sábado, 30 de abril de 2022

Quem foi o marquês de Barbacena, homem de confiança de D. Pedro 1º que previu sua queda

Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, o marquês de Barbacena, embora pouco estudado e mencionado pela historiografia brasileira, é considerado por alguns como a personificação do Primeiro Reinado (1822-1831) e até do Período Regencial (1831-1840). 

Marquês de Barbacena foi uma figura controversa (Sisson)

Figura controversa, ele era senhor de engenho e dono de negros escravizados, mas foi o autor da primeira lei contra o comércio deles da África para o Brasil. Amigo do imperador D. Pedro 1º e ministro, foi responsável pelas negociações que levaram ao segundo casamento do monarca, mas depois foi demitido acusado de corrupção. Em seguida, escreveu uma "carta profética" para o imperador, na qual insinuava que ele era doido e o alertava que, se não mudasse sua forma de governar, cairia em sete meses. Caiu em seis, ao ser obrigado a abdicar.

Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, o marquês de Barbacena, embora pouco estudado e mencionado pela historiografia brasileira, é considerado por alguns como a personificação do Primeiro Reinado (1822-1831) e até do Período Regencial (1831-1840). Militar de formação, foi diplomata, senador do Império, ministro da Fazenda e Conselheiro de Estado. Era peça política importante na época, tendo participação ativa nos grandes momentos do reinado de D. Pedro 1º.

O futuro visconde e depois marquês nasceu no arraial de São Sebastião, perto de Mariana, em Minas Gerais, em 19 de setembro de 1772 e morreu no Rio de Janeiro em 13 de junho de 1842. Era filho de duas famílias importantes, os Caldeira Brant e os Horta. "Barbacena era neto do contratador de diamantes Felisberto Caldeira Brant, preso acusado de contrabando no período das Minas Gerais setecentistas", conta o historiador Rafael Cupello Peixoto, autor do livro O marquês de Barbacena: política e sociedade no Brasil Imperial (1796-1841), com lançamento previsto para maio de 2022. "Ele foi casado com Anna Constança Guilhermina de Castro Cardoso, filha de um importante traficante de escravos da Bahia, Antônio Cardoso dos Santos."

O também historiador Carlos Gabriel Guimarães, da Universidade Federal Fluminense (UFF), descreve o contexto político e econômicos na época em que Barbacena atuou, no início do império. "O ambiente no Primeiro Reinado foi bem conturbado, por causa das Guerras da Independência e as reações de outras Províncias à centralidade do Rio de Janeiro, e da presença portuguesa", explica. "Importante ressaltar o embate entre o imperador D. Pedro 1º e a Assembleia Constituinte de 1823, com seu fechamento e a Constituição sendo outorgada pelo imperador em março de 1824, o que levou à reação de Pernambuco com a Confederação do Equador."

Além disto, acrescenta, a Grã-Bretanha continuava pressionando para pôr fim ao tráfico negreiro com a África e a questão do reconhecimento político e diplomático do Brasil. "Em 1825, a antiga metrópole reconheceu a independência, mediante o pagamento de uma vultosa soma, o que levou o Brasil a contrair um empréstimo internacional", informa Guimarães. "Foi o chamado o 'empréstimo português', no valor de 3,7 milhões de libras esterlinas."

Outros problemas surgiram com a morte do rei de D. João 6º e a disputa pela sua sucessão, sendo D. Pedro 1º o autor da Carta Constitucional portuguesa, que duraria até a República de 1910 em Portugal. "Essa proximidade do imperador com seu país natal fez com que a relação deles com os brasileiros e seus representantes, principalmente na Câmara dos Deputados a partir de 1826, piorasse", explica Guimarães.

Capa do livro "O marquês de Barbacena: política e sociedade no Brasil Imperial (1796-1841)", que será lançado pelo Arquivo Nacional no próximo dia 26 de maio, após pesquisa do historiador Rafael Cupello ser premiada pelo órgão (Arquivo Nacional)

A situação se agravou mais ainda com a derrota na Guerra da Cisplatina (1825-1828), na qual Barbacena foi comandante das tropas brasileiras, com a consequente perda daquela Província (atual Uruguai), grandes gastos com o conflito e a falência do Banco do Brasil (o primeiro, criado em 1808). "Portanto, nas vésperas da abdicação, em 1831, a situação política e econômica era difícil, e D. Pedro 1º já estava bastante desgastado e cada vez mais pressionado pelo grupo dos brasileiros acusando-o de ser favorável aos interesses de Portugal e dos portugueses", conta o historiador.

Ao lado da perda da Província Cisplatina e dos gastos que a guerra gerou, Tâmis Parron, colega de Guimarães na UFF, lista outros fatores que levaram ao desgaste do imperador perante os brasileiros. "A política externa de D. Pedro 1º foi seu telhado de vidro, e a oposição não poupou nenhuma pedra que caísse nas suas mãos", diz. "Ele usou o fim do tráfico negreiro transatlântico como parte de uma barganha com a Inglaterra. A Corte assinaria uma convenção com os ingleses suprimindo esse comércio, e eles viabilizariam o reconhecimento da Independência do Brasil o mais rápido possível."

A barganha deu certo: nenhum país das Américas alcançou reconhecimento tão rapidamente como o Brasil na Era das Revoluções. "Foram meros três anos", lembra Parron. "Mesmo assim, a elite política não perdoou, pelo efeito que teve na ilegalização do comércio de africanos escravizados. 'O governo tem obrado como estúpido', gritou um deputado no Parlamento, pouco antes da queda de D. Pedro 1º. Mais uma vez, o rei já tinha perdido a majestade antes de cair."

De um jeito ou de outro, Barbacena participou de todos esses acontecimentos e situações. Antes disso, no entanto, ele foi fazer sua formação na Europa. O futuro marquês partiu em 1788, para estudar em Lisboa. Depois, ingressou na academia da Marinha, cujo comandante era seu primo José Pires da Silva Pontes, que o tornou seu protegido e de quem, mais tarde, ele adotou o sobrenome, como homenagem. Por algum motivo, Barbacena pediu transferência para o Exército e foi servir, por dois anos, em Angola, como major.


Historiador, professor e pesquisador Rafael Cupello Peixoto (Arquivo Pessoal)

Segundo Peixoto, depois disso, Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, fixou-se, em 1801, na Bahia como tenente-coronel do regimento local, onde desenvolveu uma extensa rede de negócios, que lhe possibilitou aproximar-se do novo centro político do Império português, o Rio de Janeiro, em virtude da instalação da Corte Joanina em 1808. "Nas diversas cartas que redigiu ao longo do oitocentos, a questão da segurança da Bahia, bem como o medo de levantes de 'negros' e da 'gente miúda' permearam as ideias dele", diz.

Ainda de acordo com o historiador, como militar, o futuro marquês procurou disciplinar as Forças Armadas que tinha à disposição, como instrumento de ação para preservar a ordem e garantir a segurança da "boa sociedade". Sua atuação no processo de independência reflete, de certa forma, seu apego à ordem. "Suas ações nesse período exemplificam seu modus operandi como político durante o período imperial brasileiro", explica.

Barbacena era simpático aos ideais constitucionais que circulavam no século 19, resultado da Revolução Francesa de 1789. No entanto, defensor de uma perspectiva conservadora, ele acreditava que uma mudança para o sistema constitucional deveria ser processada pelo monarca. "Ele era um belo exemplar do conceito de 'Despotismo Ilustrado', tão em voga no mundo luso-brasileiro e promovido pelas autoridades reinóis portuguesas em seus projetos de reformismo ilustrado, do final do século 18", diz Peixoto.

Ou seja, fiel ao seu princípio conservador, ele não poderia admitir um evento de transformação das estruturas políticas do mundo luso-brasileiro que não fosse comandado pela figura real. Isso pôde ser visto em 1817, quando eclodiu a Revolução Pernambucana, um movimento separatista — o último do período colonial — de caráter republicano. "Barbacena jamais participou ou apoiou qualquer movimento democrático", conta Peixoto.

Na verdade, ele associava o conceito de democracia ao de excesso de liberdade, vista como "desprezível" e associada ao termo "República", com a qual se deveria ter "o maior cuidado, e vigilância sobre outros da mesma escola, e seita". "Para ele, esta forma de governo (República) era propagadora da anarquia e do caos social", explica o historiador. "Não por acaso, portanto, ele se colocou contra a Revolução de 1817 e impediu que o movimento se alastrasse para a Bahia."

Peixoto lembra ainda que o futuro marquês também se posicionou contra a Revolução do Porto, em 1820, que ele classificou como uma "moléstia do século". Afinal, diz o historiador, ela foi promovida por revolucionários e não pela figura real. A mesma posição ele teve em relação ao movimento em apoio à revolta que ocorria em Portugal, que explodiu na Bahia, em 10 de fevereiro de 1821.

Mas, desta vez, ele se viu em "maus lençóis", inclusive sendo ameaçado de "linchamento" pelos apoiadores do movimento. "Assim, ele acabou aderindo à ação, mas sob forte constrangimento", informa Peixoto. "Felisberto resolveu ir para o Rio de Janeiro e, depois, acabou viajando para Londres, após mais uma vez se envolver em uma confusão provocada agora por outro movimento de adesão às Cortes lisboetas, mas desta vez na cidade carioca."

Na Inglaterra, Barbacena desempenhou importante papel diplomático. "Ao lado do jornalista e diplomata, Hipólito José da Costa, ele atuou, antes mesmo da independência, na primeira tentativa de obter o reconhecimento do Brasil como reino autônomo", informa Isabel Lustosa, pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. "Depois da morte de Hipólito [em 11 de setembro de 1823], atuou junto ao governo inglês pelo reconhecimento da independência do Brasil."

Esse seu trabalho diplomático rendeu a ele dividendos econômicos e político. "Por causa de sua atuação, D. Pedro 1º, por meio do decreto de 12 de outubro de 1825, concedeu a Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta o título de Visconde de Barbacena, e, um ano depois, de marquês", conta Guimarães.

Já como marquês, Barbacena teve forte atuação no governo imperial e ajudou D. Pedro a contornar crises. Diante da situação crítica da corte, ele foi convidado pelo imperador, em 1829, para ficar à frente do gabinete de ministros. "No cargo, Barbacena teve que lidar com as questões políticas, como a presença dos portugueses na Corte; com o famoso secretário do imperador Chalaça [Francisco Gomes da Silva], e o problema de ordem moral de D. Pedro 1º, envolvendo a sua amante, a Marquesa de Santos", relata Guimarães.

