terça-feira, 26 de abril de 2022

Brasil é país que menos julgou e puniu crimes da ditadura na região, diz historiadora argentina

Paraguai, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai, Argentina. Em meados dos anos 1970, boa parte da América do Sul estava mergulhada em ditaduras militares.

Os anos após o AI-5, decretado em 68, foram os mais violentos da ditadura militar (Arquivo Nacional)

Apesar dos elementos em comum - o pano de fundo da Guerra Fria, os conflitos internos que colocavam grupos de esquerda como ameaça à ordem nacional, o princípio da doutrina de segurança nacional -, cada um desses regimes foi marcado por particularidades.

E o mesmo se pode dizer do período posterior, a redemocratização. A maneira como cada país decidiu lidar com os crimes cometidos pelo Estado e com o processo de desmilitarização da política foi única - e essas escolhas reverberam até os dias de hoje, diz a historiadora argentina Marina Franco, que pesquisa o tema.

Franco é professora da Universidade Nacional de San Martín (UNSAM) e co-coordenadora do Programa de Estudios de las Dictaduras del Cono Sur y Sus Legados ("Programa de Estudos das Ditaduras do Cone Sul e Seus Legados", em tradução literal). É co-organizadora do livro Ditaduras no Cone Sul da América Latina (editora Civilização Brasileira), publicado em 2021.

A Argentina, por exemplo, foi um dos poucos países a revogar a lei de anistia que os militares aprovaram antes de deixar o poder.

Ainda em 1983, ano em que o civil Raúl Alfonsín assumiu a presidência, foi criada a Comisión Nacional sobre Desaparición de Personas (Conadep), que tinha a função de investigar os crimes contra direitos humanos cometidos entre 76 e 83, os anos do regime.

O país levou à prisão perpétua o general Jorge Rafael Videla, que governou o país entre 76 e 81 e, até março de 2022, a Justiça havia condenado outras 1.058 pessoas em 273 sentenças por crimes relacionados ao terrorismo de Estado.

O Brasil é um exemplo do lado oposto. A lei de anistia sancionada em 1979 pelo regime militar segue em vigor e foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010 - o que significa que a grande maioria dos civis e militares envolvidos nos crimes durante o período não pode ser julgada.

O órgão instituído para investigar os crimes relacionados à ditadura, por sua vez, foi criado apenas em 2011. Trata-se da Comissão Nacional da Verdade, que, em seu relatório final, em 2014, apontou 377 nomes entre os autores de graves violações aos direitos humanos.

A primeira condenação de um agente havia ocorrido ano passado, quando um juiz federal responsabilizou o delegado aposentado Carlos Alberto Augusto pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte nos anos 70 (o entendimento foi de que o sequestro é um crime continuado e, portanto, não coberto pela lei de anistia). Em fevereiro deste ano, contudo, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região acatou um recurso da defesa, que alegava prescrição do caso, e extinguiu a punibilidade do ex-delegado.

Em entrevista à BBC News Brasil, a historiadora explica por que considera, entre os vizinhos do Cone Sul, o Brasil como um caso "extremo" da chamada justiça de transição, sendo o que menos investigou, julgou e puniu crimes da ditadura.

Fala ainda sobre a importância dos áudios revelados nesta semana em que membros do Supremo Tribunal Militar admitem a prática de tortura durante a ditadura militar e sobre como o processo de redemocratização à brasileira explica o momento atual do país.

BBC News Brasil - Quando olhamos para os países da região após o fim das ditaduras, a Argentina parece ser o que com mais afinco se debruçou sobre a questão da justiça de transição. A revogação da lei de anistia, a criação do Conadep, a prisão de Videla, os julgamentos que acontecem até os dias de hoje. O país é um caso particular? Se sim, por quê?

Marina Franco - A Argentina é um caso particular em relação a como se resolveu a saída da transição. É diferente do Uruguai, do Chile, do Brasil. Se você olhar a partir do presente, é o melhor, é um modelo de como se julgar e investigar esses crimes.

Agora, isso não se deve ao fato de que a Argentina em si seja um país modelo ou de que nós argentinos sejamos mais justos, com mais memória ou mais democráticos. Não tem nada a ver com isso.

O que aconteceu na Argentina foi que existiram as condições políticas para que pudesse haver justiça transicional. Essas condições políticas são três, para mim, muito claras.

As Forças Armadas saem de cena completamente derrotadas e fracassadas. Deixaram o poder com um fracasso político terrível, com um fracasso em uma guerra desastrosa - a Guerra das Malvinas -, com um fracasso econômico e uma crise atroz.

Isso é o inverso do que aconteceu no Brasil. Durante o governo militar no Brasil se produziu um milagre econômico - muito questionado, mas houve um momento de crescimento.

Aqui, quando as Forças Armadas deixaram o poder havia 300% de inflação mensal. Não há governo que resista a isso. E é o momento em que se começam a descobrir os crimes. A debilidade absoluta das Forças Armadas quando saem do poder cria as condições para que, se viesse um governo disposto a investigar e julgar, se pudesse fazê-lo.

E o governo que veio [de Raúl Alfonsín, representante do partido União Cívica Radical (UCR), rival histórico do movimento peronista] efetivamente teve essa vontade. A outra força política que poderia ter ganhado aquelas eleições, o peronismo, não pensava em investigar e julgar.

Então o que se deu foi uma confluência de elementos, um equilíbrio de forças que permitiu que se investigasse e se julgasse.

O último elemento - e é importante que isso fique claro - é que na Argentina não se investigou porque socialmente havia um critério ético sobre as aberrações que haviam sido cometidas pelas Forças Armadas. Não existia uma consciência, é o contrário. A investigação e julgamento - ou seja, as políticas de Estado - criaram um consenso social sobre o que havia acontecido.

Sede da Escola de Mecânica da Armada em Buenos Aires, centro de tortura e repressão durante a ditadura, foi convertida em museu (MUSEO SITIO DE MEMORIA ESMA)

BBC News Brasil - Às vezes parece que o caminho é inverso, que a pressão social dos argentinos levou à investigação, julgamentos e punições…

Franco - Justamente, mas o que aconteceu foi que, no final da ditadura, começam a surgir informações sobre o que havia acontecido, sobre o desaparecimento forçado de pessoas.

Naquele momento, a maioria acreditava que essas pessoas eram subversivas e que a repressão havia sido necessária. São os efeitos do julgamento, da investigação, que começam a mudar o olhar da sociedade.

E aqui me parece importante destacar, pensando no caso brasileiro, que as políticas de Estado produzem efeitos e transformam. A ausência de políticas de Estado no Brasil, para mim, é um dado fundamental para entender algumas das coisas que acontecem no país.

As políticas de Estado de memória, de justiça, as políticas educativas sobre as ditaduras geram efeitos de transformação social, e acredito que a Argentina seja um desses casos.

Acho que o mais notável no caso argentino são os efeitos dessas políticas sociais junto com a mobilização social, que, claro, também existe.

Uma das manifestações estudantis ocorridas em 1968, contra as quais representantes da linha dura no regime militar pressionavam o presidente Costa e Silva a decretar um novo ato institucional para liberar instrumentos repressivos; o resultado foi o AI-5

BBC News Brasil - O Brasil parece um exemplo no sentido contrário quando se pensa em justiça de transição. Criou sua Comissão da Verdade apenas em 2011, fez sua primeira condenação em 2021. Como a senhora vê esse processo - é também um caso particular?

Franco - Bom, todos os casos são particulares. Nesse sentido, poderia-se dizer que o caso argentino é o extremo de investigação e justiça. O Brasil, por sua vez, estaria no outro extremo. Porque no Uruguai e no Chile houve processos, eles estariam ali no meio. Foram processos tardios e limitados de investigação e justiça, mas eles os tiveram.

O Brasil é o caso mais extremo, porque, com a lei de anistia de 1979, não houve praticamente nenhum julgamento. E existe um consenso social a favor dessa lei [confirmada pelo Supremo em 2010], uma vontade política, uma vontade jurídica para que ela seja mantida.

A Comissão da Verdade, como você mencionou, é bastante tardia. O próprio partido que poderia tê-la estabelecido muito antes, que era o PT, demorou para fazê-lo.

E aí é importante agregar outro ponto. A lei de anistia também permitiu o retorno daqueles que estavam exilados, os opositores ao regime - e que passariam a fazer parte do jogo político dali para frente.

Então há um interesse de todas as partes nessa possibilidade de restaurar o jogo político, o que não aconteceu na Argentina, porque a maioria dos opositores ao regime estavam mortos, desaparecidos ou faziam parte de grupos que depois não se integraram aos partidos políticos.

Assim, é importante, no caso do Brasil, o fato de que a cena política posterior incorpora todos os atores, assim como no Uruguai, por exemplo, com seu Frente Amplio.

Isso faz com que o jogo político posterior decida como se vê a situação prévia. Por isso sempre insisto na questão do equilíbrio de forças.

BBC News Brasil - A ideia é de que poderia ser "desconfortável" para esses grupos tocar em assuntos como os grupos paramilitares de esquerda?

Franco - Isso. Quando Dilma Rousseff chega ao poder, por exemplo, é constantemente "acusada" de ser guerrilheira.

BBC News Brasil - Parece haver uma tensão permanente nesse sentido. O atual presidente do Supremo Tribunal Militar, Luis Carlos Gomes Mattos, ao comentar sobre os áudios inéditos revelados nesta semana em que membros do STM relatam casos de tortura durante a ditadura, desdenhou do material e disse que, quando se toca no assunto, "só varrem um lado, não varrem o outro".

Franco - Nesse sentido, eu diria que os efeitos dos julgamentos na Argentina permitiram deixar claro que, não importa qual tenha sido a violência das organizações revolucionárias - que, aliás, na Argentina foram muito mais violentas do que no Brasil -, nada, nada é comparável com a violência exercida pelo Estado e pelas Forças Armadas.

Em certa medida essa discussão está resolvida aqui. Há um consenso social muito claro de que a responsabilidade pela violência é do Estado, das Forças Armadas, e que ela é inadmissível.

Acho que essa é uma diferença marcante, e é resultado das políticas de investigação e justiça.

Protesto contra a ditadura na Argentina em 1982: regime se estendeu de 76 a 83

BBC News Brasil - Também comentando sobre os áudios, o vice-presidente, Hamilton Mourão, disse se tratar de "coisa do passado", que não se pode trazer os mortos de volta para submetê-los a julgamento. Como historiadora e pesquisadora das ditaduras latino-americanas, como a senhora avalia a importância dos documentos desse período e da forma como tratá-los?

