sexta-feira, 22 de abril de 2022

Bom para os partidos, ruim para o País

Inapetência de grandes legendas pela Presidência decorre de um arranjo que dá ao Legislativo acesso inaudito ao Orçamento sem a devida responsabilização

   Diante dos olhos de todos, grandes partidos políticos, como PSDB, MDB e União Brasil, têm demonstrado, diariamente, enorme dificuldade para indicar pré-candidatos à Presidência da República que mostrem ser alternativas viáveis aos dois primeiros colocados nas pesquisas de intenção de voto: o ex-presidente Lula da Silva (PT) e o incumbente, Jair Bolsonaro (PL). A seis meses da eleição, o cenário de disputas fratricidas, traições e sabotagens internas no seio do chamado centro democrático sobressalta todos aqueles que receiam ver o País entregue a um dos dois projetos populistas iliberais ora em destaque. E está-se falando de muita gente. A depender do instituto de pesquisa, algo entre 25% e 30% do eleitorado afirma não querer votar nem em Lula nem em Bolsonaro.

Em um regime presidencialista, é natural supor que a chegada ao topo do Poder Executivo federal seja o objetivo maior dos partidos políticos, o gran finale de uma trajetória marcada pela construção de uma identidade ideológica e programática, pela ampliação da presença nacional das legendas e, enfim, pela elaboração de um projeto de governo que represente as ideias e os valores de segmentos significativos da sociedade. Evidentemente, nenhum partido político, seja grande ou pequeno, está obrigado a lançar candidatura própria à Presidência da República a cada quatro anos. Mas há muito tempo não se via no Brasil tamanha inapetência das grandes legendas – que são grandes justamente por serem as que bem trilharam aquela trajetória – para lançar uma candidatura competitiva ao Palácio do Planalto. Há uma razão muito evidente para isso: o Congresso jamais teve tanto acesso a recursos do Orçamento da União como tem agora. E sem prestar contas do que faz com tanto dinheiro.

Desde a aprovação das chamadas emendas impositivas, tanto as individuais como as de bancada, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), o Congresso vem ampliando a fatia do Orçamento da União sob seu controle. Nas democracias representativas, é esperado que deputados e senadores tenham algum grau de participação na destinação final dos recursos públicos, mas o que se vê aqui não tem paralelo no mundo. O Estadão teve acesso a um estudo elaborado pelo economista Marcos Mendes (Insper) para o Instituto Millenium que revela que a captura de recursos públicos por meio de emendas parlamentares no País é até 20 vezes maior do que nas nações que integram a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), instituição da qual o Brasil deseja fazer parte.

De acordo com o estudo, as emendas parlamentares representam 24% das despesas dos Ministérios e dos investimentos previstos para este ano. A título de comparação, nos Estados Unidos apenas 2,4% da despesa total vem das emendas parlamentares. “O que o Brasil faz é uma aberração que acaba comprometendo muito a própria democracia”, disse ao Estadão a diretora executiva do Instituto Millenium, Marina Helena Santos.

A “aberração” se materializa na quantidade absurda de emendas individuais e de bancada que são apresentadas ao Orçamento da União. Aberrantes são as emendas de relator, base do “orçamento secreto”. Indecentes são os valores bilionários dos fundos públicos que despejam dinheiro fácil nas contas dos partidos, como o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral. Como o quinhão desses fundos que cabe a cada legenda está relacionado ao tamanho de suas bancadas, os caciques partidários têm cada vez menos estímulos para investir em campanhas para a Presidência. Optam pelas eleições proporcionais, sobretudo para a Câmara dos Deputados. Ademais, o atual arranjo representa o melhor dos mundos para as legendas: muito dinheiro e nenhuma responsabilização por seu uso ou pela falta de projetos majoritários para o País.

Enquanto isso, parcela expressiva dos eleitores segue sem representação política, à mercê de dois projetos de poder rigorosamente personalistas. É este, por enquanto o resultado da bagunça interna e do descaso com o País de partidos políticos outrora dignos de sua inscrição na história nacional.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 22 de abril de 2022 | 03h0

Atacar a democracia é crime

Ao condenar o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) a oito anos e nove meses de reclusão, pelos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e coação no curso do processo, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi pedagógico. Não existe liberdade de expressão para atacar a democracia. Não existe imunidade parlamentar para impedir o livre funcionamento das instituições republicanas.

Por 10 votos contra 1, o plenário do STF entendeu que a conduta de Daniel Silveira foi criminosa, isto é, que se enquadra naquelas hipóteses em que, ao atingir bens essenciais de uma sociedade, a lei prevê a imposição de uma pena. Os oito anos e nove meses de prisão não são desproporcionais, mas estrita aplicação da legislação a que todos os cidadãos estão sujeitos.

No processo, nada houve de perseguição política. Foi apenas o Estado, por meio de suas instituições, cumprindo seu papel de impedir que condutas consideradas criminosas pela lei fiquem impunes. Ao contrário do que os bolsonaristas dizem, não foi o Supremo que, num rompante autoritário, investigou, denunciou e puniu Daniel Silveira. A acusação contra o deputado bolsonarista não foi apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes, e sim pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Foi ela quem primeiro entendeu que a atuação de Daniel Silveira havia sido criminosa.

É sintomático que o bolsonarismo, tão afeito ao punitivismo – sua retórica é sempre de aumento da pena –, tenha se mobilizado, de forma tão intensa, pela impunidade de Daniel Silveira. Não era apenas que “um dos nossos” estava sendo julgado por sua conduta tresloucada. Foi a própria tática política do bolsonarismo, de agressão contra as instituições, que estava no banco dos réus. Daí a importância do julgamento de quarta-feira passada: o Estado Democrático de Direito, por meio de suas instituições, reconheceu que a política também está sujeita a regras e a limites. Não é um vale-tudo, não é um mundo sem lei.

A atividade parlamentar dispõe de prerrogativas constitucionais. Como é próprio de um regime democrático, “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (art. 53 da Constituição). No entanto, ameaçar e agredir não é uma opinião: é crime. E não cabe usar a imunidade parlamentar como “escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”, lembrou Alexandre de Moraes.

Eis a confusão que o bolsonarismo deseja instaurar. Para seus atos, almeja irrestrita impunidade. Tudo estaria dentro de um amplíssimo conceito de liberdade, para fazer e dizer o que bem entender, num cenário de completa irresponsabilidade. Para os outros, a liberdade seria inteiramente diferente, muito mais limitada. A mera crítica ao presidente da República já foi motivo para que o governo Bolsonaro solicitasse a instauração de inquérito policial contra opositores. É tudo uma grande incoerência. O mesmo deputado bolsonarista que gostaria que seus crimes estivessem protegidos pela imunidade parlamentar defende a edição de um novo AI-5, justamente o ato da ditadura que suspendeu importantes garantias constitucionais.

Há liberdade no País e, precisamente para que possa continuar havendo liberdade, é preciso ter lei. “A liberdade de expressão existe para a manifestação de opiniões contrárias, para opiniões jocosas, para sátiras, para opiniões inclusive errôneas, mas não para imputações criminosas, para discurso de ódio, para atentados contra o Estado de Direito e a democracia”, afirmou Moraes.

Além de pedagógico sobre os limites da liberdade, esse processo judicial põe por terra uma falácia bastante difundida entre bolsonaristas. O que se tem no País hoje não é uma disputa entre STF e Jair Bolsonaro, como se o Supremo perseguisse politicamente o bolsonarismo. O Congresso autorizou a prisão preventiva de Daniel Silveira. A PGR denunciou o deputado. Até o ministro André Mendonça votou por sua condenação. Não é perseguição política, é aplicação da lei. E quem está isolado é o bolsonarismo, não o STF.

N. da R. – Com este texto já na página, Bolsonaro anunciou o indulto do deputado, mostrando uma vez mais a falta de pudor do bolsonarismo em usar o poder para acobertar os crimes dos amigos.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 22 de abril de 2022 | 03h00

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Dez motivos que explicam por que Lula pode perder a eleição

Ex-presidente ainda está no topo da corrida eleitoral, mas o viés de Bolsonaro é de alta e, neste momento, não há favoritos


Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
26/03/2022 (REUTERS/Ian Cheibub)

O líder das pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva, está vendo pelo retrovisor a moto de Jair Messias Bolsonaro cada vez mais próxima, buzinando e pedindo passagem. A margem que separa os dois é cada vez menor e já não se pode mais falar em favoritismo. Um empate técnico pode surgir em pouco tempo.

No final do ano passado, Lula parecia caminhar folgadamente para um terceiro mandato como presidente da República, e Bolsonaro parecia destinado a voltar ao condomínio Vivendas da Barra.

Com o início efetivo da corrida eleitoral, o presidente tem mostrado uma força e uma resiliência que não estavam nos planos petistas nem no radar de muitos analistas.

O país continua com sérios problemas sociais, o tripé macroeconômico está manco, mais de 650 mil brasileiros morreram de “gripezinha”, o Ministério da Saúde e o da Educação (MEC), os mais ricos da Esplanada, convivem com suspeitas de corrupção.

O centrão nunca teve tanto poder, assim como figuras grotescas que saíram das redes sociais direto para o centro da política e, mesmo assim, o eleitorado de Jair Bolsonaro não apenas se mantém como dá sinais claros de crescimento e engajamento, como em 2018.

A tão incensada terceira via não disse a que veio e já não assusta mais os dois principais concorrentes ao Planalto.

O que pode explicar o fenômeno Bolsonaro e uma eventual reeleição?

Separei dez pontos para você ficar atento:

Lula voltou a falar como sindicalista radical e retrógrado, afastando muitos eleitores de centro e social-democratas que temem um retrocesso. O tom revanchista também não ajuda a quem quer formar uma “Frente Ampla”. 

Elogios à ditadura nicaraguense, acenos à censura da imprensa, ataques ao teto de gastos e à tímida reforma trabalhista formam um conjunto nada bom para quem quer vencer uma eleição majoritária. 

O Brasil de 2022 parece ter vencido a pandemia, a economia começa lentamente a se recuperar, e um certo otimismo de um país sem memória não combina com mau humor e radicalismo ideológico.

Lula não tem mais Duda Mendonça e João Santana, assim como uma assessoria de comunicação profissional que saiba apelar ao eleitor médio, como em 2002. O mais influente dos seus auxiliares na área hoje é Franklin Martins, alguém que dificilmente conseguirá ampliar o discurso para fora da bolha lulista. 