Tâmis Parron, doutor em História, professor de História do Brasil no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (Arquivo Pessoal)

O marquês se saiu bem - pelo menos por um tempo. Sua atuação fez com que os portugueses fossem afastados e a marquesa se retirasse da Corte. "No entanto, a pressão sobre D. Pedro 1º fez com que o imperador, em 1830, dissolvesse o gabinete do Marquês de Barbacena, que tinha trazido um pouco de 'serenidade' na conturbada conjuntura do momento", diz Guimarães. "Isto fragilizou mais ainda o imperador, sendo criticado abertamente e em público."

Lustosa acrescenta que Barbacena foi nomeado ministro com grande prestígio e parecia destinado a fazer um grande governo. "Mas D. Pedro rompeu com ele, por conta das despesas das viagens à Europa para negociar o segundo casamento do imperador", explica. "O monarca lançou suspeitas sobre suas contas e o demitiu. Essa demissão parece ter tido o dedo do Chalaça, que tinha sido mandado embora do Brasil pelo imperador, a pedido do marquês. De lá da Inglaterra, Francisco Gomes da Silva fez a intriga que levou o monarca a romper com Barbacena."

Esse é o final de uma história que começou antes de o Marquês assumir o ministério, quando ele viajou à Europa, em de julho de 1828, para levar a filha de D. Pedro, D. Maria da Glória, que viria a ser a rainha de Portugal, D. Maria 2ª, para a corte de seu avô, o imperador Francisco 1º, da Áustria. Também fazia parte da missão do marquês negociar o segundo casamento do imperador do Brasil, com alguma princesa europeia.

Quando chegaram em Gibraltar, Barbacena ficou sabendo que o irmão de D. Pedro, D. Miguel, havia usurpado o trono português e tinha o apoio de Francisco 1º. Então, resolveu levar Maria da Glória para a Inglaterra e, de lá, seguiu com a segunda parte da missão. Em 1829, ele retornou ao Brasil, trazendo a segunda imperatriz do Brasil, D. Amelia de Leuchtenberg.

Este poderia teria sido um final da história feliz para Barbacena se tempos antes ele não tivesse cometido um erro de avaliação. "O marquês havia entendido a dinâmica para chegar ao topo do poder político imperial, isto é, 'bajular' os homens próximos do monarca como forma de se aproximar dele", conta Peixoto. "Ele fez isso ao ganhar a confiança de Chalaça, amigo e fiel escudeiro de D. Pedro 1º. Seu erro político foi achar que, uma vez no topo, poderia se livrar da influência de Francisco Gomes da Silva. Ao fazê-lo, enviando-o para a Europa, escreveu as páginas de sua própria ruína."

Quando Chalaça descobriu que Barbacena foi um dos articuladores de sua retirada da Corte do Rio de Janeiro, conspirou contra ele, de Londres, incutindo no Imperador a desconfiança de que seu ministro havia roubado dinheiro em sua missão na Europa. "Dito e feito, D. Pedro demitiu Barbacena", resume Peixoto.

Com o que D. Pedro não contava talvez fosse a crise que sua decisão iria gerar e que levaria a sua própria queda. Ressentido pelas acusações de corrupção, Barbacena trouxe à tona a história das negociações do segundo casamento e as exigências do Imperador de que a nova imperatriz reunisse quatro qualidades essenciais: nascimento, formosura, virtudes e instrução.

Dessas, D. Pedro estava até disposto a abrir mão de parte de duas. "Se não fosse 'possível reunir as quatro indicações', poderia 'admitir alguma diminuição da primeira, e quarta, contanto que a segunda e a terceira sejam constantes'", conta Peixoto. "A humilhação pela qual D. Pedro 1º passou, com seu excêntrico pedido e uma série de recusas, veio assim a conhecimento público."

Barbacena foi mais longe, no entanto. Em 15 de dezembro de 1830, pouco depois de ter sido demitido, ele escreveu uma carta com pesadas críticas a D. Pedro, insinuando, inclusive, que o imperador era louco. "É uma carta interessantíssima, na qual ele faz análise da política na corte", diz Peixoto. "Num trecho dela, ele lembra antepassados do imperador, como Afonso 6º (1643-1683) [rei de Portugal de 1656 até à sua morte, o segundo monarca português da Casa de Bragança], que acabou preso em Sintra por loucura."

Segundo o historiador, Barbacena diz, "com todas as letras", que, pelo seu comportamento, de às vezes falar uma coisa e fazer outra e pelos seus rompantes de fúria, pelo seu autoritarismo, se não mudasse poderia seguir o destino de Afonso 6º. "Ele diz textualmente as seguintes palavras: 'Poderá acabar como parentes seus, em alguma prisão de Minas a título de doido',", revela. "Ou seja, D. Pedro seria considerado louco pelas suas ações."

Na mesma carta, ele alertou que seu reinado não iria longe daquele jeito. "Barbacena previu, mas não no sentido profético, mas sim porque estava sintonizado com os acontecimentos políticos do período e também porque havia conversado com os grupos de oposição, que ele duraria sete meses no poder", diz Peixoto. "Mas D. Pedro 1º caiu em seis, com a abdicação, em 7 de abril de 1831, em favor de seu filho, então uma criança de 5 anos, que mais tarde veria a ser o imperador D. Pedro 2º."

Fora do governo, Barbacena continuou atuando no Parlamento. Ele foi autor da Lei de 4 de novembro de 1831 a primeira do Brasil que buscou abolir o comércio de africanos escravizados para o país. "Por muito tempo, a historiografia especializada, influenciada por pesquisadores estrangeiros, considerou a lei como uma norma promulgada apenas para 'inglês ver', isto é 'letra morta', que foi criada só para fugir das fortes pressões britânicas pelo fim do tráfico de africanos, tendo em vista a forte campanha internacional abolicionista promovida pela Grã-Bretanha", explica Peixoto.

Isabel Lustosa, pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa (Arquivo Pessoal)

A aparente contradição de um dono de escravos, como Barbacena, fazer uma lei para proibir o comércio deles pode ser explicada pelo projeto de nação que ele defendia. "A ideia era - seguindo em parte o projeto de José Bonifácio de Andrada e Silva - construir uma nação homogênea, mas diferentemente do patriarca da Independência, que via na miscigenação o caminho para o branqueamento do país, o marquês defendia a vinda de imigrantes, sem qualquer tipo de mistura racial, como forma de colocar o país entre nas nações civilizadas", diz Peixoto. "Uma civilização feita a partir do branqueamento do país."

A lei de 1831 chegou a ser executada num primeiro momento após a sua promulgação, mas o fracasso do projeto "moderado" de Barbacena e do ideal de maior aceitabilidade das liberdades fez surgir uma nova força política em 1835, os Regressistas, futuro Partido Conservador do Segundo Reinado. Barbacena propôs então outro projeto de lei em 1837, que anulava a de 1831, mas mantinha o comércio proibido em troca um grande perdão aos senhores de escravos, que haviam obtido ilegalmente mão de obra africana desde o momento de promulgação da norma. "Uma vergonha", classifica Peixoto.

Com o projeto de 1837, Barbacena ainda tentava fazer valer seu projeto de nação, no qual o africano deveria ser impedido de entrar no país e uma nação de imigrantes branqueada seria incentivada. "Só que, os regressistas eram contrários a esse projeto, porque o que eles desejavam era manter a escravidão e retirar dessa gente qualquer tipo de direito", explica Peixoto. "Até mesmo o da liberdade, que de alguma forma, mesmo que não ideal, a lei de 1831 garantiu aos africanos."

Evanildo da Silveira, de Vera Cruz (RS) para BBC News Brasil, em 30.04.22

sexta-feira, 29 de abril de 2022

CNJ assume estranhas funções

A pedido de associações de magistrados, o CNJ tem criado novas despesas e disciplinado a política remuneratória dos juízes independentemente de lei nesse sentido

Um levantamento feito pelo Estadão mostrou o desembaraço de associações de magistrados na busca por vantagens financeiras a seus associados. O curioso, desta vez, é que os pleitos dessas associações não se dirigem a membros do Congresso Nacional nem são ações ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal (STF).

Como mostra a reportagem, desde 2020 as associações têm obtido seguidos êxitos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A investida mais recente, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), busca ampliar um auxílio pago aos magistrados quando há um excesso de novos processos ajuizados. 

A Anamatra pleiteia a redução do número de litígios que autorizam o pagamento da chamada Gratificação por Exercício Cumulativo de Jurisdição (GECJ). A ideia da associação é reduzir de 1.500 para 750 o número de novas ações para fins de cálculo da gratificação.

Se o CNJ deferir esse pleito, não só os magistrados da Justiça do Trabalho poderão ser beneficiados com esse bônus. O dinheiro extra, equivalente a um terço do salário, também poderá aparecer nos contracheques de juízes de todo o País e de todos os ramos do Judiciário.

A iniciativa chama a atenção por mais de um motivo. Primeiro, porque a categoria que pleiteia o benefício não figura entre as mais prejudicadas pelos efeitos da pandemia de covid-19 ou da gestão econômica irresponsável do governo Bolsonaro. Além desses dois fatores não terem impactado os vencimentos dos magistrados – realidade experimentada por muitos brasileiros de diferentes ocupações –, seus salários os colocam entre o 1% mais rico da população.

Some-se a isso que o pleito da Anamatra poderá representar um custo anual de R$ 167 milhões. Conforme o relatório Justiça em Números, do CNJ (2021), as despesas totais do Poder Judiciário chegam a 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB), um recorde internacional, e 92,6% desse montante é de despesas com recursos humanos (pessoal e encargos). 

Outro ponto que chama a atenção na iniciativa da Anamatra e de outras associações de magistrados é o foco no CNJ. A reportagem do Estadão mostra, por exemplo, que esse órgão já determinou aos tribunais federais e do trabalho, a pedido da Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e da Anamatra, a aquisição de 20 dos 60 dias de férias dos juízes.

Vale recordar aqui que o CNJ tem como atribuição primordial o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (artigo 103-B, parágrafo 4.º, da Constituição Federal). Para as referidas associações, entretanto, aquele órgão também poderia criar novas despesas e disciplinar a política remuneratória dos magistrados independentemente de lei nesse sentido. 