Franco - A importância dos áudios é absolutamente crucial em um país onde os processos de memória são limitados. O conhecimento sobre o passado é limitado, e sobre ele ainda se coloca em dúvida que tenha havido tortura e repressão. Esses áudios são provas indiscutíveis de que isso aconteceu.

Me parece fundamental que isso seja divulgado, que circule, que seja discutido. Acredito ainda que ajuda a reduzir o espaço para as vozes negacionistas e as vozes revisionistas.

Um historiador não precisa dessas provas hoje no Brasil [porque as evidências de violações já são claras]. Mas me parece que, socialmente, essas provas têm um impacto importante. Importante para a memória, para que se entenda realmente o que aconteceu.

A verdade histórica não necessita de prova, mas, em um país onde ela é colocada em dúvida, é fundamental que tudo isso fique claro.

O enterro do estudante Edson Luís, assassinado em março de 1968 no Rio por policiais militares no restaurante Calabouço, em 28 de março de 1968; sua morte desencadeou uma série de manifestações contra o regime militar

Enterro do estudante Edson Luís, assassinado em março de 1968 no Rio por policiais militares no restaurante Calabouço, em 28 de março de 1968: sua morte desencadeou uma série de manifestações contra o regime militar (Arquivo Nacional)

BBC News Brasil - Que consequências práticas esse processo de memória limitado e a justiça de transição frouxa do Brasil no pós-ditadura têm?

Franco - Em uma palavra, podemos dizer: Bolsonaro. Uma coisa está ligada com a outra. A falta de justiça, de políticas de processamento social e memorial do passado dificultam a criação de consensos sociais massivos pró-democráticos.

Dificultam a criação de mecanismos de controle, mecanismos de vigilância que impeçam que certas coisas sejam admissíveis.

Na Argentina, por exemplo, hoje é inadmissível que as Forças Armadas intervenham em questões de segurança pública ["seguridad interior"], que o Estado seja militarizado, que exista alguém que reivindique publicamente a violência estatal, a repressão, a tortura. Essas vozes podem aparecer, mas são imediatamente rechaçadas - e socialmente rechaçadas.

BBC News Brasil - Outra questão quando se fala em redemocratização são os processos de desmilitarização dos países da região. Na Argentina, os militares parecem ter de fato voltado à caserna, um cenário bastante diferente do Brasil. Aqui, eles não apenas se mantiveram na política, como chegaram ao poder pelas urnas em 2018. Como a senhora analisa esse processo?

Franco - O processo de desmilitarização no Brasil foi muito parcial, muito fragmentado e muito limitado. A eleição de Bolsonaro mostra um pouco isso. O tempo foi passando, foi passando e, de repente, quando Bolsonaro chega ao poder, percebe-se que o Estado ainda estava militarizado.

E não só o Estado, mas também as concepções sobre ordem estavam militarizadas, o que é mais grave. Militarizadas e moralizadas. Bolsonaro reproduziu um discurso sobre a moral que também é profundamente repressivo.

E volto àquele ponto: a grande diferença é a situação em meio à qual as Forças Armadas deixam o poder na Argentina e no Brasil. No Brasil, não saem completamente derrotadas. Deixam a direção do poder Executivo, mas não saem derrotadas.

O mesmo acontece com um outro grande caso, o do Chile, em que as Forças Armadas se retiraram com um nível de presença e controle de peso no jogo político.

Camilla Veras Mota - @cavmota, da BBC News Brasil em São Paulo, em 24 abril 2022

O que diz a lei sobre o polêmico indulto concedido por Bolsonaro

Por 10 votos a 1, Daniel Silveira foi condenado a oito anos e nove meses de prisão, multa, perda do mandato e suspensão dos seus direitos políticos pelos crimes de coação em processo judicial e tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União.

Plenário do Supremo Tribunal Federal

O presidente Jair Bolsonaro (PL) disse que assinou um decreto concedendo um indulto individual ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), extinguindo a pena de prisão à qual foi condenado na quarta-feira pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O anúncio foi feito por Bolsonaro em uma transmissão em suas redes sociais na quinta-feira (21/4).

O que é a 'graça' concedida por Bolsonaro?

O termo técnico do que Bolsonaro concedeu a Daniel Silveira é "graça" e está previsto no artigo 74 do Código Penal.

"A graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao Presidente da Republica, a faculdade de concedê-la espontaneamente", diz a lei.

Tecnicamente, a graça é diferente do indulto — a primeira é um benefício individual, enquanto o segundo é dado coletivamente, como no caso dos indultos natalinos, que são concedidos a diversas pessoas que se enquadram em determinados critérios.

Por que juristas questionam graça a Daniel Silveira?

O principal debate jurídico levantado pelo perdão oficial dado por Bolsonaro é sobre a validade do ato: tradicionalmente graças são dadas a casos que já foram transitados em julgado, ou seja, quando todas as possibilidades de recorrer são esgotadas em um processo. Esse não é o caso de Daniel Silveira agora. No entanto, juristas divergem sobre se esse critério é obrigatório ou não.

Para o jurista e desembargador aposentado Walter Maierovitch, o decreto anunciado pelo presidente poderia ser considerado tecnicamente nulo, uma vez que, do ponto de vista jurídico, o julgamento de Daniel Silveira ainda está em curso, pois ainda cabem recursos da decisão do plenário do STF.

"Esse ato é, tecnicamente, nulo. O julgamento ainda não acabou, pois ainda cabem recursos. Como é que ele pode extinguir a pena de uma pessoa que, do ponto de vista jurídico, ainda é inocente?", afirma o jurista.

O professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Gustavo Badaró também aponta para a possível nulidade do perdão concedido pelo presidente ao deputado. Na avaliação dele, a medida foi tomada de forma equivocada.

"É estranho o presidente da República publicar um decreto de indulto quando o processo não transitou em julgado. Me parece um equívoco brutal. Não porque ele não possa dar esse perdão, mas porque o processo ainda está tramitando", afirmou.

Houve interferência indevida entre poderes?

É analisado também que o ato pode ser interpretado como uma interferência indevida do Poder Executivo sobre o funcionamento do Judiciário, o que configuraria um crime de responsabilidade.

Para o também professor de Direito da USP Pierpaollo Bottini, a decisão de Bolsonaro configura uma interferência indevida do Executivo no funcionamento do Poder Judiciário.

Ele afirma que ela poderia ser, inclusive, interpretada como um crime de responsabilidade, do tipo que poderia levar ao impeachment do presidente.

"Eu entendo que, na medida em que o julgamento ainda não acabou, estamos diante de uma clara interferência indevida do presidente no funcionamento do Poder Judiciário. É uma interferência indevida e, a meu ver, ilegal. Poderia, sim, ser vista como um crime de responsabilidade", afirmou Bottini.

Bolsonaro estaria cometendo crime de responsabilidade?

A lei dos crimes de responsabilidade é de 1950. É ela que norteia, por exemplo, o processo de impeachment como o que aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016.

O artigo nº 6 da lei diz que são crimes quaisquer atos que atentarem contra o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário.

O jurista Gustavo Badaró também avalia que o indulto a Silveira possa ser interpretado como um crime de responsabilidade.

"É um crime de responsabilidade porque ele (Bolsonaro) está interferindo no funcionamento do Judiciário. É uma forma de dizer que, independentemente do que o Judiciário faça em relação a uma determinada pessoa, o Executivo não permitirá que ela seja punida", explicou.

Os juristas afirmam que, apesar de o decreto extinguir a pena dada pelo STF a Silveira, muito provavelmente, vai caber ao próprio Supremo avaliar a legalidade da medida.

Isso porque a oposição deverá recorrer da decisão junto à Corte, como anunciou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) em seu perfil no Twitter.

"Crimes contra a ordem constitucional não podem ser passíveis deste benefício [...] e iremos ao STF, para derrubar esse desmando por meio uma ADPF!", escreveu o senador. ADPF é a sigla para Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental.

Bottini explica que o indulto não será suficiente para acabar com a punição a Silveira.

"Muito provavelmente, vai caber ao STF fazer o controle constitucional dessa medida. Em outras palavras: se o STF for provocado, e tudo indica que isso vai acontecer, ele terá que julgar se o indulto de Bolsonaro foi constitucional ou não", diz o jurista.

A avaliação da constitucionalidade de um indulto já aconteceu na história recente do país quando o STF, em 2018, julgou o decreto assinado pelo então presidente Michel Temer (MDB) que havia reduzido as penas para condenados por crimes não violentos.

À época, a medida foi interpretada como uma forma de beneficiar pessoas presas por crimes de corrupção e colarinho branco. Em novembro daquele ano, o STF formou maioria para manter o indulto.

Silveira está inelegível?

Após a decisão do STF, o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Henrique Neves avaliou que, por conta da condenação, Daniel Silveira está automaticamente inelegível e, em tese, não poderá disputar as eleições deste ano, na qual ele pretendia concorrer ao cargo de senador pelo Rio de Janeiro amparado pela base bolsonarista que o elegeu em 2018.

"A inelegibilidade decorrente da condenação criminal nasce com a publicação do acórdão (decisão) condenatório, independente de recurso. Ela só será suspensa se o condenado conseguir uma liminar para conceder efeito suspensivo", explicou.

O advogado Raul Abramo, especialista em direito penal, diz que ainda Silveira ainda não será preso e nem perderá o mandato porque, apesar da condenação, sua defesa ainda pode impetrar recursos junto ao STF.

"A defesa pode recorrer e por isso ele não deverá ser preso, ainda. O mais provável é que a defesa ingresse com embargos de declaração, que é um recurso quando se entende que há algum ponto da decisão que não ficou claro ou quando a defesa acha que os ministros deixaram de prestar atenção a algum ponto relevante", diz o advogado.

Raul afirma que, se houver recursos e a condenação for mantida, o STF deverá comunicar a decisão à Câmara dos Deputados para que seja efetivada a perda do mandato. Da mesma forma, após o fim dessa fase, Daniel Silveira deverá ser recolhido a uma unidade prisional onde vai iniciar o cumprimento de sua pena.

BBC News Brazil, em 22.04.22. Com apuração de Leandro Prazeres.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Reeleição de Macron fortalece Ocidente em guerra contra Putin

Apesar do bom desempenho de Marine Le Pen, presidente obtém mais cinco anos de mandato e evita que poder caia nas mãos da extrema direita nacionalista e anti-Europa

Partidários de Macron acompanham a apuração na Torre Eiffel  Foto: REUTERS / REUTERS (Foto: Ludovic Marin/AFP)

O presidente francês, Emmanuel Macron, foi reeleito no domingo, 2, com 58,6% dos votos. O segundo turno da eleição foi marcado pela alta abstenção e pela votação histórica da candidata de extrema direita, Marine Le Pen, que cresceu com relação a 2017. Com o resultado, a França deve continuar como um dos pilares da União Europeia e fortalecer a aliança ocidental contra a Rússia.

