sexta-feira, 29 de abril de 2022

Zelensky: quem é o ator que foi de novato político a presidente da Ucrânia em guerra

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, um ator que não tinha experiência política quando foi eleito há menos de três anos, agora surge como um convincente líder de um país em guerra.

Volodymyr Zelensky discursou na TV tarde da noite no dia 24 de fevereiro, poucas horas antes da invasão (Getty Images)

Ele está unindo a nação com seus discursos e selfies em vídeo, dando voz à raiva ucraniana na resistência à agressão russa.

Enquanto o presidente russo Vladimir Putin parece cada vez mais errático — acusando a Ucrânia de "genocídio" nas repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk, e falando da necessidade de "desnazificar" o país — o presidente Zelensky, de uma família judia de língua russa, mantém uma postura digna.

Seus pronunciamentos revelaram um lado que muitos críticos seus — incluindo vários da elite intelectual — não esperavam.

Um momento chave na transformação deste presidente — que vinha mal nas pesquisas e às vezes parecia estar abaixo da capacidade que o cargo exige — em uma liderança nacional aconteceu nas primeiras horas da quinta-feira, dia 24 de fevereiro, pouco antes da invasão russa. Em um discurso sóbrio postado nas mídias sociais, falando parcialmente em russo, ele disse que tentou ligar para Vladimir Putin para evitar uma guerra, mas que foi recebido com silêncio.

Vestindo um terno escuro em frente a um mapa da Ucrânia, ele disse que os dois países não precisam de uma guerra, "nem uma Guerra Fria, nem uma guerra quente, nem uma guerra híbrida". Mas ele acrescentou que se os ucranianos fossem atacados, eles se defenderiam. "Quando você nos atacar, verá nossos rostos — não nossas costas, mas sim nossos rostos."

Em sua próxima transmissão, ao meio do dia de sexta-feira, já após a invasão russa, ele usava uniforme militar, refletindo o clima de "Davi contra Golias" do conflito. Naquela noite, ele fez outro discurso, alertando os líderes de países como EUA e Reino Unido que, se eles não ajudassem no esforço contra os russos, "amanhã a guerra baterá em suas portas".

"Este é o som de uma nova cortina de ferro, que desceu e está separando a Rússia do mundo civilizado."

Volodymyr Zelensky em uma selfie em vídeo mostrando aos ucranianos que ele não fugiu de Kiev (Reuters)

A editora-chefe do site de notícias Novoye Vremya, Yulia McGuffie, diz que ficou chateada quando Zelensky foi eleito presidente em abril de 2019, pois ela não tinha fé em sua capacidade de liderar o país. Mas os ucranianos passaram rapidamente a apreciar seu presidente na semana passada, diz ela.

"Apoio e respeito total vieram, eu acho, depois que a Rússia começou sua guerra — todos os ucranianos fecharam com Zelensky. Ele está desempenhando um papel de união e eu diria de inspiração, em parte por seu próprio exemplo. Ele está liderando um governo que está repelindo o exército de Putin, e por causa disso muitos o admiram e respeitam."

A chegada de Zelensky à cena política foi um caso de vida que imita a arte. Seu papel mais celebrado como ator cômico foi em 2015 na série de TV Servant of the People, na qual ele interpretou um professor de escola catapultado à Presidência depois que um aluno postou um vídeo viral dele falando sobre corrupção na política.

Sua candidatura nas eleições presidenciais de 2019 foi inicialmente vista por alguns como apenas uma piada — seu partido político leva o nome do seriado: o Criado do Povo. Mas Zelensky acabou vencendo com 73% dos votos, prometendo combater a corrupção e trazer a paz ao leste do país, onde há tensões com a Rússia.

O presidente ucraniano tem muitos poderes, mas todos sabiam que cumprir essas promessas seria difícil, diz a consultora de comunicação Yaryna Klyuchkovska. E para alguém que começou sua presidência com um índice de aprovação tão alto, o único caminho era para baixo.

"Uma coisa é fazer promessas tão amplas e outra é executar essas políticas", diz ela.

Zelensky antes da política

Nascido na cidade de Kryvyi Rih, leste da Ucrânia, em 1978

Formado pela Universidade Nacional de Economia de Kiev com diploma em Direito

Co-fundou uma produtora de TV de sucesso

Produziu programas para uma rede de propriedade do controverso bilionário Ihor Kolomoisky

Kolomoisky apoiou sua candidatura presidencial

Até meados da década de 2010, sua carreira na TV e no cinema era seu foco principal

Zelensky contou com o apoio do oligarca Ihor Kolomoisky durante sua campanha presidencial, levando muitos a temer que ele se tornasse um fantoche, controlado por um homem que está sob investigação nos EUA por possível fraude e lavagem de dinheiro.

Na verdade, ele provou ser mais independente do que muitos céticos imaginavam, recusando-se, por exemplo, a permitir a reprivatização do PrivatBank, que era de propriedade de Kolomoisky antes de ser nacionalizado.

Por outro lado, a corrupção continua profundamente enraizada na Ucrânia, e há preocupações de que uma nova lei anti-oligarca possa ser usada para restringir as atividades de alguns bilionários mas não de outros. Um sinal disso seria o indiciamento por corrupção do principal rival de Zelensky, Petro Poroshenko, seu antecessor como presidente.

As tentativas de Zelensky de negociar com a Rússia uma solução para o conflito no leste, que deixou mais de 14 mil mortos, também tiveram sucesso limitado. Houve trocas de prisioneiros e movimentos para a implementação parcial de um processo de paz, conhecido como acordos de Minsk, mas nada foi concluído. Ao longo de 2020, seu índice de aprovação caiu constantemente.

Diante disso, Zelensky adotou um tom mais assertivo ao pressionar pela adesão à União Europeia e à aliança militar da Otan, um movimento que certamente enfureceu o presidente russo.

Zelensky é constantemente acusado de ter ligações com o polêmico magnata dos negócios Ihor Kolomoisky (Getty Images)

Mas Yaryna Klyuchkovska diz que a postura de Zelensky sobre o conflito no leste e sobre a Rússia ainda era tímida demais para muitos ucranianos, pelo menos até recentemente.

Com a guerra cada vez mais iminente, ele declarou um "Dia da Paz" e continuou falando em solução diplomática, mesmo diante do aumento em violações do cessar-fogo na linha de frente.

"Ele evitava falar em guerra, artilharia, qualquer assunto militar. Era um tópico fora de sua zona de conforto e ele não estava disposto a abordar isso em seu discurso público", diz Klyuchkovska.

Ele também discordava dos avisos diários dos EUA e de outros governos sobre um ataque russo iminente, dizendo que a estratégia de comunicação dos EUA era "cara demais para a Ucrânia".

A grande mudança de rumo veio com um discurso que ele fez na Conferência de Segurança de Munique no sábado, 19 de fevereiro, diz Klyuchkovska. A consultora de comunicação disse que foi esse discurso que a converteu em fã. Zelensky começou descrevendo uma visita a um jardim de infância no leste do país que havia sido atingido por um míssil.

"Quando uma cratera de bomba aparece no pátio da escola, as crianças perguntam: 'O mundo se esqueceu dos erros do século 20?'", disse ele.

"A indiferença faz de você um cúmplice", disse ele aos convidados das elites diplomáticas e de defesa de países como EUA e Reino Unido. Ele lembrou todos de quando Vladimir Putin rejeitou uma ordem mundial liderada pelos EUA na mesma conferência exatamente 15 anos antes, e seu alerta de que a Rússia estava voltando ao palco mundial. "Como o mundo respondeu a isso? Com apaziguamento."

Klyuchkovska diz que nenhum líder ucraniano havia falado tão abertamente com países como EUA e Reino Unido antes.

"Para mim, o momento de passar a ter orgulho de Zelensky veio durante seu brilhante discurso na conferência de segurança em Munique", diz a jornalista Yulia McGuffie. "Foi ali que muitos dos oponentes políticos de Zelensky na Ucrânia decidiram que agora não é hora de brigas e conflitos."

Volodymyr Zelensky em vídeo do lado de fora da Casa das Quimeras de Kiev no sábado, 26 de fevereiro

Os serviços de inteligência de países como EUA e Reino Unido afirmam que o nome de Zelensky é o primeiro em uma lista de pessoas que as forças russas pretendem assassinar. Zelensky diz que sua família está em segundo lugar na lista, mas que todos vão permanecer na Ucrânia.

Sua presença é confirmada pelas selfies em vídeo que ele publicou do lado de fora do prédio presidencial e da famosa Casa das Quimeras, adornada com representações de animais exóticos e cenas de caça.

Em resposta a uma das fotos, o escritor britânico Ben Judah tuitou: "Se você tivesse dito a muitos de nossos bisavós no Pale [a zona do império russo em que os judeus ficavam confinados] que um homem judeu seria um ucraniano líder de guerra contra uma invasão russa, eles teriam ficado incrédulos."

"Claro, ele é um ator. Não sei se isso é sua verdadeira personalidade ou não. Mas o que quer que ele esteja fazendo, está funcionando", diz Yaryna Klyuchkovska. "As pessoas que escrevem os seus discursos encontraram o ritmo certo. Eles vêm da indústria do entretenimento, mas mesmo escrever um programa da Netflix é diferente de escrever discursos presidenciais."

A Ucrânia ainda enfrenta condições muito pouco favoráveis nesta guerra. A força de invasão da Rússia é enorme e bem armada. Mas este bacharel em direito de 44 anos, um novato político, tem sido uma voz que está ajudando a elevar o moral ucraniano.

"Um dos meus bons amigos acabou de escrever: 'Zelensky de repente criou coragem em proporções cósmicas'", diz McGuffie. "E isso realmente reflete a atitude [nacional] em relação a ele agora."

Stephen Mulvey, da BBC News, em 27 fevereiro 2022 / Kateryna Khinkulova colaborou

quarta-feira, 27 de abril de 2022

A educação, nas eleições e no eleitor

Não há voto responsável se desconhecemos o que os candidatos pensam e propõem sobre educação.

No início do mês, Priscila Cruz fez no Twitter um pedido aos jornalistas: “Sempre que entrevistarem algum candidato – a presidente, governador, deputado, senador –, perguntem o que ele ou ela pretende fazer pela educação”. O apelo é justo e muito oportuno. Não há cobertura política adequada se o tema da educação fica de fora.

Essa advertência sobre a centralidade da educação, feita diretamente para os jornalistas, pode servir igualmente para todos nós, cidadãos. Não há voto responsável se desconhecemos o que os candidatos pensam e propõem sobre educação – especialmente se ignoramos, como às vezes ocorre, o que os candidatos ou partidos que apoiamos pensam e propõem sobre educação. Antes de compartilhar material de um político em grupo de WhatsApp, pensemos no que ele tem feito ou proposto para a educação.