Essa dispensa da lei também chama a atenção. Afinal, é ela o veículo pelo qual a sociedade, democraticamente, cria direitos e obrigações jurídicas. A legalidade é sinônimo não só de certeza quanto ao direito, mas também de segurança contra o arbítrio. A lei não é obra de um único indivíduo ou de uma casta, mas dos representantes políticos da comunidade. É uma obra coletiva. Daí que, num cenário de escassez de recursos públicos, era de esperar uma maior valorização do processo legislativo por parte de representantes do Poder Judiciário. 

A importância desse processo é reconhecida pela própria Anamatra. Em texto publicado em seu site em julho de 2017, ela critica a reforma trabalhista feita no governo Temer por ela ter supostamente desconsiderado “a regra básica da formação de uma legislação trabalhista, que é a do diálogo tripartite, e também por conta da supressão do indispensável debate democrático”. 

É essa consciência da relevância do debate democrático que se espera das associações de magistrados em temas de interesse de toda a sociedade, tais como a destinação de recursos públicos à categoria que representam. Ou também aqui valerá o velho dito “Aos amigos os favores, aos inimigos a lei”?

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2022 | 03h00

Qualidade da democracia depende da Câmara

Condescendência com desvios de conduta de deputados indignos do mandato que receberam depõe contra a própria Casa e distorce a representação política da sociedade

Um deputado desqualificado e insignificante se tornou o centro das atenções do País e peão de uma constrangedora rusga entre os Poderes da República, que resvalou até para as Forças Armadas. É como se nada mais urgente demandasse as atenções dos chefes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário do que o destino da triste figura de Daniel Silveira (PTB-RJ) e suas implicações jurídicas e políticas.

A sociedade teria sido poupada do sentimento de vergonha alheia e seus interesses estariam mais bem resguardados se acaso a Câmara dos Deputados – que representa a sociedade, afinal – tivesse cassado Daniel Silveira por quebra de decoro parlamentar. Razões para isso não faltaram.

Antes mesmo de ser eleito na onda “antipolítica” que varreu o País em 2018, o ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro já dava mostras cabais de que seu comportamento iracundo, vulgar, indisciplinado e desrespeitoso era absolutamente incompatível com o exercício do múnus público. Mas, até a eleição, esse era um problema de seus eleitores. Uma vez eleito, mantida a postura indecorosa, Daniel Silveira passou a ser um problema da Câmara.

A Casa tem o papel inalienável de zelar pela qualidade da democracia representativa. Esse zelo se materializa na sanção política, que pode culminar na cassação do mandato, daqueles que manifestam um comportamento que degrada, antes de qualquer coisa, a própria imagem do Legislativo. Contudo, não só Daniel Silveira não foi cassado, malgrado a falta de decoro e a condenação criminal pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como foi premiado com assento em cinco comissões permanentes da Câmara, inclusive a mais importante e prestigiosa de todas, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

O deputado Daniel Silveira está longe de ser o único exemplo de tolerância excessiva da Câmara com graves desvios de conduta – quando não crimes – cometidos pelos seus. Para ficar apenas no caso de condescendência mais nocivo para o País até hoje, basta um simples exercício de imaginação para inferir qual teria sido a sorte dos brasileiros se acaso a Câmara tivesse cassado o mandato do então deputado Jair Bolsonaro após um dos muitos episódios de quebra de decoro que o atual presidente da República protagonizou durante seus quase 30 anos de vida parlamentar. No caso de Silveira, ainda há tempo para a Casa refletir e agir como se espera.

O espírito de corpo na Câmara pode muito bem beneficiar determinada legislatura e aumentar o poder do seu presidente de ocasião, mas, visto a longo prazo, contribui decisivamente para o desprestígio popular do Legislativo e, como consequência, para o enfraquecimento da democracia representativa.

Na esteira da graça inconstitucional concedida a Daniel Silveira por Bolsonaro, um grupo de parlamentares ligados ao presidente da República, liderados pela deputada Carla Zambelli (PL-SP), pretende transformar a condescendência em lei. A parlamentar apresentou um projeto de lei que propõe anistia a todos os deputados que tenham praticado atos investigados como “crimes de natureza política” entre o dia 1.º de janeiro de 2019, data da posse de Bolsonaro, e o dia 21 passado, quando o presidente assinou o decreto “perdoando” Silveira, como se inocente este fosse e como se Bolsonaro fosse um “revisor” das decisões do STF.

A mera apresentação de um projeto desse gabarito, com esse explícito recorte temporal, já é indecente por si só, mas, vindo de uma bolsonarista de quatro costados não chega a surpreender. Outro deputado bolsonarista, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), apresentou um Projeto de Resolução que torna ainda mais difícil a cassação do mandato parlamentar ao propor o aumento do quórum de votação, de maioria absoluta (257 votos) para dois terços (342 votos).

Para o bem da própria Câmara e da democracia representativa, projetos claramente corporativistas como esses não devem prosperar. É do interesse maior da Casa que os maus parlamentares, os que não honram o mandato recebido de seus eleitores, sejam excluídos da vida pública.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2022 | 03h00

Gabeira: Qual é a graça de Bolsonaro?

O problema do presidente não é tanto o STF em 2021, mas sim aqueles ministros que têm poder noTribunal Superior Eleitoral (TSE).
   
 A decisão de Bolsonaro de conceder uma graça presidencial a Daniel Silveira é um marco na sua trajetória. Remete ao 7 de setembro de 2021. Naquele momento, ele fez um discurso inflamado contra o STF, mas, logo em seguida, recuou. Bolsonaro deu um passo atrás para caminhar dois passos à frente num ano eleitoral. Agora, o próprio ex-presidente Michel Temer tentou dissuadi-lo, mas ele segue firme em sua lógica de confronto.

Foram muitos os argumentos jurídicos contra o ato de Bolsonaro. Mas o que parece interessar a ele, na verdade, são as consequências políticas. Avançou ou não no seu projeto de reeleição? É difícil de responder neste momento, mas aparentemente Bolsonaro reforçou sua base e se distanciou um pouco dos setores mais moderados, que, em última análise, são o fiel da balança de uma eleição polarizada. O problema de Bolsonaro não é tanto o STF em 2021, mas sim aqueles ministros que têm poder no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

No caso de Daniel Silveira, ele apenas partiu para o confronto, sem maiores cuidados. Não concedeu graça a um criminoso, como prevê a Constituição. Ele aboliu o crime, afirmando que Silveira apenas exerceu a liberdade de expressão. Em outras palavras, funcionou como uma instância jurídica de revisão, substituiu a Corte Suprema. Isso pode? Perguntam todos aos juízes, no mesmo tom em que locutores esportivos consultam comentaristas especializados depois de um lance confuso.

Da mesma forma, Bolsonaro usou um falso argumento para fundamentar sua decisão. Disse que havia uma comoção nacional por causa da pena a Silveira. Havia apenas um carnaval, muita gente cantando e apontando dois dedos para o alto.

É previsível que agora Bolsonaro volte toda sua energia para questionar as urnas eletrônicas. Ele conseguiu uma nota do Ministério da Defesa condenando o ministro Luís Roberto Barroso. Ao dizer que as Forças Armadas estavam sendo influenciadas para questionar as urnas eletrônicas, Barroso abriu um flanco. Na verdade, essa é a intenção de Bolsonaro, mas todas as forcas democráticas têm de contar com a hipótese de que ele não conseguiu nem conseguirá.

Tudo isso acontece já no calor da pré-campanha. As pesquisas indicam um crescimento de Bolsonaro, mas apontam para um limite por causa da rejeição. Com uma possibilidade grande de derrota, interessa a ele o quadro mais tumultuado possível.

Interessante, também, acentuar que um quadro de tumulto estimulado pelo presidente da República se reflete claramente na economia: afasta investidores, desvaloriza o real, enfim, traz uma série de consequências negativas. Portanto, é um momento de muita cautela, pois simultaneamente é necessário evitar as provocações que vêm de cima e manter a economia num bom estado, para que o sucessor de Bolsonaro não a encontre arruinada.

O TSE tem seguido o caminho mais adequado para esta conjuntura. Ampliou a transparência do sistema eleitoral, compartilha de sua organização com diferentes setores da sociedade e até para a observação internacional está aberto.

Há dois anos, falamos muito de uma frente democrática. Havia dificuldades em formá-la porque as cicatrizes entre os opositores de Bolsonaro ainda estavam muito vivas. Em pleno processo eleitoral, é difícil retomar a ideia de uma frente com a mesma amplitude. Mas nada impede que as campanhas troquem informações e que, num determinado momento, exista um pronunciamento coletivo. Este momento ocorre quando o processo estiver ameaçado, mas pode ser também quando o processo for contestado. Se isso acontecer, será necessária a frente de candidatos que, derrotados ou não, tenham o objetivo comum de preservar a escolha democrática.

Vivemos um debate global sobre liberdade de expressão. A compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk vai reacender uma discussão sobre o comportamento da plataforma, uma vez que o novo dono tende a uma posição mais liberal. Isso vai repercutir no Brasil, sem dúvida. O Twitter firmou um compromisso de combater fake news com a Justiça Eleitoral. Será que poderá cumpri-lo, com a mudança de direção?

A concepção de liberdade de expressão do bolsonarismo e de seus líderes é bastante singular. Foi esse tipo de concepção, nos primórdios da rede social, que permitiu o avanço do racismo, da política do ódio, do assédio moral.

As redes pareciam estar amadurecendo, criando regras, ampliando seu trabalho de moderação. E isso era nossa esperança de atenuar o impacto das fake news em 2022. Se não conseguirmos um avanço neste campo da neutralização das fake news, a tarefa de tumultuar as eleições para questionar seus resultados será muito mais fácil.

O que a nova conjuntura parece nos indicar é que a necessidade de uma frente em defesa da democracia continua sendo tão importante como nos momentos em que ela pareceu mais ameaçada. A existência de muitas candidaturas é uma realidade democrática. Mas os diferentes jogadores não podem ignorar que estão querendo levar a bola, e, neste caso, simplesmente não haverá jogo.

Se os candidatos ainda não suportam falar uns com os outros, ao menos deveriam designar seus representantes para esta conversa permanente no ano eleitoral. É só o que faltava: alguma coisa acontecer, e não estarmos minimamente preparados. Quem quer democracia precisa cuidar dela.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2022 | 03h00

Governo parece gostar de inflação e não se importar com consequências', diz presidente da Febraban

Isaac Sidney prevê aumento do custo do crédito num momento de pressão inflacionária e alta dos juros, por conta do aumento de impostos sobre bancos anunciado nesta quinta-feira

Entrevista com Isaac Sidney, presidente da Febraban  

Isaac Sidney Menezes Ferreira, presidente da Febraban; para ele, governo federal errou ao aumentar impostos Foto: Foto: Celso Doni/Febraban

Isaac Sidney, presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), diz que o governo busca um troféu para ter a narrativa contra bancos na suposição de que aumentar imposto sobre o setor bancário rende dividendos políticos e pode dar votos.

