sábado, 7 de maio de 2022

Editorial de O Globo hoje: Preocupa a atitude de militares diante do sistema eleitoral

Tem sido, na leitura generosa, decepcionante — ou, na pessimista, preocupante — a atitude de alguns representantes das Forças Armadas diante da eleição que se avizinha. 

É o caso dos últimos movimentos do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, que traduzem uma aproximação perigosa da instituição essencial da República que ele representa com teses conspiratórias absurdas sobre as urnas eletrônicas e a articulação política de evidente cunho golpista promovida pelo presidente Jair Bolsonaro.

É verdade que Nogueira estava certo ao contestar a frase infeliz do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), insinuando que as Forças Armadas tivessem sido “orientadas a atacar o processo eleitoral”. Desde então, porém, suas palavras e atos parecem dar razão à insinuação.

Ele foi com Bolsonaro a uma reunião do Alto-Comando do Exército, de modo a sugerir proximidade entre o presidente e a cúpula militar. Em seguida, encontrou-se com o presidente do STF, Luiz Fux, na tentativa aparente de apaziguar os ânimos institucionais. Depois, enquanto o STF celebrou o encontro como um compromisso em defesa da democracia, o Ministério da Defesa emitiu uma nota tíbia.

O texto preza o “respeito entre as instituições”, fala na “colaboração das Forças Armadas para o processo eleitoral”, mas, numa frase dúbia, reafirma “o permanente estado de prontidão das Forças Armadas para o cumprimento de suas missões constitucionais”. Que missões? A dúvida fica no ar. Em nenhum momento a nota usa a palavra-chave capaz de saná-la: democracia.

Nogueira também enviou ofício ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo a divulgação do questionamento do representante das Forças Armadas na Comissão de Transparência das Eleições (CTE). Ora, o TSE já divulgou relatório com respostas às sugestões dos integrantes da CTE, não apenas o militar. O pedido não é apenas descabido, mas pode ser interpretado — com razão — como forma de pressão.

(Após reunião de Fux com ministro da Defesa:  STF diz que Forças Armadas estão comprometidas com a democracia )

Diante dessa movimentação, dois fatos têm de ficar claros. Primeiro, não há — nem nunca houve — substância nas acusações bolsonaristas contra a urna eletrônica. Trata-se de um sistema de votação exemplar, reconhecido no mundo todo, em que jamais foi comprovada fraude. Sempre será possível aperfeiçoá-lo, mas os cenários inverossímeis aventados pelo representante militar na CTE nada oferecem em matéria de “colaboração para o processo eleitoral”. Servem apenas para semear confusão, com vista a uma possível tentativa de virada de mesa caso o resultado desfavoreça Bolsonaro.

(Fachin: TSE não vai aceitar intervenção das Forças Armadas nas eleições)

Segundo, nem o TSE nem nenhuma instituição da República está sob tutela das Forças Armadas. As sugestões dos militares devem ser analisadas como as dos demais. A decisão sobre divulgá-las, aceitá-las ou recusá-las cabe aos técnicos do TSE — e a mais ninguém. Exigir transparência é razoável, mas fazer pressão porque ideias estapafúrdias não foram atendidas é inaceitável.

É essencial, por fim, ressaltar o papel republicano que as Forças Armadas mantêm desde a redemocratização. Felizmente, o Brasil dispõe de um quadro de militares profissional, capaz e competente. É da natureza de Bolsonaro tentar envolvê-los em seu projeto golpista. Cabe às Forças Armadas, sobretudo a seus líderes, evitar cair nessa armadilha, para que continuem a desempenhar sua principal missão constitucional: respeitar a democracia.

Editorial de O Globo. Publicado originalmente em 07.05.22.

O que querem os militares?

A pergunta que se faz agora também é quando e por que os militares resolveram dar palpite político. Por Ascânio Seleme.

Desde 1985, quando chegou ao fim a ditadura inaugurada 21 anos antes, os militares brasileiros não se salientam tanto como agora. As Forças Armadas, profissionalizadas sob o exemplo do general Leônidas Pires Gonçalves no comando do Exército durante o governo de José Sarney, conviveram serenamente com a volta da eleição direta para presidente, com a implementação de uma nova Constituição em que se bradou o ódio e o nojo à ditadura, com o impeachment de dois presidentes, a eleição de um líder sindical por um partido de esquerda e de um ultradireitista. Agiram sempre como se esses assuntos não lhes dissessem respeito. E não diziam mesmo.

A pergunta que se faz agora é quando e por que os militares resolveram dar palpite político, fazer pressão sobre Poderes da República, fechar a cara e pintar-se para a guerra como se as eleições de outubro próximo fossem muito diferentes das oito últimas, que elegeram Collor, FH, Lula, Dilma e Bolsonaro. Claro que a próxima eleição será exatamente igual às anteriores. Com os eleitores sufragando livre e democraticamente seus candidatos e com o mais votado sendo eleito para tomar posse em janeiro. Não há chance disso mudar. A menos que os militares se somem à falsa paranoia do golpista Jair Bolsonaro e seus generais palacianos e tentem melar o jogo democrático.

Essa chance existe e cresceu quando oficiais superiores passaram a sair do seu quadrado ao ouvirem Bolsonaro falar em seu nome. Nunca antes um presidente teve tanta vontade de ser generalíssimo quanto o capitão, nem mesmo os generais-presidentes da ditadura. Foi depois da posse do extremista que alguns chefes militares passaram a falar como se vestissem terno e gravata e ocupassem gabinetes no Congresso. Não porque eles também sejam ultradireitistas, alguns até são, mas porque sentiram-se empoderados pelo comandante em chefe.

Os quartéis, que já estavam inflamados desde janeiro de 2018, ficaram sobremaneira excitados quando no ano passado Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e nomeou o fidelis ut canem general Braga Neto para o seu lugar. A troca dos comandantes das três Forças que se deu em seguida acabou transtornando hierarquias e provocando ainda mais agitação na caserna. Era o que queria Bolsonaro, velho arruaceiro de quartéis.

Além de convulsionar as Forças com as trocas de comando, o presidente cooptou seus líderes oferecendo milhares de cargos na administração federal a eles, seus familiares e agregados. São mais de seis mil militares em cargos de segundo e terceiro escalões. Além deles, amigos, afilhados e namorados também foram nomeados. São boquinhas que mamam nas tetas do Estado e farão o que for possível para continuar mamando em 2023. Inclusive colaborando para a permanência ilegal de Bolsonaro no poder.

Como já foi dito aqui, Bolsonaro vai tentar mais uma vez dar um golpe se for derrotado em outubro. Para isso, para obter o apoio de quem tem as armas, é que ele vem alimentando os militares com cargos e salários públicos. E estes têm seguidamente demonstrado boa vontade com o capitão. Viu-se isso no episódio do TSE, na questão da tortura com conhecimento do STM, na ultrajante comemoração do 31 de março e nos sucessivos solavancos dados por Bolsonaro nas instituições. Os oficiais que falam, pessoalmente ou por nota, estão subordinados aos desejos antidemocráticos do capitão.

Não são poucos os generais dispostos a manchar seus nomes e biografias numa aventura golpista. Se a tragédia ocorrer, vão entrar para a História como homens mesquinhos, oportunistas, que tentaram desviar o curso de uma nação apenas para manter seus cargos e os de seus filhos e genros. Há pouca ideologia por trás do golpe, trata-se principalmente de dinheiro público em bolsos privados. Por sorte, não são todos. Há outros generais, muitos, que não navegam por essas águas escuras. Nestes, e nas forças civis desarmadas, deve-se repousar a esperança de um Brasil grande, livre e verdadeiramente democrático.

Imunidade arcaica

Nenhum país concede tantas imunidades aos seus parlamentares quanto Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Do grupo de ex-ditaduras do Cone Sul, apenas o Chile está fora da lista de piores num estudo feito em 90 países pelos professores e pesquisadores Karthik Reddy, Moritz Schularick e Vasiliki Skreta. Os quatro países refletiram em suas leis preocupação que teve origem nas ditaduras, procurando defender os parlamentares da má vontade de um governante de botas. Na maioria dos países pesquisados as imunidades são limitadas. Na Inglaterra não há qualquer imunidade parlamentar, nem mesmo para o primeiro-ministro. O que deve ser inalcançável pela Justiça é o voto do representante popular, não as suas opiniões e palavras. O exagero pode significar que não importa o que diga o parlamentar, nada lhe será imputado. Essa é a questão de Daniel Silveira. Alega que a ameaça que fez ao Supremo, aos ministros e seus familiares era opinião e deve ser protegida. Não foi opinião, foi crime e precisa ser punido.

Faltam Marinas

Sobram Gleisis na campanha de Lula. Manda-chuvas como a presidente do PT espalham-se por todos os cantos do partido. Cada nicho tem um chefe. Também abundam operários, carregadores de piano prontos para obedecerem ordens que vêm de cima. Não se pode negar que o PT seja organizado e disciplinado. Não fosse assim, as regionais nos estados, fora São Paulo, jamais teriam engolido tantos sapos por tanto tempo. O que o PT mais precisa agora é de ponderação e sensibilidade. Faltam Marinas na campanha de Lula.

Problema

O problema no PT é que a cada dia diminui o número de pessoas com coragem para chamar a atenção de Lula. Já foi melhor, hoje, poucos apertam o chefe ou criticam as bobagens que ele eventualmente fala. Os mais próximos do candidato são os que mais dão tapinhas de incentivo em suas costas. A mudança na estrutura da campanha tem este sentido. Já a afirmação de que Zelenski, Estados Unidos e Europa são tão responsáveis pela guerra na Ucrânia quanto Putin não foi uma bobagem. O PT ainda julga que o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, é a fonte de todos os males da humanidade.

Vale insistir

É mais do mesmo a declaração do novo comandante da PM de São Paulo, coronel Ronaldo Miguel Vieira, de que não vai permitir manifestações políticas de militares da ativa. A lei já determina isso. Mas a manifestação do coronel é muito bem-vinda nestes tempos bicudos em que aquartelados querem se meter em tudo, até na contagem de votos.

A lista de FH

No documentário “O presidente improvável”, Ricardo Lagos diz que salvou 100 chilenos da ditadura de Pinochet com dinheiro enviado a ele por Fernando Henrique Cardoso. O ex-presidente do Chile diz que FH mandou US$ 5 mil do Cebrap para o seu grupo em Santiago, suficiente para comprar cem passagens aéreas para Buenos Aires. Os sobreviventes do regime saíram do país aos poucos, sempre com a desculpa de estar indo participar de seminários no país vizinho.

Democracia pra quê?