Lula perdeu estrategistas como Márcio Thomaz Bastos, Antonio Palocci e José Dirceu, que ainda é aliado mas está praticamente fora de combate. Com Gleisi Hoffmann, Franklin Martins e Jilmar Tatto no núcleo duro da estratégia de campanha, Lula terá problemas adicionais.

Bolsonaro é o político que mais sabe usar as redes sociais no Brasil. A lógica das campanhas eleitorais de 20 anos atrás, quando Lula venceu duas eleições presidenciais no segundo turno, é tão distinta que o septuagenário ex-presidente dá sinais de não mais conseguir entender a nova realidade. Seu festejado gênio político em tempos analógicos não está se adaptando bem ao mundo digital.

Bolsonaro não é um tucano, é um opositor de verdade. Lula se acostumou a vencer eleições de social-democratas que não tinham uma diferença ideológica significativa com ele, divergindo apenas sobre meios e métodos. 

O candidato Bolsonaro é um opositor explícito de tudo que Lula representa e o eleitor já entendeu isso. Bolsonaro coloca a disputa em termos morais, do bem contra o mal, e foca numa pauta de costumes que agrada o eleitor médio e causa asco na elite progressista, que é pouco aparelhada para entender e discutir esses temas fora de abstrações acadêmicas ou sem defender pautas impopulares.

Bolsonaro acabou com o teto de gastos para se reeleger. O governo atual tirou todos os freios para pisar fundo nos gastos públicos, como o calote em precatórios e o orçamento secreto de R$ 16 bilhões, que colocaram na rua a mais poderosa máquina eleitoral já vista na história do país. Todos os pacotes de bondade, de auxílios a reajustes para o funcionalismo público, já começaram a surtir efeito nas pesquisas.

O Centrão está com Bolsonaro. Por mais que o Centrão pense em aderir a Lula numa eventual vitória, no governo Bolsonaro este grupo político formado por representantes do Progressistas, Republicanos, União Brasil, PL, PTB, Podemos, PSC, Avante, entre outros, nunca teve um acesso tão facilitado e privilegiado aos cofres públicos. Ciro Nogueira, Ricardo Barros, Arthur Lira, estão em casa neste governo e cada vez mais seduzidos pelo bolsonarismo.

A Lava Jato maculou a imagem de Lula para sempre. Por mais que o judiciário tenha revertido as decisões principais motivadas pela Operação Lava Jato, o Brasil foi exposto a uma série inédita de escândalos, um conjunto impossível de se apagar da memória. Lula ficou 580 dias preso e sua soltura, no país da impunidade para crimes de colarinho branco, não muda a história. Mesmo quem defende Lula convive mal com Mensalão, Petrolão e outras manchas indeléveis no currículo petista.

Lula, aos 76 anos, está desgastado. A marquetagem do PT e o próprio ex-presidente tentam vender a imagem de um Lula forte, energético e até viril, mas seu aspecto é de alguém que sofreu muito com o passar do tempo, a prisão e os dissabores da vida. Ao falar, ele parece magoado, rabugento e até vingativo, contra um Bolsonaro que tira fotos rindo, cercado de fiéis fanáticos, praticando esportes e ativo.

Lula tem, em Ciro Gomes, um forte opositor dentro da esquerda. Entre os que se identificam com teses de esquerda, Lula nunca teve uma oposição real e que ameaçasse sua posição como principal líder da esquerda brasileira. Ciro Gomes é um opositor raivoso e que contratou João Santana como marqueteiro, um profissional que não apenas sabe tudo de eleição como de lulismo. Como se não bastasse, os identitários representam uma nova esquerda que suporta Lula, mas não o ama. A incompatibilidade do discurso socialista e trabalhista clássicos com o da nova esquerda identitária quebra a coesão interna em pontos fundamentais e pode gerar sérios problemas de comunicação.

Lula não acena para o futuro, mas para um revisionismo do passado. O discurso petista não traz novidades, uma visão renovada de Brasil, apenas um repúdio aos pequenos avanços econômicos e sociais conquistados em outros governos e um sentimento de vingança contra opositores reais ou imaginários. Se essa falta de propostas não é suficiente para tirar o apoio dos jovens a Lula, pode tirar a energia deles para militar, fazer campanha nas ruas e conquistar votos.

Lula ainda está no topo da corrida eleitoral, mas o viés de Bolsonaro é de alta e, neste momento, não há favoritos. O atual presidente conseguiu resistir até a pandemia, que impediu a reeleição de seu ídolo Donald Trump nos EUA, e que devastou a economia e matou mais de meio milhão de brasileiros em dois anos, e dificilmente perderá a fatia atual de eleitores fanáticos que possui.

Se a eleição fosse hoje, Lula venceria, mas ela é só em outubro. Até lá, o petismo terá que trabalhar muito para reverter a atual tendência que mostra seu principal opositor crescendo cada vez mais e com disposição clara para ficar mais quatro anos no Planalto. Alguns dos itens listados podem ser revertidos pelo lulismo, mas nem todos. 

Com o andamento da campanha e o eleitor se interessando mais por política, sai de cena o recall e entra a decisão baseada numa leitura do momento atual. E esse momento não é bom para Lula.

Alexandre Borges da CNN Brasil, em 20/04/2022 às 17:37

'Supremo tem de validar decreto, mas cassação do mandato permanece’, diz desembargador

O decreto de graça ao deputado Daniel Silveira não tem aplicação imediata. É preciso ter o trânsito em julgado do processo (término da possibilidade de recursos) para a acusação e a análise do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) responsável pela execução da pena de Daniel Silveira, que ainda pode considerar ilegal o decreto.

Além disso, o decreto de graça incide apenas na execução da pena de privação de liberdade e não incide sobre os efeitos civis da condenação, como a multa processual imposta ao deputado pela Corte, e a inabilitação para a função pública em razão da pena ter sido superior a quatro anos de prisão. Ou seja, mesmo com a concessão da graça, Silveira estaria com seus direitos políticos cassado de acordo com o artigo 92 do Código Penal.

Essa é a opinião do integrante do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Ulysses de Oliveira Gonçalves Junior.

Além disso, com a Lei da Ficha Limpa, a decisão coletiva que impõe a perda da capacidade de elegebilidade não o permite se candidatar".

"O decreto de graça faz desaparecer o crime, mas não os efeitos civis da condenação. Ele perde a primariedades. E o Supremo pode não acabar e recusar o decreto ao analisar a sua constitucionalidade."

Tanto graça (individual) como indulto (coletivo) devem ser concedidos após o trânsito em julgado de um processo, ou seja, quando acaba todas as possibilidades de recurso para a defesa.

O desembargador foi juiz por quase duas décadas do Departamento de Execuções Criminais do TJ de São Paulo e hoje atua na 10.ª Câmara Criminal do TJ. De acordo com ele, entre os demais efeitos da condenação estão a obrigação de reparar o dano – a multa processual – e a perda dos direitos políticos com a inabilitação para a função pública.

"Ele não pode permanecer como deputado, pois, com o trânsito em julgado, ele perderia os direitos políticos. E sem direitos políticos não pode permanecer no exercício do mandato."

Caso o Supremo recuse o decreto de graça, cabe agravo na execução da pena, conforme a Lei de Execuções Penais. Se a sentença de privação de liberdade for executada e o deputado, preso, é possível entrar com habeas corpus.

‘Indulto precoce’

Professor titular de Direito Público da Universidade de São Paulo, Floriano de Azevedo Marques afirmou que apesar de considerar que o indulto é uma prerrogativa do presidente e como ato político não deveria ser submetido a controle judicial, o decreto de Bolsonaro é contrário à Constituição Federal e à lei.

“À Constituição porque não dá pra dar indulto antes do trânsito da pena em julgado. Se indulta o condenado. Mas o Daniel Silveira não está ainda condenado pois a decisão não transitou em julgado. Logo o Bolsonaro indultou quem ainda não está condenado. Um caso raro de ‘indulto precoce’.”

Além disso, a graça deve ser concedida “por critérios objetivos”. “Concedida assim a quente ela é uma afronta à decisão judicial – que ainda não se consolidou –, é uma quebra da isonomia as avessas”.

De acordo com ele, por fim, a decisão de Bolsonaro contraria a Lei de Execução penal, pois a lei “exige para o indulto o parecer do Conselho Penitenciário Nacional (artigo 70). “Ausente o parecer, o ato político fica manco de um dos seus poucos requisitos, e, portanto, é nulo.

“Podemos dizer que o Bolsonaro inventou um ‘indulto precoce desumanitário e customizado’.” Azevedo Marques defende a tese, entretanto, que a graça e o indulto deveriam incidir também sobre os efeitos civis da condenação. “Mas o Superior Tribunal de Justiça, em sua súmula 631 decidiu que não. Ou seja, que o indulto extingue apenas os efeitos primários da condenação, a execução da pena e não os demais.”

O advogado criminalista e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) Cristiano Avila Maronna concorda com a possibilidade da graça ser derrubada no Supremo Tribunal Federal. Ele identifica dois vícios de fundamentação no decreto presidencial: fundamentação inidônea e violação da regra da impessoalidade do ato administrativo.

A impessoalidade é uma exigência de todo ato administrativo, inclusive do perdão presidencial. Nesse caso, a justificativa apontada pelo presidente é de que existiria uma “comoção social” por conta da condenação. Para Maronna, a justificativa não se sustenta.

“Esse discurso de ódio contra as instituições democráticas tem aderência justamente nessa base bolsonarista mais radicalizada, que representa o que o decreto presidencial fala em comoção social”, afirmou. “Como se a maior parte da sociedade brasileira estivesse de acordo e uma minoria estivesse incômoda. O decreto transforma a minoria em maioria e nesse sentido falta justificativa idônea.”

Precedente

Maronna retoma que há precedente em que o STF avaliou um indulto presidencial.

Em 2018, por exemplo, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso confirmou monocraticamente medida cautelar para suspender parcialmente um decreto de indulto natalino assinado pelo então presidente Michel Temer em 2017.

Na decisão, Barroso enrijeceu pontos que constavam no decreto original e estabeleceu alguns novos, alegando necessidade de esclarecimento sobre como pode ser aplicado o indulto. O ministro proibiu o indulto para condenados por corrupção e lavagem de dinheiro, exigiu que o instituto só seja concedido a presos que cumpriram um terço da pena, limitou a concessão do benefício a quem tem pena inferior a 8 anos de prisão e vedou àqueles que têm recurso pendente.

