os EUA e Biden sabe disso; leia o artigo de Thomas Friedman:

Para autoridades americanas, está cada vez mais óbvio que o comportamento de Putin não é tão previsível quanto já foi no passado



Presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, posa para foto entre os secretários americanos de Defesa (E), Lloyd Austin e de Estado, Antony Blinken, em Kiev, em 24 de abril de 2022

Se você tem acompanhado as reportagens sobre a Ucrânia, pode pensar que a guerra se assentou como um longo caminho, arrastado e em certa medida aborrecido. Você pode estar errado. Na realidade, as coisas estão ficando mais perigosas a cada dia.

Para começar, quanto mais longa for esta guerra, mais oportunidades existirão para erros de cálculo catastróficos — e a matéria-prima para isso está se acumulando rapidamente e furiosamente. Considerem os dois vazamentos de graduadas autoridades americanas, ocorridos na semana passada, a respeito do envolvimento dos Estados Unidos na guerra entre Rússia e Ucrânia:

No primeiro, o Times revelou que “os EUA forneceram informações de inteligência a respeito de unidades russas que permitiram aos ucranianos localizar e matar muitos dos generais russos que morreram em ação na guerra da Ucrânia, de acordo com graduadas autoridades americanas”.

No segundo, após uma reportagem da NBC News e citando autoridades americanas, o Times noticiou que os EUA “forneceram informações de inteligência que ajudaram as forças ucranianas a localizar e atacar” o Moskva, o principal navio de guerra da esquadra russa no Mar Negro. Essa ajuda na localização do alvo “contribuiu para o eventual naufrágio” do Moskva provocado por dois mísseis de cruzeiro ucranianos.

Como jornalista, adoro um bom vazamento de informações, e os repórteres que produziram essas reportagens realizaram uma investigação poderosa. Ao mesmo tempo, por tudo que pude perceber após conversas com graduadas autoridades americanas, que falaram comigo sob condição de anonimato, esses vazamentos não foram fruto de nenhuma estratégia planejada, e o presidente Joe Biden ficou furioso com isso.

Relataram-me que ele chamou a diretora nacional de inteligência, o diretor da CIA e o secretário da Defesa para deixar claro, nos termos mais contundentes e explícitos, que esse tipo de conversa mole é algo irresponsável e tem de parar imediatamente — antes que acabemos numa guerra não intencional contra a Rússia.

A estarrecedora conclusão que decorre desses vazamentos é que eles sugerem que não estamos mais numa guerra indireta contra a Rússia, mas, em vez disso, estamos à beira de uma guerra direta — e ninguém preparou o povo americano nem o Congresso para isso.

Vladimir Putin certamente não tem dúvidas sobre a magnitude com que os EUA e a Otan estão municiando a Ucrânia com armamentos e informações de inteligência, mas quando autoridades americanas começam a se gabar em público a respeito do papel dos EUA na morte de generais russos e no ataque que afundou o navio de guerra russo, matando muitos marinheiros, poderíamos estar criando uma abertura para Putin responder de maneiras capazes de ampliar perigosamente esta guerra — e afundar os EUA neste conflito mais do que o país deseja.

Batalhas na Ucrânia e contra a variante Ômicron têm demonstrado a fraqueza de sistemas autoritários em Moscou e Pequim

Não consigo lembrar de outro momento em minha vida em que tenha duvidado do futuro da democracia americana e do mundo

Isso é duplamente perigoso, afirmam graduadas autoridades americanas, porque fica cada vez mais óbvio para elas que o comportamento de Putin não é tão previsível quanto já foi no passado. E Putin está ficando sem opções para algum tipo de sucesso que mantenha as aparências no campo de batalha — ou até mesmo de uma saída para salvar sua dignidade.

É difícil exagerar o tamanho da catástrofe que esta guerra tem sido para Putin até agora. Na realidade, Biden apontou para sua equipe que Putin, ao tentar afrontar a expansão da Otan, acabou pavimentando o caminho para essa expansão. Tanto a Finlândia quanto a Suécia estão agora dando passos na direção de aderir à aliança da qual se mantiveram fora ao longo de sete décadas.

É por isso que as autoridades americanas estão tão preocupadas com o que Putin possa fazer ou anunciar nos próximos dias. Aliás, temos de estar atentos para o fato de que não apenas os russos gostariam de nos envolver mais. Não tenha dúvidas, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, tem tentado exatamente isso desde o início: tornar a Ucrânia membro da Otan imediatamente ou obrigar Washington a forjar um pacto de segurança bilateral com Kiev. Respeito o heroísmo e a liderança de Zelenski. Se eu fosse ele, estaria tentando enredar os EUA ao meu lado da mesma maneira.