No mesmo documentário, FH defende a liberdade e a democracia por outra razão, além da simples mas imprescindível autodeterminação das pessoas e das nações. “Precisamos de liberdade, mas liberdade pra quê? Precisamos de democracia. Mas pra quê? Para a elite? Para eleger senador? Isso não adianta. Precisamos de democracia para que você (cidadão) participe. Democracia é para ajudar ao povo, para a guerra contra a miséria”. O documentário dirigido por Belisario Franca está disponível na Globoplay.

Imagine só

O inacreditável Ernesto Araújo publicou um vídeo de 1h32m no YouTube para atacar o globalismo e, veja se pode, criticar a música “Imagine”, de John Lennon. Logo no começo, ele observa que a letra pede para as pessoas imaginarem um mundo sem céu (paraíso), ou nas suas palavras, “uma realidade transcendente”. Seu raciocínio é tão pequeno e mesquinho que não alcança a genialidade de Lennon. Para ele, o autor apenas recomenda que se deixe de acreditar em Deus, não conseguindo entender o enorme libelo de paz contido na letra.

Bichonete de volta

A nota publicada aqui sobre a lanchonete do Itamaraty conhecida por bichonete causou certo rebuliço no Ministério das Relações Exteriores. Apesar de ser preconceituoso e abusivo, o apelido já está consolidado e, para muitos, não vale a pena fazer qualquer movimento junto a Google e Foursquare para tirar a referência dos seus mapas e sites. Tem gente que pensa diferente. Um diplomata fez a seguinte provocação: “O apelido é tão homofóbico quanto seria racista se o estabelecimento fosse chamado de petronete”.

As minas de Zema

Nas Minas Gerais de Romeu Zema quem defende as mineradoras é a Secretaria de Meio Ambiente. É o que se vê agora na questão da exploração mineral na Serra do Curral. Todos os comunicados e entrevistas sobre o assunto, defendendo a exploração de minério na área considerada como a Floresta da Tijuca de Belo Horizonte, são da secretária do setor Marília Melo. Difícil dizer quem protege o estado dos problemas ambientais gerados pelas mineradoras. Zema bebe na fonte garimpeira de Bolsonaro.

Ascânio Seleme, o autor deste artigo, é colunista de O Globo. Publicado originalmente em 07.05.22.


É preciso reagir aos crimes de Bolsonaro

Ao atacar o processo eleitoral e envolver as Forças Armadas em sua campanha de deslegitimação das urnas, Bolsonaro incorre na prática de crimes. Congresso e PGR têm de agir

  O Congresso e a Procuradoria-Geral da República (PGR) têm o dever de reagir às ameaças e agressões que Jair Bolsonaro vem cometendo contra a Constituição, a legislação eleitoral e a Lei 1.079/1950 (Lei do Impeachment). Não podem ficar passivos perante tão insistente violência do presidente da República contra a ordem jurídica e o regime democrático.

No dia 5 de maio, Jair Bolsonaro anunciou que as Forças Armadas vão realizar uma tarefa inteiramente estranha às suas competências constitucionais. “As Forças Armadas não vão fazer papel de chancelar apenas o processo eleitoral, participar como espectadoras do mesmo”, disse Bolsonaro.

Com tal anúncio, verdadeira ameaça contra o processo eleitoral, o presidente da República violou a Constituição que jurou defender. As Forças Armadas “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, diz a Constituição. Não é papel dos militares tutelar eleições.

Entre os crimes de responsabilidade, a Lei 1.079/1950 inclui “incitar militares à desobediência à lei ou infração à disciplina”. De forma evidente e continuada, o que Jair Bolsonaro tem feito é incitar a que Marinha, Exército e Aeronáutica se sintam autorizados a agir fora de suas competências constitucionais. Ao contrário do que disse Bolsonaro, as Forças Armadas são rigorosamente espectadoras do processo eleitoral. É assim que funciona num regime democrático.

Meses atrás, Jair Bolsonaro incitou o Congresso a colocar-se contra o processo eleitoral. Felizmente, o Legislativo foi prudente e rejeitou as propostas do Palácio do Planalto. Em vez de proporcionar maior segurança e confiabilidade, o projeto do voto impresso introduzia fragilidades no sistema, suscitando situações para novas e velhas fraudes. Era descarada tentativa de impor o retrocesso num processo eleitoral que funciona muito bem, de forma rápida, segura e confiável. Na ocasião, Jair Bolsonaro prometeu acatar a decisão do Congresso. Não apenas não cumpriu sua promessa, como tenta agora envolver as Forças Armadas em sua campanha de deslegitimação do processo eleitoral.

Infelizmente, a incitação de Jair Bolsonaro para que as Forças Armadas atuem fora de suas competências não é um perigo abstrato ou distante. Por exemplo, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, sentiu-se no direito de pedir ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a divulgação de propostas das Forças Armadas sobre o processo eleitoral. O ofício do ministro da Defesa é um total disparate, a revelar incompreensão sobre o funcionamento de um Estado Democrático de Direito.

O convite para que as Forças Armadas participassem, em função consultiva, sem nenhum poder decisório, da Comissão Externa de Transparência da Justiça Eleitoral não autoriza o ministro da Defesa a exercer pressão pública sobre o TSE, opinando sobre o que a Corte deveria dar publicidade. Cabe ao TSE ser muito firme na defesa de suas prerrogativas constitucionais, sem transigir com esse tipo de pressão, que, de uma só vez, agride a independência do Judiciário e extrapola as competências das Forças Armadas.

Como se não bastasse, Jair Bolsonaro anunciou que seu partido, o PL, vai contratar uma empresa para auditar as eleições. A legislação eleitoral prevê essa possibilidade, mas não é bem isso o que Bolsonaro quer. Ele deseja criar atrito com a Justiça Eleitoral e desconfiança nas urnas. Já até anunciou a pretensa jogada: “Ela (a empresa) pode falar ‘aqui é impossível auditar’ e não fazer o trabalho. Olha a que ponto vamos chegar”, disse. Com essa conduta, Jair Bolsonaro incorre noutro crime de responsabilidade, previsto no art. 7.º da Lei 1.079/1950: “Utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral”.

O País tem, portanto, lei para punir Jair Bolsonaro pelo que está fazendo. Cabe ao Congresso e à PGR torná-la efetiva. Não é tempo de covardia. Ao permitirem que o presidente da República perturbe as eleições, como há tempos está fazendo, as instituições a quem caberia impedi-lo prejudicam a si mesmas. Afinal, no regime sonhado por Bolsonaro, o Congresso, o Ministério Público e outras expressões do poder soberano do povo não têm nenhuma serventia. 

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 07 de maio de 2022 

Partidos que traem a própria história

Buscar apoios de ocasião por pragmatismo político pode não ser uma boa decisão. Por João Gabriel de Lima

Para conquistar o respeito dos cidadãos, no entanto, os partidos precisam, primeiro, respeitar a si próprios. Foto: Dida Sampaio/Estadão

“Navegar é preciso, viver não é preciso.” A frase do italiano Francesco Petrarca, adotada como lema de vida por outro poeta, o português Fernando Pessoa, marcou um discurso histórico de Ulysses Guimarães em 1973. Na ocasião, o deputado se lançou “anticandidato” à Presidência da República em protesto contra o jogo de cartas marcadas da ditadura militar. Surgia o mito fundador do MDB, partido forjado na oposição ao autoritarismo.

Vinte anos mais tarde, os brasileiros já haviam conquistado, com muita luta, a democracia, mas sofriam com outro flagelo: a inflação. Foi quando o presidente Itamar Franco chamou Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda. Comandando um time de economistas brilhantes, Fernando Henrique colocou em marcha o Plano Real e criou o que se tornaria a marca do PSDB: congregar acadêmicos de alto nível para resolver problemas complicados do País.

São talvez os momentos mais altos das trajetórias de MDB e PSDB, siglas que tiveram também vários pontos baixos, incluindo o envolvimento em escândalos de corrupção. São, no entanto, partidos com tradição e legado. Não são siglas oportunistas criadas para apoiar governos em troca de benesses de ocasião.

Faz sentido que deputados de tais partidos abram mão de criar uma alternativa eleitoral para apoiar Jair Bolsonaro?

O Estadão lançou este questionamento num editorial publicado nesta semana, “Vendilhões da democracia”. De acordo com o texto, a proximidade com um “presidente da República que afronta as instituições, põe em dúvida o processo eleitoral e tenta envolver as Forças Armadas em devaneios golpistas” não combina com a luta do MDB contra a ditadura.

Da mesma maneira, nada mais oposto ao espírito tucano que a atitude negacionista de Bolsonaro na pandemia. Políticos do PSDB de São Paulo passaram os últimos meses enxovalhando o presidente, enquanto o governo paulista comprava vacinas e contrariava, ponto por ponto, a cartilha do governo federal.

Buscar apoios de ocasião por pragmatismo político pode não ser uma boa decisão. “Derrotas em eleições são do jogo. O pior é a derrota política, quando um partido perde seu legado e não deixa nada para a eleição seguinte”, diz o cientista político George Avelino, da Fundação Getulio Vargas, em entrevista ao minipodcast da semana.

Os brasileiros são criticados por votar em pessoas e não em partidos, o que abre caminho para aventuras populistas. A crítica é pertinente. Para conquistar o respeito dos cidadãos, no entanto, os partidos precisam, primeiro, respeitar a si próprios. Ao rasgar o passado, arriscam-se a jogar o futuro no lixo.

Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 07.05.22

‘Único nome a ser testado é o de Simone Tebet’, afirma Eduardo Giannetti

Para economista, senadora tem vantagem na terceira via por ser mulher e do Centro-Oeste

Pré-candidatos dialogam pouco com o eleitor, afirma Giannetti. Foto: Helcio Nagamine/Estadão

Eleito em dezembro membro da Academia Brasileira de Letras pela obra na qual faz reflexões sobre os caminhos do Brasil, o economista e escritor Eduardo Giannetti disse ao Estadão que esperava que forças políticas se unissem para impedir a reeleição de Jair Bolsonaro. Não viu o movimento acontecer. Na terceira via, Giannetti vê dificuldade de encontrar um nome com capacidade de diálogo com o eleitor suficiente para quebrar o cenário polarizado. Entre os nomes que se apresentam, avalia que Simone Tebet (MDB-MS) leva vantagem por ser mulher e ainda não ter sido testada em disputa majoritária. A seguir os principais trechos da entrevista.

Há alguém na terceira via que pode se tornar competitivo até outubro?