Le Pen reconheceu ontem a derrota, mas comemorou os cerca de 42% dos votos – bem mais do que os 34% obtidos na última eleição. Durante a campanha, ela moderou sua imagem e sua retórica. A candidata, que é próxima do presidente russo, Vladimir Putin, havia prometido afastar a França da Otan e rever os laços com a UE.

Celebração

Para o cientista político William Leday, da Science Po, Macron era o preferido de Bruxelas. “Le Pen é nacionalista e antieuropeia, o que causaria inquietude”, afirmou. Segundo ele, a reeleição com um índice maior do que o apontado pelas pesquisas reforça sua liderança no continente e seu papel de mediador com Putin.

A reeleição de Macron é a primeira na França desde a vitória de Jacques Chirac sobre Jean-Marie Le Pen – pai de Marine –, em 2002. O resultado incomum, que garantiu mais cinco anos de mandato a Macron, reflete sua gestão eficaz da pandemia, a retomada do crescimento econômico e sua agilidade em ocupar o centro do espectro político.

Ontem, após o anúncio das primeiras projeções, o presidente discursou para cerca de 3 mil apoiadores no Campo de Marte, em Paris. Ele fez acenos à esquerda, prometeu um projeto social e ecológico e disse que será o presidente de todos os franceses – inclusive interferindo para que as pessoas não vaiassem Le Pen, quando citada por ele.

Daqui até a posse, em 13 de maio, Macron tem de mostrar que é capaz de unir um país dividido em pelo menos três grandes polos: os progressistas, muitos dos quais se abstiveram no segundo turno, a centro-direita, que o apoia, e a extrema direita, da qual Le Pen é a principal representante.

Marine Le Pen cumprimenta eleitores no interior da França Foto: DENIS CHARLET / AFP

Avanços

A vitória de ontem foi bem diferente da primeira. Cinco anos atrás, Macron era um líder prodígio de 39 anos que estourava na cena política francesa com a promessa de enterrar as divisões entre esquerda e direita e construir uma sociedade mais justa, igualitária, aberta e dinâmica.

Durante seu primeiro mandato, ele conseguiu estimular o crescimento, reduzir o desemprego e fomentar uma cultura tecnológica de startups, mas foi incapaz de lidar com a crescente desigualdade e com a revolta latente entre os menos privilegiados que vivem nos subúrbios das cidades e nas zonas rurais.

As divisões sociais se acentuaram na França, à medida que a renda estagnou, os preços subiram e a automação dizimou os empregos nas fábricas. Como resultado, o capital político de Macron ficou bem mais limitado, mesmo que sua clara vitória de ontem tenha salvado a França de um perigoso desvio rumo ao nacionalismo xenófobo.

Macron participa de comício em Marseille, no sul da França  Foto: Ludovic Marin/AFP

Baixo comparecimento

A abstenção no segundo turno foi de 28,2%, 2,8 pontos porcentuais a mais do que em 2017. Com isso, Macron foi reeleito com apenas 38% dos votos, o nível mais baixo desde a eleição de Georges Pompidou, em 1969.

O professor de filosofia François Calori, que vota em Malakoff, um bastião da esquerda, na periferia de Paris, estava inquieto com o comparecimento baixo na sua cidade. “Como muitos aqui, votei em Mélenchon no primeiro turno, para impedir Le Pen de chegar ao segundo turno. A estratégia era barrar a extrema direita já logo de cara”, afirmou. “Agora, votei em Macron, também para barrar a extrema direita, mas fico tenso ao ver que muita gente não votou. /COM NYT

Por Paloma Varon, especial para o Estado de S. Paulo, em 25/04/2022 | 05h00


Militares, a ordem e a disciplina

E os militares, apoiam o ataque ao Supremo, em favor de um tipo como Daniel Silveira?

Bolsonaro editou decreto inédito e concedeu perdão ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) Foto: Gabriela Biló/Estadão

Segundo as pesquisas, o Exército Brasileiro é uma das instituições mais confiáveis e admiradas pela sociedade, senão a mais. Isso se reflete no site, na Rádio Verde Oliva e nas redes sociais da instituição, um sucesso de público. Mas é preciso cuidar muito bem desse patrimônio.

Desde a redemocratização de 1985, nenhum presidente civil fez tanto mal às Forças Armadas quanto Jair Bolsonaro, que saiu do Exército pela porta dos fundos, com patente de capitão. Luiz Inácio Lula da Silva investiu na instituição, com a renovação dos caças da FAB (Dilma Rousseff encontrou tudo pronto), dos submarinos, inclusive de propulsão nuclear, e do novo tanque da Força Terrestre. 

E Bolsonaro? Em vez da instituição, privilegiou os militares no Planalto, nos vários escalões, nas reformas. A da Previdência tirou um tico nas aposentadorias e pensões e aumentou os soldos – justo, aliás. Os militares foram diferenciados aí e na reforma administrativa, mas iguais para receber o reajuste agora.

Neste ano, as notícias têm sido constrangedoras para as Forças Armadas, em especial para o Exército, que está no terceiro comandante em três anos, depois que o primeiro foi demitido, junto com o ministro da Defesa e os da Marinha e Aeronáutica.

Assim como Bolsonaro limou toda a cúpula militar e isso passou quase em branco, jogar o general Hamilton Mourão pela janela na vice nem fez cosquinha. Boa parte dos militares acha tudo normal, assim como os absurdos de Bolsonaro na pandemia – e não só nela.

O presidente pôs no lixo o detalhado estudo da inteligência do Exército na covid, a favor, inclusive, do isolamento social. Depois, triturou pelo twitter três portarias da Força sobre monitoramento de armas com civis. Enfim, levou um general da ativa ao seu palanque eleitoral no Rio, uma falta gravíssima. E daí? Nada. E o Exército volta ao foco, não mais por picanha e cervejas, mas por Viagra e prótese peniana pagas por você, leitor. Viagra? É “para hipertensão”. Prótese? Silêncio.

Por fim, a reação às dez mil horas de gravações do Superior Tribunal Militar (STM), comprovando o que todo mundo sabe: houve tortura, marteladas e choques elétricos até em grávidas na ditadura. Para o presidente do STM, general Luiz Gomes Mattos, tudo não passa de “notícia tendenciosa”. Não, não é. É a realidade: fatos, orçamento, áudios oficiais do tribunal.

Agora é saber se as Forças Armadas apoiam o ataque do presidente (que o general Ernesto Geisel chamava de “mau militar”) ao Supremo, para defender um tipo como Daniel Silveira e a violência estúpida contra as instituições e a democracia.

Eliane Cantanhêde, a  autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 24 de abril de 2022 | 03h00

O clube dos moinhos de vento

A democracia perde quando o debate foge dos fatos e abraça o universo ficcional dos moinhos de vento

     Macron e Le Pen; um traço comum entre Brasil e França é a existência de políticos que usam a tática de desviar o assunto para temas irrelevantes, mas com apelo popular Foto: Gonzalo Fuentes/Reuters

A imigração certamente não é o problema mais sério da França. Todos os dias chegam à União Europeia trabalhadores de várias nacionalidades e qualificações. Segundo estudos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE – o clube dos países ricos –, os imigrantes movimentam a economia em países onde a população está envelhecendo. A seleção de futebol que ganhou a Copa do Mundo é o emblema da nova França multicultural. 

O segundo turno entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen será amanhã – e a imigração foi tema no debate eleitoral francês. “Le Pen suavizou seu discurso, mas sua posição histórica – fechar as fronteiras francesas – atentaria contra um dos princípios básicos da União Europeia, que é a livre circulação de pessoas”, diz o cientista político Andrei Roman, entrevistado no minipodcast da semana. Ele é CEO do Atlas, empresa de análise de dados que atua em eleições em vários países. 

O Brasil tem problemas seriíssimos – inflação, corrupção, pobreza – e a falta de liberdade de expressão não está entre eles. O tema, no entanto, ganhou relevância ao longo desta semana. Em decisão “pedagógica”, como observou o Estadão em editorial, o Supremo Tribunal Federal condenou o deputado federal Daniel Silveira a oito anos e nove meses de cadeia, “por usar de violência ou grave ameaça para impedir o exercício dos Poderes”. 

Para atiçar uma discussão falaciosa sobre liberdade de expressão, o presidente Jair Bolsonaro peitou o STF ao quebrar uma promessa de campanha e conceder indulto ao deputado criminoso. De acordo com o editorial do Estadão, “não existe liberdade de expressão para atacar a democracia”. 

Um traço comum entre Brasil e França é a existência de políticos que usam a tática de desviar o assunto para temas irrelevantes, mas com apelo popular – os “moinhos de vento”. 60% dos franceses se preocupam com a imigração, segundo pesquisa do Atlas. “Os benefícios econômicos não são óbvios para grande parte dos eleitores, e a direita radical usa isso”, diz Roman. 

É uma tática disseminada. Na Hungria e na Polônia, candidatos à presidência inventaram um complô internacional LGBTQIA+. Viktor Orbán e Andrzej Duda venceram seus pleitos usando esse discurso. A última pesquisa do Atlas, no entanto, aponta uma vitória de Macron por 53 a 47. Mais uma vez os franceses deverão fugir do radicalismo.

As eleições de outubro dirão se Bolsonaro terá sucesso ao desviar a campanha dos problemas sérios. Qualquer que seja o resultado do pleito, a democracia perde quando o debate foge dos fatos e abraça o universo ficcional dos moinhos de vento.  

João Gabriel de Lima, o autor deste artigo, é escritor, professor da FAAP e doutorando em Ciencia POlítica na Universidade de Lisboa. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 23 de abril de 2022 | 07h56

É preciso conhecer a história da ditadura

A revelação das gravações das sessões do STM entre 1975 e 1985 reitera a importância da pesquisa histórica sobre a ditadura militar. Há muito a ser conhecido e estudado

A recente divulgação, feita pela jornalista Miriam Leitão, no jornal O Globo, de gravações de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) entre 1975 e 1985 revela a importância tanto da transparência no trato das coisas públicas como do trabalho de pesquisa histórica sobre esse período ainda tão recente. Equivoca-se quem acha que tudo já está esclarecido. Há muito a ser conhecido, estudado e debatido sobre a ditadura militar. Um povo que ignora sua história desconhece a si mesmo, além de ser presa fácil dos autoritários de plantão.