Eis um tema de aprendizado coletivo. Apoiar um candidato sem saber o que ele propõe para a educação é rigorosamente uma temeridade. É contribuir para fortalecer a ideia de que a educação não é requisito necessário para tudo o que queremos com a política: condições de vida digna para todos, desenvolvimento social e econômico do País. Dito de forma mais incisiva, é autorizar, por meio do exercício dos nossos direitos políticos, o desleixo com a educação.

Ao propor que todos os candidatos sejam questionados a respeito de suas propostas para educação, a presidente executiva do Todos Pela Educação toca um aspecto fundamental da própria vida política. Não há – não deveria haver – espaço na vida pública para quem não tem o que propor sobre educação. Saber formular um diagnóstico sobre o ensino no País e apresentar caminhos de melhoria da educação deveriam ser requisitos para a representação política: uma espécie de patamar mínimo de competência para a vida pública. Como alguém pretende representar a população e definir políticas públicas, se ignora (ou trata de forma superficial) essa dimensão essencial do presente e do futuro do País?

Esse tópico refere-se aos políticos e, também, ao voto de cada eleitor. Pensemos nas eleições de outubro, quando se renovarão inteiramente a Câmara dos Deputados e as Assembleias Legislativas estaduais. Está nas mãos do eleitorado estabelecer o patamar mínimo de competência para os candidatos: se haverá tolerância para quem não tem propostas para a educação.

Logicamente, seria ingenuidade achar que a composição da Câmara e das Assembleias irá, num passe de mágica, mudar radicalmente. O ponto é outro: ter deputados federais e estaduais comprometidos com a educação está muito mais nas nossas mãos do que habitualmente pensamos. Podemos fazer e exigir muito mais.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado às cadeiras do Senado que serão renovadas neste ano e às chefias do Executivo federal e estadual. Faz sentido, por exemplo, votar em candidatos cuja trajetória política é a negação de qualquer ideia de educação? O nosso voto precisa contemplar o futuro de nossas crianças.

Abro um parêntese. A organização do Estado é sofisticada, com competências distribuídas entre União, Estados e municípios. Ter propostas para a educação requer conhecer essa arquitetura institucional, com suas regras, procedimentos e órgãos envolvidos. A melhoria da educação não é batalha solitária, messiânica ou voluntarista. É um trabalho de cooperação e articulação institucional.

Por último, mas não menos importante, destaco uma consequência dos pontos anteriores. Não são apenas os candidatos que precisam conhecer a realidade da educação brasileira e ter propostas consistentes. Se somos nós, os eleitores, que iremos escolher os candidatos, também nós precisamos saber minimamente sobre a educação no País. Indo além dos lugares-comuns e do interesse imediato familiar (que muitas vezes está centrado no âmbito da educação privada), compete a nós saber formular um diagnóstico minimamente consistente e identificar caminhos possíveis para o ensino no Brasil. De outro modo, estaríamos ratificando a ideia de que a educação de qualidade é uma bela e irrealizável meta.

Se queremos que os candidatos tenham propostas para a educação, precisamos conhecer mais, participar mais, contribuir mais. Mais do que falta de vontade política – não raro, bons projetos de educação são aprovados por unanimidade no Congresso –, é preciso qualificar o debate público sobre educação. Muita coisa boa, séria e eficiente tem sido feita. Se a melhora ainda é pontual, em parte isso é fruto do nosso baixo compromisso, enquanto sociedade, com a formação da juventude.

Saber sobre educação deve ser um requisito de competência para a vida pública, assim como deve ser um patamar mínimo de cidadania para todos, especialmente para quem teve o privilégio de cursar o ensino superior. Quem recebeu mais pode e deve fazer mais, muito mais.

Não há futuro digno sem educação de qualidade. Não há política genuína sem políticas públicas qualificadas para a educação. Não há cidadania sem compromisso com a educação. Cabe a nós colocar essa pauta em nossa vida – e em nossos votos.

Nicolau da Rocha Cavalcanti, o autor deste artigo, é advogado e jornalista. Publaicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 27 de abril de 2022 | 03h00

STF não deve cair na provocação bolsonarista

Não há duelo entre Bolsonaro e STF. A Corte tem apenas cumprido seus deveres. E a briga do presidente é mais ampla e mais grave: é com a lei e com a democracia

Segundo o conto bolsonarista, o que se vê hoje no País seria o duelo entre Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF), nada mais que a disputa, própria do sistema de freios e contrapesos, entre dois Poderes da República. Esse discurso, aparentemente muito institucional, não tem nenhum apoio nos fatos. Os últimos dias foram especialmente significativos para desmascarar a falsa simetria entre o STF e o Palácio do Planalto, a começar pelo comportamento do próprio Bolsonaro.

Na semana passada, cumprindo suas funções constitucionais, o STF julgou uma ação penal proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), que, em função do cargo, tem foro privilegiado. No julgamento da ação, não houve a rigor nada de estranho. O órgão judicial competente analisou a causa criminal, proferindo decisão de condenação por 10 votos contra 1. Era apenas o Judiciário fazendo o seu trabalho.

Ação penal não é tema do Executivo, mas Jair Bolsonaro viu, no caso, uma oportunidade para criar confusão. Sob o pretexto de conceder indulto, o presidente da República arrogou o direito de rever a decisão judicial, declarando que o deputado do PTB era inocente. Segundo Bolsonaro, as ações de Daniel Silveira estariam cobertas pela imunidade parlamentar.

O decreto presidencial não continha, portanto, nenhum perdão. Era nada menos que um novo entendimento jurisprudencial, proferido por órgão inteiramente incompetente. Não era o Executivo federal exercendo uma de suas atribuições constitucionais. Era Bolsonaro sendo Bolsonaro, convertendo todas as situações em ocasião de enfraquecer as instituições.

Desde os dois episódios da semana passada – condenação pelo Supremo e revisão da condenação pelo Palácio do Planalto –, os dois padrões de comportamento vêm sendo sistematicamente repetidos. De forma exemplar, o Supremo não caiu na provocação de Jair Bolsonaro. Fosse verdadeiro o discurso bolsonarista, seria a ocasião perfeita para o STF responder na mesma moeda. Mas não. O que se viu foram despachos técnicos, proferidos nos autos, tanto pelo relator da ação penal, ministro Alexandre de Moraes, como pela relatora da ação que questiona o indulto, ministra Rosa Weber.

Alexandre de Moraes determinou que o decreto presidencial seja juntado aos autos, lembrando o entendimento consolidado do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no sentido de que indulto não alcança a inelegibilidade relativa à condenação criminal. Em seguida, intimou a defesa de Daniel Silveira para que se manifeste sobre o decreto e sobre o descumprimento de medidas cautelares por parte do réu. Na outra ação, Rosa Weber abriu prazo de 10 dias para Jair Bolsonaro se manifestar sobre o indulto. Assim atua a Justiça: de forma técnica, nos autos.

Por sua vez, Jair Bolsonaro confirmou que seu objetivo nunca foi indultar Daniel Silveira, e sim criar tumulto. Uma vez que o Supremo não respondeu ao deboche de quinta-feira passada, Bolsonaro precisou recorrer a novos assuntos para manter o clima de aparente duelo. Na segunda-feira, chegou a dizer que talvez não cumpra a decisão do STF sobre o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. “Se ele (Edson Fachin, relator da ação) conseguir vitória nisso, me restam duas coisas: entregar as chaves para o Supremo ou falar que não vou cumprir”, disse.

É constrangedor o comportamento de Jair Bolsonaro, em descarada procura de assuntos que o coloquem em colisão com o Supremo. Engana-se quem pensa, no entanto, que a briga do bolsonarismo é com a Corte constitucional. O presidente não está preocupado com eventual ida de Daniel Silveira à cadeia, tampouco com o STF, como se o motivo da desavença fosse a interpretação de algum ponto da Constituição.

A confusão provocada por Jair Bolsonaro é muito mais grave. É meio para enfraquecer as instituições e, assim, avançar com mais desenvoltura em sua caminhada rumo à impunidade da família e, quem sabe, à permanência indeterminada no poder. Não foi assim que Hugo Chávez fez?

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 27 de abril de 2022 | 03h00

terça-feira, 26 de abril de 2022

Forças Armadas devem resistir ao bolsonarismo

Elas têm sido exemplares no respeito à Constituição, sem se envolver em questões políticas. Nota do Ministério da Defesa mostra como o bolsonarismo é perigoso

No processo de enfraquecimento das instituições levado a cabo pelo bolsonarismo, é atribuído às Forças Armadas um papel que não lhes corresponde. Os militares não são guarda pretoriana, tampouco poder moderador. A Constituição de 1988 estabelece que as Forças Armadas se destinam “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Para que possam cumprir suas funções constitucionais, as Forças Armadas têm de estar obrigatoriamente distantes da política. Por consequência, devem estar distantes do bolsonarismo, do lulopetismo ou de qualquer outro grupo político.

É de justiça reconhecer que, desde 1988, as Forças Armadas têm se portado exemplarmente, em plena conformidade com seu estatuto constitucional, sem se envolver em questões políticas. Esse posicionamento institucional foi reforçado e protegido pela criação do Ministério da Defesa em 1999, durante o governo de Fernando Henrique, que reuniu as pastas correspondentes à Marinha, ao Exército e à Aeronáutica. Foi um importante marco, confirmando que, num regime civil, também a condução política dos assuntos militares e da defesa deve estar plenamente integrada à administração geral do Estado. Na construção e manutenção desse cenário institucional próprio de um Estado Democrático de Direito, os militares tiveram papel fundamental, com seu firme compromisso à Constituição de 1988.

É notório, no entanto, que Jair Bolsonaro não nutre afeição por essa configuração institucional. Em seus discursos e ações, vislumbra-se uma pretensão contrária ao que dispõe a Constituição. Bolsonaro quer ter as Forças Armadas ao lado de seu projeto político e, para piorar, deseja lhes atribuir um protagonismo político-institucional nas relações com o Judiciário e o Legislativo. Tudo isso é rigorosamente inconstitucional. “Política não pode estar dentro do quartel. Se entra política pela porta da frente, a disciplina e a hierarquia saem pela dos fundos”, lembrou, em novembro de 2020, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão. 

Por tudo isso, é preocupante a nota As Forças Armadas e o Processo Eleitoral, emitida no domingo passado pelo Ministério da Defesa, em reação a uma palestra dada a estudantes pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao reverberar uma suscetibilidade exagerada, sem se ater sequer ao que foi dito pelo palestrante, a nota suscita a mensagem oposta ao que, em tese, deveria transmitir.

Na palestra, Luís Roberto Barroso reconheceu, em tom de elogio, que “o profissionalismo e o respeito à Constituição têm prevalecido” nas Forças Armadas. Alertou, no entanto, para o risco de “voltar à tradição latino-americana de colocar o Exército envolvido com política”. Segundo o ministro do STF, observa-se a tentativa de usar as Forças Armadas “para atacar o processo (eleitoral) e tentar desacreditá-lo”. Disse ainda ter fé “que as lideranças militares saberão conter esse risco de contaminação indesejável que levou à ruína da Venezuela”.