“Mas quem é alvejado com um tiro certeiro é o consumidor”, disse ele em entrevista ao Estadão após o presidente Jair Bolsonaro editar uma Medida Provisória (MP) elevando de 20% para 21% a alíquota da Contribuição Social sobre Lucro Líquido dos Bancos (CSLL) para liberar o Refis do Simples Nacional.  A alíquota para as instituições financeiras não bancárias sobe de 15% para 16% para as instituições financeiras não bancárias. Ao todo, o governo conseguirá reforço de R$ 850 milhões neste ano.

Os bancos já tinham sido atingidos no ano passado com aumento da carga tributária para compensar a desoneração do diesel e do gás.

Na entrevista, o presidente da Febraban subiu o tom das críticas e prevê aumento do custo do crédito num momento de pressão inflacionária e alta dos juros. Para ele, a impressão que fica é que o governo gosta de inflação e não se importa com as consequências.

“Além de mostrar insensibilidade com as pessoas e empresas, particularmente as micro e pequenas, que mais precisam de crédito, aumentar imposto não ajuda nada o BC [Banco Central], que já estava sozinho mesmo, no dificílimo desafio de mitigar os efeitos já fortemente sentidos da inflação de dois dígitos”, critica. Leia a entrevista:

Depois de uma novela de meses, o governo aumentou a tributação dos bancos para fazer o Refis do Simples. O que o sr. achou dessa opção? 

Ao aumentar impostos, o governo errou e escolheu, de novo, onerar o consumidor, o que vai encarecer ainda mais o crédito bancário. É intrigante que, havendo setores muito mais lucrativos e com volumes elevados de incentivos fiscais, os bancos venham a ser penalizados com mais carga tributária. Nesses dois anos de pandemia, os bancos foram essenciais para preservar empregos e empresas com R$ 8,5 trilhões em crédito, irrigando toda a economia. Fomos o 16º setor mais rentável em 2020, ou seja, 15 outros ficaram à frente no quesito rentabilidade, mas só os bancos estão pagando a conta.

Qual a consequência para o crédito?

É, no mínimo, uma péssima sinalização para quem precisa de crédito. Qualquer percentual de aumento de imposto para os bancos impacta diretamente no custo dos empréstimos, que já estão caros. A incidência de mais impostos sobre o crédito, mesmo com um pequeno aumento temporário, pressiona o spread [a diferença entre o custo de captação do dinheiro pelo banco e o que ele cobra do cliente], e pior, num momento em que a sociedade está suportando uma forte subida da taxa básica de juros, que o Banco Central, corretamente, se vê na contingência de agir para conter a escalada da inflação. A medida, embora possa até mirar nos bancos, acerta uma vez mais o consumidor e torna mais caras linhas importantes no processo de recuperação econômica, como financiamento imobiliário e de veículo, crédito consignado e capital de giro.

Como a medida pressiona a inflação?

A inflação está nas nuvens, rodando a 12% ao ano. A impressão que fica é que o governo gosta de inflação e não se importa com as consequências de mais pressão inflacionária, algo que a sociedade não aceita mais. Aumento de impostos pressiona ainda mais a estrutura de custos das famílias e das empresas, retroalimentando o processo inflacionário. Isso é básico. É incrível como se cogita aumentar imposto num momento em que a economia desacelera e quando a Selic e a inflação estão nas alturas. Além de mostrar insensibilidade com as pessoas e empresas, particularmente as micro e pequenas, que mais precisam de crédito, aumentar imposto não ajuda nada o BC, que já estava sozinho mesmo, no dificílimo desafio de mitigar os efeitos já fortemente sentidos da inflação de dois dígitos. Busca-se um troféu para ter a narrativa contra bancos, na suposição de que aumentar impostos do setor rende dividendos políticos e pode dar votos, mas quem é alvejado com um tiro certeiro é o consumidor.

Como o aumento da CSLL influencia nos juros bancários?

Tudo que pesa na intermediação financeira desemboca nos juros bancários e os impostos representam 20% do spread. Portanto, mais CSLL para os bancos significa, no final do dia, mais juros para o tomador do crédito. Nos últimos 12 meses, com a elevação da Selic e do custo de captação, já houve aumento das taxas médias de juros para o crédito às famílias e para as empresas. Este aumento de impostos é muito ruim e seus efeitos serão os de sempre, que já deveriam ter sido evitados: custos maiores para quem mais precisa de crédito num cenário já bem adverso em que a inflação está corroendo o poder de compra das pessoas. 

Qual o impacto geral para a economia?

Aumento de imposto é sempre nocivo por ser fonte de custos. Vai dificultar ainda mais o processo de recuperação da economia, que estará em ritmo de desaceleração em 2022, dadas as condições financeiras e monetárias mais severas.

O que o governo deveria ter feito para compensar o custo fiscal do Refis das MPEs?

O que infelizmente não fez. Para enfrentar as dificuldades fiscais, evitar impactos negativos no custo do crédito e propiciar a retomada consistente da economia, só há um caminho: perseverarmos na aprovação da agenda de reformas estruturais em tramitação no Congresso.

O ministro Guedes descumpriu a promessa feita de que o aumento seria só aquele do ano passado?

Independentemente de promessa ou não, não é razoável que os bancos tenham, em 2021, suportado um aumento de cinco pontos percentuais de CSLL, sob o compromisso de que a majoração seria circunstancial e por apenas seis meses, e agora, pouco tempo depois, haja nova imposição de ônus sobre um dos setores que mais tem ajudado na recuperação econômica. Acho lamentável, pois cumprimos nossa parte e já pagamos mais impostos do que outros setores.

Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo, em 29 de abril de 2022 | 09h54

Quanto custa acabar com a extrema pobreza no Brasil?

Especialistas na área social dizem que o país poderia gastar menos em transferência de renda do que os R$ 89,1 bilhões do Auxílio Brasil, desde que o programa fosse mais focalizado. Maior atenção às crianças e às diferenças regionais também são pontos de alerta.


O casal Daniel e Bruna e os filhos sobrevivem apenas com os R$ 632 que recebem do Auxílio Brasil e os R$ 52 do Auxílio Gás — Foto: João Raimundo/GloboNews

No Sol Nascente, uma das regiões mais pobres do Distrito Federal, o casal Daniel Souza de Oliveira e Bruna Carvalho Tavares e os seis filhos sobrevivem apenas com os R$ 632 que recebem do Auxílio Brasil e os R$ 51 do Auxílio Gás.

Mesmo com dois benefícios, o dinheiro não é suficiente para dar conta de todas as despesas. Só o custo do aluguel, da conta de luz e do gás soma R$ 700 por mês. Na prática, é como se cada integrante da família tivesse direito a apenas R$ 85,5 mensais.

"O nosso aluguel está com um mês de atraso", conta Daniel. "O dono pediu a casa se a gente não conseguir o dinheiro até o fim do mês."

Desempregado desde o início de abril, Daniel tem enviado currículos por e-mail. Sair de casa para buscar emprego não tem sido mais uma possibilidade, porque é preciso economizar na passagem de ônibus. No supermercado, diz que dá para comprar pouca coisa.

"Carne não pode nem se falar e até mesmo o preço do ovo... Uma bandeja custa R$ 20", diz. "A gente é uma família muito grande. Tudo é em grande quantidade. É muito difícil."

Eliminar a pobreza do país, no entanto, é acessível. Especialistas ouvidos pelo g1 e pela GloboNews estimam que seja necessário entre R$ 43 bilhões e 80 bilhões anuais para que toda a população supere ao menos a linha de pobreza – valores menores que os gastos atualmente no pagamento do Auxílio Brasil.

Pobreza, o grande problema

Famílias como a de Daniel têm engrossado as estatísticas da dura desigualdade do Brasil. No ano passado, 27,6 milhões de brasileiros estavam na pobreza, segundo o último levantamento realizado pela FGV Social. Ou seja, 13% das pessoas no país encerraram 2021 vivendo com até R$ 290 por mês, o maior patamar desde 2012, pelo menos.

A pobreza é um dos grandes problemas estruturais do país. Historicamente, diferentes governos usaram mecanismos de transferência de renda para tentar diminuir a miséria e, assim, melhorar os indicadores sociais.

Hoje, o principal programa é o Auxílio Brasil. Com um orçamento estimado em R$ 89,1 bilhões neste ano, ele foi criado pelo governo Jair Bolsonaro para substituir o Bolsa Família, que tinha cerca de R$ 35 bilhões em recursos disponíveis.

Mesmo com um programa mais robusto em vigor, os analistas que se debruçam sobre os indicadores sociais dizem que apenas mais dinheiro não é suficiente para acabar com a pobreza. A avaliação é a de que o Brasil pode até gastar menos no combate à miséria se conseguir focalizar melhor o benefício naqueles que mais precisam.

Os especialistas também alertam que o fim da pobreza não depende apenas dos programas de transferência de renda. Boas políticas de educação e saúde, além de uma inflação sob controle e um mercado de trabalho forte, são fundamentais.

"O Brasil tem um número grande e um número pequeno. O número grande é a quantidade de pobres. (Em outubro de 2021) Eram cerca de 27 milhões de pessoas. E tem um número pequeno, que é o custo de erradicação da pobreza", afirma Marcelo Neri, diretor da FGV Social.

"Apesar de o governo gastar muito (com o Auxílio Brasil), ele não consegue encontrar as pessoas que, por exemplo, estão dormindo na rua, o que está cada vez mais comum", acrescenta Naercio Menezes, coordenador da Cátedra Ruth Cardoso e professor do Insper. "Os programas têm de ser ágeis para encontrar essa entrada e saída de pessoas da pobreza."

Procurado, o Ministério da Cidadania, responsável pela execução do Auxílio Brasil, não se manifestou sobre a reportagem.

Afinal, quanto custa acabar com a pobreza?

Os analistas têm números distintos para a erradicação da miséria. E essa diferença pode ser explicada porque não há, por exemplo, uma classificação única para a linha de pobreza. Cada pesquisador trabalha com um número diferente.

Apesar das diferenças metodológicas, os exercícios mostram que o país poderia gastar menos se desenvolvesse um programa social focalizado exclusivamente nos mais pobres e conseguisse mapear quem mais precisa.