Em 2019, a questão foi a Plenário e os ministros formaram maioria para declarar o decreto constitucional. Prevaleceu o entendimento de que o indulto é um ato privado do presidente da República, não cabendo ao Supremo definir ou rever as regras estabelecidas no decreto.

Em seu voto favorável, Moraes elencou alguns pontos que tomou como necessários para tomar o indulto como constitucional, entre eles a coerência, a prudência, a proporção, a não arbitrariedade e a causalidade/

Marcelo Godoy, O Estado de S. Paulo, em 21.04.22. Colaborou Gustavo Queiroz. 

O grande salto para trás

Lula e Bolsonaro defendem ideias que destroem o que foi feito de positivo. A revogação da reforma trabalhista, como quer o PT, é apenas o mais recente exemplo disso

Com uma crise social e econômica que afeta gravemente a população, o País precisa de propostas consistentes e viáveis, aptas a enfrentar, com responsabilidade, os problemas nacionais. No entanto, a depender das propostas dos dois políticos que aparecem na frente nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República, parece que a tarefa é exatamente inversa: apresentar ideias que aprofundam a crise.

A situação é muito peculiar. Não é apenas que Lula da Silva e Jair Bolsonaro não tenham a menor noção do que precisa ser feito para recolocar o País no caminho do desenvolvimento social e econômico. Os dois querem destruir – essa é a palavra – o que foi feito de positivo até aqui. Em qualquer dos casos, o País dará um grande salto para trás.

Na semana passada, o diretório nacional do PT aprovou que, no programa de governo a ser apresentado aos partidos aliados, não se fale de “revisão” da reforma trabalhista de 2017. O termo não expressaria fidedignamente o que os petistas almejam. Eles querem nada mais nada menos que a “revogação” de todo o marco trabalhista aprovado pelo Congresso durante o governo de Michel Temer.

O Brasil tem hoje 12 milhões de desempregados, o que corresponde a 11,2% da força de trabalho. E qual é a proposta do PT para esse cenário extremamente desafiador? Jogar fora todo o trabalho de modernização das regras trabalhistas feito pelo Congresso em 2017. É um completo disparate. Ninguém em sã consciência acha que a revogação da reforma trabalhista possa incentivar a criação de novos postos de trabalho. Mesmo assim, o PT anuncia que, em 2023, dedicará suas energias a restaurar o atraso. 

Outra área na qual Lula e Bolsonaro prometem atraso e destruição é a responsabilidade fiscal. No caso, é puro deboche com a população e com todas as evidências. Nas últimas três décadas, todos os governos que foram responsáveis com as contas públicas conseguiram conter a inflação, e todos aqueles que desprezaram o equilíbrio fiscal produziram aumento da inflação.

Depois do sucesso do Plano Real e das reformas feitas nos governos de Fernando Henrique, o PT foi capaz, com seu descompromisso na área fiscal, de reintroduzir a inflação na vida nacional. Dilma Rousseff entregou baixo crescimento e inflação alta. Pois bem. Perante esse panorama desafiador, Michel Temer implantou uma política de responsabilidade fiscal que, além de desbastar a inflação, possibilitou a redução histórica da taxa de juros. Após os dois anos e meio do governo Temer, o País não deveria ter mais nenhuma dúvida sobre política econômica: sobre o que protege a população e sobre o que a prejudica, especialmente os mais vulneráveis.

Jair Bolsonaro seguiu, no entanto, o caminho petista da irresponsabilidade. Tal foi a adesão ao populismo que o governo Bolsonaro não apenas não defendeu o teto de gastos aprovado durante o governo Temer, como atuou para derrubar esse que foi o principal marco da responsabilidade fiscal dos últimos anos. O empenho gerou o resultado esperado: inflação alta, com o Banco Central tendo de elevar a taxa básica de juros mesmo em um cenário de baixa atividade econômica.

Diante dessa trajetória, o que Lula e Bolsonaro propõem para o País a partir de 2023? Só querem saber de destruir ainda mais os alicerces da responsabilidade fiscal. Sentindo-se tão confortável em seu populismo, Jair Bolsonaro já disse até que cogita dispensar Paulo Guedes em eventual segundo mandato. Nenhum disfarce de responsabilidade seria mais necessário.

A confirmar que o retrocesso não é mero acidente, mas um objetivo, o lulopetismo e o bolsonarismo almejam, também, reduzir a autonomia das agências reguladoras. Mesmo depois de a pandemia mostrar a importância de ter uma Anvisa independente, Lula e Bolsonaro querem o Executivo imperando sem controle.

Perante ideias tão profícuas, como alguém pode ter a ousadia de dizer, como às vezes se ouve, que eventual vitória de Lula, ou mesmo de Bolsonaro, já estaria precificada? É uma bela modalidade de negacionismo.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 21 de abril de 2022 | 03h00

Supremo condena Daniel Silveira a 8 anos e 9 meses de prisão por ataques à democracia

Decisão pode tirar o parlamentar da disputa eleitoral deste ano; apenas o ministro Nunes Marques votou pela absolvição 

Caso condenação seja confirmada, deputado Daniel Silveira pode ficar inelegível. Foto: Gabriela Biló/Estadão

O Supremo Tribunal Federal (STF) condenou nesta quarta-feira, 20, o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ) a oito anos e nove meses de prisão por incitar agressões a ministros e atentar contra a democracia ao defender, em vídeos, o fechamento da Corte. Foram dez votos pela punição e um pela absolvição.

A sessão serviu para ministros mandarem o recado de que o STF não admite a pregação de atos violentos ou que atentem contra as instituições do País.

Mesmo após o presidente Jair Bolsonaro (PL) fazer repetidas defesas públicas da conduta de Silveira, o Supremo determinou que o deputado fique impedido de disputar eleições até o cumprimento final da pena. Silveira quer concorrer ao Senado pelo Rio de Janeiro neste ano. Na prática, a sentença ainda não tira o deputado da eleição. Isso porque a perda dos direitos políticos não é automática e depende do trânsito em julgado do processo – quando não há mais possibilidade de recurso. O STF pediu ainda que seja declarada a perda de mandato do parlamentar, ato que ainda precisa passar pela chancela da Câmara.

A maioria do STF entendeu que a conduta do deputado foi criminosa e não estava protegida pela imunidade parlamentar, o instituto que dá direito ao congressista de não ser processado por discursos. Para os ministros, o que Silveira fez foi incitar a violência, estimular seguidores a invadir o Supremo e ainda agredir ministros.

“A liberdade de expressão existe para a manifestação de opiniões contrárias, para opiniões jocosas, para sátiras, para opiniões inclusive errôneas, mas não para imputações criminosas, para discurso de ódio, para atentados contra o estado de direito e a democracia”, afirmou o ministro Alexandre de Moraes, relator da ação. “Não há dúvidas de que o réu agiu com dolo, em plena consciência de suas ações”, completou ao citar que Silveira confirmou as declarações em depoimento à Polícia Federal (PF).

“O que estamos aqui é julgando a defesa da democracia”, disse Dias Toffoli. “A engenharia do caos não vai parar, mas temos de atuar na defesa da Constituição”, completou.

O julgamento foi marcado por mensagens duras a Daniel Silveira e aos demais parlamentares que integram a tropa de choque do governo no Congresso. Um dos alvos preferenciais da militância bolsonarista no Supremo, o ministro Alexandre de Moraes apresentou um voto firme pela condenação do deputado. Segundo o ministro, o parlamentar tinha a intenção de cometer o crime, o que não se respalda no direito à liberdade de expressão.

Moraes também afirmou que Daniel Silveira não pode usar a imunidade parlamentar como “escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”. Ele foi seguido integralmente por Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux.

“Não vislumbro vestígio de violação à liberdade de expressão, nem tampouco à imunidade parlamentar (…) que não é um salvo conduto para a prática de crimes, sob pena de transformar o congresso nacional em um esconderijo de criminosos”, disse Barroso.

Nos vídeos que motivaram a ação penal, Silveira disse que se imaginava agredindo fisicamente os ministros e os desafiou a prender o general de Exército Eduardo Villas Boas por declarações críticas ao julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pelo tribunal. O deputado ainda fez referência à cassação de juízes do Supremo pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5) durante a ditadura militar.

Na contramão das expectativas no Supremo, os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça decidiram não suspender o julgamento da ação penal contra o deputado. Como mostrou o Estadão, os demais ministros cogitaram a possibilidade de um dos magistrados apresentar um pedido de suspensão da votação. Os dois foram indicados à Corte pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) e já haviam votado contra a obrigatoriedade de Silveira usar tornozeleira eletrônica.

Ao votar, Nunes Marques chegou a condenar as declarações do parlamentar, mas as reduziu a bravatas e transferiu à Câmara a responsabilidade por punir os ataques ao livre exercício dos Poderes. “Em que pese a gravidade e a repugnância das falas do acusado, não vislumbro cometimento de crime”, disse.

“Extrapolou e muito (Daniel Silveira), há toda evidência. Com a devida vênia, atingiu a própria Câmara Federal, na medida em que não se tem notícia que essa tenha tomado qualquer providência para apurar seus manifestos excessos e sua reprovável conduta (..) que tolerada por seus pares mancha aquela casa”, disse. “Consigo aqui minha perplexidade, com todo respeito que tenho ao nosso parlamento, com essa justificável omissão”, completou.

Já André Mendonça, chegou a votar pela condenação de Silveira quanto ao crime de proferir ameaças aos ministros. O ministro, porém, divergiu de Moraes ao absolver o deputado das acusações de incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o STF e de usar de violência ou grave ameaça para tentar impedir o livre exercício dos Poderes.

Imunidade parlamentar

O deputado foi julgado pelos crimes de proferir ameaças contra autoridades, incitar a animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo e de usar de violência ou grave ameaça para tentar impedir o livre exercício dos Poderes. A Procuradoria-Geral da República (PGR) destacou na denúncia que a imunidade parlamentar não é um “privilégio pessoal”.

Ao apresentar o parecer do Ministério Público Federal (MPF), a vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo foi firme ao sustentar que as declarações de Daniel Silveira “atingiram a Justiça como instituição” e tentaram “intimidar e constranger os ministros” do Supremo.