Assinada pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, a nota, que não cita a Constituição de 1988 nem os deveres constitucionais das Forças Armadas, “repudia qualquer ilação ou insinuação, sem provas, de que elas teriam recebido suposta orientação para efetuar ações contrárias aos princípios da democracia”.

Citando a “ampla confiança da sociedade (nas Forças Armadas), rotineiramente demonstrada em sucessivas pesquisas e no contato direto e regular com a população”, o texto ainda afirma que “as eleições são questão de soberania e segurança nacional, portanto, do interesse de todos”. Não parece destinado a sanar dúvidas, tampouco a mostrar eventual equívoco da fala de Luís Roberto Barroso.

A distância que as Forças Armadas, desde a Constituição de 1988, vêm mantendo das questões políticas precisa ser preservada. Algo importante e valioso foi construído no período. Não se pode deixar que o bolsonarismo, com sua pretensão de autoritarismo, destrua esse legado.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 26 de abril de 2022 | 03h00

Perdão presidencial nos EUA: debates na Convenção da Filadélfia e controle judicial

Quando decidiram romper os laços com a Coroa Britânica os revolucionários das então Treze Colônias inglesas na América, debateram, discordaram e duvidaram da empreitada, mas ao fim concordaram em um ponto, convinha redigir um documento com as razões que justificassem o ato.

Os revolucionários chegaram a um consenso e incumbiram Thomas Jefferson a tarefa de redigir a primeira versão do documento, que ficou pronta e foi assinada em 2 de julho de 1776, e ratificada em 4 de julho, data que acabou prevalecendo para fins de celebração.

A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América incorporou valores iluministas, afirmou que todos os "homens nascem iguais", que a "Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade" são "Direitos inalienáveis" e que "os governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados". Pelos valores incorporados, pela elegância, objetividade e propósito, o texto beira a perfeição.

Antes de tudo a Declaração é um libelo contra os abusos do Rei George 3º e uma denúncia contra os equívocos da monarquia. A ela se seguiu a vitória na Guerra de Independência, a Constituição de 1787, o Bill of Rights de 1789, uma Guerra Civil, a segregação racial, e a consolidação do país como uma das democracias mais estáveis e admiradas do mundo.

A Constituição Federal, redigida para reger a República democrática sonhada pelos que costuraram a Declaração de Independência, acolheu no seu texto, por ironia, um dispositivo que remete aos poderes reais de Georges e Henriques. Refiro-me à prerrogativa do presidente da República (que eles preferem dizer presidentes dos Estados Unidos) prevista no artigo II, seção 2, cláusula 1, que dispõe sobre a concessão de indulto (pardons) aos que cometeram crimes contra os Estados Unidos, exceto na hipótese de impeachment.

A proposta suscitou "certa" controvérsia nos debates na Convenção da Filadélfia. Antifederalistas, vale dizer, aqueles contrários a criação de um Estado Federal, principal força que se opunha à Constituição, ampliaram as críticas ao Executivo imperial, que mais parecia "um rei eleito, um príncipe sob um manto republicano" (an elective king, a prince under a republican cloak).[1] Essas críticas se dirigiam principalmente ao poder de realizar tratados, ao veto e à prerrogativa de concessão de "indulto" (pardons), tudo a caracterizar a existência de uma autoridade investida de poderes perigosos a um povo livre (vested with power dangerous to a free people).[2]

Apesar das críticas, prevaleceram as razões de Alexander Hamilton, posteriormente tratadas nos capítulos 69 e 74 de "O Federalista", livro que reúne artigos publicados nos jornais de Nova York (e de outros estados) com a finalidade de convencer indecisos a ratificarem a Constituição.[3] Para Hamilton as leis penais eram severas, de modo que se apresentava razoável "um acesso fácil a exceções em favor de um culpado infeliz", sem isso "a justiça teria um semblante muito sanguinário e cruel". (without an easy access to exceptions in favor of unfortunate guilt, justice would wear a countenance too sanguinary and cruel.)[4]

Em mais de dois séculos de vigência a Constituição dos Estados Unidos não sofreu alteração no que diz respeito à prerrogativa de concessão de indulto, que ela genericamente denomina de pardon. Não há registro de qualquer contenda judicial que tenha levado o tema à apreciação de mérito pela Suprema Corte, especificamente no que diz respeito aos limites do poder presidencial. Por outro lado, há uma queixa generalizada ao crescente uso da prerrogativa por presidentes de ambos os partidos. Com um detalhe, a concessão da "graça" tem ocorrido de forma esmagadora nos últimos dias de mandato, nunca, ou quase nunca, imediatamente a uma condenação judicial. Digno de nota que o presidente Gerald Ford concedeu perdão ao ex-presidente Richard Nixon um mês após a posse e referente ao envolvimento com o escândalo Watergate, vale dizer, relativo a atos sobre os quais ainda não se tinha uma noção de profundidade.

Em Burdick v. U.S. (1915) a Suprema Corte estadunidense afirmou que o indulto "carrega uma imputação de culpa; aceitação de uma confissão". Ocorre que afirmação foi um obiter dictum, de modo que, nesse particular, não se pode considerar um precedente.

Os parágrafos pretéritos parecem indicar que desde longa data a concessão de indulto (graça, perdão, etc) é vista como uma prerrogativa que não se harmoniza totalmente com os princípios republicanos, na medida que reflete uma prática típica da monarquia. Apontam que a Suprema Corte que mais influenciou e influencia o direito no Ocidente ainda não se pronunciou, no mérito, sobre eventuais limites na concessão de indulto.

Numa república que abraça o "Estado democrático de Direito" parece não haver espaço a existência de atos divorciados desse valor fundamental, e, por conseguinte, cabe ao Judiciário, no pleno exercício de sua atribuição constitucional de revisão judicial — inaugurada por John Marshall na alvorada do século 19, no célebre caso Marbury v. Madison — fazer funcionar os instrumentos que o Constituinte lhe conferiu.

[1]. MAIN, Jackson Turner. The Anti-Federalists. Critics of the Constitution, 1781-1788. New York: W.W. Norton & Company, 1974, p. 141.

[2]. MAIN, Jackson Turner. Op. cit, p. 141.

[3]. Além de Hamilton escreveram artigos e são autores de O Federalista: James Madison e John Jay.

[4]. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The Federalist Papers. Edited by ROSSITER, Clinton;  Introduction and Notes KESLER, Charles R. New York: New American Library (Signet Classics), 2003, p. 446.

João Carlos Souto , o autor deste artigo, é professor de Direito Constitucional, Procurador da Fazenda Nacional e autor de "Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais Decisões" (Atlas, 4ª ed/2021). Publicado originalmente no Consultor Juridico, em 26.04.22

Os desconhecidos casos de crianças e bebês sequestrados na ditadura brasileira

 Onze dos 19 casos conhecidos de sequestros de crianças na ditadura estão ligados à guerrilha do Araguaia, um movimento guerrilheiro de oposição que ocorreu entre o final da década de 1960 e o ano de 1974 na região amazônica, na confluência dos estados do Pará e do atual Tocantins.

Rosângela Serra Paraná (ao centro) com Odyr de Paiva Paraná e Nilza da Silva Serra (Arquivo Pessoal)

Há pelo menos uma década, Rosângela Serra Paraná está à procura dos pais biológicos.

Ela é vítima de um crime de Estado pouco conhecido dos brasileiros: o sequestro de bebês e crianças filhos de militantes que faziam oposição ao regime militar nas décadas de 1960, 1970 e 1980.

Rosângela foi apropriada ilegalmente por uma família de militares na década de 1960 e só descobriu sua condição décadas depois, durante uma discussão com familiares.

Onze dos 19 casos conhecidos de sequestros de crianças na ditadura estão ligados à guerrilha do Araguaia, um movimento guerrilheiro de oposição que ocorreu entre o final da década de 1960 e o ano de 1974 na região amazônica, na confluência dos estados do Pará e do atual Tocantins.

Essas 11 vítimas são filhos de guerrilheiros e de camponeses que deram guarida ao movimento.

Os sequestros de crianças foram realizados na primeira metade da década de 1970, durante as gestões dos generais-presidentes Emílio Garrastazu Médici - quando o ministro do Exército era Orlando Geisel, irmão do sucessor de Médici - e de Ernesto Geisel. Era a fase mais grave de repressão da guerrilha do Araguaia.

Os 19 casos são listados no livro reportagem "Cativeiro sem fim", escrito por mim, Eduardo Reina.

Procurados na época da produção do livro, o Ministério da Defesa e os comandos do Exército e da Aeronáutica não responderam os questionamentos. Em entrevista a um livro publicado no ano passado, o general Eduardo Villas Bôas disse que relatos sobre o sequestro de bebês na ditadura "carecem de verossimilhança" (leia mais abaixo).

Em busca dos pais biológicos

"Vivo num pesadelo todo dia, ao pensar que minha mãe pode estar viva, precisando de mim", diz Rosângela Serra Paraná.

"Hoje vivo na angústia de não saber quem eu sou, quantos anos eu tenho, e sequer saber quem foram ou quem são os meus pais", afirma.

Ela foi apropriada por Odyr de Paiva Paraná, integrante de uma família tradicional de militares no Rio de Janeiro.

Rosângela Serra Paraná em foto atual (Arquivo Pessoal)

Os pais apropriadores de Rosângela Serra Paraná eram Odyr de Paiva Paraná e Nilza da Silva Serra. A família diz que a bebê fora adotada em 1963.

Uma certidão de nascimento dá como dia do nascimento 1º de outubro de 1963. Mas o registro só foi feito em cartório em 22 de setembro de 1967.

No documento elaborado no cartório do Catete, Rio de Janeiro, está registrado que Rosângela é filha ilegítima de Odyr e Nilza. O documento não fornece o nome dos pais biológicos. Nilza, segundo a família, não podia gerar filhos.

Odyr é motorista de profissão. Segundo Rosângela, o pai adotivo trabalhava como motorista para o general Ernesto Geisel. "Ele ficava com um carro preto, grande, que estava sempre limpando", recorda. Ambos frequentavam o sítio do general na cidade de Teresópolis, segundo Rosângela.

A certidão de nascimento de Rosângela dá como local de seu nascimento um imóvel na rua Marquês de Abrantes, 160, Flamengo, Rio de Janeiro. O imóvel pertence à Rio Previdência, entidade dos servidores estaduais, que o comprou em 1958, de acordo com a certidão do imóvel.

A mesma certidão de nascimento possui duas testemunhas. Uma é Alcindo Quintino Ribeiro, proprietário de um prédio onde a família Serra Paraná morou.

A outra é Paulo Cardoso de Oliveira, motorista de profissão, como Odyr. O endereço de residência dessa testemunha, porém, não existe.

O pai de Odyr, Arcy Paraná, era militar. De acordo com o Diário Oficial, ele chegou ao posto de sargento. Na década de 50, foi promovido e começou a trabalhar no setor administrativo do Exército.