Valor necessário é pequeno, diz Marcelo Neri

Nas contas de Marcelo Neri, da FGV Social, o custo para tirar os 27,6 milhões de brasileiros da pobreza seria de R$ 43 bilhões anuais.

"Se você fizesse um programa totalmente focalizado, esse número (para acabar com a pobreza) é pequeno", afirma. "São cerca de R$ 43 bilhões, que é menos da metade do que se gasta com o Auxílio Brasil."

Ele avalia que o Auxílio Brasil trouxe uma "certa involução". Um bom programa de transferência de renda, diz, deve conceder o benefício apenas "aos pobres. E dar aos pobres apenas aquilo que eles necessitam para chegar na linha de pobreza (R$ 290 mensais per capita, segundo a FGV)."

"Os R$ 400 [do Auxílio Brasil] não levam em conta nem o tamanho nem o grau de pobreza da família", pondera Neri.

Gasto para acabar com a pobreza é acessível, afirma Naercio Menezes

Naercio Menezes, do Insper, estima que são necessários R$ 80 bilhões para acabar com a pobreza entre as famílias com crianças de zero e seis anos e erradicar a pobreza extrema nas famílias sem crianças.

"É um gasto acessível. O governo já vai gastar mais ou menos isso com o Auxílio Brasil sem acabar com a pobreza entre as crianças", afirma Naercio. "É uma questão de realocar os recursos, concentrando onde a gente mais precisa."

Na avaliação dele, o foco das políticas públicas deve ser na primeira infância. Com mais recursos em mãos, as famílias vão ter mais renda para gastos básicos, como moradia, transporte, roupas e remédios.

R$ 80 bilhões podem acabar com a pobreza entre as famílias com crianças de zero e seis anos, diz pesquisador — Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

"Se você não investe nas crianças hoje, vai precisar, no futuro, fazer programas de qualificação profissional, construir mais hospitais, prisões, fazer programas de transferências de renda. Então, é uma maneira ótima de usar os recursos no longo prazo", acrescenta.

Ele também pondera que as transferências de renda precisam levar em conta a diferença do custo de vida entre as regiões do país.

"Se o governo transferir R$ 400 para a zona rural do Piauí, é possível acabar com a pobreza. Mas, com esse valor, na região metropolitana de São Paulo, não é possível acabar nem com a pobreza extrema."

Por Bianca Lima, Vanessa Silvestre e Luiz Guilherme Gerbelli, GloboNews e g1. Publicado originalmente em 29/04/2022.

Zelensky: quem é o ator que foi de novato político a presidente da Ucrânia em guerra

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, um ator que não tinha experiência política quando foi eleito há menos de três anos, agora surge como um convincente líder de um país em guerra.

Volodymyr Zelensky discursou na TV tarde da noite no dia 24 de fevereiro, poucas horas antes da invasão (Getty Images)

Ele está unindo a nação com seus discursos e selfies em vídeo, dando voz à raiva ucraniana na resistência à agressão russa.

Enquanto o presidente russo Vladimir Putin parece cada vez mais errático — acusando a Ucrânia de "genocídio" nas repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk, e falando da necessidade de "desnazificar" o país — o presidente Zelensky, de uma família judia de língua russa, mantém uma postura digna.

Seus pronunciamentos revelaram um lado que muitos críticos seus — incluindo vários da elite intelectual — não esperavam.

Um momento chave na transformação deste presidente — que vinha mal nas pesquisas e às vezes parecia estar abaixo da capacidade que o cargo exige — em uma liderança nacional aconteceu nas primeiras horas da quinta-feira, dia 24 de fevereiro, pouco antes da invasão russa. Em um discurso sóbrio postado nas mídias sociais, falando parcialmente em russo, ele disse que tentou ligar para Vladimir Putin para evitar uma guerra, mas que foi recebido com silêncio.

Vestindo um terno escuro em frente a um mapa da Ucrânia, ele disse que os dois países não precisam de uma guerra, "nem uma Guerra Fria, nem uma guerra quente, nem uma guerra híbrida". Mas ele acrescentou que se os ucranianos fossem atacados, eles se defenderiam. "Quando você nos atacar, verá nossos rostos — não nossas costas, mas sim nossos rostos."

Em sua próxima transmissão, ao meio do dia de sexta-feira, já após a invasão russa, ele usava uniforme militar, refletindo o clima de "Davi contra Golias" do conflito. Naquela noite, ele fez outro discurso, alertando os líderes de países como EUA e Reino Unido que, se eles não ajudassem no esforço contra os russos, "amanhã a guerra baterá em suas portas".

"Este é o som de uma nova cortina de ferro, que desceu e está separando a Rússia do mundo civilizado."

Volodymyr Zelensky em uma selfie em vídeo mostrando aos ucranianos que ele não fugiu de Kiev (Reuters)

A editora-chefe do site de notícias Novoye Vremya, Yulia McGuffie, diz que ficou chateada quando Zelensky foi eleito presidente em abril de 2019, pois ela não tinha fé em sua capacidade de liderar o país. Mas os ucranianos passaram rapidamente a apreciar seu presidente na semana passada, diz ela.

"Apoio e respeito total vieram, eu acho, depois que a Rússia começou sua guerra — todos os ucranianos fecharam com Zelensky. Ele está desempenhando um papel de união e eu diria de inspiração, em parte por seu próprio exemplo. Ele está liderando um governo que está repelindo o exército de Putin, e por causa disso muitos o admiram e respeitam."

A chegada de Zelensky à cena política foi um caso de vida que imita a arte. Seu papel mais celebrado como ator cômico foi em 2015 na série de TV Servant of the People, na qual ele interpretou um professor de escola catapultado à Presidência depois que um aluno postou um vídeo viral dele falando sobre corrupção na política.

Sua candidatura nas eleições presidenciais de 2019 foi inicialmente vista por alguns como apenas uma piada — seu partido político leva o nome do seriado: o Criado do Povo. Mas Zelensky acabou vencendo com 73% dos votos, prometendo combater a corrupção e trazer a paz ao leste do país, onde há tensões com a Rússia.

O presidente ucraniano tem muitos poderes, mas todos sabiam que cumprir essas promessas seria difícil, diz a consultora de comunicação Yaryna Klyuchkovska. E para alguém que começou sua presidência com um índice de aprovação tão alto, o único caminho era para baixo.

"Uma coisa é fazer promessas tão amplas e outra é executar essas políticas", diz ela.

Zelensky antes da política

Nascido na cidade de Kryvyi Rih, leste da Ucrânia, em 1978

Formado pela Universidade Nacional de Economia de Kiev com diploma em Direito

Co-fundou uma produtora de TV de sucesso

Produziu programas para uma rede de propriedade do controverso bilionário Ihor Kolomoisky

Kolomoisky apoiou sua candidatura presidencial

Até meados da década de 2010, sua carreira na TV e no cinema era seu foco principal

Zelensky contou com o apoio do oligarca Ihor Kolomoisky durante sua campanha presidencial, levando muitos a temer que ele se tornasse um fantoche, controlado por um homem que está sob investigação nos EUA por possível fraude e lavagem de dinheiro.

Na verdade, ele provou ser mais independente do que muitos céticos imaginavam, recusando-se, por exemplo, a permitir a reprivatização do PrivatBank, que era de propriedade de Kolomoisky antes de ser nacionalizado.

Por outro lado, a corrupção continua profundamente enraizada na Ucrânia, e há preocupações de que uma nova lei anti-oligarca possa ser usada para restringir as atividades de alguns bilionários mas não de outros. Um sinal disso seria o indiciamento por corrupção do principal rival de Zelensky, Petro Poroshenko, seu antecessor como presidente.

As tentativas de Zelensky de negociar com a Rússia uma solução para o conflito no leste, que deixou mais de 14 mil mortos, também tiveram sucesso limitado. Houve trocas de prisioneiros e movimentos para a implementação parcial de um processo de paz, conhecido como acordos de Minsk, mas nada foi concluído. Ao longo de 2020, seu índice de aprovação caiu constantemente.

Diante disso, Zelensky adotou um tom mais assertivo ao pressionar pela adesão à União Europeia e à aliança militar da Otan, um movimento que certamente enfureceu o presidente russo.

Zelensky é constantemente acusado de ter ligações com o polêmico magnata dos negócios Ihor Kolomoisky (Getty Images)

Mas Yaryna Klyuchkovska diz que a postura de Zelensky sobre o conflito no leste e sobre a Rússia ainda era tímida demais para muitos ucranianos, pelo menos até recentemente.

Com a guerra cada vez mais iminente, ele declarou um "Dia da Paz" e continuou falando em solução diplomática, mesmo diante do aumento em violações do cessar-fogo na linha de frente.

"Ele evitava falar em guerra, artilharia, qualquer assunto militar. Era um tópico fora de sua zona de conforto e ele não estava disposto a abordar isso em seu discurso público", diz Klyuchkovska.

Ele também discordava dos avisos diários dos EUA e de outros governos sobre um ataque russo iminente, dizendo que a estratégia de comunicação dos EUA era "cara demais para a Ucrânia".

A grande mudança de rumo veio com um discurso que ele fez na Conferência de Segurança de Munique no sábado, 19 de fevereiro, diz Klyuchkovska. A consultora de comunicação disse que foi esse discurso que a converteu em fã. Zelensky começou descrevendo uma visita a um jardim de infância no leste do país que havia sido atingido por um míssil.

"Quando uma cratera de bomba aparece no pátio da escola, as crianças perguntam: 'O mundo se esqueceu dos erros do século 20?'", disse ele.

"A indiferença faz de você um cúmplice", disse ele aos convidados das elites diplomáticas e de defesa de países como EUA e Reino Unido. Ele lembrou todos de quando Vladimir Putin rejeitou uma ordem mundial liderada pelos EUA na mesma conferência exatamente 15 anos antes, e seu alerta de que a Rússia estava voltando ao palco mundial. "Como o mundo respondeu a isso? Com apaziguamento."

Klyuchkovska diz que nenhum líder ucraniano havia falado tão abertamente com países como EUA e Reino Unido antes.

"Para mim, o momento de passar a ter orgulho de Zelensky veio durante seu brilhante discurso na conferência de segurança em Munique", diz a jornalista Yulia McGuffie. "Foi ali que muitos dos oponentes políticos de Zelensky na Ucrânia decidiram que agora não é hora de brigas e conflitos."