“O que busca o Ministério Público, no exercício de sua atribuição constitucional de defender a ordem jurídica e o regime democrático, é que este Tribunal Supremo se valha dos instrumentos democraticamente estabelecidos para reprovar os crimes efetivamente praticados pelo acusado”, afirmou.

Na noite de ontem, Alexandre de Moraes negou seis recursos da defesa de Silveira contra diversas medidas cautelares acumuladas pelo parlamentar e determinou cinco multas de R$ 2 mil ao advogado do parlamentar, Paulo César Rodrigues de Faria, pela apresentação de pedidos judiciais “manifestamente inadmissíveis, improcedentes, ou meramente protelatórios’. Segundo o relator, as demandas tinham o objetivo de postergar o julgamento da ação penal.

Ao apresentar as alegações finais no caso, a defesa de Silveira alegou “nulidades processuais”, ou seja, erros procedimentais que esvaziaram a ação. O advogado do parlamentar citou o fato de não ter sido oferecido acordo de não persecução penal pelos crimes de incitação à animosidade entre as Forças Armadas e o Supremo e contra a integridade nacional, uma vez que a Lei de Segurança Nacional foi extinta.

Já durante o julgamento, o advogado disse que o deputado é alvo de um “sistema inquisitório”. “Querem condenar a todo custo um inocente”, disparou. A defesa ainda criticou o fato de os ministros do Supremo, vítimas dos ataques do parlamentar, serem também os responsáveis por julgá-lo. “É preciso ficar muito claro que para uma pessoa ser condenada não pode ter subjetividade, porque a subjetividade incorre na suspeição, na imparcialidade”, afirmou.

Temperatura

Antes do início da votação, o Daniel Silveira e o também deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) foram impedidos de acessar o plenário do Supremo. Eles foram barrados por uma resolução assinada em fevereiro pelo ministro-presidente, Luiz Fux, que proibiu a presença de qualquer pessoa que não seja membro do colegiado, representante das partes no processo ou integrante do MP. O ato normativo da presidência foi editado em resposta ao aumento dos casos de covid-19 no Distrito Federal.

“Se puder levar minha reclamação lá dentro”, disse Eduardo Bolsonaro ao servidor do STF que explicou os motivos de não poderem entrar. Silveira, que estava ao lado, repetiu a mesma frase. O Supremo chegou a oferecer aos deputados a possibilidade de acompanharem o julgamento de uma televisão no Salão Branco da Corte, a antessala do plenário, mas ambos se recusaram. Os parlamentares decidiram voltar à Câmara.

Mais cedo, Silveira fez novos ataques ao ministro Alexandre de Moraes. Na Câmara, o deputado chamou o relator da ação penal de “reizinho do Brasil” e “menininho frustrado” que age fora da Constituição. As críticas também foram destinadas ao presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), por, segundo ele, ter cometido um “equívoco grave” ao deixar de pautar para votação no plenário da Casa a sustação da ação penal contra ele.

Dentro do Supremo, o advogado de Daniel Silveira atrasou em uma hora o início do julgamento por ter se recusado a apresentar teste negativo para covid-10. Fux ofereceu a possibilidade de a defesa realizar a sustentação oral por videoconferência, o que também foi descartado. Para dar início à votação foi necessário que o advogado se submetesse a um teste rápido. O presidente do Supremo chamou a postura do defensor de “recalcitrância indevida” e pediu providências da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Histórico de violações

Silveira chegou a ser preso no ano passado, logo após divulgar o vídeo com as ofensas aos ministros do Supremo. A detenção no Batalhão Especial Prisional (BEP) do Rio, a mando de Alexandre de Moraes, com base em pedido da PGR, durou quase nove meses. O relator do caso determinou a soltura com a condição de que o parlamentar cumprisse medidas cautelares.

No início desse ano, a PGR voltou a cobrar medidas mais duras contra o deputado, que teria descumprido diversas determinações da Justiça. A cúpula do Ministério Público pediu ao Supremo no mês passado a colocação de tornozeleira eletrônica em Silveira e cobrou que ele fosse impedido de frequentar eventos públicos. As solicitações foram atendidas por Moraes, gerando um impasse entre o ministro e o parlamentar.

Silveira se recusou a colocar a tornozeleira eletrônica e chegou a dormir em seu gabinete na Câmara em uma estratégia fracassada para evitar que os agentes da Polícia Federal (PF) fizessem a instalação. O parlamentar bolsonarista se queixou da decisão de Moraes, a quem chamou de petulante, e cobrou que a ordem fosse revista pelos demais ministros do Supremo.

O movimento do deputado chegou a envolver o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), que emitiu uma nota com recados ao Supremo, na qual dizia que o plenário do Parlamento é inviolável. Apesar de ter causado ruídos entre os Poderes e piorado a sua situação, o bolsonarista acabou cedendo ao colocar o dispositivo. Moraes disse que a jogada de Silveira demonstrou sua “duvidosa inteligência”. A decisão para que o parlamentar colocasse a tornozeleira acabou referendada por 9 votos a 2 no plenário.

Weslley Galzo/BRASÍLIA e Rayssa Motta, originalmente, para O Estado de S. Paulo, em 20 de abril de 2022 | 14h01 - Atualizado às 20h24 para inclusão do placar final

Tiradentes: como um herói 'sem rosto' acabou ganhando uma representação quase religiosa

A história é de um rebelde condenado à morte, traído por um de seus companheiros. Ressignificada para ganhar o lustro necessário a um herói da pátria, a imagem de Tiradentes precisava de um rosto — e nenhum retrato dele havia.

Tiradentes foi executado há 230 anos no Rio de Janeiro (Tela de Pedro Américo)

O alferes da cavalaria, dentista, comerciante, minerador e ativista político Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), mais conhecido como Tiradentes, foi executado há 230 anos, no Rio de Janeiro. E sua representação física, criada 100 anos mais tarde, é muito semelhante à imagem mais recorrente de Jesus Cristo: um homem de olhos claros e traços europeus, cabelos longos, barba e rosto simétrico.

"Um herói nascido na região centro-sul do país, que morreu sem pegar em armas, traído por um amigo, o Silvério dos Reis, à semelhança da trágica histórica de Jesus Cristo", aponta o historiador André Figueiredo Rodrigues, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor do livro Em Busca de Um Rosto: a República e a Representação de Tiradentes.

"Não havia representação visual de Tiradentes e os artistas tiveram liberdade para desenhá-lo como desejaram. Um país católico, com um herói com traços nazarenos, inventados por artistas desde o nascimento da República: Tiradentes, iconograficamente, venceu. Sua escolha não foi aleatória", acrescenta ele.

Uma escolha, sim. Afinal, não foram poucas as revoltas, motins e rebeliões ocorridas no Brasil colônia nas décadas de antecederam a independência. Mas enquanto boa parte desses ativistas permaneceram anônimos e mesmo os episódios são pouco abordados, a chamada Inconfidência Mineira é assunto conhecido por todos — e Tiradentes tornou-se um ícone nacional, a ponto de até merecer feriado.

Exposição do Centenário da Independência no Rio em 1922

Por que uma grandiosa exposição no Rio em 1922 foi esquecida enquanto a Semana de Arte Moderna ainda é debatida

"Realmente tivemos várias revoltas no Brasil ao final do século 18, muitas delas influenciadas pelas ideias iluministas que estavam em voga. Vale lembrar que todas essas regiões ainda pertenciam a Portugal e não houve, no início, uma valorização desses movimentos. Tudo foi sendo construído ao longo do século 19", ressalta o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Unesp, e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré.

Missato ressalta que ao longo do Brasil Império, a história de Tiradentes passou a ser recuperada pelos republicanos. E após a proclamação da República, em 1889, ele foi alçado a herói nacional por uma elite que desejava apagar do imaginário o exemplo de ativistas mais recentes — para que eles não servissem de inspiração para motins populares.

"Tiradentes era um personagem morto já há 100 anos. E o centenário de sua morte [em1892] acabou servindo para exaltá-lo como personagem, um personagem perfeito, entre aspas, para ser herói da República", contextualiza o historiador.

Tiradentes imberbe, como alferes, em pintura de José Wasth Rodrigues

É dessa época a primeira representação do alferes com os traços que o tornaram conhecido pelos brasileiros. Obra do pintor Décio Villares (1851-1931).

"A primeira pintura que promoveu a equivalência da imagem social de Tiradentes com a de Jesus Cristo data de 1890, produzida por Décio Villares. Ela apresenta Tiradentes como Cristo, com barbas, olhos claros e cabelos longos", comenta o historiador Isaac Marra, professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília Internacional. "Pela referência da época, inclusive, segundo a descrição dos representantes da Coroa Portuguesa, Tiradentes era magro, alto e de uma duvidosa feição 'inagradável'."

Marra cita o livro Autos da Devassa — A Inconfidência Mineira por Detrás da Cortina, do historiador Mário Caldonazzo de Castro, como fonte desse relato da época.

No livro A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho escreve que "para consolidar-se como governo, a República precisava eliminar as arestas, conciliar-se com o passado monarquista, incorporar distintas vertentes do republicanismo". "Tiradentes não deveria ser visto como herói republicano radical, mas sim como herói cívico-religioso, como mártir, integrador, portador da imagem do povo inteiro", diz ele.

"Como era alferes, isto é, aspirante militar, Tiradentes nunca usou barbas longas, cabelos escorridos ou bigodes vultosos, como muitos livros buscam caracterizá-lo. Em seu enforcamento ele portava cabelos aparados e barba raspada", pontua Marra "A imagem produzida e representada foi idealizada especialmente no contexto da proclamação da República Brasileira com a finalidade de atender aos anseios do positivismo militar à época."

Tiradentes recebendo a setença de morte, em pintura de Leopoldino de Faria (Arquivo Nacional)

Contexto histórico

Rodrigues lembra que a então capitania de Minas Gerais teve muitas revoltas "notadamente antifiscais" ao longo do século 18. "Desde a Revolta de Vila Rica, em 1720, até a Inconfidência Mineira, de 1789, são variadas as tentativas de revoltas ali conhecidas", aponta. "Onde circula riqueza, como a advinda da mineração, faz com que também haja motins contra as maneiras como a população paga os impostos."