Os casos de Juracy e Miracy

Na região da guerrilha do Araguaia, no início da década de 1970, os militares sequestraram dois meninos de uma mesma família.

O primeiro, Juracy Bezerra de Oliveira, é protagonista de um equívoco das forças militares. O alvo seria Giovani, filho de um dos líderes da guerrilha, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, com uma mulher de nome Maria.

Em 1972 ou 1973, Juracy tinha cerca de sete anos de idade. As forças militares pensavam que ele era o verdadeiro filho do guerrilheiro Osvaldão com Maria Viana da Conceição. Mas a mãe de Juracy era Maria Bezerra de Oliveira, e o pai, Raimundo Mourão de Lira.

José Vieira, filho de um agricultor morto por forças militares na Guerrilha do Araguaia (CRÉDITO,EDUARDO REINA/BBC)

A confusão no sequestro teria ocorrido porque os soldados estavam à procura de um menino de pele escura, com idade entre seis e oito anos, filho de uma mulher branca, de corpo grande e olhos claros, cujo nome era Maria. Encontraram a mãe de Juracy com as mesmas características e levaram o menino.

Seu destino foi Fortaleza, depois de ter sido torturado e queimado numa fogueira num acampamento militar dentro da selva, após um militar ter sido alvejado durante troca de tiros com os guerrilheiros.

Acabou sendo apropriado pelo tenente do Exército Antônio Essílio Azevedo Costa, que o registrou em cartório como se fosse seu filho legítimo, e conviveu com a família do tenente por muitos anos.

"Um dia chegaram e me levaram. Minha mãe, nem lembro o que ela fez. Eu era um menininho quando Exército me levou. Fiquei 15 dias no meio do mato. Me deram muita peia. Bateram, machucaram", diz a vítima.

O sequestrado ficou com uma das mãos deformada devido às queimaduras que sofreu. Ele conta que os soldados resolveram puni-lo por achar que seu pai havia matado um militar.

Depois, na cidade de Fortaleza, Juracy foi criado pela mãe do tenente Antônio Essílio.

No início dos anos 2000, resolveu retornar à região do Araguaia, ainda pensando que fosse filho de Osvaldão.

Ao chegar, encontrou Antônio Viana da Conceição e descobriu sua verdadeira história. Reencontrou a mãe biológica, Maria Bezerra de Oliveira, quando descobriu que um irmão seu, Miracy, também havia sido levado pelos militares.

Hoje ele vive numa ilha no meio do rio Araguaia.

Irmão de Juracy, Miracy tinha a pele clara e olhos claros, ao contrário do irmão. Foi levado pelo sargento João Lima Filho para a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, também em 1972 ou 1973.

Anos mais tarde, Juracy e a mãe, Maria Bezerra de Oliveira, foram à procura de Miracy. Mas não encontraram nenhuma pista do sargento que o levou; nem conseguiram informações em quarteis do Exército em Natal sobre o paradeiro do militar.

Giovani

Depois do sequestro equivocado de Juracy, os militares encontraram Giovani, filho de Osvaldão e Maria Viana da Conceição. O garoto tinha entre quatro e cinco anos de idade quando foi levado, segundo conta outro filho de Maria, Antônio Viana da Conceição.


O sequestro ocorreu em 1973, na cidade de Araguaína, atual Tocantins. A existência desse filho do guerrilheiro no Araguaia é revelada também por Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, hoje militar da reserva do Exército e responsável pela caçada aos guerrilheiros do PCdoB a partir de 1973 no Araguaia.

O paradeiro de Giovani é desconhecido.

Ainda no Araguaia foi sequestrada Lia Cecília da Silva Martins, filha do guerrilheiro Antônio Teodoro de Castro, o Raul.

Juracy Bezerra de Oliveira com sua mãe biológica, Maria Bezerra de Oliveira (arquivo Pessoal)

Lia foi levada para um orfanato que pertencia a um tenente da Aeronáutica, em Belém do Pará. Foi adotada por um casal que trabalhava na entidade.

Seis filhos de camponeses também foram tirados de suas famílias biológicas e levados para quarteis do Exército, de onde teriam sido liberados tempos depois. José Vieira; Antônio José da Silva, Antoninho; José Wilson de Brito Feitosa, Zé Wilson; José de Ribamar, Zé Ribamar; Osniel Ferreira da Cruz, Osnil; e Sebastião de Santana, Sebastiãozinho.

Somente José Vieira foi localizado. Ele é filho de Luiz Vieira, um agricultor de subsistência e morador na região de São Domingos do Araguaia. Luiz foi morto pelas forças militares.

"Aquelas pessoas que conheciam o povo da mata (como os guerrilheiros eram chamados) foram atacados pelas tropas. O pessoal que tava no mato foi atacado. Depois me prenderam. Aí, quando eu saí, já fiquei toda vida dentro do Exército", conta José Vieira.

Houve ainda casos de sequestro de bebês e crianças no Paraná, Pernambuco e Mato Grosso.

Respostas militares

Procurados em 2018, quando o livro "Cativeiro sem fim" estava sendo produzido, o Ministério da Defesa, o Exército e a Aeronáutica não responderam aos questionamentos enviados.

O Ministério da Defesa sugeriu que novas solicitações fossem enviadas aos comandos do Exército, da Aeronáutica e da Marinha, alegando que as informações solicitadas estariam custodiadas sob o comando desses órgãos militares.

O Exército respondeu que "a Instituição esclarece que nada tem a informar sobre o assunto".

A Aeronáutica alegou que "em 16 de novembro de 2009, a Procuradoria-Geral de Justiça Militar manifestou interesse na análise dos documentos produzidos e acumulados pelo Comando da Aeronáutica, do período de 1964 a 1985. Nesse sentido, em 3 de fevereiro de 2010, o acervo, contendo 212 caixas com 49.867 documentos, foi recolhido à Coordenação Regional do Arquivo Nacional do Distrito Federal (COREG), onde são de domínio público, onde talvez possa realizar sua pesquisa".

No ano passado, em entrevista publicada no livro "General Villas Bôas - conversa com o comandante", de autoria de Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, o militar questionou a ocorrência de sequestros de crianças na ditadura

"Recentemente, alguém ligado aos direitos humanos trouxe à tona um tópico sobre o qual nunca ouvi falar, de que cento e tantas crianças teriam sido sequestradas e afastadas dos pais. Essa e outras narrativas, a exemplo de um suposto massacre de índios, na abertura da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, carecem de verossimilhança e contribuem para a falta de isenção na conclusão das apurações", afirmou Villas Bôas.

Eduardo Reina, de São Paulo para a BBC Brasil, em 26.04.22

Brasil é país que menos julgou e puniu crimes da ditadura na região, diz historiadora argentina

Paraguai, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai, Argentina. Em meados dos anos 1970, boa parte da América do Sul estava mergulhada em ditaduras militares.

Os anos após o AI-5, decretado em 68, foram os mais violentos da ditadura militar (Arquivo Nacional)

Apesar dos elementos em comum - o pano de fundo da Guerra Fria, os conflitos internos que colocavam grupos de esquerda como ameaça à ordem nacional, o princípio da doutrina de segurança nacional -, cada um desses regimes foi marcado por particularidades.

E o mesmo se pode dizer do período posterior, a redemocratização. A maneira como cada país decidiu lidar com os crimes cometidos pelo Estado e com o processo de desmilitarização da política foi única - e essas escolhas reverberam até os dias de hoje, diz a historiadora argentina Marina Franco, que pesquisa o tema.

Franco é professora da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM) e co-coordenadora do Programa de Estudios de las Dictaduras del Cono Sur y Sus Legados ("Programa de Estudos das Ditaduras do Cone Sul e Seus Legados", em tradução literal). É co-organizadora do livro Ditaduras no Cone Sul da América Latina (editora Civilização Brasileira), publicado em 2021.

A Argentina, por exemplo, foi um dos poucos países a revogar a lei de anistia que os militares aprovaram antes de deixar o poder.

Ainda em 1983, ano em que o civil Raúl Alfonsín assumiu a presidência, foi criada a Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas (Conadep), que tinha a função de investigar os crimes contra direitos humanos cometidos entre 76 e 83, os anos do regime.

O país levou à prisão perpétua o general Jorge Rafael Videla, que governou o país entre 76 e 81 e, até março de 2022, a Justiça havia condenado outras 1.058 pessoas em 273 sentenças por crimes relacionados ao terrorismo de Estado.

O Brasil é um exemplo do lado oposto. A lei de anistia sancionada em 1979 pelo regime militar segue em vigor e foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010 - o que significa que a grande maioria dos civis e militares envolvidos nos crimes durante o período não pode ser julgada.

O órgão instituído para investigar os crimes relacionados à ditadura, por sua vez, foi criado apenas em 2011. Trata-se da Comissão Nacional da Verdade, que, em seu relatório final, em 2014, apontou 377 nomes entre os autores de graves violações aos direitos humanos.

A primeira condenação de um agente havia ocorrido ano passado, quando um juiz federal responsabilizou o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte nos anos 70 (o entendimento foi de que o sequestro é um crime continuado e, portanto, não coberto pela lei de anistia). Em fevereiro deste ano, contudo, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região acatou um recurso da defesa, que alegava prescrição do caso, e extinguiu a punibilidade do ex-delegado.

Em entrevista à BBC News Brasil, a historiadora explica por que considera, entre os vizinhos do Cone Sul, o Brasil como um caso "extremo" da chamada justiça de transição, sendo o que menos investigou, julgou e puniu crimes da ditadura.

Fala ainda sobre a importância dos áudios revelados nesta semana em que membros do Supremo Tribunal Militar admitem a prática de tortura durante a ditadura militar e sobre como o processo de redemocratização à brasileira explica o momento atual do país.

BBC News Brasil - Quando olhamos para os países da região após o fim das ditaduras, a Argentina parece ser o que com mais afinco se debruçou sobre a questão da justiça de transição. A revogação da lei de anistia, a criação do Conadep, a prisão de Videla, os julgamentos que acontecem até os dias de hoje. O país é um caso particular? Se sim, por quê?

Marina Franco - A Argentina é um caso particular em relação a como se resolveu a saída da transição. É diferente do Uruguai, do Chile, do Brasil. Se você olhar a partir do presente, é o melhor, é um modelo de como se julgar e investigar esses crimes.

Agora, isso não se deve ao fato de que a Argentina em si seja um país modelo ou de que nós argentinos sejamos mais justos, com mais memória ou mais democráticos. Não tem nada a ver com isso.

O que aconteceu na Argentina foi que existiram as condições políticas para que pudesse haver justiça transicional. Essas condições políticas são três, para mim, muito claras.

As Forças Armadas saem de cena completamente derrotadas e fracassadas. Deixaram o poder com um fracasso político terrível, com um fracasso em uma guerra desastrosa - a Guerra das Malvinas -, com um fracasso econômico e uma crise atroz.