Volodymyr Zelensky em vídeo do lado de fora da Casa das Quimeras de Kiev no sábado, 26 de fevereiro

Os serviços de inteligência de países como EUA e Reino Unido afirmam que o nome de Zelensky é o primeiro em uma lista de pessoas que as forças russas pretendem assassinar. Zelensky diz que sua família está em segundo lugar na lista, mas que todos vão permanecer na Ucrânia.

Sua presença é confirmada pelas selfies em vídeo que ele publicou do lado de fora do prédio presidencial e da famosa Casa das Quimeras, adornada com representações de animais exóticos e cenas de caça.

Em resposta a uma das fotos, o escritor britânico Ben Judah tuitou: "Se você tivesse dito a muitos de nossos bisavós no Pale [a zona do império russo em que os judeus ficavam confinados] que um homem judeu seria um ucraniano líder de guerra contra uma invasão russa, eles teriam ficado incrédulos."

"Claro, ele é um ator. Não sei se isso é sua verdadeira personalidade ou não. Mas o que quer que ele esteja fazendo, está funcionando", diz Yaryna Klyuchkovska. "As pessoas que escrevem os seus discursos encontraram o ritmo certo. Eles vêm da indústria do entretenimento, mas mesmo escrever um programa da Netflix é diferente de escrever discursos presidenciais."

A Ucrânia ainda enfrenta condições muito pouco favoráveis nesta guerra. A força de invasão da Rússia é enorme e bem armada. Mas este bacharel em direito de 44 anos, um novato político, tem sido uma voz que está ajudando a elevar o moral ucraniano.

"Um dos meus bons amigos acabou de escrever: 'Zelensky de repente criou coragem em proporções cósmicas'", diz McGuffie. "E isso realmente reflete a atitude [nacional] em relação a ele agora."

Stephen Mulvey, da BBC News, em 27 fevereiro 2022 / Kateryna Khinkulova colaborou

quarta-feira, 27 de abril de 2022

A educação, nas eleições e no eleitor

Não há voto responsável se desconhecemos o que os candidatos pensam e propõem sobre educação.

No início do mês, Priscila Cruz fez no Twitter um pedido aos jornalistas: “Sempre que entrevistarem algum candidato – a presidente, governador, deputado, senador –, perguntem o que ele ou ela pretende fazer pela educação”. O apelo é justo e muito oportuno. Não há cobertura política adequada se o tema da educação fica de fora.

Essa advertência sobre a centralidade da educação, feita diretamente para os jornalistas, pode servir igualmente para todos nós, cidadãos. Não há voto responsável se desconhecemos o que os candidatos pensam e propõem sobre educação – especialmente se ignoramos, como às vezes ocorre, o que os candidatos ou partidos que apoiamos pensam e propõem sobre educação. Antes de compartilhar material de um político em grupo de WhatsApp, pensemos no que ele tem feito ou proposto para a educação.

Eis um tema de aprendizado coletivo. Apoiar um candidato sem saber o que ele propõe para a educação é rigorosamente uma temeridade. É contribuir para fortalecer a ideia de que a educação não é requisito necessário para tudo o que queremos com a política: condições de vida digna para todos, desenvolvimento social e econômico do País. Dito de forma mais incisiva, é autorizar, por meio do exercício dos nossos direitos políticos, o desleixo com a educação.

Ao propor que todos os candidatos sejam questionados a respeito de suas propostas para educação, a presidente executiva do Todos Pela Educação toca um aspecto fundamental da própria vida política. Não há – não deveria haver – espaço na vida pública para quem não tem o que propor sobre educação. Saber formular um diagnóstico sobre o ensino no País e apresentar caminhos de melhoria da educação deveriam ser requisitos para a representação política: uma espécie de patamar mínimo de competência para a vida pública. Como alguém pretende representar a população e definir políticas públicas, se ignora (ou trata de forma superficial) essa dimensão essencial do presente e do futuro do País?

Esse tópico refere-se aos políticos e, também, ao voto de cada eleitor. Pensemos nas eleições de outubro, quando se renovarão inteiramente a Câmara dos Deputados e as Assembleias Legislativas estaduais. Está nas mãos do eleitorado estabelecer o patamar mínimo de competência para os candidatos: se haverá tolerância para quem não tem propostas para a educação.

Logicamente, seria ingenuidade achar que a composição da Câmara e das Assembleias irá, num passe de mágica, mudar radicalmente. O ponto é outro: ter deputados federais e estaduais comprometidos com a educação está muito mais nas nossas mãos do que habitualmente pensamos. Podemos fazer e exigir muito mais.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado às cadeiras do Senado que serão renovadas neste ano e às chefias do Executivo federal e estadual. Faz sentido, por exemplo, votar em candidatos cuja trajetória política é a negação de qualquer ideia de educação? O nosso voto precisa contemplar o futuro de nossas crianças.

Abro um parêntese. A organização do Estado é sofisticada, com competências distribuídas entre União, Estados e municípios. Ter propostas para a educação requer conhecer essa arquitetura institucional, com suas regras, procedimentos e órgãos envolvidos. A melhoria da educação não é batalha solitária, messiânica ou voluntarista. É um trabalho de cooperação e articulação institucional.

Por último, mas não menos importante, destaco uma consequência dos pontos anteriores. Não são apenas os candidatos que precisam conhecer a realidade da educação brasileira e ter propostas consistentes. Se somos nós, os eleitores, que iremos escolher os candidatos, também nós precisamos saber minimamente sobre a educação no País. Indo além dos lugares-comuns e do interesse imediato familiar (que muitas vezes está centrado no âmbito da educação privada), compete a nós saber formular um diagnóstico minimamente consistente e identificar caminhos possíveis para o ensino no Brasil. De outro modo, estaríamos ratificando a ideia de que a educação de qualidade é uma bela e irrealizável meta.

Se queremos que os candidatos tenham propostas para a educação, precisamos conhecer mais, participar mais, contribuir mais. Mais do que falta de vontade política – não raro, bons projetos de educação são aprovados por unanimidade no Congresso –, é preciso qualificar o debate público sobre educação. Muita coisa boa, séria e eficiente tem sido feita. Se a melhora ainda é pontual, em parte isso é fruto do nosso baixo compromisso, enquanto sociedade, com a formação da juventude.

Saber sobre educação deve ser um requisito de competência para a vida pública, assim como deve ser um patamar mínimo de cidadania para todos, especialmente para quem teve o privilégio de cursar o ensino superior. Quem recebeu mais pode e deve fazer mais, muito mais.

Não há futuro digno sem educação de qualidade. Não há política genuína sem políticas públicas qualificadas para a educação. Não há cidadania sem compromisso com a educação. Cabe a nós colocar essa pauta em nossa vida – e em nossos votos.

Nicolau da Rocha Cavalcanti, o autor deste artigo, é advogado e jornalista. Publaicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 27 de abril de 2022 | 03h00

STF não deve cair na provocação bolsonarista

Não há duelo entre Bolsonaro e STF. A Corte tem apenas cumprido seus deveres. E a briga do presidente é mais ampla e mais grave: é com a lei e com a democracia

Segundo o conto bolsonarista, o que se vê hoje no País seria o duelo entre Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF), nada mais que a disputa, própria do sistema de freios e contrapesos, entre dois Poderes da República. Esse discurso, aparentemente muito institucional, não tem nenhum apoio nos fatos. Os últimos dias foram especialmente significativos para desmascarar a falsa simetria entre o STF e o Palácio do Planalto, a começar pelo comportamento do próprio Bolsonaro.

Na semana passada, cumprindo suas funções constitucionais, o STF julgou uma ação penal proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), que, em função do cargo, tem foro privilegiado. No julgamento da ação, não houve a rigor nada de estranho. O órgão judicial competente analisou a causa criminal, proferindo decisão de condenação por 10 votos contra 1. Era apenas o Judiciário fazendo o seu trabalho.

Ação penal não é tema do Executivo, mas Jair Bolsonaro viu, no caso, uma oportunidade para criar confusão. Sob o pretexto de conceder indulto, o presidente da República arrogou o direito de rever a decisão judicial, declarando que o deputado do PTB era inocente. Segundo Bolsonaro, as ações de Daniel Silveira estariam cobertas pela imunidade parlamentar.

O decreto presidencial não continha, portanto, nenhum perdão. Era nada menos que um novo entendimento jurisprudencial, proferido por órgão inteiramente incompetente. Não era o Executivo federal exercendo uma de suas atribuições constitucionais. Era Bolsonaro sendo Bolsonaro, convertendo todas as situações em ocasião de enfraquecer as instituições.

Desde os dois episódios da semana passada – condenação pelo Supremo e revisão da condenação pelo Palácio do Planalto –, os dois padrões de comportamento vêm sendo sistematicamente repetidos. De forma exemplar, o Supremo não caiu na provocação de Jair Bolsonaro. Fosse verdadeiro o discurso bolsonarista, seria a ocasião perfeita para o STF responder na mesma moeda. Mas não. O que se viu foram despachos técnicos, proferidos nos autos, tanto pelo relator da ação penal, ministro Alexandre de Moraes, como pela relatora da ação que questiona o indulto, ministra Rosa Weber.

Alexandre de Moraes determinou que o decreto presidencial seja juntado aos autos, lembrando o entendimento consolidado do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no sentido de que indulto não alcança a inelegibilidade relativa à condenação criminal. Em seguida, intimou a defesa de Daniel Silveira para que se manifeste sobre o decreto e sobre o descumprimento de medidas cautelares por parte do réu. Na outra ação, Rosa Weber abriu prazo de 10 dias para Jair Bolsonaro se manifestar sobre o indulto. Assim atua a Justiça: de forma técnica, nos autos.

Por sua vez, Jair Bolsonaro confirmou que seu objetivo nunca foi indultar Daniel Silveira, e sim criar tumulto. Uma vez que o Supremo não respondeu ao deboche de quinta-feira passada, Bolsonaro precisou recorrer a novos assuntos para manter o clima de aparente duelo. Na segunda-feira, chegou a dizer que talvez não cumpra a decisão do STF sobre o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. “Se ele (Edson Fachin, relator da ação) conseguir vitória nisso, me restam duas coisas: entregar as chaves para o Supremo ou falar que não vou cumprir”, disse.

É constrangedor o comportamento de Jair Bolsonaro, em descarada procura de assuntos que o coloquem em colisão com o Supremo. Engana-se quem pensa, no entanto, que a briga do bolsonarismo é com a Corte constitucional. O presidente não está preocupado com eventual ida de Daniel Silveira à cadeia, tampouco com o STF, como se o motivo da desavença fosse a interpretação de algum ponto da Constituição.