A Inconfidência Mineira foi mais uma dessas revoltas. "Com a participação de grupos sociais variados, que contestavam as maneiras como Portugal gerenciava a administração local", afirma ele.

"Na época, em 1789, a capitania de Minas tinha uma dívida, desde 1771, com a arrecadação dos quintos do ouro de 582 arrobas de ouro ou o equivalente a 8.730 quilos de ouro", explica o historiador. "E o pagamento desses atrasos recairia sob toda a população da capitania, caso se decretasse seu pagamento compulsório, a derrama. Em vista disto e caso a derrama fosse decretada pelo governador, a participação popular seria intensa e isso mobilizava nas autoridades um temor de revolta que envolvia a capitania como um todo, independente do estrato social que a pessoa tinha. Todos seriam cobrados."


Sentença que condenou Tiradentes (Arquivo Nacional)

"Por talvez congregar a participação dos moradores de Minas e seus planos congregarem interesses diversos, mas atrelados às situações econômicas, a Inconfidência ganhou notoriedade, além de contar com a participação de importantes homens daquela sociedade, como militares, intelectuais, juristas, letrados, religiosos, etc", contextualiza o professor.

"Isto tudo fez com que a Inconfidência se destacasse frente aos demais movimentos rebeldes ocorridos em solo mineiro. Em outras partes do Brasil também havia movimentos de contestação, que também foram variados. Independentemente de quais sejam eles, todos os movimentos rebeldes do século XVIII e princípios do século XIX foram reprimidos e durante o Império foram feitos perpétuos silêncios de suas histórias e personagens."

Rodrigues lembra que "rememorá-los" seria uma afronta "ao poder dominante" — era a mesma casa dinástica que reinava no Brasil, afinal. No próprio Código Criminal de 1830, o Artigo 87 previa penas graves — variando de prisão por pelo menos cinco anos a prisão perpétua — a quem questionasse o imperador. Como Dom Pedro I era descendente da mesma família monárquica contra a qual Tiradentes havia atentado, não era condizente essa memória.

"Somente a partir da segunda metade do século 19 é que a Inconfidência e mesmo o alferes Tiradentes passam a aparecer em eventos públicos, sendo citados como exemplos de liberdade e contestação à ordem monárquica reinante", conta. "Com a República buscou-se construir heróis, nada como eleger o alferes Tiradentes."

"O fato de Tiradentes ser elencado no memorial nacional como o herói nacional se dá por inúmeras razões", elenca Marra. "A priori, o fato de ter transitado por diversas ocupações, empregos e trabalhos, entre os quais destacam-se minerador 'freelancer', comerciante, alferes da Cavalaria de Dragões Reais de Minas e, o labor que o legou a maior fama nacional, dentista prático, o Tiradentes."

"A segunda razão que busca explicar essa exponencial presença, simbólica e nacional, é a referência de associações imagéticas da imagem pessoal e privada de Joaquim Xavier com a imagem de Cristo elaborada pelo Renascimento italiano, isto é: loiro, de olhos claros, cabelos longos incompatíveis com a ocupação de alferes e destacada compleição física", comenta Marra.

"Esse popularismo de Xavier teria sido possível a partir das múltiplas ocupações por ele desempenhadas e pela sua legítima capacidade de cooptar e exercer um certo fascínio em seus discursos, especialmente com os mais próximos", acrescenta ele.

E como o historiador Carvalho pontua no seu livro, era um momento em que a República em formação carecia de um herói nacional que pudesse exercer uma amálgama simbólico em torno dos ideais de transformação política.

"Como os ideais republicanos haviam se manifestado, inclusive, no ideário dos conjurados [da Inconfidência Mineira], ergueu-se um pendão representativo de interesses para a justificativa de um ícone nacional para a República brasileira, tal como fora Napoleão Bonaparte para a República Girondina francesa: uma figura meio humana e, após a sua morte, pesadamente mítica associada aos ideais positivistas e militares dentro das ambições políticas de uma República que se fez a partir das armas, livrando a nação dos ditames imperativos de uma Dinastia herdeira do colonizador", analisa Marra.




Tiradentes em pintura de Francisco Auréliio de Figueiredo e Melo

Ao mesmo tempo, exaltar Tiradentes significava anular, como pontua o historiador, "com certa intencionalidade, a proposição do nome de Zumbi dos Palmares para a edificação de um mito fundador e simbolicamente viável". Ele virou o mártir da independência, mesmo que esse reconhecimento tenha sido dado já após a República.

Mas apesar dessa narrativa, e do próprio título de herói da independência, não há nenhuma evidência histórica de que os ativistas mineiros do episódio buscassem a emancipação política do Brasil frente a Portugal. A luta parecia ser muito mais por autonomia frente à metrópole do que pela construção de um novo país.

"Tiradentes é considerado herói nacional e também lhe atribuído o epíteto de protomártir, ou seja, ele é considerado o maior dentre todos os mártires do nosso processo de independência. Infelizmente, não há evidências concretas de que os inconfidentes desejavam a independência do Brasil", afirma o historiador Rodrigues.

"Suas falas no processo aberto para julgar seus envolvimentos na Inconfidência Mineira revelam que, antes de pensar no Brasil, eles desejam o rompimento dos laços que uniam a capitania de Minas Gerais do Império português, e que, após o sucesso do movimento sedicioso, outras capitanias poderiam aderir aos mineiros, quase desejassem, como as capitanias do Rio de Janeiro, da Bahia ou de São Paulo."

"Mas, concretamente, eles desejavam ver as Minas Gerais separadas de Portugal e há falas de interesses nesse sentido, de que as Minas Gerais já não aguentavam mais a opressão econômica sentida de Portugal. O movimento tinha como chamariz a decretação do pagamento dos impostos em atraso — a derrama, a ser executada compulsoriamente sobre cada habitante da região", conclui o historiador.

Missiato acrescenta que associar a Inconfidência Mineira a luta pela Independência "não é algo necessariamente controverso, mas sim multifacetado". "Há nesses grupos personagens com interesses pela Independência de Minas Gerais, mas enquanto movimento, a luta principal era pela autonomia da província, da região, e não necessariamente independência política", explica ele.

O bode expiatório

O episódio da Inconfidência Mineira acabou com os ativistas todos presos. O fazendeiro, proprietário de minas de ouro e coronel Joaquim Silvério os Reis (1756-1819) foi o delator que colaborou para que os rebeldes fossem encontrados e detidos.

Reis teria informado ao vice-rei no dia 9 de maio de 1789 sobre o paradeiro de Tiradentes, que estava foragido desde março daquele ano. No dia seguinte, a casa onde ele estava foi cercada e invadida por soldados. Sem ter como fugir, Tiradentes acabou se entregando.

Todos os inconfidentes ficaram presos por quase três anos até a finalização do processo. As condenações, pelo crime de lesa-majestade, ou sej a, traição ao rei", dividiam-se entre pena capital e degredo. Mas graças a uma ordem de clemência da rainha de Portugal, todas as sentenças de morte foram convertidas a degredo. Exceto a de Tiradentes.

"Isso ocorreu porque ele tinha uma patente militar mais baixa. Sua condenação acabou servindo como forma de exemplo a não ser seguido", diz Missiato.

"Tiradentes foi o único a assumir o crime de se rebelar contra o poder português na capitania de Minas Gerais, enquanto todos os demais participantes da Inconfidência Mineira negaram envolvimento na pretendida revolta, além de atribuir a ele a maior parcela de culpa pelos infortúnios que passavam e por falar demais sobre ideias de rompimento dos laços coloniais", acrescenta o historiador Rodrigues.

"A lei era implacável. Quem assume participação em atos de rebelião, comete traição. E traição contra o governo metropolitano — o rei ou qualquer autoridade governamental que representa a Coroa portuguesa — é condenada com a morte. Por isso, Tiradentes foi condenado, porque ele foi o único a assumir, em seu quarto depoimento, a responsabilidade pela morte do governador da capitania de Minas Gerais."

"Ele foi tipificado como o bode expiatório da Inconfidência Mineira. Entre audiências e interrogatórios, Tiradentes foi o único que confessou a conspiração, assumindo assim toda a responsabilidade", afirma Marra.

"Em um ato muito comum à época, o castigo exemplar, decorrente da mentalidade escravista, Tiradentes foi enforcado publicamente, no Rio de Janeiro, no Largo da Lampadosa, atual Praça Tiradentes. Seu corpo foi esquartejado, a sua cabeça exposta em praça pública em Vila Rica e seus membros espalhados estrategicamente em postes e pontos de referência no caminho entre Minas Gerais e os portos do Rio de Janeiro."

Tiradentes em obra de Décio Villares

Em uma cena que também permite paralelos com a Paixão de Cristo, Tiradentes foi obrigado a percorrer as ruas do centro do Rio em uma procissão. O governo fez de tudo para que o episódio tivesse uma alta carga simbólica, enaltecendo o poder e a força da coroa portuguesa. Foram 18 horas apenas para a leitura da sentença. O cortejo contou com participação de toda a tropa local e da fanfarra.

Tiradentes foi executado na forca e teve seu corpo esquartejado. Conta-se que a certidão de cumprimento da sentença foi lavrada com seu próprio sangue.

O herói oficializado

Se o reconhecimento de Tiradentes como herói se deu quase 100 anos após sua morte, a oficialização é consolidação dessa imagem é obra da ditadura militar. "Por volta de 1870, o movimento republicano identificou-o como mártir cívico-religioso e postulou a identificação da data de sua morte como feriado nacional: o Dia de Tiradentes", aponta Marra.

"Sua imagem social e heróica foi também explorada pelos governos do regime militar [entre 1964 e 1985], mesmo que os movimentos políticos à esquerda tentassem reconduzir Tiradentes como rebelde, insurreto e insubordinado."

Considerado Patrono Cívico do Brasil, Tiradentes é rememorado com um feriado nacional. Em 21 de abril, exatamente a data de sua morte. Essa honraria é garantida por lei de 1965, sancionada pelo presidente Humberto Castello Branco (1897-1967), o primeiro da ditadura militar brasileira.

Em 21 de abril de 1992, 200 anos após sua morte, o nome de Tiradentes foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria.

Edison Veiga. de  Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, em 20 abril 2022

Quem foi o Chalaça, amigo e companheiro de noitadas de D. Pedro 1º

A palavra "chalaça", dizem os dicionários, significa espirituoso, zombeteiro, gracejador. Por isso, foi com ela que seus amigos e conhecidos - e inimigos - na corte de D. João 6º, no Rio de Janeiro, apelidaram o português Francisco Gomes da Silva, um dos 15 mil integrantes da comitiva real que desembarcou no Brasil, em 1808.