Isso é o inverso do que aconteceu no Brasil. Durante o governo militar no Brasil se produziu um milagre econômico - muito questionado, mas houve um momento de crescimento.

Aqui, quando as Forças Armadas deixaram o poder havia 300% de inflação mensal. Não há governo que resista a isso. E é o momento em que se começam a descobrir os crimes. A debilidade absoluta das Forças Armadas quando saem do poder cria as condições para que, se viesse um governo disposto a investigar e julgar, se pudesse fazê-lo.

E o governo que veio [de Raúl Alfonsín, representante do partido União Cívica Radical (UCR), rival histórico do movimento peronista] efetivamente teve essa vontade. A outra força política que poderia ter ganhado aquelas eleições, o peronismo, não pensava em investigar e julgar.

Então o que se deu foi uma confluência de elementos, um equilíbrio de forças que permitiu que se investigasse e se julgasse.

O último elemento - e é importante que isso fique claro - é que na Argentina não se investigou porque socialmente havia um critério ético sobre as aberrações que haviam sido cometidas pelas Forças Armadas. Não existia uma consciência, é o contrário. A investigação e julgamento - ou seja, as políticas de Estado - criaram um consenso social sobre o que havia acontecido.

Sede da Escola de Mecânica da Armada em Buenos Aires, centro de tortura e repressão durante a ditadura, foi convertida em museu (MUSEO SITIO DE MEMORIA ESMA)

BBC News Brasil - Às vezes parece que o caminho é inverso, que a pressão social dos argentinos levou à investigação, julgamentos e punições…

Franco - Justamente, mas o que aconteceu foi que, no final da ditadura, começam a surgir informações sobre o que havia acontecido, sobre o desaparecimento forçado de pessoas.

Naquele momento, a maioria acreditava que essas pessoas eram subversivas e que a repressão havia sido necessária. São os efeitos do julgamento, da investigação, que começam a mudar o olhar da sociedade.

E aqui me parece importante destacar, pensando no caso brasileiro, que as políticas de Estado produzem efeitos e transformam. A ausência de políticas de Estado no Brasil, para mim, é um dado fundamental para entender algumas das coisas que acontecem no país.

As políticas de Estado de memória, de justiça, as políticas educativas sobre as ditaduras geram efeitos de transformação social, e acredito que a Argentina seja um desses casos.

Acho que o mais notável no caso argentino são os efeitos dessas políticas sociais junto com a mobilização social, que, claro, também existe.

Uma das manifestações estudantis ocorridas em 1968, contra as quais representantes da linha dura no regime militar pressionavam o presidente Costa e Silva a decretar um novo ato institucional para liberar instrumentos repressivos; o resultado foi o AI-5

BBC News Brasil - O Brasil parece um exemplo no sentido contrário quando se pensa em justiça de transição. Criou sua Comissão da Verdade apenas em 2011, fez sua primeira condenação em 2021. Como a senhora vê esse processo - é também um caso particular?

Franco - Bom, todos os casos são particulares. Nesse sentido, poderia-se dizer que o caso argentino é o extremo de investigação e justiça. O Brasil, por sua vez, estaria no outro extremo. Porque no Uruguai e no Chile houve processos, eles estariam ali no meio. Foram processos tardios e limitados de investigação e justiça, mas eles os tiveram.

O Brasil é o caso mais extremo, porque, com a lei de anistia de 1979, não houve praticamente nenhum julgamento. E existe um consenso social a favor dessa lei [confirmada pelo Supremo em 2010], uma vontade política, uma vontade jurídica para que ela seja mantida.

A Comissão da Verdade, como você mencionou, é bastante tardia. O próprio partido que poderia tê-la estabelecido muito antes, que era o PT, demorou para fazê-lo.

E aí é importante agregar outro ponto. A lei de anistia também permitiu o retorno daqueles que estavam exilados, os opositores ao regime - e que passariam a fazer parte do jogo político dali para frente.

Então há um interesse de todas as partes nessa possibilidade de restaurar o jogo político, o que não aconteceu na Argentina, porque a maioria dos opositores ao regime estavam mortos, desaparecidos ou faziam parte de grupos que depois não se integraram aos partidos políticos.

Assim, é importante, no caso do Brasil, o fato de que a cena política posterior incorpora todos os atores, assim como no Uruguai, por exemplo, com seu Frente Amplio.

Isso faz com que o jogo político posterior decida como se vê a situação prévia. Por isso sempre insisto na questão do equilíbrio de forças.

BBC News Brasil - A ideia é de que poderia ser "desconfortável" para esses grupos tocar em assuntos como os grupos paramilitares de esquerda?

Franco - Isso. Quando Dilma Rousseff chega ao poder, por exemplo, é constantemente "acusada" de ser guerrilheira.

BBC News Brasil - Parece haver uma tensão permanente nesse sentido. O atual presidente do Supremo Tribunal Militar, Luis Carlos Gomes Mattos, ao comentar sobre os áudios inéditos revelados nesta semana em que membros do STM relatam casos de tortura durante a ditadura, desdenhou do material e disse que, quando se toca no assunto, "só varrem um lado, não varrem o outro".

Franco - Nesse sentido, eu diria que os efeitos dos julgamentos na Argentina permitiram deixar claro que, não importa qual tenha sido a violência das organizações revolucionárias - que, aliás, na Argentina foram muito mais violentas do que no Brasil -, nada, nada é comparável com a violência exercida pelo Estado e pelas Forças Armadas.

Em certa medida essa discussão está resolvida aqui. Há um consenso social muito claro de que a responsabilidade pela violência é do Estado, das Forças Armadas, e que ela é inadmissível.

Acho que essa é uma diferença marcante, e é resultado das políticas de investigação e justiça.

Protesto contra a ditadura na Argentina em 1982: regime se estendeu de 76 a 83

BBC News Brasil - Também comentando sobre os áudios, o vice-presidente, Hamilton Mourão, disse se tratar de "coisa do passado", que não se pode trazer os mortos de volta para submetê-los a julgamento. Como historiadora e pesquisadora das ditaduras latino-americanas, como a senhora avalia a importância dos documentos desse período e da forma como tratá-los?

Franco - A importância dos áudios é absolutamente crucial em um país onde os processos de memória são limitados. O conhecimento sobre o passado é limitado, e sobre ele ainda se coloca em dúvida que tenha havido tortura e repressão. Esses áudios são provas indiscutíveis de que isso aconteceu.

Me parece fundamental que isso seja divulgado, que circule, que seja discutido. Acredito ainda que ajuda a reduzir o espaço para as vozes negacionistas e as vozes revisionistas.

Um historiador não precisa dessas provas hoje no Brasil [porque as evidências de violações já são claras]. Mas me parece que, socialmente, essas provas têm um impacto importante. Importante para a memória, para que se entenda realmente o que aconteceu.

A verdade histórica não necessita de prova, mas, em um país onde ela é colocada em dúvida, é fundamental que tudo isso fique claro.

O enterro do estudante Edson Luís, assassinado em março de 1968 no Rio por policiais militares no restaurante Calabouço, em 28 de março de 1968; sua morte desencadeou uma série de manifestações contra o regime militar

Enterro do estudante Edson Luís, assassinado em março de 1968 no Rio por policiais militares no restaurante Calabouço, em 28 de março de 1968: sua morte desencadeou uma série de manifestações contra o regime militar (Arquivo Nacional)

BBC News Brasil - Que consequências práticas esse processo de memória limitado e a justiça de transição frouxa do Brasil no pós-ditadura têm?

Franco - Em uma palavra, podemos dizer: Bolsonaro. Uma coisa está ligada com a outra. A falta de justiça, de políticas de processamento social e memorial do passado dificultam a criação de consensos sociais massivos pró-democráticos.

Dificultam a criação de mecanismos de controle, mecanismos de vigilância que impeçam que certas coisas sejam admissíveis.

Na Argentina, por exemplo, hoje é inadmissível que as Forças Armadas intervenham em questões de segurança pública ["seguridad interior"], que o Estado seja militarizado, que exista alguém que reivindique publicamente a violência estatal, a repressão, a tortura. Essas vozes podem aparecer, mas são imediatamente rechaçadas - e socialmente rechaçadas.

BBC News Brasil - Outra questão quando se fala em redemocratização são os processos de desmilitarização dos países da região. Na Argentina, os militares parecem ter de fato voltado à caserna, um cenário bastante diferente do Brasil. Aqui, eles não apenas se mantiveram na política, como chegaram ao poder pelas urnas em 2018. Como a senhora analisa esse processo?

Franco - O processo de desmilitarização no Brasil foi muito parcial, muito fragmentado e muito limitado. A eleição de Bolsonaro mostra um pouco isso. O tempo foi passando, foi passando e, de repente, quando Bolsonaro chega ao poder, percebe-se que o Estado ainda estava militarizado.

E não só o Estado, mas também as concepções sobre ordem estavam militarizadas, o que é mais grave. Militarizadas e moralizadas. Bolsonaro reproduziu um discurso sobre a moral que também é profundamente repressivo.

E volto àquele ponto: a grande diferença é a situação em meio à qual as Forças Armadas deixam o poder na Argentina e no Brasil. No Brasil, não saem completamente derrotadas. Deixam a direção do poder Executivo, mas não saem derrotadas.

O mesmo acontece com um outro grande caso, o do Chile, em que as Forças Armadas se retiraram com um nível de presença e controle de peso no jogo político.

Camilla Veras Mota - @cavmota, da BBC News Brasil em São Paulo, em 24 abril 2022

O que diz a lei sobre o polêmico indulto concedido por Bolsonaro

Por 10 votos a 1, Daniel Silveira foi condenado a oito anos e nove meses de prisão, multa, perda do mandato e suspensão dos seus direitos políticos pelos crimes de coação em processo judicial e tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União.

Plenário do Supremo Tribunal Federal

O presidente Jair Bolsonaro (PL) disse que assinou um decreto concedendo um indulto individual ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), extinguindo a pena de prisão à qual foi condenado na quarta-feira pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O anúncio foi feito por Bolsonaro em uma transmissão em suas redes sociais na quinta-feira (21/4).

O que é a 'graça' concedida por Bolsonaro?

O termo técnico do que Bolsonaro concedeu a Daniel Silveira é "graça" e está previsto no artigo 74 do Código Penal.

"A graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da Republica, a faculdade de concedê-la espontaneamente", diz a lei.

Tecnicamente, a graça é diferente do indulto — a primeira é um benefício individual, enquanto o segundo é dado coletivamente, como no caso dos indultos natalinos, que são concedidos a diversas pessoas que se enquadram em determinados critérios.

Por que juristas questionam graça a Daniel Silveira?

O principal debate jurídico levantado pelo perdão oficial dado por Bolsonaro é sobre a validade do ato: tradicionalmente graças são dadas a casos que já foram transitados em julgado, ou seja, quando todas as possibilidades de recorrer são esgotadas em um processo. Esse não é o caso de Daniel Silveira agora. No entanto, juristas divergem sobre se esse critério é obrigatório ou não.