A confusão provocada por Jair Bolsonaro é muito mais grave. É meio para enfraquecer as instituições e, assim, avançar com mais desenvoltura em sua caminhada rumo à impunidade da família e, quem sabe, à permanência indeterminada no poder. Não foi assim que Hugo Chávez fez?

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 27 de abril de 2022 | 03h00

terça-feira, 26 de abril de 2022

Forças Armadas devem resistir ao bolsonarismo

Elas têm sido exemplares no respeito à Constituição, sem se envolver em questões políticas. Nota do Ministério da Defesa mostra como o bolsonarismo é perigoso

No processo de enfraquecimento das instituições levado a cabo pelo bolsonarismo, é atribuído às Forças Armadas um papel que não lhes corresponde. Os militares não são guarda pretoriana, tampouco poder moderador. A Constituição de 1988 estabelece que as Forças Armadas se destinam “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Para que possam cumprir suas funções constitucionais, as Forças Armadas têm de estar obrigatoriamente distantes da política. Por consequência, devem estar distantes do bolsonarismo, do lulopetismo ou de qualquer outro grupo político.

É de justiça reconhecer que, desde 1988, as Forças Armadas têm se portado exemplarmente, em plena conformidade com seu estatuto constitucional, sem se envolver em questões políticas. Esse posicionamento institucional foi reforçado e protegido pela criação do Ministério da Defesa em 1999, durante o governo de Fernando Henrique, que reuniu as pastas correspondentes à Marinha, ao Exército e à Aeronáutica. Foi um importante marco, confirmando que, num regime civil, também a condução política dos assuntos militares e da defesa deve estar plenamente integrada à administração geral do Estado. Na construção e manutenção desse cenário institucional próprio de um Estado Democrático de Direito, os militares tiveram papel fundamental, com seu firme compromisso à Constituição de 1988.

É notório, no entanto, que Jair Bolsonaro não nutre afeição por essa configuração institucional. Em seus discursos e ações, vislumbra-se uma pretensão contrária ao que dispõe a Constituição. Bolsonaro quer ter as Forças Armadas ao lado de seu projeto político e, para piorar, deseja lhes atribuir um protagonismo político-institucional nas relações com o Judiciário e o Legislativo. Tudo isso é rigorosamente inconstitucional. “Política não pode estar dentro do quartel. Se entra política pela porta da frente, a disciplina e a hierarquia saem pela dos fundos”, lembrou, em novembro de 2020, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão. 

Por tudo isso, é preocupante a nota As Forças Armadas e o Processo Eleitoral, emitida no domingo passado pelo Ministério da Defesa, em reação a uma palestra dada a estudantes pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao reverberar uma suscetibilidade exagerada, sem se ater sequer ao que foi dito pelo palestrante, a nota suscita a mensagem oposta ao que, em tese, deveria transmitir.

Na palestra, Luís Roberto Barroso reconheceu, em tom de elogio, que “o profissionalismo e o respeito à Constituição têm prevalecido” nas Forças Armadas. Alertou, no entanto, para o risco de “voltar à tradição latino-americana de colocar o Exército envolvido com política”. Segundo o ministro do STF, observa-se a tentativa de usar as Forças Armadas “para atacar o processo (eleitoral) e tentar desacreditá-lo”. Disse ainda ter fé “que as lideranças militares saberão conter esse risco de contaminação indesejável que levou à ruína da Venezuela”.

Assinada pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, a nota, que não cita a Constituição de 1988 nem os deveres constitucionais das Forças Armadas, “repudia qualquer ilação ou insinuação, sem provas, de que elas teriam recebido suposta orientação para efetuar ações contrárias aos princípios da democracia”.

Citando a “ampla confiança da sociedade (nas Forças Armadas), rotineiramente demonstrada em sucessivas pesquisas e no contato direto e regular com a população”, o texto ainda afirma que “as eleições são questão de soberania e segurança nacional, portanto, do interesse de todos”. Não parece destinado a sanar dúvidas, tampouco a mostrar eventual equívoco da fala de Luís Roberto Barroso.

A distância que as Forças Armadas, desde a Constituição de 1988, vêm mantendo das questões políticas precisa ser preservada. Algo importante e valioso foi construído no período. Não se pode deixar que o bolsonarismo, com sua pretensão de autoritarismo, destrua esse legado.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 26 de abril de 2022 | 03h00

Perdão presidencial nos EUA: debates na Convenção da Filadélfia e controle judicial

Quando decidiram romper os laços com a Coroa Britânica os revolucionários das então Treze Colônias inglesas na América, debateram, discordaram e duvidaram da empreitada, mas ao fim concordaram em um ponto, convinha redigir um documento com as razões que justificassem o ato.

Os revolucionários chegaram a um consenso e incumbiram Thomas Jefferson a tarefa de redigir a primeira versão do documento, que ficou pronta e foi assinada em 2 de julho de 1776, e ratificada em 4 de julho, data que acabou prevalecendo para fins de celebração.

A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América incorporou valores iluministas, afirmou que todos os "homens nascem iguais", que a "Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade" são "Direitos inalienáveis" e que "os governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados". Pelos valores incorporados, pela elegância, objetividade e propósito, o texto beira a perfeição.

Antes de tudo a Declaração é um libelo contra os abusos do Rei George 3º e uma denúncia contra os equívocos da monarquia. A ela se seguiu a vitória na Guerra de Independência, a Constituição de 1787, o Bill of Rights de 1789, uma Guerra Civil, a segregação racial, e a consolidação do país como uma das democracias mais estáveis e admiradas do mundo.

A Constituição Federal, redigida para reger a República democrática sonhada pelos que costuraram a Declaração de Independência, acolheu no seu texto, por ironia, um dispositivo que remete aos poderes reais de Georges e Henriques. Refiro-me à prerrogativa do presidente da República (que eles preferem dizer presidentes dos Estados Unidos) prevista no artigo II, seção 2, cláusula 1, que dispõe sobre a concessão de indulto (pardons) aos que cometeram crimes contra os Estados Unidos, exceto na hipótese de impeachment.

A proposta suscitou "certa" controvérsia nos debates na Convenção da Filadélfia. Antifederalistas, vale dizer, aqueles contrários a criação de um Estado Federal, principal força que se opunha à Constituição, ampliaram as críticas ao Executivo imperial, que mais parecia "um rei eleito, um príncipe sob um manto republicano" (an elective king, a prince under a republican cloak).[1] Essas críticas se dirigiam principalmente ao poder de realizar tratados, ao veto e à prerrogativa de concessão de "indulto" (pardons), tudo a caracterizar a existência de uma autoridade investida de poderes perigosos a um povo livre (vested with power dangerous to a free people).[2]

Apesar das críticas, prevaleceram as razões de Alexander Hamilton, posteriormente tratadas nos capítulos 69 e 74 de "O Federalista", livro que reúne artigos publicados nos jornais de Nova York (e de outros estados) com a finalidade de convencer indecisos a ratificarem a Constituição.[3] Para Hamilton as leis penais eram severas, de modo que se apresentava razoável "um acesso fácil a exceções em favor de um culpado infeliz", sem isso "a justiça teria um semblante muito sanguinário e cruel". (without an easy access to exceptions in favor of unfortunate guilt, justice would wear a countenance too sanguinary and cruel.)[4]

Em mais de dois séculos de vigência a Constituição dos Estados Unidos não sofreu alteração no que diz respeito à prerrogativa de concessão de indulto, que ela genericamente denomina de pardon. Não há registro de qualquer contenda judicial que tenha levado o tema à apreciação de mérito pela Suprema Corte, especificamente no que diz respeito aos limites do poder presidencial. Por outro lado, há uma queixa generalizada ao crescente uso da prerrogativa por presidentes de ambos os partidos. Com um detalhe, a concessão da "graça" tem ocorrido de forma esmagadora nos últimos dias de mandato, nunca, ou quase nunca, imediatamente a uma condenação judicial. Digno de nota que o presidente Gerald Ford concedeu perdão ao ex-presidente Richard Nixon um mês após a posse e referente ao envolvimento com o escândalo Watergate, vale dizer, relativo a atos sobre os quais ainda não se tinha uma noção de profundidade.

Em Burdick v. U.S. (1915) a Suprema Corte estadunidense afirmou que o indulto "carrega uma imputação de culpa; aceitação de uma confissão". Ocorre que afirmação foi um obiter dictum, de modo que, nesse particular, não se pode considerar um precedente.

Os parágrafos pretéritos parecem indicar que desde longa data a concessão de indulto (graça, perdão, etc) é vista como uma prerrogativa que não se harmoniza totalmente com os princípios republicanos, na medida que reflete uma prática típica da monarquia. Apontam que a Suprema Corte que mais influenciou e influencia o direito no Ocidente ainda não se pronunciou, no mérito, sobre eventuais limites na concessão de indulto.

Numa república que abraça o "Estado democrático de Direito" parece não haver espaço a existência de atos divorciados desse valor fundamental, e, por conseguinte, cabe ao Judiciário, no pleno exercício de sua atribuição constitucional de revisão judicial — inaugurada por John Marshall na alvorada do século 19, no célebre caso Marbury v. Madison — fazer funcionar os instrumentos que o Constituinte lhe conferiu.

[1]. MAIN, Jackson Turner. The Anti-Federalists. Critics of the Constitution, 1781-1788. New York: W.W. Norton & Company, 1974, p. 141.

[2]. MAIN, Jackson Turner. Op. cit, p. 141.

[3]. Além de Hamilton escreveram artigos e são autores de O Federalista: James Madison e John Jay.

[4]. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The Federalist Papers. Edited by ROSSITER, Clinton;  Introduction and Notes KESLER, Charles R. New York: New American Library (Signet Classics), 2003, p. 446.

João Carlos Souto , o autor deste artigo, é professor de Direito Constitucional, Procurador da Fazenda Nacional e autor de "Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais Decisões" (Atlas, 4ª ed/2021). Publicado originalmente no Consultor Juridico, em 26.04.22

Os desconhecidos casos de crianças e bebês sequestrados na ditadura brasileira

 Onze dos 19 casos conhecidos de sequestros de crianças na ditadura estão ligados à guerrilha do Araguaia, um movimento guerrilheiro de oposição que ocorreu entre o final da década de 1960 e o ano de 1974 na região amazônica, na confluência dos estados do Pará e do atual Tocantins.