Pintura com busto de Francisco Gomes da Silva, o Chalaça (Reprodução Google Arts&Culture)

Irreverente, bem-humorado, gozador, boêmio e esperto, ele se tornou amigo próximo e fiel do então príncipe e depois imperador, D. Pedro, de quem foi companheiro de farras e noitadas e alcoviteiro - arranjava belas mulheres para seu amigo real. Também galgou altos cargos no Império.

Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, nasceu em Lisboa, 22 de setembro de 1791 e morreu na mesma cidade em 30 de dezembro de 1852. Segundo muitos historiadores, era filho bastardo de Francisco José Rufino de Sousa Lobato, que mais tarde seria barão e depois Visconde de Vila Nova da Rainha, e de sua empregada doméstica Maria da Conceição Alves, uma moça pobre de 19 anos, que o registrou como sendo de "pai incógnito".

Quando Lobato foi se casar, sua futura mulher exigiu que ele se livrasse de Maria e seu filho. Ele então mandou a empregada para África e, de acordo com algumas versões, pagou para um protegido seu, Antonio Gomes da Silva, ficar com Francisco e registrá-lo como filho legítimo.

O certo é que, por influência do futuro visconde, ele conseguiu um emprego público como ourives oficial corte portuguesa. "Ele foi o responsável pela confecção da coroa de D. João VI no Brasil", conta o escritor Paulo Rezzutti, autor de vários livros sobre o primeiro reinado e biógrafo D. Pedro I e da imperatriz Leopoldina

Mas, apesar disso, o pai biológico não abandou o filho. "A verdade é que ele protegeu o rapaz por muito tempo", diz Rezzutti, que está escrevendo um livro específico sobre a Independência do Brasil. "Foi Lobato quem o colocou para estudar no seminário de Santarém, na província da Estremadura, onde ele aprendeu francês, inglês, italiano e espanhol."

O jovem Francisco ficou lá até 1807, quando, depois de brigar com o reitor e com o padre-mestre de disciplina, veio para o Brasil, acompanhando a família real em sua fuga. "No Rio de Janeiro, em 1810, foi feito faxineiro do Palácio de São Cristóvão, sendo expulso de lá, em 1816, por ter se envolvido com uma dama do Paço", conta o escritor e historiador Rafael Cupello Peixoto. O biografado era inimigo de Chalaça na corte do imperador D. Pedro 1º.

Contam algumas versões da história, que a expulsão da corte se deu, porque ele e a dama foram flagrados nus, num quarto do Palácio, pelo próprio D. João VI. "Depois disso, Chalaça se estabeleceu com uma barbearia na rua do Piolho (hoje rua da Carioca)", revela Peixoto. "Após o retorno do pai de D. Pedro para Portugal, voltou ao serviço do Paço, sendo peça importante na política da Corte imperial."

De acordo com Rezzutti, as relações pessoais entre ele e D. Pedro eram as mais estreitas possíveis. "Eles se conheceram na juventude, no Rio de Janeiro, onde, de companheiros de aventuras pelas tavernas, acabaram estreitando laços, até que o Chalaça se torna um dos homens mais confiáveis do príncipe e depois imperador do Brasil", diz.

Peixoto complementa, acrescentando que ele era um amigo sincero de D. Pedro, sempre pronto para servi-lo em todas as circunstâncias, "inclusive como pombo-correio das conquistas femininas". "Chalaça era um conselheiro pessoal, merecendo do imperador um tratamento cordial e com acesso diário a dele", explica. "Logo, ele não se restringia ao papel mero criado do Paço."

Isso fica demonstrado pela atuação política do amigo do imperador. De acordo com Peixoto, Chalaça pertencia a um grupo de portugueses de nascimento, que circundavam o Imperador desde sua juventude e que após a independência foram conquistando cada vez mais espaço na Corte, e assim, participando diretamente de ações políticas do Primeiro Reinado.

Conhecidos como "áulicos", esse grupo político, que apoiou o imperador D. Pedro 1º, tinha uma concepção de monarquia, na qual a soberania da nação repousava na cabeça da Coroa. "Isso era visto como forma de resguardar os interesses nacionais, com o poder de veto imperial sobre as decisões da Assembleia Geral e com o propósito de garantir a ordem e a tranquilidade pública", explica Peixoto.

Segundo ele, um exemplo de que Chalaça não era apenas um criado na Corte, é que foi ele que, na qualidade de oficial maior da Secretaria de Estado, inseriu na Carta Constitucional do Império do Brasil de 1824 a sua assinatura com a rubrica: "Francisco Gomes da Silva, a fez". Por ter redigido a Carta, foi condecorado por Pedro 1º com a comenda da "Torre e Espada".

Há vários exemplos de que a atuação de Chalaça não se limitava a apenas ser amigo e prestar "serviços reservados" a D. Pedro. "Sua missão como secretário pode ser vista até hoje, por exemplo, na redação final da Constituição outorgada em 1824 por D. Pedro ao Brasil", lembra Rezzutti.

"Ele estava ao lado do então príncipe regente na viagem da Independência e em vários outros momentos. Sua influência sobre o amigo era bastante comentada na época, chegando a ser considerada nefasta após a morte de João 6º, em Portugal, em 1826, quando passou a advogar os interesses dos portugueses junto ao imperador."

Chalaça ficou no Brasil até 25 de abril de 1830, quando foi nomeado embaixador plenipotenciário do Império para o Reino das Duas Sicílias, cuja capital era Nápoles. Foi uma armação de seus adversários, entre os quais o Marquês de Barbacena, que havia participado ativamente das negociações do segundo casamento do Imperador, na Europa, e acabava de trazer de lá a segunda de D. Pedro, D. Amélia de Leuchtenberg, e queria se ver livre dele.

Mas antes disso, Barbacena se aproximou de Chalaça para atingir seus objetivos políticos. Segundo Peixoto, o marquês adotou a estratégia de "conquistar" a confiança dele para assim também ganhar a de D. Pedro. Depois o traiu, no entanto. Quando Barbacena foi feito Ministro da Fazenda, em 1829, contando com a simpatia de D. Amélia, conseguiu convencer o imperador que era necessário afastar Chalaça e Rocha Pinto, componentes do criticado "gabinete secreto", do Brasil e enviá-los em comissões na Europa, em abril de 1830, explica.

Naquele momento, o país vivia uma forte tensão política com a oposição ao primeiro imperador o acusando de "absolutista" e responsabilizando sua proximidade com os "áulicos" portugueses, como Chalaça e Pinto, como a principal razão pelas ações autocráticas de D. Pedro e seu pouco diálogo com a Câmara dos Deputados.

Barbacena passava a imagem de quase um "primeiro-ministro" e conseguiu nos primeiros tempos à frente da pasta da Fazenda pacificar, em parte, a crise política.

Mas a armação do marquês se voltou contra ela próprio. Chalaça não aceitou o cargo em Nápoles e, em vez disso, foi para Londres. "Lá, quando descobriu que a autoria do plano de sua retirada do Brasil havia sido chefiada por Barbacena, dirigiu-lhe ataques e injúrias", conta Peixoto.

"O descreve como um sujeito de 'caráter dobre e atraiçoado' associando-o aos 'obscuros discípulos da Escola de Maquiavel, que, tomando mal as lições do grande mestre da dissimulação, caem vítimas de seus próprios enredos, e traições'."

Não satisfeito, resolveu se vingar. "Em Londres, Chalaça realizou um levantamento dos gastos que Barbacena fez, tanto para o segundo casamento de D. Pedro quanto com a filha de D. Pedro I, D. Maria II de Portugal, que foi obrigada a se instalar por um tempo na Inglaterra, depois que o tio dela, D. Miguel, usurpou o trono de Portugal para si", acrescenta Rezzutti.

Seja consequência ou não dessa devassa, o fato é que Barbacena foi demitido do Ministério naquele mesmo ano de 1830. "O curioso dessa relação dos dois é que até o momento em que a crise explodiu, com a demissão marquês, tanto ele quanto Chalaça trocavam correspondências sobre diferentes assuntos e disfarçavam entre si que ambos conspiravam um contra o outro", diz Peixoto. "O certo é que a queda de Barbacena tem o dedo de Francisco Gomes da Silva."

Apesar de sua trajetória curiosa e do papel que desempenhou junto a D. Pedro e na Corte e no governo, há controvérsias sobre a real importância histórica de Chalaça. Para Rezzutti, de forma específica ele não tem nenhuma "Francisco Gomes da Silva participou de vários eventos históricos, como acompanhante do imperador ou como seu secretário, mas ele não foi responsável direto por nenhum deles", defende. "Há algumas influências suas, como na queda do gabinete do marquês de Barbacena. Então, é impossível dizer que o Chalaça não tem importância histórica, mas é aquela que é destinada aos que exercem muitas vezes o poder por detrás do poder."

Peixoto pensa de maneira diferente. "Se observarmos Francisco Gomes da Silva para além da visão mais caricata, isto é, como o amigo alcoviteiro, mulherengo, boêmio e divertido de D. Pedro I, que claro ele era, vamos perceber que Chalaça também foi um personagem político", explica. "Ele atuou diretamente nos acontecimentos do Primeiro Reinado, além de ter grande influência sobre o próprio imperador."

Evanildo da Silveira, de  Vera Cruz (RS) para BBC News Brasil, em 20.04.22.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Élio Gáspari: A tortura produziu uma milícia

Os ministros do STM se afastavam do terrorismo


A brutalidade do regime militar. Estudante é carregado por militares do Exército. Foto de Evandro Teixeira (Jornal do Brasil). 

A revelação, pela repórter Míriam Leitão, das gravações pesquisadas pelo professor Carlos Fico nos arquivos do Superior Tribunal Militar tirou do armário o esqueleto da tortura praticada nos porões dos quartéis durante a ditadura. Engana-se o vice-presidente, Hamilton Mourão, quando pergunta: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras do túmulo de volta?”.

Mark Twain ensinou, há mais de um século: “A História não se repete, mas rima”.