Para o jurista e desembargador aposentado Walter Maierovitch, o decreto anunciado pelo presidente poderia ser considerado tecnicamente nulo, uma vez que, do ponto de vista jurídico, o julgamento de Daniel Silveira ainda está em curso, pois ainda cabem recursos da decisão do plenário do STF.

"Esse ato é, tecnicamente, nulo. O julgamento ainda não acabou, pois ainda cabem recursos. Como é que ele pode extinguir a pena de uma pessoa que, do ponto de vista jurídico, ainda é inocente?", afirma o jurista.

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Badaró também aponta para a possível nulidade do perdão concedido pelo presidente ao deputado. Na avaliação dele, a medida foi tomada de forma equivocada.

"É estranho o presidente da República publicar um decreto de indulto quando o processo não transitou em julgado. Me parece um equívoco brutal. Não porque ele não possa dar esse perdão, mas porque o processo ainda está tramitando", afirmou.

Houve interferência indevida entre poderes?

É analisado também que o ato pode ser interpretado como uma interferência indevida do Poder Executivo sobre o funcionamento do Judiciário, o que configuraria um crime de responsabilidade.

Para o também professor de Direito da USP Pierpaollo Bottini, a decisão de Bolsonaro configura uma interferência indevida do Executivo no funcionamento do Poder Judiciário.

Ele afirma que ela poderia ser, inclusive, interpretada como um crime de responsabilidade, do tipo que poderia levar ao impeachment do presidente.

"Eu entendo que, na medida em que o julgamento ainda não acabou, estamos diante de uma clara interferência indevida do presidente no funcionamento do Poder Judiciário. É uma interferência indevida e, a meu ver, ilegal. Poderia, sim, ser vista como um crime de responsabilidade", afirmou Bottini.

Bolsonaro estaria cometendo crime de responsabilidade?

A lei dos crimes de responsabilidade é de 1950. É ela que norteia, por exemplo, o processo de impeachment como o que aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016.

O artigo nº 6 da lei diz que são crimes quaisquer atos que atentarem contra o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário.

O jurista Gustavo Badaró também avalia que o indulto a Silveira possa ser interpretado como um crime de responsabilidade.

"É um crime de responsabilidade porque ele (Bolsonaro) está interferindo no funcionamento do Judiciário. É uma forma de dizer que, independentemente do que o Judiciário faça em relação a uma determinada pessoa, o Executivo não permitirá que ela seja punida", explicou.

Os juristas afirmam que, apesar de o decreto extinguir a pena dada pelo STF a Silveira, muito provavelmente, vai caber ao próprio Supremo avaliar a legalidade da medida.

Isso porque a oposição deverá recorrer da decisão junto à Corte, como anunciou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) em seu perfil no Twitter.

"Crimes contra a ordem constitucional não podem ser passíveis deste benefício [...] e iremos ao STF, para derrubar esse desmando por meio uma ADPF!", escreveu o senador. ADPF é a sigla para Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental.

Bottini explica que o indulto não será suficiente para acabar com a punição a Silveira.

"Muito provavelmente, vai caber ao STF fazer o controle constitucional dessa medida. Em outras palavras: se o STF for provocado, e tudo indica que isso vai acontecer, ele terá que julgar se o indulto de Bolsonaro foi constitucional ou não", diz o jurista.

A avaliação da constitucionalidade de um indulto já aconteceu na história recente do país quando o STF, em 2018, julgou o decreto assinado pelo então presidente Michel Temer (MDB) que havia reduzido as penas para condenados por crimes não violentos.

À época, a medida foi interpretada como uma forma de beneficiar pessoas presas por crimes de corrupção e colarinho branco. Em novembro daquele ano, o STF formou maioria para manter o indulto.

Silveira está inelegível?

Após a decisão do STF, o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Henrique Neves avaliou que, por conta da condenação, Daniel Silveira está automaticamente inelegível e, em tese, não poderá disputar as eleições deste ano, na qual ele pretendia concorrer ao cargo de senador pelo Rio de Janeiro amparado pela base bolsonarista que o elegeu em 2018.

"A inelegibilidade decorrente da condenação criminal nasce com a publicação do acórdão (decisão) condenatório, independente de recurso. Ela só será suspensa se o condenado conseguir uma liminar para conceder efeito suspensivo", explicou.

O advogado Raul Abramo, especialista em direito penal, diz que ainda Silveira ainda não será preso e nem perderá o mandato porque, apesar da condenação, sua defesa ainda pode impetrar recursos junto ao STF.

"A defesa pode recorrer e por isso ele não deverá ser preso, ainda. O mais provável é que a defesa ingresse com embargos de declaração, que é um recurso quando se entende que há algum ponto da decisão que não ficou claro ou quando a defesa acha que os ministros deixaram de prestar atenção a algum ponto relevante", diz o advogado.

Raul afirma que, se houver recursos e a condenação for mantida, o STF deverá comunicar a decisão à Câmara dos Deputados para que seja efetivada a perda do mandato. Da mesma forma, após o fim dessa fase, Daniel Silveira deverá ser recolhido a uma unidade prisional onde vai iniciar o cumprimento de sua pena.

BBC News Brazil, em 22.04.22. Com apuração de Leandro Prazeres.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Reeleição de Macron fortalece Ocidente em guerra contra Putin

Apesar do bom desempenho de Marine Le Pen, presidente obtém mais cinco anos de mandato e evita que poder caia nas mãos da extrema direita nacionalista e anti-Europa

Partidários de Macron acompanham a apuração na Torre Eiffel  Foto: REUTERS / REUTERS (Foto: Ludovic Marin/AFP)

O presidente francês, Emmanuel Macron, foi reeleito no domingo, 2, com 58,6% dos votos. O segundo turno da eleição foi marcado pela alta abstenção e pela votação histórica da candidata de extrema direita, Marine Le Pen, que cresceu com relação a 2017. Com o resultado, a França deve continuar como um dos pilares da União Europeia e fortalecer a aliança ocidental contra a Rússia.

Le Pen reconheceu ontem a derrota, mas comemorou os cerca de 42% dos votos – bem mais do que os 34% obtidos na última eleição. Durante a campanha, ela moderou sua imagem e sua retórica. A candidata, que é próxima do presidente russo, Vladimir Putin, havia prometido afastar a França da Otan e rever os laços com a UE.

Celebração

Para o cientista político William Leday, da Science Po, Macron era o preferido de Bruxelas. “Le Pen é nacionalista e antieuropeia, o que causaria inquietude”, afirmou. Segundo ele, a reeleição com um índice maior do que o apontado pelas pesquisas reforça sua liderança no continente e seu papel de mediador com Putin.

A reeleição de Macron é a primeira na França desde a vitória de Jacques Chirac sobre Jean-Marie Le Pen – pai de Marine –, em 2002. O resultado incomum, que garantiu mais cinco anos de mandato a Macron, reflete sua gestão eficaz da pandemia, a retomada do crescimento econômico e sua agilidade em ocupar o centro do espectro político.

Ontem, após o anúncio das primeiras projeções, o presidente discursou para cerca de 3 mil apoiadores no Campo de Marte, em Paris. Ele fez acenos à esquerda, prometeu um projeto social e ecológico e disse que será o presidente de todos os franceses – inclusive interferindo para que as pessoas não vaiassem Le Pen, quando citada por ele.

Daqui até a posse, em 13 de maio, Macron tem de mostrar que é capaz de unir um país dividido em pelo menos três grandes polos: os progressistas, muitos dos quais se abstiveram no segundo turno, a centro-direita, que o apoia, e a extrema direita, da qual Le Pen é a principal representante.

Marine Le Pen cumprimenta eleitores no interior da França Foto: DENIS CHARLET / AFP

Avanços

A vitória de ontem foi bem diferente da primeira. Cinco anos atrás, Macron era um líder prodígio de 39 anos que estourava na cena política francesa com a promessa de enterrar as divisões entre esquerda e direita e construir uma sociedade mais justa, igualitária, aberta e dinâmica.

Durante seu primeiro mandato, ele conseguiu estimular o crescimento, reduzir o desemprego e fomentar uma cultura tecnológica de startups, mas foi incapaz de lidar com a crescente desigualdade e com a revolta latente entre os menos privilegiados que vivem nos subúrbios das cidades e nas zonas rurais.

As divisões sociais se acentuaram na França, à medida que a renda estagnou, os preços subiram e a automação dizimou os empregos nas fábricas. Como resultado, o capital político de Macron ficou bem mais limitado, mesmo que sua clara vitória de ontem tenha salvado a França de um perigoso desvio rumo ao nacionalismo xenófobo.

Macron participa de comício em Marseille, no sul da França  Foto: Ludovic Marin/AFP

Baixo comparecimento

A abstenção no segundo turno foi de 28,2%, 2,8 pontos porcentuais a mais do que em 2017. Com isso, Macron foi reeleito com apenas 38% dos votos, o nível mais baixo desde a eleição de Georges Pompidou, em 1969.

O professor de filosofia François Calori, que vota em Malakoff, um bastião da esquerda, na periferia de Paris, estava inquieto com o comparecimento baixo na sua cidade. “Como muitos aqui, votei em Mélenchon no primeiro turno, para impedir Le Pen de chegar ao segundo turno. A estratégia era barrar a extrema direita já logo de cara”, afirmou. “Agora, votei em Macron, também para barrar a extrema direita, mas fico tenso ao ver que muita gente não votou. /COM NYT

Por Paloma Varon, especial para o Estado de S. Paulo, em 25/04/2022 | 05h00


Militares, a ordem e a disciplina

E os militares, apoiam o ataque ao Supremo, em favor de um tipo como Daniel Silveira?

Bolsonaro editou decreto inédito e concedeu perdão ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) Foto: Gabriela Biló/Estadão

Segundo as pesquisas, o Exército Brasileiro é uma das instituições mais confiáveis e admiradas pela sociedade, senão a mais. Isso se reflete no site, na Rádio Verde Oliva e nas redes sociais da instituição, um sucesso de público. Mas é preciso cuidar muito bem desse patrimônio.

Desde a redemocratização de 1985, nenhum presidente civil fez tanto mal às Forças Armadas quanto Jair Bolsonaro, que saiu do Exército pela porta dos fundos, com patente de capitão. Luiz Inácio Lula da Silva investiu na instituição, com a renovação dos caças da FAB (Dilma Rousseff encontrou tudo pronto), dos submarinos, inclusive de propulsão nuclear, e do novo tanque da Força Terrestre. 

E Bolsonaro? Em vez da instituição, privilegiou os militares no Planalto, nos vários escalões, nas reformas. A da Previdência tirou um tico nas aposentadorias e pensões e aumentou os soldos – justo, aliás. Os militares foram diferenciados aí e na reforma administrativa, mas iguais para receber o reajuste agora.

Neste ano, as notícias têm sido constrangedoras para as Forças Armadas, em especial para o Exército, que está no terceiro comandante em três anos, depois que o primeiro foi demitido, junto com o ministro da Defesa e os da Marinha e Aeronáutica.