Os ingleses têm um ditado que diz “uma semana é um tempo longo na política”. A política tem uma dinâmica e uma temporalidade muito acelerada e, portanto, é perfeitamente possível. Agora, quanto mais a gente se aproxima da eleição, mais remota parece essa possibilidade. Principalmente diante da ausência de um nome que seja realmente capaz de catalisar a parte ponderável do eleitorado que preferiria ter uma alternativa à polarização de Bolsonaro e Lula. A dificuldade é encontrar um candidato que consiga galvanizar esse eleitorado que não deseja repetir em 2022 a polarização raivosa que houve em 2018 e que está se anunciando mais uma vez.

Qual é o problema da disputa entre Lula e Bolsonaro?

Ambos dividem o Brasil, cada um à sua maneira e por distintas razões. Não é bom ter uma eleição em que os candidatos representam um País rachado ao meio e despertam rejeição do outro lado, em níveis muito altos. O perigo disso descambar para um cenário de violência e de conflito é grande.

O fiasco das manifestações de 1.º de Maio é reflexo do cansaço com a política?

Nenhum político brasileiro hoje consegue mobilizar a população para a rua. Bolsonaro que pareceu erroneamente, em 2018, ser alguém que vinha de fora, um outsider, na verdade nunca o foi. Ele estava havia 30 anos no Congresso, onde não fez absolutamente nada, exceto propor a autorização da pílula do câncer. É preciso colocar o Bolsonaro dentro de um contexto mais amplo. Não é algo isolado de um processo que está ocorrendo em escala planetária, que é a ascensão de uma direita populista. Esse fenômeno se reflete em muitos países com características distintas, mas com substrato comum.

Por que os outros candidatos não conseguiram conquistar o eleitor?

A alternativa não surge por uma série de razões que vão de fogueiras das vaidades até falta de lideranças que consigam se comunicar com o brasileiro comum. Esse é um fenômeno muito sério na política brasileira. Gostemos ou não, só dois líderes brasileiros fazem com que o brasileiro comum sinta que estão falando com ele: Lula e Bolsonaro.

João Doria (PSDB), Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT) têm apelo que fale com o brasileiro?

O único nome que ainda está por ser testado é a Simone Tebet e o fato de ser uma mulher do Centro-Oeste é um ativo. Mas precisaria ter um vice com um perfil muito forte e popular e com penetração na Região Nordeste para ter uma chapa competitiva.

Em tempos de redes sociais, qual a influência do relacionamento entre as lideranças econômicas e os candidatos?

O efeito é mínimo. Em alguns casos é até contraproducente. As lideranças tradicionais dos partidos, quando falam, parecem estar se dirigindo à zona sul do Rio, aos Jardins, ao câmpus universitário. Não estão falando com o brasileiro comum. Isso não é uma coisa que se improvisa ou um golpe publicitário. É uma experiência de vida, que dá à pessoa a condição de se fazer entender. O eleitor brasileiro é altamente movido por afeto, por sentimento, por emoção. Não é movido por ideias e planos de governo. É um eleitor profundamente emocional, que muda de opinião. Muita gente que votou no Bolsonaro tinha votado no Lula. E agora possivelmente vai votar no Lula, tendo votado em Bolsonaro.

Por Cristiane Barbieri, O Estado de S. Paulo, em 07.05.22

Em três anos, Petrobras distribui R$ 447 bilhões ao governo federal, o dobro do seu lucro

O valor foi transferido pela estatal à União, desde o início do governo Bolsonaro, a título de dividendos, impostos e royalties; lucro da Petrobras é o maior entre as principais petroleiras globais

     Sede da Petrobras; estatal foi a petroleira que registrou, em dólares, o maior lucro líquido no primeiro trimestre no mundo. Foto: Sergio Moraes/Reuters - 09/12/2019

Na quinta-feira, 5, após a Petrobras anunciar lucro de R$ 44,5 bilhões no primeiro trimestre, o presidente Jair Bolsonaro (PL) veio a público reclamar do número, que considerou um “estupro” ou um “crime”. Mas, como o governo federal é o maior acionista da empresa, talvez o mais correto fosse comemorar, já que, quanto melhor o desempenho da empresa, mais dinheiro entra nos cofres públicos.

Entre janeiro de 2019 (início do governo Bolsonaro) e março deste ano, a Petrobras já injetou nos cofres federais R$ 447 bilhões, levando-se em conta, além dos dividendos, os impostos e os royalties pagos. Os números constam dos relatórios fiscais da companhia. Nesse período, o lucro líquido foi de R$ 200 bilhões. Se a conta considerar o faturamento (R$ 1,16 trilhão), o valor transferido corresponde a 38,5% do total.

Considerando-se ainda o que a empresa paga a Estados e municípios, o montante que entra nos cofres públicos chega a R$ 675 bilhões. Para se ter uma ideia do que isso significa, só o montante pago à União corresponde a aproximadamente cinco vezes o orçamento do Auxílio Brasil previsto para este ano, em torno de R$ 89 bilhões. O dinheiro também chega perto do desembolso feito pelo governo em 2020 com gastos relacionados à covid-19, de R$ 524 bilhões. 

O diretor executivo interino da Instituição Fiscal Independente (IFI), Daniel Couri, afirma que, dado o tamanho da contribuição da Petrobras, é muito relevante sua importância para a saúde das contas públicas do País. O cálculo, por alto, é de que, sozinha, a Petrobras responda por algo entre 1% e 2% do total da arrecadação federal – é de longe o maior contribuinte individual. 

“Provavelmente, sozinha, a Petrobras consegue pagar todas as despesas de saúde no Brasil”, diz o especialista. Couri lembra ainda que parte desses recursos vindos da estatal não é dinheiro carimbado, ou seja, que já tem destinação obrigatória – ao contrário, é de uso livre, algo importante para as contas do governo. 

Em entrevista para comentar os resultados da companhia nesta sexta-feira, 6, o presidente da estatal, José Mauro Coelho, reiterou a ideia de que, quanto mais forte é o resultado, mais impostos são recolhidos para a União, o que beneficia a sociedade. Ele lembrou que, apenas neste primeiro trimestre, foram pagos pela empresa cerca de R$ 70 bilhões em impostos, o que "promove mais empregos, permite que Estados e municípios façam investimentos". Desse valor, R$ 44 bilhões foram para a União. Além disso, outros cerca de R$ 15 bilhões em dividendos relativos ao primeiro trimestre também vão entrar nos cofres federais.

Os antecessores de Coelho no cargo, Roberto Castello Branco e Joaquim Silva e Luna - demitidos por Bolsonaro -, defendiam ardentemente a mesma tese do atual presidente. Em entrevista ao Estadão/Broadcast em janeiro, Silva e Luna disse que "a contribuição da Petrobras é quando se torna uma empresa saudável e gera recursos, que repassa para a União na forma de tributos". Segundo ele, a empresa não pode fazer política pública, seu papel é colocar recursos na mão de quem pode fazer - o governo, no caso. 

Lucro

A Petrobras foi a petroleira que registrou, em dólares, o maior lucro líquido no primeiro trimestre no mundo. Segundo levantamento feito pela empresa de informações financeiras Economática, o lucro da Petrobras, de US$ 9,405 bilhões, foi quase o dobro dos US$ 5,480 bilhões registrados pela americana ExxonMobil, a maior petroleira do mundo em valor de mercado.  

Ao rebater as críticas que o presidente Jair Bolsonaro fez ao tamanho do lucro da estatal, Coelho disse que a disparada das cotações internacionais do petróleo turbinou os resultados de todas as petroleiras e que o lucro da estatal brasileira está no “mesmo patamar” do das demais empresas.

Entre as dez maiores companhias que já divulgaram resultados, o lucro da Petrobras foi maior do que o registrado por petroleiras que faturaram mais, como Chevron, BP, PetroChina, CNOOC e Eni Spa – a anglo-holandesa Shell ainda não divulgou o balanço. A maior receita do mundo ficou com a PetroChina, que faturou US$ 122,929 bilhões no primeiro trimestre. Mesmo assim, a chinesa teve lucro líquido de US$ 6,161 bilhões, segundo os dados da Economática.

Todas as principais petroleiras do mundo viram suas receitas saltarem na comparação com 2021. A maioria também experimentou uma disparada no lucro líquido. Foi o caso da ExxonMobil (100,7% a mais), Chevron (alta de 354,5%), Conocophillips (mais 486,5%), PetroChina (46% mais) e CNOOC (avanço de 1.315,9%). Mesmo nesse quesito, a Petrobras foi destaque absoluto, com disparada de 4.492% ante o primeiro trimestre de 2021. 

O bom resultado é um efeito direto da guerra na Ucrânia, que fez disparar a cotação do barril de petróleo no mercado global, para um patamar acima dos US$ 110 o barril.

Bom humor

As críticas de Bolsonaro ao lucro da Petrobras não tiraram o bom humor do mercado com o resultado da empresa na sexta – principalmente após a informação de que os dividendos do primeiro trimestre serão de R$ 48,5 bilhões. “No geral, os resultados foram muito bons, mas os dividendos roubaram a cena”, aponta relatório do banco Credit Suisse, enviado a clientes. 

A XP também destacou os dividendos, mas reconheceu que o ruído político tem prejudicado o desempenho das ações da companhia. “Os dividendos estão proporcionando aos investidores um bom retorno total das ações, apesar do ruído político que mantém os preços (e índices) das ações reprimidos”, destacou.  

Fernanda Guimarães, Vinicius Neder e Denise Luna , O Estado de S.Paulo, em 07 de maio de 2022 

sexta-feira, 6 de maio de 2022

A depressão num país deprimido

O alto índice da doença entre os brasileiros não terá relação direta com as estruturas políticas hojedeprimidas? Por Flávio Tavares

O aumento dos casos de depressão no Brasil (que os especialistas qualificam como assustador) mostra algo que deveria ser entendido – ou resolvido – pela sociedade inteira, não apenas pelos diretamente afetados. Pesquisa recente do Ministério da Saúde nas 26 capitais estaduais e em Brasília aponta que mais de 11% dos brasileiros sofrem de depressão. A cifra supera, inclusive, os afetados por diabetes, que nos últimos anos aparecia como doença em avassaladora expansão.

Não busco substituir-me à psicanálise ou aos psicanalistas nem ser um panfletário Freud perscrutando os desvãos do inconsciente. Tento apenas chamar a atenção para as causas sociais de um distúrbio provocado, também, pelo ambiente cotidiano.