Mas sou cidadão dos EUA — e quero que sejamos cautelosos. A Ucrânia foi — e ainda é — um país repleto de corrupção. Isso não significa que não deveríamos ajudar os ucranianos. Fico feliz por estarmos fazendo isso. E insisto que devemos fazê-lo. Mas minha sensação é que a equipe de Biden caminha muito mais sobre uma corda-bamba em relação a Zelenski do que possa dar a parecer — querendo trabalhar como pode para garantir que ele vença esta guerra, mas fazendo isso de uma maneira que ainda mantenha alguma distância entre Washington e a liderança da Ucrânia; para que não seja Kiev a dar as cartas e para que não sejamos constrangidos pela bagunçada política ucraniana depois da guerra.

A percepção de Biden e sua equipe, segundo minha apuração jornalística, é que os EUA precisam ajudar a Ucrânia a restabelecer sua soberania e expulsar os russos — mas não permitir que a Ucrânia se transforme num protetorado americano na fronteira com a Rússia. Temos de ter foco preciso no que é nosso interesse nacional e não vaguear por caminhos que levam a constrangimentos e riscos que não desejamos.

Uma coisa que sei sobre Biden — com quem viajei ao Afeganistão em 2002, quando ele era o senador que liderava a Comissão de Relações Exteriores — é que ele não romantiza a respeito de líderes mundiais. Ele lidou com muitíssimos ao longo de sua carreira. E adquiriu uma noção muito boa sobre onde começam e até onde vão os interesses americanos. Pergunte aos afegãos.

Então, onde os EUA estão neste momento? O Plano A de Putin — de tomar Kiev e instaurar um líder fiel à Rússia — fracassou. E seu Plano B — de tentar simplesmente tomar o controle do antigo centro industrial da Ucrânia, conhecido como Donbas, cuja população tem origem russa em sua maioria — ainda está em dúvida.

As recentemente reforçadas tropas terrestres de Putin fizeram algum progresso, mas ainda limitado. É primavera (Hemisfério Norte) no Donbas, o que significa que o terreno ainda está pantanoso e úmido em certos locais, portanto, os blindados russos ainda têm de apelar para estradas e autopistas em muitas regiões, o que os torna vulneráveis.

O cantor irlandês Bono, do grupo U2, deu um show neste domingo em uma estação de metrô de Kiev. O artista pediu que a paz chegue em breve.

Enquanto os EUA navegam entre Ucrânia e Rússia tentando evitar ser ludibriados, um ponto brilhante no esforço para evitar uma guerra maior é o sucesso do governo americano em evitar que a China forneça ajuda militar à Rússia. Isso é importantíssimo.

Afinal, em 4 de fevereiro, o presidente da China, Xi Jinping, recebeu Putin na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, quando eles revelaram todo tipo de acordo em comércio e energia e posteriormente publicaram uma declaração conjunta garantindo que a amizade entre Rússia e China “não tem limites”.

Isso é passado. Depois que a guerra começou, Biden explicou pessoalmente para Xi, durante um delongado telefonema, que o futuro econômico da China depende do acesso do país aos mercados americano e europeu — seus dois maiores parceiros comerciais — e que se a China fornecer ajuda militar para Putin, isso teria consequências muito negativas para o comércio chinês com ambos os mercados.

Objetivo claro e definido

Xi fez a conta e foi dissuadido de ajudar a Rússia militarmente de qualquer modo, o que também enfraqueceu Putin. As restrições do Ocidente sobre exportações de microchips para a Rússia estão começando a prejudicar seriamente as fábricas do país — e a China, até agora, não se apresentou.

Minha conclusão ecoa meu ponto de partida — e não canso se ressaltar: Os EUA têm de se ater o mais estritamente possível ao seu objetivo limitado e claramente definido de ajudar a Ucrânia a expulsar as forças russas o quanto possível ou de ajudar a Ucrânia a negociar a retirada dos russos sempre que os líderes ucranianos considerem que for o momento certo para isso.

Mas estamos lidando com alguns elementos incrivelmente instáveis; em particular, um Putin ferido politicamente. Gabar-se de matar seus generais e afundar seus navios — ou apaixonar-se pela Ucrânia de maneira que nos envolva com o país eternamente — é o cúmulo da insensatez. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Por Thomas Friedman, o autor deste artigo, é Jornlista. Ganhador do Prêmio Pulitzer. Publicado originalmente no New York Times e reproduzido no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 10.05.22.

Zelenski pede ações imediatas contra crise alimentar global

Presidente da Ucrânia apela à comunidade internacional por ajuda para acabar com bloqueio russo a portos e permitir transporte de grãos. "Sem nossas exportações, dezenas de países estão à beira da escassez", diz.