Assim como Bolsonaro limou toda a cúpula militar e isso passou quase em branco, jogar o general Hamilton Mourão pela janela na vice nem fez cosquinha. Boa parte dos militares acha tudo normal, assim como os absurdos de Bolsonaro na pandemia – e não só nela.

O presidente pôs no lixo o detalhado estudo da inteligência do Exército na covid, a favor, inclusive, do isolamento social. Depois, triturou pelo twitter três portarias da Força sobre monitoramento de armas com civis. Enfim, levou um general da ativa ao seu palanque eleitoral no Rio, uma falta gravíssima. E daí? Nada. E o Exército volta ao foco, não mais por picanha e cervejas, mas por Viagra e prótese peniana pagas por você, leitor. Viagra? É “para hipertensão”. Prótese? Silêncio.

Por fim, a reação às dez mil horas de gravações do Superior Tribunal Militar (STM), comprovando o que todo mundo sabe: houve tortura, marteladas e choques elétricos até em grávidas na ditadura. Para o presidente do STM, general Luiz Gomes Mattos, tudo não passa de “notícia tendenciosa”. Não, não é. É a realidade: fatos, orçamento, áudios oficiais do tribunal.

Agora é saber se as Forças Armadas apoiam o ataque do presidente (que o general Ernesto Geisel chamava de “mau militar”) ao Supremo, para defender um tipo como Daniel Silveira e a violência estúpida contra as instituições e a democracia.

Eliane Cantanhêde, a  autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 24 de abril de 2022 | 03h00

O clube dos moinhos de vento

A democracia perde quando o debate foge dos fatos e abraça o universo ficcional dos moinhos de vento

     Macron e Le Pen; um traço comum entre Brasil e França é a existência de políticos que usam a tática de desviar o assunto para temas irrelevantes, mas com apelo popular Foto: Gonzalo Fuentes/Reuters

A imigração certamente não é o problema mais sério da França. Todos os dias chegam à União Europeia trabalhadores de várias nacionalidades e qualificações. Segundo estudos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE – o clube dos países ricos –, os imigrantes movimentam a economia em países onde a população está envelhecendo. A seleção de futebol que ganhou a Copa do Mundo é o emblema da nova França multicultural. 

O segundo turno entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen será amanhã – e a imigração foi tema no debate eleitoral francês. “Le Pen suavizou seu discurso, mas sua posição histórica – fechar as fronteiras francesas – atentaria contra um dos princípios básicos da União Europeia, que é a livre circulação de pessoas”, diz o cientista político Andrei Roman, entrevistado no minipodcast da semana. Ele é CEO do Atlas, empresa de análise de dados que atua em eleições em vários países. 

O Brasil tem problemas seriíssimos – inflação, corrupção, pobreza – e a falta de liberdade de expressão não está entre eles. O tema, no entanto, ganhou relevância ao longo desta semana. Em decisão “pedagógica”, como observou o Estadão em editorial, o Supremo Tribunal Federal condenou o deputado federal Daniel Silveira a oito anos e nove meses de cadeia, “por usar de violência ou grave ameaça para impedir o exercício dos Poderes”. 

Para atiçar uma discussão falaciosa sobre liberdade de expressão, o presidente Jair Bolsonaro peitou o STF ao quebrar uma promessa de campanha e conceder indulto ao deputado criminoso. De acordo com o editorial do Estadão, “não existe liberdade de expressão para atacar a democracia”. 

Um traço comum entre Brasil e França é a existência de políticos que usam a tática de desviar o assunto para temas irrelevantes, mas com apelo popular – os “moinhos de vento”. 60% dos franceses se preocupam com a imigração, segundo pesquisa do Atlas. “Os benefícios econômicos não são óbvios para grande parte dos eleitores, e a direita radical usa isso”, diz Roman. 

É uma tática disseminada. Na Hungria e na Polônia, candidatos à presidência inventaram um complô internacional LGBTQIA+. Viktor Orbán e Andrzej Duda venceram seus pleitos usando esse discurso. A última pesquisa do Atlas, no entanto, aponta uma vitória de Macron por 53 a 47. Mais uma vez os franceses deverão fugir do radicalismo.

As eleições de outubro dirão se Bolsonaro terá sucesso ao desviar a campanha dos problemas sérios. Qualquer que seja o resultado do pleito, a democracia perde quando o debate foge dos fatos e abraça o universo ficcional dos moinhos de vento.  

João Gabriel de Lima, o autor deste artigo, é escritor, professor da FAAP e doutorando em Ciencia POlítica na Universidade de Lisboa. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 23 de abril de 2022 | 07h56

É preciso conhecer a história da ditadura

A revelação das gravações das sessões do STM entre 1975 e 1985 reitera a importância da pesquisa histórica sobre a ditadura militar. Há muito a ser conhecido e estudado

A recente divulgação, feita pela jornalista Miriam Leitão, no jornal O Globo, de gravações de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) entre 1975 e 1985 revela a importância tanto da transparência no trato das coisas públicas como do trabalho de pesquisa histórica sobre esse período ainda tão recente. Equivoca-se quem acha que tudo já está esclarecido. Há muito a ser conhecido, estudado e debatido sobre a ditadura militar. Um povo que ignora sua história desconhece a si mesmo, além de ser presa fácil dos autoritários de plantão.

O acesso às gravações das sessões do STM foi obtido depois de uma longa batalha judicial. Em 2006, a Corte militar negou o pedido feito pelo pesquisador e advogado Fernando Fernandes, que, no doutorado, havia estudado atas e discursos do STM. Em 2015, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela liberação dos arquivos da Corte militar relativos ao período da ditadura.

Os áudios foram entregues a Fernando Fernandes em 2017. “A abertura desse arquivo é algo fundamental não só para pesquisa de um historiador como eu, mas para milhares de pesquisas que podem ser feitas sobre o regime de 64, sobre a atuação do STM, sobre a atuação dos advogados, para se compreender melhor a história do Brasil”, disse Fernandes na ocasião. Desde então, o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem estudado e organizado o conteúdo dessas gravações.

Esse trabalho de pesquisa histórica é imprescindível. Certamente, debruçar-se sobre o período da ditadura militar traz incômodos para muita gente. Basta ver que o STM queria manter os áudios secretos. Felizmente, o STF assegurou a publicidade. A população tem o direito de saber como eram as sessões da Corte militar. Tem o direito de conhecer a história de seu país.

Sempre importante, a pesquisa histórica sobre a ditadura militar adquire especial relevância nos tempos atuais, em que se verifica um esforço deliberado – verdadeira manobra política – de negar ou minimizar as violências e agressões cometidas pelo regime militar. Há uma flagrante manipulação dos fatos históricos, com consequências nefastas para a cidadania e o exercício dos direitos políticos. Tal é a situação que há quem não veja, por exemplo, incompatibilidade entre a defesa da liberdade de expressão e a defesa do regime militar. Ora, na ditadura houve censura dos meios de comunicação. No caso deste jornal, que nunca se submeteu às ordens do regime sobre o que era proibido publicar, havia inclusive censores dentro da Redação.

Outro evento histórico sobre o qual há frequente manipulação é o Ato Institucional n.º 5 (AI-5). Considerado o “golpe dentro do golpe”, o AI-5 conduziu o País a um sinistro período de arbítrio, censura, repressão e cerceamento das liberdades civis e dos direitos individuais. Ao longo de seus 11 anos de vigência, o ato de profundo autoritarismo produziu muitos males que ainda hoje são sentidos. Foi uma brutalidade do regime militar contra a população brasileira, mas há quem queira defendê-lo ou, mesmo, ventilar a possibilidade de uma reedição em suposta “defesa do País” contra inimigos imaginários. O negacionismo histórico não é mera falha acadêmica, mas substrato para velhas e novas arbitrariedades.

Cabe advertir, ao mesmo tempo, que a defesa da pesquisa histórica não guarda relação com a pretensão de alguns de rever a Lei da Anistia. São coisas distintas, em âmbitos distintos. Há muito a ser conhecido, estudado e debatido sobre a edição dessa lei, suas circunstâncias e seus pressupostos. Mas o conhecimento mais aprofundado e rigoroso do que foi o regime militar – tarefa necessária para a sociedade brasileira – não é motivo para rediscutir a validade jurídica da Lei da Anistia. Tal pretensão seria ignorar os fatos históricos, numa releitura rasa sobre o que uma anistia significa e que bens ela protege, além de desmerecer as instituições democráticas pós-1988. O STF reconheceu, em 2010, a validade e legitimidade da Lei da Anistia. Conhecer a história, sim; reescrevê-la, negando os fatos, não.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 25 de abril de 2022 | 03h00

Bolsonaro escarnece da República

Ao conceder indulto ao meliante bolsonarista, Bolsonaro testa uma vez mais as instituições. Não cabe passividade perante esse abuso de poder. Congresso e PGR têm de agir

Não resta dúvida de que o presidente da República tem competência de conceder indulto a condenados. É um poder de longuíssima tradição humanitária, que a Constituição de 1988 acolheu entre as atribuições presidenciais. Mas o que fez Jair Bolsonaro na tarde de quinta-feira nada tem de constitucional ou mesmo humanitário: é pura pirraça de quem, incapaz de acolher uma ordem judicial que lhe desagradou, deseja afrontar as instituições democráticas.

Ao atuar assim, Jair Bolsonaro confirma o acerto da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de condenar o deputado Daniel Silveira. O que o bolsonarismo faz não é simples exercício da liberdade de opinião. É aberta agressão contra o regime democrático. Com atos aparentemente legais – seja o vídeo de um obscuro parlamentar, seja o decreto concedendo a graça a uma pessoa –, o que se tem é a subversão dos princípios republicanos, com debochada insubmissão à lei e às instituições e com despudorado exercício do poder para fins pessoais. Não é assim que funciona o regime constitucional de 1988.

A decisão do STF ainda não transitou em julgado, podendo, em tese, ser modificada. Não está apta, portanto, a gerar efeitos jurídicos. Aos olhos da Justiça, ainda recai sobre o deputado bolsonarista o véu da presunção de inocência. Mas nada disso importa a Bolsonaro. Para afrontar o Judiciário, o presidente da República não teve nenhum inconveniente em fazer de Daniel Silveira um precoce condenado, em tentativa farsesca de transformar o agressor em vítima.

Não que isso diminua a gravidade de seus atos, mas o bolsonarismo é descuidado em suas manobras. Ele mesmo expõe seus equívocos. Com o decreto afirmando que Daniel Silveira estava “resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição”, Jair Bolsonaro explicitou que, com o ato presidencial, não estava concedendo perdão a um condenado (que nem sequer estava juridicamente condenado). A rigor, no ato de quinta-feira, Jair Bolsonaro não exerceu nenhuma competência prevista no art. 84 da Constituição. De forma inteiramente inconstitucional, ele assumiu o papel de órgão revisor do Supremo, com a desfaçatez de interpretar e aplicar a Constituição em sentido diverso ao que havia sido definido no dia anterior pelo Supremo.