Sim, pois estamos cercados pelas atraentes e perigosas quinquilharias da sociedade de consumo. Não foi ao acaso que a pesquisa constatou que o endividamento pessoal tornou-se a principal causa da depressão, afetando mais do que tudo as mulheres. A compulsão por comprar “todas as novidades” – até as inalcançáveis – afeta todas as classes sociais, mas tem crescido nos setores médios, superando em muito os orçamentos domésticos.

Em consequência, surge o endividamento familiar e as dívidas crescem com os escorchantes juros bancários.

Os endividados buscam aliviar-se do peso da dívida e passam a beber, numa (falsa, mas habitual) tentativa de fugir do problema. O arco perigoso se completa, então, e surge o alcoolismo, estimulado pela tonitruante propaganda para consumir cerveja e similares. Com outros ingredientes, repete-se a situação dos anos 1930-1970 em que fumar era visto como elegante e de bom tom. Quando o cancioneiro argentino arrebatava o mundo ocidental, surgiu até um tango que pregava “fumar é um prazer”.

A pretendida e falsa fuga do endividamento através da bebida abre portas para os estados depressivos gerados pelo alcoolismo. O torpor típico dos deprimidos, que passam na cama todo tempo possível, agrava o quadro pela falta de exercícios físicos.

A pesquisa constatou, ainda, que as mulheres – aparentemente por problemas hormonais – têm o dobro do risco dos homens para desenvolverem a depressão.

A pandemia agravou e expandiu o quadro geral da depressão ao restringir a convivência e o contato pessoal. O distanciamento e o “trabalho em casa” nos protegem da covid-19, mas geram, igualmente, a solidão que alimenta o deprimido.

Hoje, especialmente nas grandes cidades, os psicanalistas vêm constatando um forte aumento dos casos de depressão entre os adolescentes. A vida tensa nas grandes cidades é uma das faces do problema, ao qual se juntam outros criados pela competição desenfreada da sociedade de consumo, em que, desde tenra idade, somos levados até a esmagar e destruir o outro para “vencer na vida”.

Trata-se, inclusive, da perda total da visão cristã que manda “amar ao próximo como a ti mesmo”. A ânsia de vencer passou a dominar a própria vida, não só o desporto, que é competição em si. Chegamos a competir conosco mesmos, gerando angústias que acabam em depressão.

Desconheço se a situação se resume ao Brasil ou se é, como penso, um fenômeno mundial gerado (ou agravado) pela ansiedade de consumir.

Entre nós, tudo cresceu a partir de janeiro de 2019, quando os atos iniciais do novo governo federal mostraram a confusa balbúrdia que aumentou nos tempos seguintes. As armas passaram a ter prioridade sobre o amor. Armai-vos uns aos outros substituiu o preceito que os Evangelhos resumem no “amai-vos uns aos outros”.

Em paralelo ao quadro geral de incentivo ao ódio, surgiu a pandemia, com o presidente da República desmobilizando a população nos cuidados com o novo coronavírus, que Jair Bolsonaro chamava de “gripezinha” sem importância.

Armou-se no País, desde então, uma situação de medo geral, quase pânico, com o presidente da República inventando, até, que a vacinação anticovid provocava aids.

A sucessão de disparates verbais veio acompanhada de um crescente aumento de preços dos bens essenciais de consumo, dos alimentos aos combustíveis. O índice geral de preços cresce a cada dia, tal qual o desemprego, que chega a mais de 11 milhões de brasileiros, mais que o dobro da população do Uruguai.

O fantasma da inflação reaparece como se fosse maldição da qual não podemos fugir. No recente 1.º de maio, porém, o Dia do Trabalho nada reivindicou aos trabalhadores nem expôs as penúrias do desemprego. Grupos bolsonaristas se concentraram nas ruas pedindo a dissolução do Supremo Tribunal Federal e a intervenção militar. Ou seja, reivindicaram a ditadura, num absurdo dos absurdos.

Não será isso – indago – uma inusitada forma de depressão generalizada, que abarca até o ambiente político, num país em que os partidos se transformaram em meros aglomerados de pessoas em busca de poder pessoal ou de negociatas? O alto índice de depressão não terá relação direta com as estruturas políticas hoje deprimidas?

Flávio Tavares, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Publicado originalmente n'O EStado de S. Paulo,em 06.05.22

É preciso preservar a autoridade do STF

Supremo tem enfrentado um cenário inédito de resistência e oposição em amplos setores da sociedade. Todos, especialmente os ministros do STF, devem zelar pela autoridade da Corte

A Constituição de 1988 dispõe que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são “independentes e harmônicos entre si”. No entanto, há uma percepção perigosamente generalizada na sociedade de que a Justiça, em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), está em uma rota de desarmonia crescente com os outros Poderes. O Supremo estaria num grau inédito de isolamento, resultado de decisões que teriam contrariado parte da opinião pública e, pior, aplicado de forma duvidosa e parcial a Constituição.

A situação é grave. O País precisa não apenas de uma Corte constitucional, mas de uma Corte constitucional respeitada e com autoridade. Suas decisões precisam ser acatadas, concorde-se ou não com elas.

No dia 21 de abril, o presidente Bolsonaro tripudiou de uma sentença condenatória do STF, usando um decreto de indulto como se fosse órgão revisor da Corte. O Executivo federal não respeitou a independência da Justiça, e menos ainda atuou de forma harmônica com o Judiciário. Fez o exato contrário: toda a ação do Palácio do Planalto foi para destacar sua desarmonia com o Supremo.

Ao abusar do cargo, Jair Bolsonaro merece a mais cabal reprovação. Indulto não revisa decisão judicial, não altera entendimento jurisprudencial. No entanto, apesar de todas as evidências de uso antirrepublicano do poder de indultar penas, parte significativa da população entendeu que a ação de Bolsonaro não foi assim tão equivocada. Para essas pessoas, a atuação do Supremo nos últimos anos – não só em questões ligadas ao governo Bolsonaro – estaria de fato merecendo algum tipo de resistência.

Tem-se aqui um problema sério. De acordo com a Constituição de 1988, é o STF quem dá a última palavra sobre a Constituição, como ocorre nas Constituições dos países democráticos. A pretensão de falar depois do Supremo é descumprimento da Constituição, levando à corrosão do funcionamento do próprio regime democrático.

Essa prerrogativa do Supremo, que sempre foi tão cristalina, tem sido cada vez mais questionada, seja pelos golpistas bolsonaristas, seja por cidadãos que entendem que o Judiciário está repleto de ativistas políticos de esquerda. A justificativa é uma só: como o Supremo quer ser a última palavra, se ele mesmo descumpre, quando lhe convém, a Constituição?

Esse é o grande problema. No momento em que o Supremo tem sua autoridade questionada, deixa de ser visto como intérprete legítimo da Constituição, o que afeta a compreensão do próprio texto constitucional. A Constituição já não é mais o que diz o STF, e sim o que cada um entende que ela seja. Nesse diapasão, a decisão judicial que desagrada não é mais vista como um ato que, apesar de contrariar o ponto de vista pessoal, continua dispondo de autoridade e exigindo obediência. Aos olhos de quem foi desagradado, a decisão é tachada de ilegítima, já que estaria descumprindo a Constituição.

Esse cenário inverte o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito. Em tese, a atividade jurisdicional, acompanhada da devida fundamentação jurídica, deve gerar uma contínua legitimação do Poder Judiciário perante a população. Mesmo que contrarie a preferência pessoal, a decisão judicial fundamentada deve ser apta a suscitar respeito e obediência. Na situação atual de desprestígio da Corte, ocorre o oposto. Até o exercício jurisdicional do Supremo mais rigorosamente fundamentado parece confirmar, em quem foi contrariado, a ideia de desvio de finalidade da Corte.

O quadro não será revertido batendo boca com o Palácio do Planalto. Todos têm o dever de proteger, dentro de suas possibilidades e atribuições, a independência do Judiciário e a autoridade do Supremo: é parte constitutiva do regime democrático, é elemento necessário de cidadania. No caso dos ministros do STF, cumpre-se esse dever observando as obrigações próprias de juiz, seja qual for a época ou lugar: ser o primeiro cumpridor da lei, falar apenas nos autos, ser consciencioso com os limites de sua função, não buscar os holofotes, não usar o cargo para promover ideias ou convicções pessoais. São juízes, servos da lei, e assim devem ser vistos.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 06 de maio de 2022 | 03h00

Os três recados diretos dos EUA a Bolsonaro sobre o sistema eleitoral e a democracia brasileira; leia análise

Os Estados Unidos, maior potência mundial e país-modelo de democracia para Jair Bolsonaro, já deram o recado ao presidente três vezes: as eleições no Brasil e o sistema de urnas eletrônicas são confiáveis e não devem ser questionadas sem provas. Por Felipe Frazão.

Diretor da CIA, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca e subsecretária de Estado para Assuntos Políticos deixaram claro que, para o governo Biden, as urnas eletrônicas são confiáveis (Foto: Brynn Anderson/AP)

A principal autoridade a vocalizar a mensagem do governo Joe Biden foi o diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William J. Burns, em 1º de julho de 2021, conforme revelou nesta quinta-feira, dia 5, a Reuters. A agência de notícias informou ter confirmado o teor do recado, ouvido por Bolsonaro e seus ministros do Palácio do Planalto, com três fontes a par dos assuntos tratados pela delegação da CIA.

Os Estados Unidos, maior potência mundial e país-modelo de democracia para Jair Bolsonaro, já deram o recado ao presidente três vezes: as eleições no Brasil e o sistema de urnas eletrônicas são confiáveis e não devem ser questionadas sem provas. Foto: AP Photo/Eraldo Peres

Os Estados Unidos, maior potência mundial e país-modelo de democracia para Jair Bolsonaro, já deram o recado ao presidente três vezes: as eleições no Brasil e o sistema de urnas eletrônicas são confiáveis e não devem ser questionadas sem provas. Foto: AP Photo/Eraldo Peres 

A visita foi cercada de mistério. Tanto o governo brasileiro quanto a embaixada se recusam a dar mais explicações. Também não divulgaram a agenda previamente. Além das audiências no Palácio do Planalto, ministros do governo Bolsonaro participaram de um jantar no Lago Sul, oferecido pelo então embaixador, Todd Chapman.

Questionados por parlamentares, os generais Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria Geral da Presidência), preferiram termos genéricos, que dificultaram a compreensão do que foi tratado.

”A pauta versou sobre assuntos afetos à promoção da democracia, da segurança e da estabilidade no hemisfério”, afirmou Heleno. “Desconheço, naquela ocasião, a abordagem de assuntos contrários ao Estado Democrático de Direito”, asseverou Ramos. Ambos falaram ainda em diálogos informais, conforme ofícios remetidos por eles ao Congresso.