Dois meses e meio após o início da guerra na Ucrânia, o presidente do país, Volodimir Zelenski, apelou à comunidade internacional para que ajude imediatamente a acabar com um bloqueio russo a portos ucranianos, de modo a permitir o transporte de grãos e, assim, evitar uma crise alimentar global.

Zelenski fez as declarações após conversar sobre a questão com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, que visitou a cidade ucraniana de Odessa, onde fica o maior porto no Mar Negro para exportação de produtos agrícolas e que foi atingida por mísseis nesta segunda-feira (09/05).

Bombeiro segura cachorro diante de prédio bombardeado em Odessa, na UcrâniaBombeiro segura cachorro diante de prédio bombardeado em Odessa, na Ucrânia

Mísseis destruíram prédios na cidade portuária de Odessa nesta segunda-feiraFoto: State Emergency Service of Ukraine/REUTERS

Segundo Zelenski, ele e Michel discutiram "medidas imediatas para desbloquear os portos da Ucrânia para exportação de grãos".

"Pela primeira vez em décadas, não há um movimento regular da frota mercantil. Isso provavelmente nunca ocorreu em Odessa desde a Segunda Guerra Mundial", disse em mensagem em vídeo.

"E isso é um golpe não só para a Ucrânia. Sem nossas exportações agrícolas, dezenas de países em diferentes partes do mundo já estão à beira da escassez de alimentos. E com o tempo, a situação pode se tornar terrível", prosseguiu.

"Isso é uma consequência direta da agressão russa, que só pode ser superada em conjunto – por todos os europeus, por todo o mundo livre. Só pode ser superada pressionado a Rússia, forçando efetivamente a Rússia a parar com esta guerra desgraçada", disse.

No Telegram, Zelenski havia dito que "medidas imediatas devem ser tomadas para desbloquear os portos ucranianos para a exportação de trigo", sem especificar a que tipo de medidas se referia.

Mapa mostra presença de tropas russas na UcrâniaMapa mostra presença de tropas russas na Ucrânia

Após fazer uma visita surpresa a Odessa nesta segunda-feira, o presidente do Conselho Europeu – do qual fazem parte os chefes de Estado ou de governo dos 27 países-membros da UE e a presidente da Comissão Europeia –, disse ter visto silos cheios de trigo e milho prontos para serem exportados, mas bloqueados.

"Esses alimentos tão necessários estão retidos por causa da guerra e do bloqueio aos portos no Mar Negro, provocando dramáticas consequências para países vulneráveis. Precisamos de uma resposta global", escreveu Michel no Twitter.

Importante exportador de grãos

Antes da guerra, a Ucrânia exportava 4,5 milhões de toneladas de produtos agrícolas por mês através de seus portos – 12% do trigo mundial, 15% do milho e 50% do óleo de girassol, segundo a agência de notícias AFP.

Mas a invasão russa, iniciada em 24 de fevereiro, abalou a capacidade de exportação ucraniana, com a destruição de infraestrutura de transporte e o bloqueio à cidade portuária de Odessa. E o conflito levou a uma alta do preço dessas commodities agrícolas.

A Ucrânia foi o quarto maior exportador de milho do mundo na temporada 2020/21 e o sexto maior exportador de trigo, de acordo com os dados do Conselho Internacional de Grãos. Mas quase 25 milhões de toneladas de grãos estão agora retidas no país, segundo a ONU.

O Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU apelou na semana passada para a reabertura dos portos na região de Odessa, afirmando que centenas de milhões de pessoas no mundo dependem do fornecimento de grãos pela Ucrânia.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que a segurança alimentar não pode ser garantida mundo afora sem a restauração da produção ucraniana para o mercado mundial.

Ajuda à Ucrânia

Moscou diz que sua "operação militar especial" na Ucrânia foi projetada para desarmar e desnazificar o país vizinho, o que a Ucrânia e o Ocidente classificam como um falso pretexto para uma guerra de agressão.

Os países da Otan, incluindo os EUA, descartaram uma intervenção armada na Ucrânia por temores de desencadear uma guerra de maiores proporções.

Nesta segunda-feira, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sancionou uma lei que reavivou um programa utilizado durante a Segunda Guerra Mundial, que ajudou a derrotar a Alemanha nazista, para agilizar a ajuda à Ucrânia. A estratégia chamada lend-lease ("empréstimo e arrendamento"), aprovada por democratas e republicanos, permite a transferência rápida de equipamentos militares e outros recursos para Kiev.

O primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, que visitou Kiev no último domingo, afirmou que seu país ajudaria a Ucrânia a encontrar opções para exportar grãos armazenados.

Deutsche Welle, em 10.05.22


lf (Reuters, AFP, ots)