Rosângela Serra Paraná (ao centro) com Odyr de Paiva Paraná e Nilza da Silva Serra (Arquivo Pessoal)

Há pelo menos uma década, Rosângela Serra Paraná está à procura dos pais biológicos.

Ela é vítima de um crime de Estado pouco conhecido dos brasileiros: o sequestro de bebês e crianças filhos de militantes que faziam oposição ao regime militar nas décadas de 1960, 1970 e 1980.

Rosângela foi apropriada ilegalmente por uma família de militares na década de 1960 e só descobriu sua condição décadas depois, durante uma discussão com familiares.

Onze dos 19 casos conhecidos de sequestros de crianças na ditadura estão ligados à guerrilha do Araguaia, um movimento guerrilheiro de oposição que ocorreu entre o final da década de 1960 e o ano de 1974 na região amazônica, na confluência dos estados do Pará e do atual Tocantins.

Essas 11 vítimas são filhos de guerrilheiros e de camponeses que deram guarida ao movimento.

Os sequestros de crianças foram realizados na primeira metade da década de 1970, durante as gestões dos generais-presidentes Emílio Garrastazu Médici - quando o ministro do Exército era Orlando Geisel, irmão do sucessor de Médici - e de Ernesto Geisel. Era a fase mais grave de repressão da guerrilha do Araguaia.

Os 19 casos são listados no livro reportagem "Cativeiro sem fim", escrito por mim, Eduardo Reina.

Procurados na época da produção do livro, o Ministério da Defesa e os comandos do Exército e da Aeronáutica não responderam os questionamentos. Em entrevista a um livro publicado no ano passado, o general Eduardo Villas Bôas disse que relatos sobre o sequestro de bebês na ditadura "carecem de verossimilhança" (leia mais abaixo).

Em busca dos pais biológicos

"Vivo num pesadelo todo dia, ao pensar que minha mãe pode estar viva, precisando de mim", diz Rosângela Serra Paraná.

"Hoje vivo na angústia de não saber quem eu sou, quantos anos eu tenho, e sequer saber quem foram ou quem são os meus pais", afirma.

Ela foi apropriada por Odyr de Paiva Paraná, integrante de uma família tradicional de militares no Rio de Janeiro.

Rosângela Serra Paraná em foto atual (Arquivo Pessoal)

Os pais apropriadores de Rosângela Serra Paraná eram Odyr de Paiva Paraná e Nilza da Silva Serra. A família diz que a bebê fora adotada em 1963.

Uma certidão de nascimento dá como dia do nascimento 1º de outubro de 1963. Mas o registro só foi feito em cartório em 22 de setembro de 1967.

No documento elaborado no cartório do Catete, Rio de Janeiro, está registrado que Rosângela é filha ilegítima de Odyr e Nilza. O documento não fornece o nome dos pais biológicos. Nilza, segundo a família, não podia gerar filhos.

Odyr é motorista de profissão. Segundo Rosângela, o pai adotivo trabalhava como motorista para o general Ernesto Geisel. "Ele ficava com um carro preto, grande, que estava sempre limpando", recorda. Ambos frequentavam o sítio do general na cidade de Teresópolis, segundo Rosângela.

A certidão de nascimento de Rosângela dá como local de seu nascimento um imóvel na rua Marquês de Abrantes, 160, Flamengo, Rio de Janeiro. O imóvel pertence à Rio Previdência, entidade dos servidores estaduais, que o comprou em 1958, de acordo com a certidão do imóvel.

A mesma certidão de nascimento possui duas testemunhas. Uma é Alcindo Quintino Ribeiro, proprietário de um prédio onde a família Serra Paraná morou.

A outra é Paulo Cardoso de Oliveira, motorista de profissão, como Odyr. O endereço de residência dessa testemunha, porém, não existe.

O pai de Odyr, Arcy Paraná, era militar. De acordo com o Diário Oficial, ele chegou ao posto de sargento. Na década de 50, foi promovido e começou a trabalhar no setor administrativo do Exército.

Os casos de Juracy e Miracy

Na região da guerrilha do Araguaia, no início da década de 1970, os militares sequestraram dois meninos de uma mesma família.

O primeiro, Juracy Bezerra de Oliveira, é protagonista de um equívoco das forças militares. O alvo seria Giovani, filho de um dos líderes da guerrilha, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, com uma mulher de nome Maria.

Em 1972 ou 1973, Juracy tinha cerca de sete anos de idade. As forças militares pensavam que ele era o verdadeiro filho do guerrilheiro Osvaldão com Maria Viana da Conceição. Mas a mãe de Juracy era Maria Bezerra de Oliveira, e o pai, Raimundo Mourão de Lira.

José Vieira, filho de um agricultor morto por forças militares na Guerrilha do Araguaia (CRÉDITO,EDUARDO REINA/BBC)

A confusão no sequestro teria ocorrido porque os soldados estavam à procura de um menino de pele escura, com idade entre seis e oito anos, filho de uma mulher branca, de corpo grande e olhos claros, cujo nome era Maria. Encontraram a mãe de Juracy com as mesmas características e levaram o menino.

Seu destino foi Fortaleza, depois de ter sido torturado e queimado numa fogueira num acampamento militar dentro da selva, após um militar ter sido alvejado durante troca de tiros com os guerrilheiros.

Acabou sendo apropriado pelo tenente do Exército Antônio Essílio Azevedo Costa, que o registrou em cartório como se fosse seu filho legítimo, e conviveu com a família do tenente por muitos anos.

"Um dia chegaram e me levaram. Minha mãe, nem lembro o que ela fez. Eu era um menininho quando Exército me levou. Fiquei 15 dias no meio do mato. Me deram muita peia. Bateram, machucaram", diz a vítima.

O sequestrado ficou com uma das mãos deformada devido às queimaduras que sofreu. Ele conta que os soldados resolveram puni-lo por achar que seu pai havia matado um militar.

Depois, na cidade de Fortaleza, Juracy foi criado pela mãe do tenente Antônio Essílio.

No início dos anos 2000, resolveu retornar à região do Araguaia, ainda pensando que fosse filho de Osvaldão.

Ao chegar, encontrou Antônio Viana da Conceição e descobriu sua verdadeira história. Reencontrou a mãe biológica, Maria Bezerra de Oliveira, quando descobriu que um irmão seu, Miracy, também havia sido levado pelos militares.

Hoje ele vive numa ilha no meio do rio Araguaia.

Irmão de Juracy, Miracy tinha a pele clara e olhos claros, ao contrário do irmão. Foi levado pelo sargento João Lima Filho para a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, também em 1972 ou 1973.

Anos mais tarde, Juracy e a mãe, Maria Bezerra de Oliveira, foram à procura de Miracy. Mas não encontraram nenhuma pista do sargento que o levou; nem conseguiram informações em quarteis do Exército em Natal sobre o paradeiro do militar.

Giovani

Depois do sequestro equivocado de Juracy, os militares encontraram Giovani, filho de Osvaldão e Maria Viana da Conceição. O garoto tinha entre quatro e cinco anos de idade quando foi levado, segundo conta outro filho de Maria, Antônio Viana da Conceição.


O sequestro ocorreu em 1973, na cidade de Araguaína, atual Tocantins. A existência desse filho do guerrilheiro no Araguaia é revelada também por Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, hoje militar da reserva do Exército e responsável pela caçada aos guerrilheiros do PCdoB a partir de 1973 no Araguaia.

O paradeiro de Giovani é desconhecido.

Ainda no Araguaia foi sequestrada Lia Cecília da Silva Martins, filha do guerrilheiro Antônio Teodoro de Castro, o Raul.

Juracy Bezerra de Oliveira com sua mãe biológica, Maria Bezerra de Oliveira (arquivo Pessoal)

Lia foi levada para um orfanato que pertencia a um tenente da Aeronáutica, em Belém do Pará. Foi adotada por um casal que trabalhava na entidade.

Seis filhos de camponeses também foram tirados de suas famílias biológicas e levados para quarteis do Exército, de onde teriam sido liberados tempos depois. José Vieira; Antônio José da Silva, Antoninho; José Wilson de Brito Feitosa, Zé Wilson; José de Ribamar, Zé Ribamar; Osniel Ferreira da Cruz, Osnil; e Sebastião de Santana, Sebastiãozinho.

Somente José Vieira foi localizado. Ele é filho de Luiz Vieira, um agricultor de subsistência e morador na região de São Domingos do Araguaia. Luiz foi morto pelas forças militares.

"Aquelas pessoas que conheciam o povo da mata (como os guerrilheiros eram chamados) foram atacados pelas tropas. O pessoal que tava no mato foi atacado. Depois me prenderam. Aí, quando eu saí, já fiquei toda vida dentro do Exército", conta José Vieira.

Houve ainda casos de sequestro de bebês e crianças no Paraná, Pernambuco e Mato Grosso.

Respostas militares

Procurados em 2018, quando o livro "Cativeiro sem fim" estava sendo produzido, o Ministério da Defesa, o Exército e a Aeronáutica não responderam aos questionamentos enviados.

O Ministério da Defesa sugeriu que novas solicitações fossem enviadas aos comandos do Exército, da Aeronáutica e da Marinha, alegando que as informações solicitadas estariam custodiadas sob o comando desses órgãos militares.

O Exército respondeu que "a Instituição esclarece que nada tem a informar sobre o assunto".

A Aeronáutica alegou que "em 16 de novembro de 2009, a Procuradoria-Geral de Justiça Militar manifestou interesse na análise dos documentos produzidos e acumulados pelo Comando da Aeronáutica, do período de 1964 a 1985. Nesse sentido, em 3 de fevereiro de 2010, o acervo, contendo 212 caixas com 49.867 documentos, foi recolhido à Coordenação Regional do Arquivo Nacional do Distrito Federal (COREG), onde são de domínio público, onde talvez possa realizar sua pesquisa".

No ano passado, em entrevista publicada no livro "General Villas Bôas - conversa com o comandante", de autoria de Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, o militar questionou a ocorrência de sequestros de crianças na ditadura

"Recentemente, alguém ligado aos direitos humanos trouxe à tona um tópico sobre o qual nunca ouvi falar, de que cento e tantas crianças teriam sido sequestradas e afastadas dos pais. Essa e outras narrativas, a exemplo de um suposto massacre de índios, na abertura da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, carecem de verossimilhança e contribuem para a falta de isenção na conclusão das apurações", afirmou Villas Bôas.

Eduardo Reina, de São Paulo para a BBC Brasil, em 26.04.22