A principal autoridade a vocalizar a mensagem do governo Joe Biden foi o diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William Burns, em 1º de julho de 2021.

A principal autoridade a vocalizar a mensagem do governo Joe Biden foi o diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), William Burns, em 1º de julho de 2021. 

Nesta quinta, durante live com o presidente, Heleno disse que “essa conversa sobre eleições jamais aconteceu”. Bolsonaro também tentou desacreditar a reportagem. “Seria extremamente deselegante chefe de agência como a CIA ir a outro país dar recado”, afirmou o presidente.

Diplomatas do Itamaraty, que não se pronunciou oficialmente, seguem a linha da desconfiança. Dizem, nos bastidores do governo, que o relato sobre a visita do chefe da CIA requenta especulações e pode não ser tão preciso. Um deles lembra que um recado desses poderia soar como interferência e que um diretor da CIA não seria tão contundente, ainda mais com o perfil de Burns, que é diplomata.

Mas a preocupação com a insistência de Bolsonaro em levantar suspeição sobre as eleições brasileiras, sem provas, não se restringem à maior agência de inteligência do mundo. E atravessaram o ano.

Em agosto de 2021, Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, transmitiu pessoalmente a Bolsonaro mensagem similar à de Burns, alertando que o presidente não deveria “desacreditar o processo eleitoral” e que não havia evidências de fraudes no sistema. Na ocasião, outro colaborador de Biden, o diretor sênior do Conselho de Segurança Nacional, Juan González, confirmou a conversa em entrevista promovida pelo governo Biden.

Porta-voz dos EUA afirma que Brasil tem ‘forte histórico de eleições livres e justas’

Ned Price mandou ainda um recado aos eleitores: ‘É importante que os brasileiros confiem em seu sistema eleitoral’

Diretor da CIA disse ao governo Bolsonaro para não mexer com eleição no Brasil, afirma Reuters

Fontes informaram à agência que William J. Burns alertou os ministros Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos sobre falas do presidente durante jantar em Brasília, em julho do ano passado

Na semana passada, a subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, Victoria Nuland, tratou das eleições em visita no Itamaraty. Despachada em missão oficial do Departamento de Estado a Brasília, disse que, assim como os americanos, os brasileiros também deveriam confiar na tradição nacional de realizar eleições justas e livres, nas instituições democráticas e no sistema de urnas eletrônicas, “inclusive no nível de liderança”. A expressão, embora permita mais de uma interpretação, costuma ser usada no jargão diplomático para se referir aos líderes políticos, ou seja, chefes de Estado e governo, no caso, o presidente Bolsonaro. O porta-voz do departamento, Ned Price, reiterou a fala de Nuland nesta quinta.

Tampouco é a primeira vez que Washington manifesta preocupação com a estabilidade da segunda maior democracia do continente. O episódio de 6 de janeiro de 2021 ainda povoa a cabeça de autoridades do governo Joe Biden. Eles não esqueceram do endosso do governo Bolsonaro às dúvidas e protestos antidemocráticos, incentivadas pelo aliado republicano de Bolsonaro, Donald Trump, que levaram a uma tragédia com mortos no Capitólio.

No ano passado, o risco de ruptura no Brasil e de atos violentos durante o Sete de Setembro, com tentativas de minar a confiança em instituições, figurou em comunicações despachadas pelas missões diplomáticas estrangeiras sediadas em Brasília. Agora, todos os olhos do governo americano – da CIA à Casa Branca, passando pelo Departamento de Estado -, se voltam ao respeito ao resultado das eleições.

Felipe Frazão é jornalista. Publiadooriginalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.05.22

Bolsonaro não é um líder militar, afirma General Bolivar Meirelles

ContraPoder entrevistou o General Bolivar Meirelles sobre o cenário das Forças Armadas e a possibilidade de um golpe no Brasil. A entrevista era para ser apenas em vídeo, porém as respostas em texto são de tanta importância quanto a entrevista gravada.

A entrevista foi feita e organizada pelo Contrapoder e pela professora Virgínia Fontes (UFF). Agradecemos imensamente a disponibilidade da professora em conduzir a entrevista.

Ao final do texto encontra-se a entrevista em vídeo e mais um pequeno artigo escrito pelo General para a Tribuna imprensa livre.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Há duas correntes ou tendências nas FFAA como parece acreditar uma parte da mídia? A relação das diferentes hierarquias (alto escalão e praças) com Bolsonaro é algo novo ou é uma continuidade? 

Gen. Bolivar Meirelles: Uma coisa são os interesses pecuniários, correspondem aos interesses de ordem salarial, que envolvem não apenas militares, mas civis também. São as pessoas menos politizadas que pensam e agem por essa motivação. Hoje fica explicitado que há grupos menos aquinhoados pela Reforma Previdenciária, que beneficiou estratos mais altos da hierarquia militar, mas não beneficiou igualmente parcelas mais baixas dessa categoria. É uma questão a se tratar no âmbito da política.

Contrapoder e Virgínia Fontes: É sabido que Bolsonaro tem estreita relação com milícias no Rio de Janeiro e com policiais – muitos da chamada ‘banda podre’ – da PM. Agora procura controlar diretamente a PF. Como vê a relação das Forças Armadas e de sua hierarquia com esse esquema de privatização e milicialização da segurança pública?

Gen. Bolivar Meirelles: Não vejo como viável o envolvimento total do estamento Forças Armadas brasileiras com as milícias, grupamento de origem nas polícias estaduais que dominam “negócios tópicos” e, por interesse financeiro, se conflitam com narcotraficantes. Isso é uma questão que, no Estado do Rio de Janeiro, é notória, e em São Paulo e Espírito Santo já vem, de certa forma se locando[CSM1] . As Forças Armadas, por sua natureza nacional, podem ser remanejadas. Acho que os grandes conflitos que possam se dar dentro da sociedade brasileira são conflitos de classe. Contradições de interesses. Claro que milicianos e narcotraficantes, hoje, já constituem agrupamentos de interesse econômico — negócios, pois, que podem atuar como componentes, embora ilegais, mas com ideologia similar a uma burguesia espúria. A máfia já teve seu espaço na Itália e nos EUA também; envolvem, pois, interesses de ordem econômica e financeira (os “donos” do negócio são explorados e remunerados por eles).  Essa questão não é, pelo menos, apenas militar, é uma questão social e política.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual a relação entre as FFAA e as polícias na atualidade? Que modificações relevantes podem ser identificadas? Há maior aproximação e confusão de papéis entre elas, pelas GLO, por exemplo?

Gen. Bolivar Meirelles: A Garantia de Lei e Ordem foi uma limitação da Constituição Cidadã de 1988 que cedeu a pressões das Forças Armadas e permitiu remanescer na Carta Magna resíduos do poder militar exercido nos idos dos governos militares implantados com o golpe de Estado de 1º de abril de 1964. Sarney (ARENA) foi um governo transitório — Tancredo Neves (MDB) era o possível candidato da transição —; tinha a confiança da classe dominante e era oriundo da ARENA, partido do Governo Militar. Convoca uma Constituinte, mas permite que ela possa ter, continuamente dentro do Poder Legislativo Nacional, elementos do “lobby” militar pressionando. Tanto que não houve uma revisão da precária Lei da Anistia negociada no governo Figueiredo, pela qual torturadores foram anistiados, nem permitiu a reversão ao serviço ativo dos militares democratas e patriotas atingidos pelos instrumentos ditatoriais, os atos institucionais.

Quanto à ligação das Forças Armadas brasileiras com milicianos, a pergunta já foi respondida no quesito 2.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como o senhor analisa a disseminação de empresas de segurança (legais e ilegais) dirigidas por militares (das FFAA e das polícias) da ativa ou reformados? Saiu recentemente matéria sobre general no norte de MG que dirige com empresários uma milícia contra assentados rurais.

Gen. Bolivar Meirelles: É um negócio inerente à formação profissional de militares. Médicos se dedicam mais a clínicas médicas, engenheiros mais a empresas de engenharia. Crime é para todos, civis e militares, clínicas de aborto clandestinos, empresas de engenharia que constroem em locais indevidos, médicos estupradores em seus consultórios… infelizmente existem. Negócios de igrejas que vendem Jesus como mercadoria… Isso tudo tem de ser combatido e os responsáveis devem ser processados e responder perante a lei.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual a influência dos Estados Unidos na doutrina dominante? VF – Quais os setores estadunidenses com os quais as FFAA têm proximidade? Que tipos de atividades? Formação, armamentos, doutrina, participação em treinamentos?

Gen. Bolivar Meirelles: O Brasil tem forte ligação militar com os EUA, não é de hoje. Participou da Segunda Guerra Mundial, na Itália, sob o comando norte-americano. O General Eisenhower foi o comandante da Segunda Frente Ocidental. Militares brasileiros voltaram da Guerra impressionados com os EUA, e outros com a União Soviética. A ESG, Escola Superior de Guerra, é criada à semelhança do War College norte-americano — este surgido por inspiração da classe dominante norte-americana. A ESG brasileira, criada em 1948, vem da estrutura militar norte americana. No Brasil, as Forças Armadas, principalmente o Exército Brasileiro, têm dupla função; é instrumento repressivo, mas também ideológico. Vários quadros políticos importantes cursaram a ESG. 

A inter-relação das Forças Armadas brasileiras com as dos EUA se dá de várias maneiras: cursos, acordos militares, trocas de informações etc.

Quando eleito em 1950, Getúlio Vargas assina a lei 2004, de iniciativa do deputado Euzébio Rocha, que criou a Petrobrás, mas cede a pressões e assina o Acordo Militar Brasil-EUA. Interessante é que esse acordo venha a ser denunciado no Governo Geisel.

A Guerra Fria foi um período de grande influência norte americana nas questões militares brasileiras. Os EUA influenciaram na queda de Getúlio em 1945 e na queda de Goulart em 1964.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como avalia a liderança real de Bolsonaro nas Forças Armadas? VF – Há tensões?

Gen. Bolivar Meirelles: Bolsonaro não é um líder militar; Geisel fez expressa crítica ao insubordinado Capitão. Bolsonaro, no entanto, se colocou como um sindicalista militar. Auferiu muitos votos no e do estamento militar por isso, inicialmente no Rio de Janeiro e depois nacionalmente. Não acredito que os comandos responsáveis o desejem como ditador brasileiro. Existem muitas contradições internas nas Forças Armadas brasileiras. Bolsonaro hoje se caracteriza como um autoritário entreguista. Muitos militares são autoritários, outros nem tanto e muitos são patriotas, nem todos entreguistas. É uma questão complexa. Agora, muitos civis, inclusive nas camadas médias altas, se associam ao Bolsonaro autoritário, privatista e entreguista. Não é específica essa categoria ao Militar.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como vê o compromisso efetivo dos militares com o respeito à Constituição? VF – Há algum consenso sobre o “Estado de Direito”?