O acesso às gravações das sessões do STM foi obtido depois de uma longa batalha judicial. Em 2006, a Corte militar negou o pedido feito pelo pesquisador e advogado Fernando Fernandes, que, no doutorado, havia estudado atas e discursos do STM. Em 2015, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela liberação dos arquivos da Corte militar relativos ao período da ditadura.

Os áudios foram entregues a Fernando Fernandes em 2017. “A abertura desse arquivo é algo fundamental não só para pesquisa de um historiador como eu, mas para milhares de pesquisas que podem ser feitas sobre o regime de 64, sobre a atuação do STM, sobre a atuação dos advogados, para se compreender melhor a história do Brasil”, disse Fernandes na ocasião. Desde então, o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem estudado e organizado o conteúdo dessas gravações.

Esse trabalho de pesquisa histórica é imprescindível. Certamente, debruçar-se sobre o período da ditadura militar traz incômodos para muita gente. Basta ver que o STM queria manter os áudios secretos. Felizmente, o STF assegurou a publicidade. A população tem o direito de saber como eram as sessões da Corte militar. Tem o direito de conhecer a história de seu país.

Sempre importante, a pesquisa histórica sobre a ditadura militar adquire especial relevância nos tempos atuais, em que se verifica um esforço deliberado – verdadeira manobra política – de negar ou minimizar as violências e agressões cometidas pelo regime militar. Há uma flagrante manipulação dos fatos históricos, com consequências nefastas para a cidadania e o exercício dos direitos políticos. Tal é a situação que há quem não veja, por exemplo, incompatibilidade entre a defesa da liberdade de expressão e a defesa do regime militar. Ora, na ditadura houve censura dos meios de comunicação. No caso deste jornal, que nunca se submeteu às ordens do regime sobre o que era proibido publicar, havia inclusive censores dentro da Redação.

Outro evento histórico sobre o qual há frequente manipulação é o Ato Institucional n.º 5 (AI-5). Considerado o “golpe dentro do golpe”, o AI-5 conduziu o País a um sinistro período de arbítrio, censura, repressão e cerceamento das liberdades civis e dos direitos individuais. Ao longo de seus 11 anos de vigência, o ato de profundo autoritarismo produziu muitos males que ainda hoje são sentidos. Foi uma brutalidade do regime militar contra a população brasileira, mas há quem queira defendê-lo ou, mesmo, ventilar a possibilidade de uma reedição em suposta “defesa do País” contra inimigos imaginários. O negacionismo histórico não é mera falha acadêmica, mas substrato para velhas e novas arbitrariedades.

Cabe advertir, ao mesmo tempo, que a defesa da pesquisa histórica não guarda relação com a pretensão de alguns de rever a Lei da Anistia. São coisas distintas, em âmbitos distintos. Há muito a ser conhecido, estudado e debatido sobre a edição dessa lei, suas circunstâncias e seus pressupostos. Mas o conhecimento mais aprofundado e rigoroso do que foi o regime militar – tarefa necessária para a sociedade brasileira – não é motivo para rediscutir a validade jurídica da Lei da Anistia. Tal pretensão seria ignorar os fatos históricos, numa releitura rasa sobre o que uma anistia significa e que bens ela protege, além de desmerecer as instituições democráticas pós-1988. O STF reconheceu, em 2010, a validade e legitimidade da Lei da Anistia. Conhecer a história, sim; reescrevê-la, negando os fatos, não.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 25 de abril de 2022 | 03h00

Bolsonaro escarnece da República

Ao conceder indulto ao meliante bolsonarista, Bolsonaro testa uma vez mais as instituições. Não cabe passividade perante esse abuso de poder. Congresso e PGR têm de agir

Não resta dúvida de que o presidente da República tem competência de conceder indulto a condenados. É um poder de longuíssima tradição humanitária, que a Constituição de 1988 acolheu entre as atribuições presidenciais. Mas o que fez Jair Bolsonaro na tarde de quinta-feira nada tem de constitucional ou mesmo humanitário: é pura pirraça de quem, incapaz de acolher uma ordem judicial que lhe desagradou, deseja afrontar as instituições democráticas.

Ao atuar assim, Jair Bolsonaro confirma o acerto da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de condenar o deputado Daniel Silveira. O que o bolsonarismo faz não é simples exercício da liberdade de opinião. É aberta agressão contra o regime democrático. Com atos aparentemente legais – seja o vídeo de um obscuro parlamentar, seja o decreto concedendo a graça a uma pessoa –, o que se tem é a subversão dos princípios republicanos, com debochada insubmissão à lei e às instituições e com despudorado exercício do poder para fins pessoais. Não é assim que funciona o regime constitucional de 1988.

A decisão do STF ainda não transitou em julgado, podendo, em tese, ser modificada. Não está apta, portanto, a gerar efeitos jurídicos. Aos olhos da Justiça, ainda recai sobre o deputado bolsonarista o véu da presunção de inocência. Mas nada disso importa a Bolsonaro. Para afrontar o Judiciário, o presidente da República não teve nenhum inconveniente em fazer de Daniel Silveira um precoce condenado, em tentativa farsesca de transformar o agressor em vítima.

Não que isso diminua a gravidade de seus atos, mas o bolsonarismo é descuidado em suas manobras. Ele mesmo expõe seus equívocos. Com o decreto afirmando que Daniel Silveira estava “resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição”, Jair Bolsonaro explicitou que, com o ato presidencial, não estava concedendo perdão a um condenado (que nem sequer estava juridicamente condenado). A rigor, no ato de quinta-feira, Jair Bolsonaro não exerceu nenhuma competência prevista no art. 84 da Constituição. De forma inteiramente inconstitucional, ele assumiu o papel de órgão revisor do Supremo, com a desfaçatez de interpretar e aplicar a Constituição em sentido diverso ao que havia sido definido no dia anterior pelo Supremo.

Ao atuar assim, Jair Bolsonaro expõe uma vez mais ao ridículo todos aqueles que vêm tentando, ao longo desses três anos e quatro meses, contemporizar os atos presidenciais, como se seu descompasso fosse mera questão de estilo, um inocente despojamento de protocolo, mas que, na essência, não afrontaria a Constituição. Jair Bolsonaro sabe exatamente o que vem fazendo, como já sabia, nos tempos do Exército, que seu comportamento na época não se coadunava com a disciplina, a hierarquia e o espírito militares.

Por exemplo, Jair Bolsonaro tinha plena consciência de seus atos no 7 de Setembro do ano passado. Nada do que se viu naquelas manifestações foi mera destemperança verbal. Ele sabia exatamente o que desejava instigar no País. Como também tinha plena consciência do que fez, dois dias depois, com seu simulacro de recuo. Assim como o autoritarismo, a covardia também tem método.

É preciso retirar, de uma vez por todas, o manto da irresponsabilidade sobre os atos de Jair Bolsonaro. Quando, menos de 24 horas depois de uma decisão do plenário do Supremo, o presidente usa o poder de conceder indulto para afrontar, de maneira explícita, o Poder Judiciário, tem-se uma violação da Constituição. Há um estrito abuso de poder. E mais: há a mensagem de que nada o deterá em suas pretensões e devaneios autoritários. Se assim Jair Bolsonaro trata uma decisão do órgão máximo do Judiciário, simplesmente já não existe mais nenhum limite.

Nesta situação de teste forte das instituições, cabe, de forma especial, ao Congresso e à Procuradoria-Geral da República (PGR) exercerem suas atribuições constitucionais de controle dos atos do Executivo, com a responsabilização de quem vem abusando não apenas da lei, mas da paciência dos brasileiros. Na República, há limites.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 23 de abril de 2022 | 03h00

Pesquisa FSB/BTG: Vantagem de Lula para Bolsonaro cai 5 pontos sem Moro na disputa

Rodada mais recente do levantamento mostra que Lula lidera a disputa para presidente da República com 41%; Jair Bolsonaro tem 32%; Ciro Gomes, 9%; André Janones e João Doria, 3% cada; Simone Tebet, 1%.

Vantagem de Lula sobre Bolsonaro cai em abril. Foto: Amanda Perobelli/REUTERS e Dida Sampaio/ESTADÃO

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem, neste momento, nove pontos de vantagem sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL), segundo pesquisa FSB/BTG divulgada nesta segunda-feira, 25. O petista aparece com 41% das intenções de voto, enquanto o chefe do Executivo tem 32%. A distância entre ambos era maior em março, de 14 pontos. 

O levantamento mostra que o ex-presidente caiu dois pontos porcentuais em relação ao mês passado, ainda dentro da margem de erro, que é de dois pontos porcentuais. Ele tinha 43%, ante os 41% atuais. Bolsonaro subiu três pontos: de 29% a 32%. 

Na pesquisa espontânea, aquela em que os eleitores expressam sua preferência sem que seja apresentada antecipadamente uma lista de opções, a distância entre os dois primeiros colocados é ainda menor: o petista tem 36%, Bolsonaro, 30%. 

Todos os outros presidenciáveis considerados no levantamento somam 17%. São eles: Ciro Gomes, do PDT (9%), André Janones, do Avante (3%), João Doria, do PSDB (3%), Simone Tebet, do MDB (1%) e Vera Lucia, do PSTU (1%). O ex-juiz Sérgio Moro, que abriu mão de sua pré-candidatura no Podemos e migrou para o União Brasil, não figura no levantamento. 

A pesquisa FSB/BTG consultou dois mil eleitores por telefone entre os dias 22 e 24 de abril. A margem de erro é de 2 pontos percentuais, para mais ou para menos. O registro na Justiça Eleitoral é BR-04676/2022.

Davi Medeiros, O Estado de S.Paulo, em 25 de abril de 2022 | 07h41

Reação militar contra Barroso segue exemplo da Colômbia

Enquanto a Defesa diz que as eleições são uma questão de segurança nacional, ministro do STF acredita saber o que é ordem unida

Ex-presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, fez palestra para estudantes na Alemanha Foto: Nelson Jr./STF

Em julho de 2021, Walter Braga Netto, então Ministro da Defesa, condicionou as eleições à aprovação pelo Congresso da pauta bolsonarista do voto impresso. Nove meses depois, uma palestra de Luís Roberto Barroso para os estudantes pretendia mostrar o quanto os militares são pressionados pelos políticos para descer à rua e resolver as disputas civis em nossa República. Ao sugerir como fato a desconfiança de que os militares bolsonaristas estivessem buscando envolver as Forças Armadas em sua tentativa de desacreditar as urnas eletrônicas, o ministro pretendia criticar o uso político da caserna, citando o exemplo da Venezuela.  