Ao atuar assim, Jair Bolsonaro expõe uma vez mais ao ridículo todos aqueles que vêm tentando, ao longo desses três anos e quatro meses, contemporizar os atos presidenciais, como se seu descompasso fosse mera questão de estilo, um inocente despojamento de protocolo, mas que, na essência, não afrontaria a Constituição. Jair Bolsonaro sabe exatamente o que vem fazendo, como já sabia, nos tempos do Exército, que seu comportamento na época não se coadunava com a disciplina, a hierarquia e o espírito militares.

Por exemplo, Jair Bolsonaro tinha plena consciência de seus atos no 7 de Setembro do ano passado. Nada do que se viu naquelas manifestações foi mera destemperança verbal. Ele sabia exatamente o que desejava instigar no País. Como também tinha plena consciência do que fez, dois dias depois, com seu simulacro de recuo. Assim como o autoritarismo, a covardia também tem método.

É preciso retirar, de uma vez por todas, o manto da irresponsabilidade sobre os atos de Jair Bolsonaro. Quando, menos de 24 horas depois de uma decisão do plenário do Supremo, o presidente usa o poder de conceder indulto para afrontar, de maneira explícita, o Poder Judiciário, tem-se uma violação da Constituição. Há um estrito abuso de poder. E mais: há a mensagem de que nada o deterá em suas pretensões e devaneios autoritários. Se assim Jair Bolsonaro trata uma decisão do órgão máximo do Judiciário, simplesmente já não existe mais nenhum limite.

Nesta situação de teste forte das instituições, cabe, de forma especial, ao Congresso e à Procuradoria-Geral da República (PGR) exercerem suas atribuições constitucionais de controle dos atos do Executivo, com a responsabilização de quem vem abusando não apenas da lei, mas da paciência dos brasileiros. Na República, há limites.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 23 de abril de 2022 | 03h00

Pesquisa FSB/BTG: Vantagem de Lula para Bolsonaro cai 5 pontos sem Moro na disputa

Rodada mais recente do levantamento mostra que Lula lidera a disputa para presidente da República com 41%; Jair Bolsonaro tem 32%; Ciro Gomes, 9%; André Janones e João Doria, 3% cada; Simone Tebet, 1%.

Vantagem de Lula sobre Bolsonaro cai em abril. Foto: Amanda Perobelli/REUTERS e Dida Sampaio/ESTADÃO

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem, neste momento, nove pontos de vantagem sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL), segundo pesquisa FSB/BTG divulgada nesta segunda-feira, 25. O petista aparece com 41% das intenções de voto, enquanto o chefe do Executivo tem 32%. A distância entre ambos era maior em março, de 14 pontos. 

O levantamento mostra que o ex-presidente caiu dois pontos porcentuais em relação ao mês passado, ainda dentro da margem de erro, que é de dois pontos porcentuais. Ele tinha 43%, ante os 41% atuais. Bolsonaro subiu três pontos: de 29% a 32%. 

Na pesquisa espontânea, aquela em que os eleitores expressam sua preferência sem que seja apresentada antecipadamente uma lista de opções, a distância entre os dois primeiros colocados é ainda menor: o petista tem 36%, Bolsonaro, 30%. 

Todos os outros presidenciáveis considerados no levantamento somam 17%. São eles: Ciro Gomes, do PDT (9%), André Janones, do Avante (3%), João Doria, do PSDB (3%), Simone Tebet, do MDB (1%) e Vera Lucia, do PSTU (1%). O ex-juiz Sérgio Moro, que abriu mão de sua pré-candidatura no Podemos e migrou para o União Brasil, não figura no levantamento. 

A pesquisa FSB/BTG consultou dois mil eleitores por telefone entre os dias 22 e 24 de abril. A margem de erro é de 2 pontos percentuais, para mais ou para menos. O registro na Justiça Eleitoral é BR-04676/2022.

Davi Medeiros, O Estado de S.Paulo, em 25 de abril de 2022 | 07h41

Reação militar contra Barroso segue exemplo da Colômbia

Enquanto a Defesa diz que as eleições são uma questão de segurança nacional, ministro do STF acredita saber o que é ordem unida

Ex-presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, fez palestra para estudantes na Alemanha Foto: Nelson Jr./STF

Em julho de 2021, Walter Braga Netto, então Ministro da Defesa, condicionou as eleições à aprovação pelo Congresso da pauta bolsonarista do voto impresso. Nove meses depois, uma palestra de Luís Roberto Barroso para os estudantes pretendia mostrar o quanto os militares são pressionados pelos políticos para descer à rua e resolver as disputas civis em nossa República. Ao sugerir como fato a desconfiança de que os militares bolsonaristas estivessem buscando envolver as Forças Armadas em sua tentativa de desacreditar as urnas eletrônicas, o ministro pretendia criticar o uso político da caserna, citando o exemplo da Venezuela.  

Paulo Sergio

O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, assinou a nota sobre as declarações de Barroso Foto: TRT/RR/AM

É verdade que militares cooptados pelo chavismo são o maior sustentáculo da ditadura que controla o país vizinho, mas, se Barroso quis sugerir que esse era o nosso futuro, esqueceu de olhar para o nosso presente. E ele está em outro país latino-americano: a Colômbia. Ali, o líder das pesquisas para a eleição presidencial em 29 de maio, o senador Gustavo Petro, candidato da coalizão esquerdista Pacto Histórico, resolveu se manifestar pelo Twitter, no dia 20 de abril, após o assassinato de seis soldados do Exército pelos narcoterroristas do Clã do Golfo. 

“Enquanto soldados são assassinados pelo Clã do Golfo (cartel da droga), alguns generais estão na folha de pagamento do Clã. A cúpula se corrompe enquanto os político ligados ao narcotráfico são os que acabam promovendo os generais.” Ex-prefeito de Bogotá, Petro foi guerrilheiro do M-19 e conta com o apoio de seu partido – o Colômbia Humana – e da União Patriótica, que agrega os comunistas e outros movimentos esquerdistas.

A reação do comandante do Exército colombiano, general Eduardo Enrique Zapateiro Altamiranda, foi quase imediata. E veio pela mesma rede social, no dia 22. “Não há a quem doa mais a morte de um soldado do que aos fardados e às suas famílias. O sacrifício deles pelo país não deveria ser usado em narrativas de campanha política.” O general continua: “Senador, não use de sua investidura (inviolabilidade parlamentar) para querer fazer politicagem com a morte de nossos soldados, mas cumpra seu dever de cidadão de fundamentar a denúncia no Ministério Público”. E lembrou um episódio em que o senador teria sido flagrado com uma bolsa de dinheiro, que mais tarde a Justiça considerou ser de origem lícita. 

O general concluiu: “À instituição mais antiga deste país, cujos integrantes – homens e mulheres – de maneira incondicional defenderam por mais de 200 anos a democracia desta Nação, ofertando suas próprias vidas, exijo respeito”. Começava um tsunami, com políticos de todas as tendências condenando ou defendendo as declarações do general. Acusaram Zapateiro de se intrometer na campanha depois que o direitista Óscar Iván Zuluaga, candidato do presidente Iván Duque, se retirou da eleição para apoiar o ex-prefeito de Medellín Federico Gutiérrez. 

Como por aqui Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem evitado embates com os militares, coube a Barroso desempenhar o papel de Petro e açular os quartéis. Em vez de tuite, a reação veio por meio de nota do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio de Oliveira. Ex-comandante do Exército – assumira a Força Terrestre em meio à crise que levou à degola de toda a cúpula militar, em março de 2021 –, ele assumiu o ministério depois que seu colega, o general Braga Netto, resolveu se afastar do cargo para ser o vice na chapa de Jair Bolsonaro. 

Escreveu o titular da Defesa: "Afirmar que as Forças Armadas foram orientadas a atacar o sistema eleitoral, ainda mais sem a apresentação de qualquer prova ou evidência de quem orientou ou como isso aconteceu, é irresponsável e constitui-se em ofensa grave a essas Instituições Nacionais Permanentes do Estado Brasileiro. Além disso, afeta a ética, a harmonia e o respeito entre as instituições”. Como na Colômbia, tratou-se de defender a honra da caserna. A nota tem a assinatura somente de Oliveira – o ministro –, em vez de outras manifestações da Pasta que receberam o jamegão de todos os comandantes das Forças. 

Seria, portanto, mais uma reposta de governo do que dos militares? Sim e não. A nota agrada aos oficiais generais que trazem o governo Bolsonaro no lado direito do peito bem como àqueles que se cansaram dos radicalismos do capitão. O desagravo à caserna é um velho instrumento usado na política, desde a Questão Militar, no século 19. Foi por meio dele que os fardados desembarcaram na política, como se se tratasse apenas da defesa de princípios morais. Assim os tenentes se mobilizaram em torno da candidatura de Nilo Peçanha e da Reação Republicana. 

“Completamente desnecessárias as declarações do ministro Barroso. Eu lamento esse tipo de pronunciamento que em nada contribui para a tranquilidade da Nação”, afirmou o deputado federal general Roberto Peternelli  (União-SP). Considerado um moderado entre os colegas, Peternelli soube da nota da Defesa quando estava em um jantar no interior de São Paulo. “O Exército nunca desorientou ou desacreditou o sistema eleitoral. Isso não corresponde à realidade. É importante não pôr lenha na fogueira.” Tem razão sobre a fogueira.

Se Barroso quisesse alimentá-la podia lembrar o que disse Bolsonaro em sua live de 29 de julho de 2021 a respeito das urnas eletrônicas: "Alguns desses criticaram militares do meu lado, dizendo que isso não é uma questão para nós tratarmos. Que é uma questão política. Não. Todos são obrigados a votar no Brasil, de maiores de 18 anos até os 70. Então, interessa a todos nós". Ou ainda constatar a inspiração no presidente na nota da Defesa, quando esta diz: "As eleições são questão de soberania e segurança nacional, portanto, do interesse de todos". Não. A eleição não é uma questão para a Defesa. E é um erro envolver os militares nisso. 

Agora se está assim: um general acha que eleições são um caso de segurança nacional e um ministro do STF acredita saber o que é ordem unida. Um italiano diria que toda semana a República é posta allo sbaràglio em Brasília. Não é a primeira vez que ministros do STF se envolvem em polêmicas com os generais durante o governo Bolsonaro. Parece que muita gente em Brasília esqueceu que a República exige a isenção, o apartidarismo e a neutralidade de magistrados e também dos militares. A prudência recomenda o silêncio político aos que detém as armas assim como aos que podem sentenciar. Enfim, é preciso lembrar não só a história da Venezuela, mas também a da Colômbia.

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Marcelo Godoy, o autor deste texto, é Repórter Especial d'O Estado de S. Paulo. Godoy é Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). Publicado orignalmente em 25.04.22.