Gen. Bolivar Meirelles: Não vejo grande interesse de os militares brasileiros “rasgarem” a Constituição de 1988. Ela responde, em grande parte, a seus interesses. Os militares têm forma constitucional de exercer certa interferência na política. Os militares acabam, pelas patentes superiores e oficiais generais, sendo beneficiados pela Reforma Previdenciária, muito mais pela atitude do Poder Legislativo do que do Executivo.

Quem dá golpe de Estado é a classe dominante e está dividida. As Forças Armadas são, muito mais, usadas pela classe dominante. Faz lembrar a história do macaco que pediu a mão do gato emprestada para tirar as castanhas que assavam no forno.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Como diferencia a composição das Forças Armadas hoje e durante a ditadura militar?

Gen. Bolivar Meirelles: De início, hoje não existe Guerra Fria, o principal consumidor das commodities brasileiras é a China, o Brasil é membro do BRICS. Não existe uma esquerda forte no Brasil. Não existe uma CGT, Comando Geral dos Trabalhadores, sob a direção do Partido Comunista Brasileiro. O PCB não tem a força política que tinha e o PC do B é um partido reformista. Não há situação objetiva nem existe um partido revolucionário com expressão popular. Não há, pois, nem situação objetiva nem subjetiva. As esquerdas e a centro-esquerda são frágeis no momento.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Quais são os principais grupos políticos que influenciam a ação da corporação?

Gen. Bolivar Meirelles: Acho que, hegemonicamente, como as camadas médias altas, o estamento militar, pelos seus oficiais, suboficiais e sargentos, vota mais em partidos conservadores. Não tenho, no entanto, informação empírica, é apenas observação superficial.

Contrapoder e Virgínia Fontes: A que segmento da sociedade os militares respondem? Quais os nexos orgânicos que a corporação tem com a burguesia?

Gen. Bolivar Meirelles: Entre os militares, oficiais, suboficiais e sargentos são componentes das camadas médias da sociedade, uns na alta e outra na intermediária.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Ainda resta algum sentimento nacionalista entre a cúpula dos militares? VF – Houve a defesa do petróleo antes de 1964 –  e quanto ao pré-sal (Amazônia Azul) na atualidade?

Gen. Bolivar Meirelles: Acho que deva haver algum sentimento patriótico residual, a maioria à direita. Em 1964 houve um expurgo muito grande nas Forças Armadas brasileiras — talvez as instituições mais atingidas. Após a Revolução Cubana, em 1961 — eu era cadete então, cursava a Academia Militar das Agulhas Negras —, foi introduzida a concepção do Inimigo Interno. Forte lavagem cerebral anticomunista nas Forças Armadas. As Forças Armadas já tinham forte anticomunismo a partir dos levantes militares em Natal, Recife e Rio de Janeiro em 1935, da Aliança Nacional Libertadora. Esse anticomunismo foi alimentado durante a Guerra Fria e realimentado após a vitoriosa Revolução Cubana.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual deveria ser a política da esquerda socialista em relação aos militares?

Gen. Bolivar Meirelles: Fazer seu trabalho de politização no âmbito da sociedade. Embora haja uma sinergia dialética entre a sociedade e o Estado, é muito mais uma sociedade bem politizada que fará avançar o Estado e seus estamentos, inclusive o militar, no sentido patriótico, mas internacionalista, bem como na constituição de uma sociedade igualitária.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Julga que existe ameaça de intervenção militar? Ela seria com ou sem Bolsonaro?

Gen. Bolivar Meirelles: Embora já haja respondido pergunta similar, volto a respondê-la. Não vejo situação objetiva nem interesse subjetivo das Forças Armadas brasileiras assumirem a responsabilidade pela instalação de uma ditadura no Brasil. Não observo confiança das Forças Armadas no Capitão Bolsonaro para fazê-lo ditador. As classes dominantes brasileiras estão divididas. O Trump não é uma liderança capaz de conduzir o Brasil a um golpe de Estado com militares como protagonistas. A Europa, a Rússia e a China são as principais compradoras das commodities brasileiras. Não havendo realidade objetiva, nem subjetiva… não vejo viabilidade de um golpe com ostensivo uso das Forças Armadas. Agora, o governo Bolsonaro já foi, de certa forma, um golpe de Estado institucional.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Qual o papel das Forças Armadas na sociedade brasileira?

Gen. Bolivar Meirelles: As Forças Armadas brasileiras cumprem um papel de defesa da Pátria brasileira. Quando eu a elas me integrei, em 1956, fiz o juramento à bandeira de “defender a Pátria com o sacrifício da própria vida”. Ninguém jurou defender o capitalismo ou o imperialismo norte-americano. A Pátria é um processo de “ser e vir a ser”. Quando na vigência do Tratado de Tordesilhas, o Brasil era um, depois até o nome mudou. Espero que, um dia, quando o mundo não tiver mais fronteiras, as Forças Armadas percam a sua razão de existir. A Pátria constitui o território, o solo e o subsolo, reservas aquíferas, suas florestas, seu povo.

Contrapoder e Virgínia Fontes: Voltando ao passado: em 1963-64, o senhor acredita que os nacionalistas conheciam o projeto/plano de Magalhães Pinto de declarar MG um ‘estado beligerante”?

Gen. Bolivar Meirelles: Acho que não. Mesmo se existisse essa pretensão seria, militarmente, inviável. Minas Gerais é um Estado sem saída para o mar. Seria facilmente reconquistado, pressionado por forças militares do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, as demais Forças Armadas localizadas em outras regiões. Projeto inviável. São Paulo, com saída marítima e forte indústria, seria mais viável.

Publicado originalmente por ContraPoder, em 7 de junho de 2020. (Bolsonaro não é um líder militar, afirma General Bolivar Meirelle. - Contrapoder).

O princípio da retroatividade da lei sancionadora mais benigna

Com a entrada em vigor da Lei 14.230/2021, que implementou algumas alterações na Lei 8.429/1992, chamada de Lei da Improbidade Administrativa, surgiu inesperada discussão, felizmente restrita a certos e conhecidos enclaves punitivistas, sobre se as alterações benéficas aos acusados e réus teriam — ou não — efeitos retroativos. Comentário de Napoleão Maia Filho.

A ideia de que a lei mais benigna opera efeitos sobre os fatos pretéritos (retroatividade), associada à de que a lei mais favorável tem eficácia mesmo depois de revogada (ultratividade) é um dos mais antigos dogmas do Direito Sancionador e está expletivamente inscrito como direito individual no artigo 5o., XL da Constituição, segundo o qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. A expressão lei penal, como se verá mais adiante, não deve ser, nesse contexto, indicativo de que em matéria não penal a retroatividade mais gravosa poderia atuar livremente, como pareceu a uns poucos leitores menos reflexivos sobre o tema.


O artigo 2º, parág. único do Código Penal, por seu turno, assevera que a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. A súmula 611 do colendo STF assevera que, transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna. Esse dispositivo legal do CPB e o enunciado do verbete 611-STF dão perfeita e exata concreção ao artigo, 5o., XL da Constituição e devem ser interpretados em consonância com ele. Na verdade, as regras benévolas devem aplicadas de forma ampliativa, segundo o velho preceito do Direito Romano benevola amplianda, odiosa restringenda.

Diante dessas disposições tão claras e decisivas, por qual razão ainda se discute se a Lei 14.230/2021 tem — ou não — aplicação retroativa, relativamente aos seus dispositivos que instituem condições mais favoráveis aos acusados e réus? Esta é uma pergunta inquietante e deve a cada dia ser enfrentada, cabendo aos aplicadores da nova Lei de Improbidade Administrativa decidir as causas pertinentes com a cabeça nos ares do mundo.

A grande matriz geradora das resistências à ideia da retroatividade dos dispositivos mais benévolos da Lei 14.230/2021 é, sem dúvida alguma, o pensamento punitivista que tomou conta da jurisdição penal no Brasil. Tomou conta e se espraiou para todas as instâncias sancionadoras, inclusive para as instâncias cíveis, em cujo âmbito se inscrevem as leis e as regras repressoras dos atos de improbidade administrativa. No pensar de alguns doutores, as leis sancionadoras civis, ainda que mais gravosas aos acusados ou réus, poderiam retroagir livremente. Esse é um pensamento estranho e injurídico, pois o Código Tributário Nacional traz disposição em contrário (artigo 106, II, a) e nunca se ouviu dizer que fosse inconstitucional.

Mas o pensamento punitivista é como uma mancha de óleo derramado numa lagoa, que se alastra envenenando as suas águas calmas. Ou uma afirmação deslastreada de elementos consistentes, que à custa de tanta repetição vai assumindo ares de verdade. 

A concepção punitivista dá suporte às condutas radicais da atuação estatal sancionadora. Por essa concepção, a jurisdição sancionadora deve ser estimada como simples e puro gerencialismo dos resultados dos atos ilícitos, que podem ser identificados segundo a metodologia mais rasa e sem apoios doutrinários. Essa administrativização do poder estatal de punir gera a banalização das atividades que lhe correspondem, que ficam sendo vistas apenas como coisas práticas, como uma atividade de mera aplicação silenciosa das regras sancionadoras.

No entanto, o pensamento jus-punitivista não é o único produtor da apontada resistência. Há outro fator igualmente poderoso e propulsor dessa mesma ideia, qual seja, o ponto de vista que afirma que somente a lei penal mais benéfica é que pode retroagir, isso por causa da expressão lei penal no artigo 5o., XL da Constituição, e na sua interpretação magra a mais não poder. Segundo esse raciocínio restritivo, como a Lei de Improbidade não é de natureza penal, estaria excluída de operar efeitos quanto a fatos que lhe são anteriores. É gritante o artificialismo desse argumento e se pode afirmar que se trata apenas de esforço, certamente inútil, para doutrinarizar o punitivismo, dando-lhe ares de nobreza de teoria jurídica.

Quem analisar com um mínimo de isenção intelectual o que dispõe o artigo 5º, LV da Constituição — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes – certamente concluirá que a retroação da lei penal mais benigna (artigo 5º., XL da Constituição) contém direito subjetivo que se aplica a todos os acusados ou réus, em quaisquer processos, inclusive administrativos e cíveis, desde que visem à aplicação de sanção, seja qual for a sua natureza.