Paulo Sergio

O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, assinou a nota sobre as declarações de Barroso Foto: TRT/RR/AM

É verdade que militares cooptados pelo chavismo são o maior sustentáculo da ditadura que controla o país vizinho, mas, se Barroso quis sugerir que esse era o nosso futuro, esqueceu de olhar para o nosso presente. E ele está em outro país latino-americano: a Colômbia. Ali, o líder das pesquisas para a eleição presidencial em 29 de maio, o senador Gustavo Petro, candidato da coalizão esquerdista Pacto Histórico, resolveu se manifestar pelo Twitter, no dia 20 de abril, após o assassinato de seis soldados do Exército pelos narcoterroristas do Clã do Golfo. 

“Enquanto soldados são assassinados pelo Clã do Golfo (cartel da droga), alguns generais estão na folha de pagamento do Clã. A cúpula se corrompe enquanto os político ligados ao narcotráfico são os que acabam promovendo os generais.” Ex-prefeito de Bogotá, Petro foi guerrilheiro do M-19 e conta com o apoio de seu partido – o Colômbia Humana – e da União Patriótica, que agrega os comunistas e outros movimentos esquerdistas.

A reação do comandante do Exército colombiano, general Eduardo Enrique Zapateiro Altamiranda, foi quase imediata. E veio pela mesma rede social, no dia 22. “Não há a quem doa mais a morte de um soldado do que aos fardados e às suas famílias. O sacrifício deles pelo país não deveria ser usado em narrativas de campanha política.” O general continua: “Senador, não use de sua investidura (inviolabilidade parlamentar) para querer fazer politicagem com a morte de nossos soldados, mas cumpra seu dever de cidadão de fundamentar a denúncia no Ministério Público”. E lembrou um episódio em que o senador teria sido flagrado com uma bolsa de dinheiro, que mais tarde a Justiça considerou ser de origem lícita. 

O general concluiu: “À instituição mais antiga deste país, cujos integrantes – homens e mulheres – de maneira incondicional defenderam por mais de 200 anos a democracia desta Nação, ofertando suas próprias vidas, exijo respeito”. Começava um tsunami, com políticos de todas as tendências condenando ou defendendo as declarações do general. Acusaram Zapateiro de se intrometer na campanha depois que o direitista Óscar Iván Zuluaga, candidato do presidente Iván Duque, se retirou da eleição para apoiar o ex-prefeito de Medellín Federico Gutiérrez. 

Como por aqui Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem evitado embates com os militares, coube a Barroso desempenhar o papel de Petro e açular os quartéis. Em vez de tuite, a reação veio por meio de nota do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio de Oliveira. Ex-comandante do Exército – assumira a Força Terrestre em meio à crise que levou à degola de toda a cúpula militar, em março de 2021 –, ele assumiu o ministério depois que seu colega, o general Braga Netto, resolveu se afastar do cargo para ser o vice na chapa de Jair Bolsonaro. 

Escreveu o titular da Defesa: "Afirmar que as Forças Armadas foram orientadas a atacar o sistema eleitoral, ainda mais sem a apresentação de qualquer prova ou evidência de quem orientou ou como isso aconteceu, é irresponsável e constitui-se em ofensa grave a essas Instituições Nacionais Permanentes do Estado Brasileiro. Além disso, afeta a ética, a harmonia e o respeito entre as instituições”. Como na Colômbia, tratou-se de defender a honra da caserna. A nota tem a assinatura somente de Oliveira – o ministro –, em vez de outras manifestações da Pasta que receberam o jamegão de todos os comandantes das Forças. 

Seria, portanto, mais uma reposta de governo do que dos militares? Sim e não. A nota agrada aos oficiais generais que trazem o governo Bolsonaro no lado direito do peito bem como àqueles que se cansaram dos radicalismos do capitão. O desagravo à caserna é um velho instrumento usado na política, desde a Questão Militar, no século 19. Foi por meio dele que os fardados desembarcaram na política, como se se tratasse apenas da defesa de princípios morais. Assim os tenentes se mobilizaram em torno da candidatura de Nilo Peçanha e da Reação Republicana. 

“Completamente desnecessárias as declarações do ministro Barroso. Eu lamento esse tipo de pronunciamento que em nada contribui para a tranquilidade da Nação”, afirmou o deputado federal general Roberto Peternelli  (União-SP). Considerado um moderado entre os colegas, Peternelli soube da nota da Defesa quando estava em um jantar no interior de São Paulo. “O Exército nunca desorientou ou desacreditou o sistema eleitoral. Isso não corresponde à realidade. É importante não pôr lenha na fogueira.” Tem razão sobre a fogueira.

Se Barroso quisesse alimentá-la podia lembrar o que disse Bolsonaro em sua live de 29 de julho de 2021 a respeito das urnas eletrônicas: "Alguns desses criticaram militares do meu lado, dizendo que isso não é uma questão para nós tratarmos. Que é uma questão política. Não. Todos são obrigados a votar no Brasil, de maiores de 18 anos até os 70. Então, interessa a todos nós". Ou ainda constatar a inspiração no presidente na nota da Defesa, quando esta diz: "As eleições são questão de soberania e segurança nacional, portanto, do interesse de todos". Não. A eleição não é uma questão para a Defesa. E é um erro envolver os militares nisso. 

Agora se está assim: um general acha que eleições são um caso de segurança nacional e um ministro do STF acredita saber o que é ordem unida. Um italiano diria que toda semana a República é posta allo sbaràglio em Brasília. Não é a primeira vez que ministros do STF se envolvem em polêmicas com os generais durante o governo Bolsonaro. Parece que muita gente em Brasília esqueceu que a República exige a isenção, o apartidarismo e a neutralidade de magistrados e também dos militares. A prudência recomenda o silêncio político aos que detém as armas assim como aos que podem sentenciar. Enfim, é preciso lembrar não só a história da Venezuela, mas também a da Colômbia.

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Marcelo Godoy, o autor deste texto, é Repórter Especial d'O Estado de S. Paulo. Godoy é Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). Publicado orignalmente em 25.04.22.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Bom para os partidos, ruim para o País

Inapetência de grandes legendas pela Presidência decorre de um arranjo que dá ao Legislativo acesso inaudito ao Orçamento sem a devida responsabilização

   Diante dos olhos de todos, grandes partidos políticos, como PSDB, MDB e União Brasil, têm demonstrado, diariamente, enorme dificuldade para indicar pré-candidatos à Presidência da República que mostrem ser alternativas viáveis aos dois primeiros colocados nas pesquisas de intenção de voto: o ex-presidente Lula da Silva (PT) e o incumbente, Jair Bolsonaro (PL). A seis meses da eleição, o cenário de disputas fratricidas, traições e sabotagens internas no seio do chamado centro democrático sobressalta todos aqueles que receiam ver o País entregue a um dos dois projetos populistas iliberais ora em destaque. E está-se falando de muita gente. A depender do instituto de pesquisa, algo entre 25% e 30% do eleitorado afirma não querer votar nem em Lula nem em Bolsonaro.

Em um regime presidencialista, é natural supor que a chegada ao topo do Poder Executivo federal seja o objetivo maior dos partidos políticos, o gran finale de uma trajetória marcada pela construção de uma identidade ideológica e programática, pela ampliação da presença nacional das legendas e, enfim, pela elaboração de um projeto de governo que represente as ideias e os valores de segmentos significativos da sociedade. Evidentemente, nenhum partido político, seja grande ou pequeno, está obrigado a lançar candidatura própria à Presidência da República a cada quatro anos. Mas há muito tempo não se via no Brasil tamanha inapetência das grandes legendas – que são grandes justamente por serem as que bem trilharam aquela trajetória – para lançar uma candidatura competitiva ao Palácio do Planalto. Há uma razão muito evidente para isso: o Congresso jamais teve tanto acesso a recursos do Orçamento da União como tem agora. E sem prestar contas do que faz com tanto dinheiro.

Desde a aprovação das chamadas emendas impositivas, tanto as individuais como as de bancada, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), o Congresso vem ampliando a fatia do Orçamento da União sob seu controle. Nas democracias representativas, é esperado que deputados e senadores tenham algum grau de participação na destinação final dos recursos públicos, mas o que se vê aqui não tem paralelo no mundo. O Estadão teve acesso a um estudo elaborado pelo economista Marcos Mendes (Insper) para o Instituto Millenium que revela que a captura de recursos públicos por meio de emendas parlamentares no País é até 20 vezes maior do que nas nações que integram a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), instituição da qual o Brasil deseja fazer parte.

De acordo com o estudo, as emendas parlamentares representam 24% das despesas dos Ministérios e dos investimentos previstos para este ano. A título de comparação, nos Estados Unidos apenas 2,4% da despesa total vem das emendas parlamentares. “O que o Brasil faz é uma aberração que acaba comprometendo muito a própria democracia”, disse ao Estadão a diretora executiva do Instituto Millenium, Marina Helena Santos.

A “aberração” se materializa na quantidade absurda de emendas individuais e de bancada que são apresentadas ao Orçamento da União. Aberrantes são as emendas de relator, base do “orçamento secreto”. Indecentes são os valores bilionários dos fundos públicos que despejam dinheiro fácil nas contas dos partidos, como o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral. Como o quinhão desses fundos que cabe a cada legenda está relacionado ao tamanho de suas bancadas, os caciques partidários têm cada vez menos estímulos para investir em campanhas para a Presidência. Optam pelas eleições proporcionais, sobretudo para a Câmara dos Deputados. Ademais, o atual arranjo representa o melhor dos mundos para as legendas: muito dinheiro e nenhuma responsabilização por seu uso ou pela falta de projetos majoritários para o País.

Enquanto isso, parcela expressiva dos eleitores segue sem representação política, à mercê de dois projetos de poder rigorosamente personalistas. É este, por enquanto o resultado da bagunça interna e do descaso com o País de partidos políticos outrora dignos de sua inscrição na história nacional.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 22 de abril de 2022 | 03h0

Atacar a democracia é crime

Ao condenar o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) a oito anos e nove meses de reclusão, pelos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi pedagógico. Não existe liberdade de expressão para atacar a democracia. Não existe imunidade parlamentar para impedir o livre funcionamento das instituições republicanas.