É pela rima que convém recuperar as falas de dois ministros do STM. O general Rodrigo Octávio Jordão Ramos morreu em 1980, e o almirante Júlio de Sá Bierrenbach em 2015. Ambos foram oficiais ativos dos períodos de anarquia militar do século passado. Rodrigo Octávio, ou R.O., era um obsessivo defensor da presença do Exército na Amazônia. Defenderia em sessões secretas e públicas a apuração das denúncias de tortura. Ambos sabiam o que acontecia nos porões.

A partir de 1976, Bierrenbach e R.O. tornaram-se paladinos do combate à “tigrada” que se apoderara do aparelho repressivo da ditadura. O general deixou o STM em 1979, quando lhe foi negada a vez para assumir sua presidência. O almirante fez o que pôde para apurar o atentado do Riocentro, de 1981, em que morreu o sargento do DOI quando explodiu a bomba que tinha no colo.

Para buscar a rima, é preciso voltar a 1976. Em janeiro, o presidente Ernesto Geisel havia demitido o general comandante da guarnição de São Paulo depois da morte do operário Manoel Fiel Filho numa cela do DOI. Fiel era o terceiro preso “suicidado” naquele DOI desde agosto de 1975. Punham-se bombas em bancas de jornais que vendiam semanários oposicionistas. Para desgosto da “tigrada”, desde fevereiro, R.O. defendia um caminho para o retorno à normalidade democrática. (O telefone de seu filho, tenente-coronel, estava grampeado.)

Três semanas antes da fala de Bierrenbach, na noite de 22 de setembro de 1976, uma patrulha terrorista sequestrou o bispo de Nova Iguaçu, Dom Adriano Hipólito, pintou-o de vermelho e deixou-o numa beira de estrada. Explodiram seu carro perto da sede da Conferência Nacional dos Bispos e de lá seguiram para o Cosme Velho, onde puseram outra bomba na casa do jornalista Roberto Marinho, dono das Organizações Globo.

Ela explodiu embaixo da janela do quarto de dormir. Marinho e sua mulher foram derrubados da cama. Ele convocou o detetive particular Bechara Jalkh e, em três meses, o atentado foi esclarecido. (Um dos terroristas havia sido repórter do GLOBO.)

Na patrulha estava pelo menos um oficial oriundo do Centro de Informações do Exército e do Serviço Nacional de Informações. Em 1968, ele participara de atentados a teatros e vinha redigindo panfletos contra o governo. Num deles, insultou o general Newton Cruz, que morreu há poucos dias. Tomou de volta um telefonema típico do temperamento de “Nini”, como era conhecido o general.

Os ministros do STM reagiam também diante do novo fenômeno. A “tigrada” da repressão política havia produzido uma milícia terrorista. Todo mundo sabia de onde saíam as bombas, mas, assim como desde 1964 não se apurava quem torturava presos, não se apuraram os atentados.

Foi preciso que a bomba do DOI explodisse cinco anos depois no colo do sargento para que o país se desse conta da ação daqueles milicianos no estacionamento do Riocentro. A História não se repete, mas rima.

Élio Gáspari é Jornalista. Autor de 5 livros sobre a ultima ditadura militar no Brasil. Publicado originalemnte n'O Globo, em 20.04.22.

Emendas parlamentares: no resto do mundo é assim?

O que se faz aqui não é comum. Distorcemos o Orçamento ao extremo, jogamos dinheiro fora e enfraquecemos a democracia.

As emendas parlamentares ao Orçamento da União cresceram e se tornaram, em sua maioria, despesas obrigatórias. Com valor total de R$ 36 bilhões, já representam 24% da soma de despesas discricionárias e emendas. A maior parte das emendas se refere a gastos de caráter local, focalizados em municípios ou Estados específicos, e atende interesses eleitorais ou pessoais específicos de cada parlamentar.

Analistas de finanças públicas apontam os valores e o modus operandi dessas emendas como uma distorção que implica queda na qualidade das políticas públicas, aumento da despesa, distorção do processo eleitoral e perda de governabilidade pelo Poder Executivo federal. A imprensa revela, dia após dia, novas modalidades de corrupção envolvendo essas verbas.

Por outro lado, os defensores do uso e da ampliação das emendas argumentam que esse tipo de procedimento é normal em sociedades democráticas e ocorre em outros países. Será que é verdade? Num estudo publicado pelo Instituto Millenium, comparo o processo orçamentário brasileiro com o de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da América Latina. Percebe-se que somos claramente um ponto fora da curva.

A OCDE dispõe de um banco de dados descritivo das práticas orçamentárias de seus países-membros. À pergunta “no último ano fiscal, qual foi o montante total de alterações feitas pelo Legislativo no orçamento apresentado pelo Executivo?”, a maioria dos países reportou valores que são inferiores a 0,01% da despesa primária discricionária. Entre os que têm maior intervenção aparecem Portugal, com 0,48%; EUA (2,4%); Eslováquia (5,5%); e Estônia (12,3%). Esses números não chegam perto dos 24% do Brasil.

Recentemente, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (Utao) da Assembleia da República de Portugal analisou o processo orçamentário daquele país. Apontou como problema de primeira ordem o grande número de emendas ao orçamento. Assim se expressa o relatório: “Haver centenas de Propostas de Alteração (PA) à POE (Proposta de Orçamento do Estado) para discutir e votar todos os anos num prazo curto é um problema sério e que se vem agudizando nos últimos anos. (...) As PA são entregues sem nenhum documento técnico de apoio. Isso significa que são ponderadas e votadas sem que se conheça a justificação técnica quanto à sua utilidade nem evidência quanto à sua exequibilidade ou capacidade de execução operacional pelos Serviços das AP (Administrações Públicas). Muito menos há informação técnica sobre as consequências financeiras para os contribuintes e sobre os resultados para os beneficiários e os prejudicados pelas medidas propostas. (...) Chegados a esta situação extrema, é tempo dos cidadãos e dos atores políticos se questionarem sobre a sanidade do processo. Não haverá uma maneira mais amiga da razão de deliberar sobre o Orçamento do Estado para o ano seguinte, e em respeito absoluto pela democracia?”.

Pois bem, se o problema é grave em Portugal, onde em 2021 foram submetidas 1.547 emendas e aprovadas 287, o que dizer do caso brasileiro, que teve 7.014 emendas apresentadas e 6.522 aprovadas em 2022?

Nos EUA há uma tradição de emendas similares às brasileiras, lá apelidadas de pork barrel projects, voltadas para investimentos feitos com recursos federais nas bases eleitorais dos congressistas. Uma organização não governamental voltada a fiscalizar e denunciar abusos nessas emendas (Citizens Against Government Waste – CAGW) dispõe de estatísticas sobre os valores envolvidos. Foram apenas 285 emendas em 2021 (menos de 5% das 6,5 mil emendas brasileiras), envolvendo recursos equivalentes a 2,3% das despesas primárias discricionárias, já excluídas aquelas com defesa nacional.

Para comparar com a situação brasileira, selecionei as emendas parlamentares mais parecidas com os pork barrel projects, que são aquelas voltadas para investimentos e que têm clara identificação do Estado ou município beneficiário. Esse subconjunto de emendas representa 12% da despesa discricionária. O nosso “pork” é 5 vezes maior que o dos EUA!

A OCDE também analisou o orçamento de países da América Latina. Uma das perguntas feitas aos países foi: “Em que nível de detalhe o Legislativo aprova as dotações orçamentárias?”. Como se sabe, os orçamentos públicos são divididos em vários níveis: há a despesa global, que se desdobra em despesas por programas, que são detalhados em ações específicas, e essas em itens específicos de gastos. Somente os Parlamentos do Brasil e do Chile têm o poder de alterar o orçamento no detalhe, mexendo em rubricas abaixo do nível de classificação por programa. Porém, no Chile, o Legislativo só pode reduzir despesa.

Portanto, nos países da América Latina para os quais há dados disponíveis, apenas no Brasil é dado ao Parlamento poder para alterar e aumentar detalhes das despesas. Fazendo-o sem uma noção de conjunto e sem obedecer a um planejamento das políticas públicas, as verbas são pulverizadas e desperdiçadas.

Não procede, portanto, o argumento de que o que se faz aqui é comum no resto do mundo. Distorcemos o Orçamento ao extremo, jogamos dinheiro fora e enfraquecemos a democracia.

Marcos Mendes, o autor deste artigo, é  doutor em economia e pesquisador associado do INSPER. Publocado originariamente n'O Estado de S. Paulo, em 20.04.22.

Armadilha fiscal como herança

A continuar na atual toada, Bolsonaro vai deixar para o próximo governo despesas sem receita suficiente e vantagens tributárias permanentes baseadas em fatores temporários   

A avidez com que o presidente Jair Bolsonaro busca apoio e votos para reeleger-se custará caro para quem ocupar a Presidência da República a partir de 1.º de janeiro de 2023 – mesmo que seja ele mesmo, embora as pesquisas indiquem que, no momento, essa não é a hipótese mais provável. De vantagens tributárias para setores econômicos e segmentos sociais que Bolsonaro considera parte de sua base política a promessas de benefícios para grupos mais amplos, vai se formando um conjunto de bondades que imporão aumento de gastos ou quebra de arrecadação. Uma armadilha fiscal está sendo sistematicamente montada pelo governo com objetivos puramente eleitorais. Se não desmontada a tempo pelo próximo presidente, tornará muito mais difícil a superação dos problemas que o País enfrenta, e que poderão piorar. O legado de devastação que este governo deixará e tem sido descrito nesta página é formado também por promessas populistas que agravarão os problemas financeiros do setor público.

O aumento de 5% para todos os servidores federais é um exemplo perfeito da armadilha montada pelo governo e retrata com perfeição o modo de agir de Bolsonaro quando se trata de conquistar apoio eleitoral – que tem sido seu único objetivo desde que tomou posse. O problema começou com a promessa de aumento restrito a carreiras ligadas à segurança, área de particular interesse do presidente. Para isso, foi reservada verba de R$ 1,7 bilhão no Orçamento de 2022.

Como era previsível, outras categorias do funcionalismo, especialmente as mais organizadas e mais bem remuneradas, protestaram e passaram a exigir aumentos. Temendo a ampliação de paralisações ou operações-padrão que já prejudicavam a liberação de cargas nos portos e aeroportos, impediam a divulgação de relatórios econômico-financeiros e podiam comprometer o atendimento nos postos do INSS, o governo anunciou o aumento linear de 5% para todos os funcionários.