Essa diretriz já foi assentada por um dos mais cultos juristas do país, o eminente ministro Luiz Fux, quando ainda judicava no egrégio STJ. Julgando o Recurso Especial 190.721/CE, teve o doutrinador ensejo de afirmar ser uníssona a doutrina no sentido de que, quanto aos aspectos sancionatórios da Lei de Improbidade, impõe-se exegese idêntica a que se empreende com relação às figuras típicas penais, quanto à necessidade de a improbidade colorir-se de atuar imoral com feição de corrupção de natureza econômica.

E arrematou a sua preciosa lição dizendo que tratando-se de ação cível com cunho penal, a atipicidade da conduta assemelha-se à impossibilidade jurídica do pedido, mercê da falta notória do interesse de agir quer por repressão quer por inibição, impondo o indeferimento da inicial e a consequente extinção do processo sem análise do mérito, por isso que ausente a violação do artigo 267 do CPC.

Deve-se pontuar que a benignidade de uma lei afluente mais favorável não se revela somente quando promove, por exemplo, a abolição da figura típica ou, a eliminação ou a redução da pena, embora esses sejam talvez os casos mais frisantes, mas também quando implanta qualquer modalidade de benefício. Na hipótese em estudo, o benefício que advém da lei nova é a retroatividade dos seus dispositivos mais benévolos aos acusados ou aos réus, incidindo sobre a relação jurídica de Direito Sancionador, quando esta se acha em trâmite no curso de processo judicial ou administrativo ou mesmo em processo de qualquer natureza e já encerrado.

A retroatividade da lei sancionadora mais benigna acha-se entre os institutos jurídicos criados para limitar os poderes estatais punitivos, sendo um dos mais relevantes. A eficácia da retroatividade da lex mitior paralisa definitivamente o poder estatal sancionador, qualquer que ele seja. Já se vê que se trata de um instituto que se cerca de ampla aceitação, o que leva a minimizar o insistente pensamento jurídico punitivista que se esmera em dar preponderância ao interesse punitivo, nas relações do processo administrativo ou judicial sancionador.

Pode-se ter a retroatividade da lei mais benigna na conta dos princípios reitores do Direito Sancionador e os princípios jurídicos, como já o disse o eminente professor Miguel Reale (1910-2006), são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas (Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 305). Peço de empréstimo as palavras do dramaturgo alemão Berthold Brecht (1898-1956), para dizer que vivemos tão tempos difíceis, que até o óbvio precisa ser demonstrado. No caso, precisa-se demonstrar que os princípios jurídicos e constitucionais se aplicam a todas as searas e a todos os ramos do Direito;

A inserção da retroatividade da lex mitior na categoria de princípio jurídico constitucional leva, portanto, a que a sua aplicabilidade seja ampla, isto é, que seja reconhecida e praticada em qualquer relação jurídica em que se cogite de impor qualquer gravame a qualquer direito subjetivo, seja em qual área jurídica for. O douto professor José Afonso da Silva acha que a retroativdiade se funda em requisito de justiça, certamente o maior de todos os princípios. Para ele, se o Estado reconhece, pela lei nova, não mais necessária à defesa social a definição penal do fato, não seria justo nem jurídico alguém ser punido e continuar executando a pena cominada em relação a alguém, só por haver praticado o fato anteriormente (Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 138).

É uma coisa exótica pôr-se ainda em discussão a retroatividade de qualquer lei sancionadora mais benéfica ao acusado ou ao réu, porque o colendo STF, no julgamento do MS 23.262/DF, sob a condução do douto ministro Dias Toffoli, já assentou que o princípio da presunção da inocência (artigo 5º, LVII da Constituição), nascido e crescido no Direito Penal, se aplica aos processos administrativos sancionadores, apesar de o dispositivo magno aludir à lei penal. Diante dessa hiperlúcida expansão garantística, não há razão jurídica alguma para se questionar a retroação da Lei 14.230/2021, cujo conteúdo é induvidosamente sancionador. Por essa razão, a oposição à retroatividade de seus dispositivos mais benéficos cai na vala das reações apenas punitivistas, ainda que reivindicantes de pressupostos científicos.    

No egrégio STJ, há exemplares julgados de sua Primeira Turma em que se firmou a aplicabilidade da retroação da lei mais benigna, em julgamentos de matéria cível: no RMS 37.031/SP, sob a relatoria da douta ministra Regina Helena Costa, o colegiado decidiu que a retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal. Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator.

E acresceu a eminente julgadora que constato, portanto, ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa.

No julgamento do Recurso Especial 1.153.083/MT, sob esclarecida relatoria do eminente ministro Sérgio Kukina, seguiu-se caminho idêntico, ao se definir de maneira claríssima que o artigo 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage.

Esse contexto deveria levar à conclusão que todos os institutos garantísticos do processo penal contemporâneo deveriam ser aplicados de logo e imediatamente no processo sancionar administrativo e judicial. Será preciso sempre relembrar que a retroação da lei mais benéfica é um instituto que deve ser apreendido em favor do imputado ou réu, ou seja, é um instituto pro reo. Não se deve esquecer, porém, que essa expressão — pro reo — provoca arrepios nos juristas punitivistas, pois o pensamento geral, dominante entre eles, é o de que os direitos subjetivos e as garantias jurídicas e processuais servem apenas para empecer a atividade estatal sancionadora, favorecer a impunidade dos infratores e retardar — ou mesmo eliminar — a eficiência do sistema repressivo.

Esse discurso eficientista ou gerencialista da função punitiva é sempre carregado de valores anti-democráticos, de autoritarismos e repressões e mesmo de sentimentos excludentistas ou vinditas institucionais. Isso se pode facilmente ver, por exemplo, no livro do jurista alemão professor Günther Jakobs, que em 1985 iniciou a teoria da técnica punitivista que sustenta que o Direito Penal — e o Direito Sancionador em geral — serve a propósitos somente repressivos.

Nunca será demasiado pontuar e repontuar que não é lícito às autoridades incumbidas da repressão estatal — sejam elas administrativas, policiais ou judiciais — atuar com as mesmas armas que os agentes das ilicitudes geralmente empregam. Essa é a advertência de outro jurista alemão, o professor Winfried Hassemer (1940-2014) que se manifesta dizendo que, também nos tempos da ameaça flagrante à segurança interna, nós precisamos de esferas rígidas, de ponderação e indisponíveis da liberdade dos cidadãos.

O pensamento punitivista quer que todo mundo creia no mito de que as sanções fortalecem o poder e que as absolvições, ao revés, o enfraquecem. A voz retroação benéfica, além de assustar, provoca reações tão adversas nos punitivistas, que chegam ao paroxismo. No entanto, o ilustre mestre argentino professor Eugênio Raúl Zaffaroni, hoje integrante da Corte Interamericana de Direitos Humanos, discorda frontalmente das propostas do Direito Penal do Inimigo. Ele levanta a voz para dizer que a cisão entre cidadãos e inimigos serve ao propósito de criar, artificialmente, a condição primá­ria que justificaria a tendência para radicalizar a supressão de direitos aos inimigos.  

E explica didaticamente o professor Zaffaroni o seu ponto de vista, observando o seguinte, a propósito deste tema, sublinhando que este conceito bem preciso de inimigo remonta à distinção romana entre o inimicus e o hostis, mediante o qual o inimicus era o inimigo pessoal, ao passo que o verdadeiro inimigo político seria o hostis, em relação ao qual é sempre colocada a possibilidade de guerra como negação absoluta do outro ser ou realização extrema da hostilidade. O estrangeiro, o estranho, o inimigo, o hostis era quem carecia de direitos em termos absolutos, quem estava fora da comunidade (op. cit., p. 21).    

Pode-se identificar na ideologia sancionadora eficientis­ta a mesma concepção que orienta as escolas jurídicas agrupadas sob o rótulo de funcionalistas, cujos integrantes costumam apontar o con­traste, que imaginam existente, entre a eficiência do sistema de repressão dos ilícitos e o sistema assegurador de garantias subjetivas. Esses escolásticos parecem acreditar que há um autêntico dilema entre a necessidade de efetivar o combate aos ilícitos e a preservação dos direitos subjetivos das pessoas. Esse dilema é falso, mas se afigura muito forte à percepção dos ideólogos do punitivismo.   

Este é o cenário em que medrou e se desenvolveu a adversidade ao instituto da retroatividade da lei mais benigna, que atua na mente dos julgadores como se fosse um sinal — ou mesmo uma prova — de que sistema repressivo não funcionou a contento, porque funcionar a contento significaria condenar. É a mesma coisa que se passa com a acusação, quando se admite que a toda acusação deve corresponder um processo e a todo processo deve corresponde uma condenação. E a retroação benévola caminha, segundo essa visão punitivista do Direito Sancionador, na contra-mão da ideologia garantística.

Deve ser posto em alto destaque que a retroatividade — como também a ultratividade — da lei mais benigna nasceram efetivamente na seara penal, mas ambas se acham estabelecidas como princípios de Direito, nos sistemas jurídicos do Ocidente. No Brasil, estão elevadas à dignidade de regra constitucional explícita (artigo 5º, XL), que expressamente repercutiu no campo tributário (artigo 106 do CTN), por exemplo, mas também em todos os outros em que há obrigações legais. Pode-se dizer, aliás, que os princípios jurídicos na pertencem à exclusividade de alguma seara do Direito, mas podem ser aplicados em todas elas, sempre em atenção às suas peculiaridades.

A outra face da retroatividade da lei mais benigna, tão relevante quanto ela própria, é a ultratividade da regra mais favorável, ou seja, a sua plena eficácia, mesmo depois de revogada, se dela resulta situação mais favorável ao imputado ou réu. A esse respeito o ilustre ministro Celso de Mello elaborou lapidar conceituação, dizendo que o sistema constitucional brasileiro impede que se apliquem leis penais supervenientes mais gravosas, como aquelas que afastam a incidência de causas extintivas da punibilidade sobre fatos delituosos cometidos em momento anterior ao da edição da lex gravior.

Disse, ainda, o douto ministro que a eficácia ultrativa da norma penal mais benéfica — sob cuja égide foi praticado o fato delituoso — deve prevalecer por efeito do que prescreve o artigo 5º, XL, da Constituição, sempre que, ocorrendo sucessão de leis penais no tempo, constatar-se que o diploma legislativo anterior qualificava-se como estatuto legal mais favorável ao agente. Doutrina. Precedentes do Supremo Tribunal Federal (HC 90.140/GO. DJe 16.10.2008).