Por 10 votos contra 1, o plenário do STF entendeu que a conduta de Daniel Silveira foi criminosa, isto é, que se enquadra naquelas hipóteses em que, ao atingir bens essenciais de uma sociedade, a lei prevê a imposição de uma pena. Os oito anos e nove meses de prisão não são desproporcionais, mas estrita aplicação da legislação a que todos os cidadãos estão sujeitos.

No processo, nada houve de perseguição política. Foi apenas o Estado, por meio de suas instituições, cumprindo seu papel de impedir que condutas consideradas criminosas pela lei fiquem impunes. Ao contrário do que os bolsonaristas dizem, não foi o Supremo que, num rompante autoritário, investigou, denunciou e puniu Daniel Silveira. A acusação contra o deputado bolsonarista não foi apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes, e sim pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Foi ela quem primeiro entendeu que a atuação de Daniel Silveira havia sido criminosa.

É sintomático que o bolsonarismo, tão afeito ao punitivismo – sua retórica é sempre de aumento da pena –, tenha se mobilizado, de forma tão intensa, pela impunidade de Daniel Silveira. Não era apenas que “um dos nossos” estava sendo julgado por sua conduta tresloucada. Foi a própria tática política do bolsonarismo, de agressão contra as instituições, que estava no banco dos réus. Daí a importância do julgamento de quarta-feira passada: o Estado Democrático de Direito, por meio de suas instituições, reconheceu que a política também está sujeita a regras e a limites. Não é um vale-tudo, não é um mundo sem lei.

A atividade parlamentar dispõe de prerrogativas constitucionais. Como é próprio de um regime democrático, “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (art. 53 da Constituição). No entanto, ameaçar e agredir não é uma opinião: é crime. E não cabe usar a imunidade parlamentar como “escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”, lembrou Alexandre de Moraes.

Eis a confusão que o bolsonarismo deseja instaurar. Para seus atos, almeja irrestrita impunidade. Tudo estaria dentro de um amplíssimo conceito de liberdade, para fazer e dizer o que bem entender, num cenário de completa irresponsabilidade. Para os outros, a liberdade seria inteiramente diferente, muito mais limitada. A mera crítica ao presidente da República já foi motivo para que o governo Bolsonaro solicitasse a instauração de inquérito policial contra opositores. É tudo uma grande incoerência. O mesmo deputado bolsonarista que gostaria que seus crimes estivessem protegidos pela imunidade parlamentar defende a edição de um novo AI-5, justamente o ato da ditadura que suspendeu importantes garantias constitucionais.

Há liberdade no País e, precisamente para que possa continuar havendo liberdade, é preciso ter lei. “A liberdade de expressão existe para a manifestação de opiniões contrárias, para opiniões jocosas, para sátiras, para opiniões inclusive errôneas, mas não para imputações criminosas, para discurso de ódio, para atentados contra o Estado de Direito e a democracia”, afirmou Moraes.

Além de pedagógico sobre os limites da liberdade, esse processo judicial põe por terra uma falácia bastante difundida entre bolsonaristas. O que se tem no País hoje não é uma disputa entre STF e Jair Bolsonaro, como se o Supremo perseguisse politicamente o bolsonarismo. O Congresso autorizou a prisão preventiva de Daniel Silveira. A PGR denunciou o deputado. Até o ministro André Mendonça votou por sua condenação. Não é perseguição política, é aplicação da lei. E quem está isolado é o bolsonarismo, não o STF.

N. da R. – Com este texto já na página, Bolsonaro anunciou o indulto do deputado, mostrando uma vez mais a falta de pudor do bolsonarismo em usar o poder para acobertar os crimes dos amigos.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 22 de abril de 2022 | 03h00

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Dez motivos que explicam por que Lula pode perder a eleição

Ex-presidente ainda está no topo da corrida eleitoral, mas o viés de Bolsonaro é de alta e, neste momento, não há favoritos


Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
26/03/2022 (REUTERS/Ian Cheibub)

O líder das pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva, está vendo pelo retrovisor a moto de Jair Messias Bolsonaro cada vez mais próxima, buzinando e pedindo passagem. A margem que separa os dois é cada vez menor e já não se pode mais falar em favoritismo. Um empate técnico pode surgir em pouco tempo.

No final do ano passado, Lula parecia caminhar folgadamente para um terceiro mandato como presidente da República, e Bolsonaro parecia destinado a voltar ao condomínio Vivendas da Barra.

Com o início efetivo da corrida eleitoral, o presidente tem mostrado uma força e uma resiliência que não estavam nos planos petistas nem no radar de muitos analistas.

O país continua com sérios problemas sociais, o tripé macroeconômico está manco, mais de 650 mil brasileiros morreram de “gripezinha”, o Ministério da Saúde e o da Educação (MEC), os mais ricos da Esplanada, convivem com suspeitas de corrupção.

O centrão nunca teve tanto poder, assim como figuras grotescas que saíram das redes sociais direto para o centro da política e, mesmo assim, o eleitorado de Jair Bolsonaro não apenas se mantém como dá sinais claros de crescimento e engajamento, como em 2018.

A tão incensada terceira via não disse a que veio e já não assusta mais os dois principais concorrentes ao Planalto.

O que pode explicar o fenômeno Bolsonaro e uma eventual reeleição?

Separei dez pontos para você ficar atento:

Lula voltou a falar como sindicalista radical e retrógrado, afastando muitos eleitores de centro e social-democratas que temem um retrocesso. O tom revanchista também não ajuda a quem quer formar uma “Frente Ampla”. 

Elogios à ditadura nicaraguense, acenos à censura da imprensa, ataques ao teto de gastos e à tímida reforma trabalhista formam um conjunto nada bom para quem quer vencer uma eleição majoritária. 

O Brasil de 2022 parece ter vencido a pandemia, a economia começa lentamente a se recuperar, e um certo otimismo de um país sem memória não combina com mau humor e radicalismo ideológico.

Lula não tem mais Duda Mendonça e João Santana, assim como uma assessoria de comunicação profissional que saiba apelar ao eleitor médio, como em 2002. O mais influente dos seus auxiliares na área hoje é Franklin Martins, alguém que dificilmente conseguirá ampliar o discurso para fora da bolha lulista. 

Lula perdeu estrategistas como Márcio Thomaz Bastos, Antonio Palocci e José Dirceu, que ainda é aliado mas está praticamente fora de combate. Com Gleisi Hoffmann, Franklin Martins e Jilmar Tatto no núcleo duro da estratégia de campanha, Lula terá problemas adicionais.

Bolsonaro é o político que mais sabe usar as redes sociais no Brasil. A lógica das campanhas eleitorais de 20 anos atrás, quando Lula venceu duas eleições presidenciais no segundo turno, é tão distinta que o septuagenário ex-presidente dá sinais de não mais conseguir entender a nova realidade. Seu festejado gênio político em tempos analógicos não está se adaptando bem ao mundo digital.

Bolsonaro não é um tucano, é um opositor de verdade. Lula se acostumou a vencer eleições de social-democratas que não tinham uma diferença ideológica significativa com ele, divergindo apenas sobre meios e métodos. 

O candidato Bolsonaro é um opositor explícito de tudo que Lula representa e o eleitor já entendeu isso. Bolsonaro coloca a disputa em termos morais, do bem contra o mal, e foca numa pauta de costumes que agrada o eleitor médio e causa asco na elite progressista, que é pouco aparelhada para entender e discutir esses temas fora de abstrações acadêmicas ou sem defender pautas impopulares.

Bolsonaro acabou com o teto de gastos para se reeleger. O governo atual tirou todos os freios para pisar fundo nos gastos públicos, como o calote em precatórios e o orçamento secreto de R$ 16 bilhões, que colocaram na rua a mais poderosa máquina eleitoral já vista na história do país. Todos os pacotes de bondade, de auxílios a reajustes para o funcionalismo público, já começaram a surtir efeito nas pesquisas.

O Centrão está com Bolsonaro. Por mais que o Centrão pense em aderir a Lula numa eventual vitória, no governo Bolsonaro este grupo político formado por representantes do Progressistas, Republicanos, União Brasil, PL, PTB, Podemos, PSC, Avante, entre outros, nunca teve um acesso tão facilitado e privilegiado aos cofres públicos. Ciro Nogueira, Ricardo Barros, Arthur Lira, estão em casa neste governo e cada vez mais seduzidos pelo bolsonarismo.

A Lava Jato maculou a imagem de Lula para sempre. Por mais que o judiciário tenha revertido as decisões principais motivadas pela Operação Lava Jato, o Brasil foi exposto a uma série inédita de escândalos, um conjunto impossível de se apagar da memória. Lula ficou 580 dias preso e sua soltura, no país da impunidade para crimes de colarinho branco, não muda a história. Mesmo quem defende Lula convive mal com Mensalão, Petrolão e outras manchas indeléveis no currículo petista.

Lula, aos 76 anos, está desgastado. A marquetagem do PT e o próprio ex-presidente tentam vender a imagem de um Lula forte, energético e até viril, mas seu aspecto é de alguém que sofreu muito com o passar do tempo, a prisão e os dissabores da vida. Ao falar, ele parece magoado, rabugento e até vingativo, contra um Bolsonaro que tira fotos rindo, cercado de fiéis fanáticos, praticando esportes e ativo.

Lula tem, em Ciro Gomes, um forte opositor dentro da esquerda. Entre os que se identificam com teses de esquerda, Lula nunca teve uma oposição real e que ameaçasse sua posição como principal líder da esquerda brasileira. Ciro Gomes é um opositor raivoso e que contratou João Santana como marqueteiro, um profissional que não apenas sabe tudo de eleição como de lulismo. Como se não bastasse, os identitários representam uma nova esquerda que suporta Lula, mas não o ama. A incompatibilidade do discurso socialista e trabalhista clássicos com o da nova esquerda identitária quebra a coesão interna em pontos fundamentais e pode gerar sérios problemas de comunicação.

Lula não acena para o futuro, mas para um revisionismo do passado. O discurso petista não traz novidades, uma visão renovada de Brasil, apenas um repúdio aos pequenos avanços econômicos e sociais conquistados em outros governos e um sentimento de vingança contra opositores reais ou imaginários. Se essa falta de propostas não é suficiente para tirar o apoio dos jovens a Lula, pode tirar a energia deles para militar, fazer campanha nas ruas e conquistar votos.

Lula ainda está no topo da corrida eleitoral, mas o viés de Bolsonaro é de alta e, neste momento, não há favoritos. O atual presidente conseguiu resistir até a pandemia, que impediu a reeleição de seu ídolo Donald Trump nos EUA, e que devastou a economia e matou mais de meio milhão de brasileiros em dois anos, e dificilmente perderá a fatia atual de eleitores fanáticos que possui.