As diferentes categorias reagiram ao anúncio, por considerarem a correção insuficiente diante da inflação de mais de 10% ao ano. As que já estavam mobilizadas disseram que continuarão a exigir reajustes maiores. E as que seriam beneficiadas pelo aumento anunciado inicialmente por Bolsonaro – policiais federais, policiais rodoviários federais e agentes penitenciários federais – também reclamaram, porque o novo reajuste é muito menor do que estavam esperando.

Há risco de que, diante da resistência dos servidores, o índice de correção seja alterado ou benefícios específicos sejam concedidos para algumas carreiras. Do ponto de vista orçamentário, não há recursos suficientes nem para pagar o aumento de 5% que já vem gerando protesto em todo o serviço público. O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2023 reservou R$ 11,7 bilhões para o aumento do funcionalismo. Nas contas do secretário especial de Tesouro e Orçamento do Ministério da Economia, Esteves Colnago, o reajuste linear anunciado implica gastos adicionais de R$ 12,6 bilhões no ano que vem. Só aí já faltam R$ 900 milhões.

O pagamento dos precatórios agendado para 2023 também não está adequadamente programado, o que poderá resultar em despesas adicionais na casa dos bilhões de reais. No ano passado, numa lambança legal e fiscal sintetizada na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Precatórios, o governo Bolsonaro destruiu o teto de gastos ao abrir, malandramente, espaço para gastos acima do limite máximo inscrito na Constituição. “O teto de gastos é apenas um símbolo, uma bandeira de austeridade”, disse na ocasião o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Isenções ou reduções expressivas de alíquotas de tributos, como o IPI, e a prometida elevação do limite de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física tendem a ser medidas permanentes, mas sua justificativa, o aumento da arrecadação, tem efeito momentâneo.

“Existe a necessidade de ajuste fiscal”, reconhece o secretário de Tesouro e Orçamento. Parece voz isolada num governo que demonstrou total irresponsabilidade na área fiscal.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 20 de abril de 2022 | 03h00

A consulta de Lula ao Exército

No auge da crise, Bolsonaro chegou a cogitar até mesmo mandar tropas para o Supremo

 Sem rodeios, emissários de Lula querem saber se o ex-presidente conseguirá tomar posse, caso seja eleito. Foto: André Dusek/Estadão

Emissários do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva têm sondado generais da cúpula do Exército. Sem rodeios, querem saber se Lula conseguirá tomar posse, caso seja eleito. A resposta não foge ao script: nada impedirá o vencedor, qualquer que seja ele, de assumir a cadeira no Palácio do Planalto.

Um dos interlocutores de Lula e dos militares de alta patente é o ex-ministro da Defesa e da Justiça Nelson Jobim, que também comandou o Supremo Tribunal Federal. “A impressão que fico, nessas conversas, é a de que as Forças Armadas são totalmente legalistas”, disse Jobim ao Estadão.

(Paulinho critica 'salto alto' de petistas, mas declara apoio a Lula após reunião)

Na cerimônia desta terça-feira, 19, em homenagem ao Dia do Exército, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que as Forças Armadas “não dão recados” e “sabem” o que é melhor para o povo. “Não podemos jamais ter eleições no Brasil sobre as quais paire o manto da suspeição”, discursou. Apesar da frase de efeito, ele condecorou magistrados e até “elogiou” Luís Roberto Barroso, o ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral a quem já se referiu como “filho da p...”.

A nova estratégia não convenceu. Diante da retórica golpista de Bolsonaro, há temor no mundo político, jurídico e até na Faria Lima sobre o rumo dessa prosa. Com o presidente sempre próximo das polícias militares, pregando compra de armas para enfrentar “um ditador de plantão”, qual será a reação de seus discípulos mais radicais se ele for derrotado?

Os escândalos e absurdos se sobrepõem de tal forma que ninguém parece mais se recordar do que foi dito nesta terça-feira. “Tem que comprar fuzil, pô!”, chegou a afirmar Bolsonaro, em agosto, para um grupo de apoiadores. Alguém se lembra?

Não foi à toa que o TSE convidou observadores internacionais para acompanhar as eleições no Brasil. Bolsonaro não para de pregar o voto impresso, de levantar suspeitas sobre urnas eletrônicas e de xingar magistrados. No auge da crise, em maio de 2020, cogitou até mesmo mandar tropas para o Supremo.

Descrente da terceira via e anfitrião de um almoço que reuniu Lula e o também ex-presidente Fernando Henrique, no ano passado, Jobim tentou mais de uma vez, nos bastidores, um acordo entre o PT e o PSDB. Não conseguiu. Antes da disputa de 2018, dizia que, sem esse entendimento, o eleito poderia ser um “Donald Trump caboclo”. Foi profético.

Vivemos uma quadra em que todos os demônios se liberaram, como definiu Barroso. Faltam menos de quatro meses para agosto, mês do cachorro louco e do início oficial das campanhas. Mas, ao contrário do que muitos observam, o Trump caboclo ainda tem café quente para servir no Planalto.

Vera Rosa, O Estado de S.Paulo, em 20 de abril de 2022 | 03h00

Partidos gastam milhões de dinheiro público com presidenciáveis em cenário eleitoral incerto

Legendas devem desembolsar, cada uma, cerca de R$ 3 milhões em viagens, ações nas redes e contratação de marqueteiros antes do início formal da corrida presidencial

     Nesta etapa anterior à campanha, a legislação autoriza que os partidos se promovam, façam eventos e explorem seus presidenciáveis como porta-vozes. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Antes mesmo do início formal da corrida presidencial, em meados de agosto, os partidos dos principais pré-candidatos registram despesas milionárias para promoção dos futuros concorrentes. Entre viagens, contratação de marqueteiros e impulsionamentos nas redes sociais, as siglas estimam que terão de consumir, em média, mais de R$ 3 milhões cada uma para promover os presidenciáveis entre o eleitorado até o início efetivo da briga por votos.

O dinheiro utilizado nesta etapa é principalmente do Fundo Partidário, que, no ano passado, consumiu R$ 1 bilhão de dinheiro público. Contudo, os partidos dos dois principais concorrentes mantêm os números sob reserva. O PL do presidente Jair Bolsonaro e o PT do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não quiseram informar à reportagem quanto já gastaram ou pretendem gastar nesta fase da disputa.

Nesta etapa anterior à campanha, a legislação autoriza que os partidos se promovam, façam eventos e explorem seus presidenciáveis como porta-vozes. A estratégia permite que os políticos se apresentem aos eleitores, participem de comemorações e discutam ideias e propostas.

Apesar de passar por uma crise interna, o PSDB já reservou R$ 2,8 milhões para a pré-campanha de João Doria. Eduardo Leite, pré-candidato não oficial dos tucanos, não tem acesso aos recursos do diretório nacional do PSDB. No entanto, pode usar o dinheiro do diretório gaúcho. Leite deixou o governo do Rio Grande do Sul e está percorrendo o País em eventos e tentando se viabilizar na chapa da emedebista Simone Tebet. Ele diz não ter feito qualquer solicitação à cúpula tucana e que não tem estimativas de despesas.

O MDB prevê R$ 3,5 milhões para Simone Tebet e o PDT fechou um contrato mensal no ano passado de R$ 250 mil com o marqueteiro João Santana – que atua na pré-campanha de Ciro Gomes. A pré-campanha de Felipe d’Avila (Novo) afirmou que já gastou R$ 500 mil, mas disse que não utilizou recursos do partido.




O Podemos afirmou que a breve pré-candidatura de Sérgio Moro ficou na casa dos R$ 3 milhões. Após agendas intensas como representante do partido, o ex-juiz migrou para o União Brasil.

“Nada impede que se divulgue a liderança do partido. O que não pode ter é nenhum tipo de promoção pessoal com os recursos financeiros do partido. Normalmente, contratam agências para fazer pesquisas e monitoramentos de redes com vistas a uma candidatura, e não direcionada a um candidato”, disse o presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB, Eduardo Damian.

Dirigentes do PL de Bolsonaro afirmaram que as despesas partidárias com a pré-campanha à reeleição ainda são tímidas. O atual presidente tem a vantagem de dispor de avião oficial e de toda a estrutura do governo para cumprir agendas com tom de campanha, mesmo que formalmente justificadas como participações em eventos oficiais do Planalto.

Somente as maiores “motociatas” realizadas por Bolsonaro no ano passado custaram R$ 3 milhões, considerando apenas os pagamentos feitos pela Secretaria-Geral da Presidência divulgados por meio da Lei de Acesso à Informação. Nesses eventos, o presidente costuma festejar com aliados, exibir capital político com apoio popular nas ruas e criticar adversários e instituições. Somente após iniciada a campanha o partido assume a obrigação de ressarcir o poder público com os gastos com deslocamento do presidente.

Em paralelo aos gastos governamentais com atos eleitoreiros de Bolsonaro, vêm do partido algumas das despesas estratégicas para a campanha de Bolsonaro. A pesquisa que identificou que a população “não sabe o que o governo fez” foi encomendada pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto, e está direcionando a estratégia eleitoral de Bolsonaro. Também coube ao diretório planejar e lançar o slogan que marcou a filiação de Bolsonaro: “o presidente que faz o maior programa social do mundo agora é do PL”.

“Há toda uma discussão sobre pré-campanha e regulamentação de pré-campanha. Obviamente, o custeios dos pré-candidatos seriam inseridos nesse contexto. Hoje não funciona assim. Regularmente é usado o Fundo Partidário e alguns, obviamente, usam dinheiro de caixa 2”, disse o advogado Acacio Miranda da Silva Filho, especialista em Direito Eleitoral.

No PT, a contratação do marqueteiro Augusto Fonseca ampliou um embate na pré-campanha de Lula. Como mostrou o Estadão, o primeiro orçamento apresentado pela agência de Fonseca foi de R$ 45 milhões para ações de comunicação.

A briga pelo controle dos recursos milionários se tornou o ponto central das divergências entre os grupos do ex-ministro Franklin Martins – conselheiro mais próximo de Lula – e o do secretário de Comunicação do PT, Jilmar Tatto.

A presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, afirmou que a sigla continua a negociar valores com o marqueteiro. “Isso não é um problema relevante. Estamos negociando”, disse a deputada.

Vinícius Valfré, Luiz Vassallo e Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo, em 20 de abril de 2022 | 05h00