A leitura do artigo 5º, XL da Constituição, segundo o qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu, deve levar à inevitável conclusão de que o termo penal abrange todas as regras sancionadoras, seja qual for a sua natureza, e que o benefício que proporciona também pode ser de qualquer espécie, seja material ou processual. Representa uma acintosa fraude à Constituição dizer que lei penal, no contexto desse item normativo da Constituição, significaria somente a lei penal incriminadora.

Napoleão Maia Filho, o autor deste artigo, é Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça. Publicado no Consultor Jurídico, em 04.05.22

quinta-feira, 5 de maio de 2022

O golpe pode dar errado

Estratégia de Bolsonaro não vingará se a sociedade defender as instituições democráticas

Ele não disse nada, nem precisava. Ao participar, no Primeiro de Maio, de dois atos promovidos para atacar a Suprema Corte e ameaçar as instituições democráticas, Bolsonaro disparou um aviso pontiagudo do que intenta neste ano eleitoral. Que seu discurso vazio tenha sido recebido com certo alívio é um indício desalentador do quanto a política nacional foi sequestrada pelas provocações do ex-capitão.

Isso porque ele se prepara para tumultuar o processo de sua sucessão e contestá-lo pela violência se o resultado lhe for desfavorável. Abdicando de governar, dia sim, o outro também, a pé ou de moto, ele se dedica a açular a militância raivosa. Quando necessário, mostra que defende a sua turma —como fez com o Daniel Silveira— e vai dosando o xingatório contra ministros do STF, a Justiça Eleitoral e a urna eletrônica

Nos porões dessa radicalização, ataques mais virulentos circulam nas redes bolsonaristas. Segundo o professor Marcelo Alves, do Departamento de Comunicação da PUC do Rio de Janeiro, de setembro do ano passado a março último, pipocaram no YouTube 1.701 vídeos contra o sistema eleitoral, vistos 69 milhões de vezes. Por fim, é explícita a corte do presidente às Forças Armadas, bem como o uso que delas faz para desfilar autoridade. Que outro sentido teria sua participação, fora da agenda, na reunião do Alto Comando do Exército, na terça-feira passada (3/5).

São mínimas as chances de serem pacíficas as eleições para o Planalto. Mesmo assim, o desfecho dessa anunciada tragédia política ainda não está dado. Para o pensador americano Robert Dahl, no seu clássico "Poliarquia", editado no Brasil (Edusp), a democracia se estabelece quando as elites políticas consideram que os custos da repressão superam os de aceitar os resultados de eleições livres e limpas.

Uma solução violenta, que abra caminho para o autoritarismo sem disfarces, teria custos elevados não só para os brasileiros comuns, mas também para uma parcela importante das referidas elites. Como observou o historiador Luiz Felipe Alencastro, não basta dar o golpe em Brasília. Numa federação como a nossa, se as eleições forem contestadas, serão numerosos os interesses golpeados: dos candidatos a governos e câmaras legislativas, todos com campanhas nas ruas e vultosos recursos empenhados.

A estratégia de Bolsonaro está traçada, com objetivo e métodos definidos. Mas pode acabar dando errado se o grande arco de forças presentes no sistema político e na sociedade colocar a defesa das instituições democráticas à frente de disputas que, aliás, só podem ser travadas em regime de liberdade.

Maria Hermínia Tavares, a autora deste artigo, é Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 04.05.22

A seguir: ditadura com Bolsonaro

Já não se dão à pachorra nem de desmentir o golpe

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia do Dia do Exército, em Brasília - Lúcio Távora - 19.abr.22/Xinhua

Há dois anos, quando comecei a dizer aqui que a cooptação por Jair Bolsonaro de militares, policiais e civis armados era a preparação para um golpe em caso de derrota na eleição, ouvi que estava vendo fantasmas debaixo da cama. No passado, essa imagem se aplicava aos comunistas, que, solertes, esperavam a hora de se pôr de pé, acender a luz e render os inocentes de pijama e camisola. Passaram-se 60 anos. Os comunistas seguem debaixo da cama, de onde nunca saíram, e quem hoje prepara o golpe —o autogolpe, como o definiu, com descaro, um general— é quem já está no poder.

É um golpe preparado às claras, com direito a ser pregado em carreatas, motociatas, cavalatas e outras atas bancadas com dinheiro público, sob a indiferença de instituições também pagas para coibi-las. E é tão ostensivo que, desde há algumas semanas, passou a ser abertamente denunciado pelos jornais e demais veículos de opinião, e nem assim os suspeitos de tramá-lo se dão à pachorra de desmenti-lo. É como se já o déssemos de barato —algo previsto para acontecer entre a eleição e o Dia de Finados.

Os golpes são dados para manter ou derrubar o status quo. O golpe que se anuncia pertence à primeira categoria. Significa que seus adeptos militares e civis estão contentes com o Brasil de Bolsonaro. Para eles, não há alta corrupção, destruição do meio ambiente, estupro e assassinato de indígenas, dissolução das instituições e afronta à autoridade por mandriões bombados açulados pelo mandrião mor.

É normal que nada disso diga respeito aos empresários. Mas eles parecem não se alterar também pelo desemprego, inflação, miséria, asco administrativo e estagnação da economia. A Bolsa não acaba de perder R$ 7,7 bi de investimento estrangeiro e o Brasil não continua fora do G7 nem cada vez mais esnobado pela comunidade internacional.

A solução? Ditadura com Bolsonaro —é o que nos prometem a seguir.

Ruy Castro, o autor deste artigo é jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 04.05.22.

Se Bolsonaro conseguir melar as eleições, o golpe será militar

Forças Armadas lideram criação de roteiro para anular votação em caso de derrota

Jair Bolsonaro reunido com o ministro da Defesa, Paulo Sérgio de Oliveira, e comandantes das Forças Armadas - @DefesaGovBr no Twitter

O ministro Luís Roberto Barroso foi até generoso quando perguntou se as Forças Armadas são "orientadas para atacar" as eleições. Depois de três anos no coração do poder, com uma adesão continuada às ameaças golpistas de Jair Bolsonaro, é impossível ver os generais como colaboradores que apenas obedecem cegamente às ordens do presidente.

Se Bolsonaro levar adiante o plano de melar as eleições, o golpe será militar. As Forças Armadas trabalham ativamente na confecção do roteiro que o presidente parece disposto a seguir para invalidar a votação e continuar no poder. Além disso, os generais passaram a disparar insinuações cada vez mais ameaçadoras de intervenção nesse processo.

Há meses, o militar indicado pelo Exército para atuar no TSE procura as brechas que Bolsonaro e seus sócios pretendem usar para anular a votação em caso de derrota.

Num ofício ao tribunal, o general Heber Garcia Portella tentou abrir a porta para a realização de novas eleições caso sejam apontadas irregularidades. Os governistas querem saber quais são os critérios para repetir a votação caso haja perda de dados nas urnas –uma hipótese que o TSE considera remota.

Os militares também decidiram forçar a barra para justificar sua interferência na disputa. Em duas notas, o Ministério da Defesa afirmou que "as eleições são questão de soberania e segurança nacional" e avisou que a instituição estará em "permanente estado de prontidão" para cumprir missões constitucionais.

As Forças Armadas se comportam como protagonistas políticos, não como personagens que só acompanham Bolsonaro nessa história. Não há notícias, aliás, de que o capitão tenha dado ordem ao general Eduardo Villas Bôas, em 2018, quando o comandante do Exército tentou pressionar o STF no julgamento de um habeas corpus de Lula.

Ainda há quem alimente a ilusão de que uma "ala militar" poderia frear as aspirações autoritárias de Bolsonaro. Lances recentes já deveriam ter sepultado essa fantasia.

Bruno Boghossian, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi repórter da Sucursal da Folha de S. Paulo, em Brasília. É mestre em ciência política pela Universidade Columbia (EUA). Publicado originalmente na Folha de S, Paulo, em 04.05.22

Não tem conversa

Chefes militares não querem ajudar nem Bolsonaro nem o Supremo. Leia aqui o artigo de William Waack

Jair Bolsonaro está arrastando menos oficiais-generais do que pensa na irresponsável aventura política, especialmente a de contestar o sistema eleitoral. Mas conseguiu ajudar a quebrar uma cadeia de entendimento que já foi bastante sólida entre o topo das Forças Armadas e o STF.

O presidente não perde oportunidade de participar de reuniões de fardados com muitas estrelas, como aconteceu esta semana com o Alto Comando do Exército. Só não percebe, diz um conhecedor dessas rodas, que já virou “encontro de comadres com restos da comida do dia anterior, não serve para nada”.

A crise do presidente com o STF é vista por comandantes militares como 'jogo político eleitoral'.

A crise do presidente com o STF é vista por comandantes militares como 'jogo político eleitoral'. Foto: Eraldo Peres/AP Photo

Os comandantes militares não estão dispostos a marchar com Bolsonaro rumo à insensatez. Contudo, repetem exatamente as mesmas críticas de Bolsonaro ao STF. Consideram que o Supremo deixou de ser um tribunal “unido” e se transformou num ajuntamento de togados obcecados por holofotes.

Mais ainda: interferem nos outros Poderes e exercem influência perniciosa na política, sem terem sido eleitos. A paciência se esgotou, resume oficial da ativa, quando integrantes do Supremo como o ministro Luís Roberto Barroso, ainda por cima falando a estrangeiros, distorcem a participação das Forças Armadas no processo eleitoral.

Ela é, asseguram, estritamente técnica e profissional, e destinada a ajudar o TSE com o conhecimento específico de guerra cibernética, além de serviços de logística. Essa participação é “sigilosa” devido ao caráter sensitivo da questão, e não por desígnio bolsonarista de duvidar das urnas eletrônicas.

Pouco antes das eleições de 2018 o então chefe do Estado-Maior do Exército, general Fernando Azevedo, foi nomeado assessor do então presidente do STF, Dias Toffoli. A ideia, desenhada pelo então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, era “pacificação” do ambiente político. De lá para cá os canais de entendimento entre o STF e os militares em postos de comando se deterioraram sensivelmente.

Em parte, argumentam ministros da Corte, perdeu-se a capacidade de diálogo por causa de incompreensões mútuas. Quando é que os generais se deixaram seduzir pelo poder e por Bolsonaro, perguntam ministros. E como podem ministros associar Forças Armadas a genocídio, indagam generais. Em parte, reflete um senador com largo tempo na política, “não há quem atue hoje como algodão entre as peças de cristal”, muito menos os chefes dos Poderes.

A crise do presidente com o STF é vista por comandantes militares como “jogo político eleitoral”. Asseguram que é um jogo no qual não têm intenção de interferir. Mas também não querem conversa.

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista e apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.05.22.