Se a eleição fosse hoje, Lula venceria, mas ela é só em outubro. Até lá, o petismo terá que trabalhar muito para reverter a atual tendência que mostra seu principal opositor crescendo cada vez mais e com disposição clara para ficar mais quatro anos no Planalto. Alguns dos itens listados podem ser revertidos pelo lulismo, mas nem todos. 

Com o andamento da campanha e o eleitor se interessando mais por política, sai de cena o recall e entra a decisão baseada numa leitura do momento atual. E esse momento não é bom para Lula.

Alexandre Borges da CNN Brasil, em 20/04/2022 às 17:37

'Supremo tem de validar decreto, mas cassação do mandato permanece’, diz desembargador

O decreto de graça ao deputado Daniel Silveira não tem aplicação imediata. É preciso ter o trânsito em julgado do processo (término da possibilidade de recursos) para a acusação e a análise do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) responsável pela execução da pena de Daniel Silveira, que ainda pode considerar ilegal o decreto.

Além disso, o decreto de graça incide apenas na execução da pena de privação de liberdade e não incide sobre os efeitos civis da condenação, como a multa processual imposta ao deputado pela Corte, e a inabilitação para a função pública em razão da pena ter sido superior a quatro anos de prisão. Ou seja, mesmo com a concessão da graça, Silveira estaria com seus direitos políticos cassado de acordo com o artigo 92 do Código Penal.

Essa é a opinião do integrante do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Ulysses de Oliveira Gonçalves Junior.

Além disso, com a Lei da Ficha Limpa, a decisão coletiva que impõe a perda da capacidade de elegebilidade não o permite se candidatar".

"O decreto de graça faz desaparecer o crime, mas não os efeitos civis da condenação. Ele perde a primariedades. E o Supremo pode não acabar e recusar o decreto ao analisar a sua constitucionalidade."

Tanto graça (individual) como indulto (coletivo) devem ser concedidos após o trânsito em julgado de um processo, ou seja, quando acaba todas as possibilidades de recurso para a defesa.

O desembargador foi juiz por quase duas décadas do Departamento de Execuções Criminais do TJ de São Paulo e hoje atua na 10.ª Câmara Criminal do TJ. De acordo com ele, entre os demais efeitos da condenação estão a obrigação de reparar o dano – a multa processual – e a perda dos direitos políticos com a inabilitação para a função pública.

"Ele não pode permanecer como deputado, pois, com o trânsito em julgado, ele perderia os direitos políticos. E sem direitos políticos não pode permanecer no exercício do mandato."

Caso o Supremo recuse o decreto de graça, cabe agravo na execução da pena, conforme a Lei de Execuções Penais. Se a sentença de privação de liberdade for executada e o deputado, preso, é possível entrar com habeas corpus.

‘Indulto precoce’

Professor titular de Direito Público da Universidade de São Paulo, Floriano de Azevedo Marques afirmou que apesar de considerar que o indulto é uma prerrogativa do presidente e como ato político não deveria ser submetido a controle judicial, o decreto de Bolsonaro é contrário à Constituição Federal e à lei.

“À Constituição porque não dá pra dar indulto antes do trânsito da pena em julgado. Se indulta o condenado. Mas o Daniel Silveira não está ainda condenado pois a decisão não transitou em julgado. Logo o Bolsonaro indultou quem ainda não está condenado. Um caso raro de ‘indulto precoce’.”

Além disso, a graça deve ser concedida “por critérios objetivos”. “Concedida assim a quente ela é uma afronta à decisão judicial – que ainda não se consolidou –, é uma quebra da isonomia as avessas”.

De acordo com ele, por fim, a decisão de Bolsonaro contraria a Lei de Execução penal, pois a lei “exige para o indulto o parecer do Conselho Penitenciário Nacional (artigo 70). “Ausente o parecer, o ato político fica manco de um dos seus poucos requisitos, e, portanto, é nulo.

“Podemos dizer que o Bolsonaro inventou um ‘indulto precoce desumanitário e customizado’.” Azevedo Marques defende a tese, entretanto, que a graça e o indulto deveriam incidir também sobre os efeitos civis da condenação. “Mas o Superior Tribunal de Justiça, em sua súmula 631 decidiu que não. Ou seja, que o indulto extingue apenas os efeitos primários da condenação, a execução da pena e não os demais.”

O advogado criminalista e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) Cristiano Avila Maronna concorda com a possibilidade da graça ser derrubada no Supremo Tribunal Federal. Ele identifica dois vícios de fundamentação no decreto presidencial: fundamentação inidônea e violação da regra da impessoalidade do ato administrativo.

A impessoalidade é uma exigência de todo ato administrativo, inclusive do perdão presidencial. Nesse caso, a justificativa apontada pelo presidente é de que existiria uma “comoção social” por conta da condenação. Para Maronna, a justificativa não se sustenta.

“Esse discurso de ódio contra as instituições democráticas tem aderência justamente nessa base bolsonarista mais radicalizada, que representa o que o decreto presidencial fala em comoção social”, afirmou. “Como se a maior parte da sociedade brasileira estivesse de acordo e uma minoria estivesse incômoda. O decreto transforma a minoria em maioria e nesse sentido falta justificativa idônea.”

Precedente

Maronna retoma que há precedente em que o STF avaliou um indulto presidencial.

Em 2018, por exemplo, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso confirmou monocraticamente medida cautelar para suspender parcialmente um decreto de indulto natalino assinado pelo então presidente Michel Temer em 2017.

Na decisão, Barroso enrijeceu pontos que constavam no decreto original e estabeleceu alguns novos, alegando necessidade de esclarecimento sobre como pode ser aplicado o indulto. O ministro proibiu o indulto para condenados por corrupção e lavagem de dinheiro, exigiu que o instituto só seja concedido a presos que cumpriram um terço da pena, limitou a concessão do benefício a quem tem pena inferior a 8 anos de prisão e vedou àqueles que têm recurso pendente.

Em 2019, a questão foi a Plenário e os ministros formaram maioria para declarar o decreto constitucional. Prevaleceu o entendimento de que o indulto é um ato privado do presidente da República, não cabendo ao Supremo definir ou rever as regras estabelecidas no decreto.

Em seu voto favorável, Moraes elencou alguns pontos que tomou como necessários para tomar o indulto como constitucional, entre eles a coerência, a prudência, a proporção, a não arbitrariedade e a causalidade/

Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo, em 21.04.22. Colaborou Gustavo Queiroz. 

O grande salto para trás

Lula e Bolsonaro defendem ideias que destroem o que foi feito de positivo. A revogação da reforma trabalhista, como quer o PT, é apenas o mais recente exemplo disso

Com uma crise social e econômica que afeta gravemente a população, o País precisa de propostas consistentes e viáveis, aptas a enfrentar, com responsabilidade, os problemas nacionais. No entanto, a depender das propostas dos dois políticos que aparecem na frente nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República, parece que a tarefa é exatamente inversa: apresentar ideias que aprofundam a crise.

A situação é muito peculiar. Não é apenas que Lula da Silva e Jair Bolsonaro não tenham a menor noção do que precisa ser feito para recolocar o País no caminho do desenvolvimento social e econômico. Os dois querem destruir – essa é a palavra – o que foi feito de positivo até aqui. Em qualquer dos casos, o País dará um grande salto para trás.

Na semana passada, o diretório nacional do PT aprovou que, no programa de governo a ser apresentado aos partidos aliados, não se fale de “revisão” da reforma trabalhista de 2017. O termo não expressaria fidedignamente o que os petistas almejam. Eles querem nada mais nada menos que a “revogação” de todo o marco trabalhista aprovado pelo Congresso durante o governo de Michel Temer.

O Brasil tem hoje 12 milhões de desempregados, o que corresponde a 11,2% da força de trabalho. E qual é a proposta do PT para esse cenário extremamente desafiador? Jogar fora todo o trabalho de modernização das regras trabalhistas feito pelo Congresso em 2017. É um completo disparate. Ninguém em sã consciência acha que a revogação da reforma trabalhista possa incentivar a criação de novos postos de trabalho. Mesmo assim, o PT anuncia que, em 2023, dedicará suas energias a restaurar o atraso. 

Outra área na qual Lula e Bolsonaro prometem atraso e destruição é a responsabilidade fiscal. No caso, é puro deboche com a população e com todas as evidências. Nas últimas três décadas, todos os governos que foram responsáveis com as contas públicas conseguiram conter a inflação, e todos aqueles que desprezaram o equilíbrio fiscal produziram aumento da inflação.

Depois do sucesso do Plano Real e das reformas feitas nos governos de Fernando Henrique, o PT foi capaz, com seu descompromisso na área fiscal, de reintroduzir a inflação na vida nacional. Dilma Rousseff entregou baixo crescimento e inflação alta. Pois bem. Perante esse panorama desafiador, Michel Temer implantou uma política de responsabilidade fiscal que, além de desbastar a inflação, possibilitou a redução histórica da taxa de juros. Após os dois anos e meio do governo Temer, o País não deveria ter mais nenhuma dúvida sobre política econômica: sobre o que protege a população e sobre o que a prejudica, especialmente os mais vulneráveis.

Jair Bolsonaro seguiu, no entanto, o caminho petista da irresponsabilidade. Tal foi a adesão ao populismo que o governo Bolsonaro não apenas não defendeu o teto de gastos aprovado durante o governo Temer, como atuou para derrubar esse que foi o principal marco da responsabilidade fiscal dos últimos anos. O empenho gerou o resultado esperado: inflação alta, com o Banco Central tendo de elevar a taxa básica de juros mesmo em um cenário de baixa atividade econômica.

Diante dessa trajetória, o que Lula e Bolsonaro propõem para o País a partir de 2023? Só querem saber de destruir ainda mais os alicerces da responsabilidade fiscal. Sentindo-se tão confortável em seu populismo, Jair Bolsonaro já disse até que cogita dispensar Paulo Guedes em eventual segundo mandato. Nenhum disfarce de responsabilidade seria mais necessário.

A confirmar que o retrocesso não é mero acidente, mas um objetivo, o lulopetismo e o bolsonarismo almejam, também, reduzir a autonomia das agências reguladoras. Mesmo depois de a pandemia mostrar a importância de ter uma Anvisa independente, Lula e Bolsonaro querem o Executivo imperando sem controle.

Perante ideias tão profícuas, como alguém pode ter a ousadia de dizer, como às vezes se ouve, que eventual vitória de Lula, ou mesmo de Bolsonaro, já estaria precificada? É uma bela modalidade de negacionismo.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 21 de abril de 2022 | 03h00

Supremo condena Daniel Silveira a 8 anos e 9 meses de prisão por ataques à democracia

Decisão pode tirar o parlamentar da disputa eleitoral deste ano; apenas o ministro Nunes Marques votou pela absolvição 

Caso condenação seja confirmada, deputado Daniel Silveira pode ficar inelegível. Foto: Gabriela Biló/Estadão

O Supremo Tribunal Federal (STF) condenou nesta quarta-feira, 20, o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ) a oito anos e nove meses de prisão por incitar agressões a ministros e atentar contra a democracia ao defender, em vídeos, o fechamento da Corte. Foram dez votos pela punição e um pela absolvição.

A sessão serviu para ministros mandarem o recado de que o STF não admite a pregação de atos violentos ou que atentem contra as instituições do País.

Mesmo após o presidente Jair Bolsonaro (PL) fazer repetidas defesas públicas da conduta de Silveira, o Supremo determinou que o deputado fique impedido de disputar eleições até o cumprimento final da pena. Silveira quer concorrer ao Senado pelo Rio de Janeiro neste ano. Na prática, a sentença ainda não tira o deputado da eleição. Isso porque a perda dos direitos políticos não é automática e depende do trânsito em julgado do processo – quando não há mais possibilidade de recurso. O STF pediu ainda que seja declarada a perda de mandato do parlamentar, ato que ainda precisa passar pela chancela da Câmara.

A maioria do STF entendeu que a conduta do deputado foi criminosa e não estava protegida pela imunidade parlamentar, o instituto que dá direito ao congressista de não ser processado por discursos. Para os ministros, o que Silveira fez foi incitar a violência, estimular seguidores a invadir o Supremo e ainda agredir ministros.

“A liberdade de expressão existe para a manifestação de opiniões contrárias, para opiniões jocosas, para sátiras, para opiniões inclusive errôneas, mas não para imputações criminosas, para discurso de ódio, para atentados contra o estado de direito e a democracia”, afirmou o ministro Alexandre de Moraes, relator da ação. “Não há dúvidas de que o réu agiu com dolo, em plena consciência de suas ações”, completou ao citar que Silveira confirmou as declarações em depoimento à Polícia Federal (PF).

“O que estamos aqui é julgando a defesa da democracia”, disse Dias Toffoli. “A engenharia do caos não vai parar, mas temos de atuar na defesa da Constituição”, completou.

O julgamento foi marcado por mensagens duras a Daniel Silveira e aos demais parlamentares que integram a tropa de choque do governo no Congresso. Um dos alvos preferenciais da militância bolsonarista no Supremo, o ministro Alexandre de Moraes apresentou um voto firme pela condenação do deputado. Segundo o ministro, o parlamentar tinha a intenção de cometer o crime, o que não se respalda no direito à liberdade de expressão.

Moraes também afirmou que Daniel Silveira não pode usar a imunidade parlamentar como “escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”. Ele foi seguido integralmente por Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux.

“Não vislumbro vestígio de violação à liberdade de expressão, nem tampouco à imunidade parlamentar (…) que não é um salvo conduto para a prática de crimes, sob pena de transformar o congresso nacional em um esconderijo de criminosos”, disse Barroso.

Nos vídeos que motivaram a ação penal, Silveira disse que se imaginava agredindo fisicamente os ministros e os desafiou a prender o general de Exército Eduardo Villas Boas por declarações críticas ao julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pelo tribunal. O deputado ainda fez referência à cassação de juízes do Supremo pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5) durante a ditadura militar.

Na contramão das expectativas no Supremo, os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça decidiram não suspender o julgamento da ação penal contra o deputado. Como mostrou o Estadão, os demais ministros cogitaram a possibilidade de um dos magistrados apresentar um pedido de suspensão da votação. Os dois foram indicados à Corte pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) e já haviam votado contra a obrigatoriedade de Silveira usar tornozeleira eletrônica.

Ao votar, Nunes Marques chegou a condenar as declarações do parlamentar, mas as reduziu a bravatas e transferiu à Câmara a responsabilidade por punir os ataques ao livre exercício dos Poderes. “Em que pese a gravidade e a repugnância das falas do acusado, não vislumbro cometimento de crime”, disse.

“Extrapolou e muito (Daniel Silveira), há toda evidência. Com a devida vênia, atingiu a própria Câmara Federal, na medida em que não se tem notícia que essa tenha tomado qualquer providência para apurar seus manifestos excessos e sua reprovável conduta (..) que tolerada por seus pares mancha aquela casa”, disse. “Consigo aqui minha perplexidade, com todo respeito que tenho ao nosso parlamento, com essa justificável omissão”, completou.

Já André Mendonça, chegou a votar pela condenação de Silveira quanto ao crime de proferir ameaças aos ministros. O ministro, porém, divergiu de Moraes ao absolver o deputado das acusações de incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o STF e de usar de violência ou grave ameaça para tentar impedir o livre exercício dos Poderes.

Imunidade parlamentar

O deputado foi julgado pelos crimes de proferir ameaças contra autoridades, incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo e de usar de violência ou grave ameaça para tentar impedir o livre exercício dos Poderes. A Procuradoria-Geral da República (PGR) destacou na denúncia que a imunidade parlamentar não é um “privilégio pessoal”.

Ao apresentar o parecer do Ministério Público Federal (MPF), a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo foi firme ao sustentar que as declarações de Daniel Silveira “atingiram a Justiça como instituição” e tentaram “intimidar e constranger os ministros” do Supremo.

“O que busca o Ministério Público, no exercício de sua atribuição constitucional de defender a ordem jurídica e o regime democrático, é que este Tribunal Supremo se valha dos instrumentos democraticamente estabelecidos para reprovar os crimes efetivamente praticados pelo acusado”, afirmou.

Na noite de ontem, Alexandre de Moraes negou seis recursos da defesa de Silveira contra diversas medidas cautelares acumuladas pelo parlamentar e determinou cinco multas de R$ 2 mil ao advogado do parlamentar, Paulo César Rodrigues de Faria, pela apresentação de pedidos judiciais “manifestamente inadmissíveis, improcedentes, ou meramente protelatórios’. Segundo o relator, as demandas tinham o objetivo de postergar o julgamento da ação penal.

Ao apresentar as alegações finais no caso, a defesa de Silveira alegou “nulidades processuais”, ou seja, erros procedimentais que esvaziaram a ação. O advogado do parlamentar citou o fato de não ter sido oferecido acordo de não persecução penal pelos crimes de incitação à animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo e contra a integridade nacional, uma vez que a Lei de Segurança Nacional foi extinta.

Já durante o julgamento, o advogado disse que o deputado é alvo de um “sistema inquisitório”. “Querem condenar a todo custo um inocente”, disparou. A defesa ainda criticou o fato de os ministros do Supremo, vítimas dos ataques do parlamentar, serem também os responsáveis por julgá-lo. “É preciso ficar muito claro que para uma pessoa ser condenada não pode ter subjetividade, porque a subjetividade incorre na suspeição, na imparcialidade”, afirmou.

Temperatura

Antes do início da votação, o Daniel Silveira e o também deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) foram impedidos de acessar o plenário do Supremo. Eles foram barrados por uma resolução assinada em fevereiro pelo ministro-presidente, Luiz Fux, que proibiu a presença de qualquer pessoa que não seja membro do colegiado, representante das partes no processo ou integrante do MP. O ato normativo da presidência foi editado em resposta ao aumento dos casos de covid-19 no Distrito Federal.

“Se puder levar minha reclamação lá dentro”, disse Eduardo Bolsonaro ao servidor do STF que explicou os motivos de não poderem entrar. Silveira, que estava ao lado, repetiu a mesma frase. O Supremo chegou a oferecer aos deputados a possibilidade de acompanharem o julgamento de uma televisão no Salão Branco da Corte, a antessala do plenário, mas ambos se recusaram. Os parlamentares decidiram voltar à Câmara.

Mais cedo, Silveira fez novos ataques ao ministro Alexandre de Moraes. Na Câmara, o deputado chamou o relator da ação penal de “reizinho do Brasil” e “menininho frustrado” que age fora da Constituição. As críticas também foram destinadas ao presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), por, segundo ele, ter cometido um “equívoco grave” ao deixar de pautar para votação no plenário da Casa a sustação da ação penal contra ele.

Dentro do Supremo, o advogado de Daniel Silveira atrasou em uma hora o início do julgamento por ter se recusado a apresentar teste negativo para covid-10. Fux ofereceu a possibilidade de a defesa realizar a sustentação oral por videoconferência, o que também foi descartado. Para dar início à votação foi necessário que o advogado se submetesse a um teste rápido. O presidente do Supremo chamou a postura do defensor de “recalcitrância indevida” e pediu providências da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Histórico de violações

Silveira chegou a ser preso no ano passado, logo após divulgar o vídeo com as ofensas aos ministros do Supremo. A detenção no Batalhão Especial Prisional (BEP) do Rio, a mando de Alexandre de Moraes, com base em pedido da PGR, durou quase nove meses. O relator do caso determinou a soltura com a condição de que o parlamentar cumprisse medidas cautelares.

No início desse ano, a PGR voltou a cobrar medidas mais duras contra o deputado, que teria descumprido diversas determinações da Justiça. A cúpula do Ministério Público pediu ao Supremo no mês passado a colocação de tornozeleira eletrônica em Silveira e cobrou que ele fosse impedido de frequentar eventos públicos. As solicitações foram atendidas por Moraes, gerando um impasse entre o ministro e o parlamentar.

Silveira se recusou a colocar a tornozeleira eletrônica e chegou a dormir em seu gabinete na Câmara em uma estratégia fracassada para evitar que os agentes da Polícia Federal (PF) fizessem a instalação. O parlamentar bolsonarista se queixou da decisão de Moraes, a quem chamou de petulante, e cobrou que a ordem fosse revista pelos demais ministros do Supremo.

O movimento do deputado chegou a envolver o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que emitiu uma nota com recados ao Supremo, na qual dizia que o plenário do Parlamento é inviolável. Apesar de ter causado ruídos entre os Poderes e piorado a sua situação, o bolsonarista acabou cedendo ao colocar o dispositivo. Moraes disse que a jogada de Silveira demonstrou sua “duvidosa inteligência”. A decisão para que o parlamentar colocasse a tornozeleira acabou referendada por 9 votos a 2 no plenário.

Weslley Galzo/BRASÍLIA e Rayssa Motta, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 20 de abril de 2022 | 14h01 - Atualizado às 20h24 para inclusão do placar final