terça-feira, 19 de abril de 2022

Putin mira inimigos em casa enquanto seus mísseis atingem a Ucrânia

Governo russo tem incluído dezenas de críticos do Kremlin no registro de ‘agentes estrangeiros’, em táticas que têm tido sucesso na erosão das liberdades civis no país


Presidente Vladimir Putin a centro de lançamento espacial de Vostochny , em 12 de abril  Foto: MIKHAIL KLIMENTYEV / AFP

REUTERS - Muito antes da invasão da Ucrânia por Vladimir Putin e das detenções em massa de manifestantes russos protestando pela paz, o Kremlin já estava sufocando a dissidência – com uma burocracia asfixiante.

(Novo carregamento de armas americanas chega à fronteira da Ucrânia)

Em 2021, o Kremlin apertou os parafusos sobre dissidentes – incluindo apoiadores do líder da oposição preso, Alexei Navalni, usando uma combinação de prisões, censura e listas de pessoas perseguidas. A repressão acelerou depois que a Rússia invadiu a Ucrânia. Agora, uma análise da agência Reuters e entrevistas com dezenas de pessoas mostram o sucesso dessas táticas na erosão das liberdades civis.

Uma arma utilizada no arsenal do Kremlin é o registro de “agentes estrangeiros”. As pessoas cujos nomes aparecem nesta lista são monitoradas de perto pelas autoridades. Entre elas está Galina Arapova, advogada que dirige o Centro de Defesa dos Meios de Comunicação de Massa, ONG que defende a liberdade de expressão com sede em Voronezh, no oeste da Rússia.



O Ministério da Justiça declarou Arapova, de 49 anos, uma “agente estrangeira” em 8 de outubro. Ela não foi informada sobre o motivo. A designação traz um escrutínio da vida cotidiana de Arapova e uma montanha de burocracia. Ela deve apresentar um relatório trimestral ao Ministério da Justiça detalhando suas receitas e despesas, incluindo idas ao supermercado. O relatório possui 44 páginas. A Reuters revisou um desses relatórios.

A cada seis meses, os “agentes estrangeiros” devem prestar contas ao ministério de como passam seu tempo. Alguns aposentados listam suas tarefas domésticas. Arapova afirma em seu relatório que trabalha como advogada, sem saber se está fornecendo detalhes suficientes.

Ela oferece aconselhamento jurídico a outros “agentes estrangeiros”, mas diz que muitas vezes não sabe o que as regras exigem. Ela imprime e envia o relatório para o ministério, com as páginas cuidadosamente grampeadas. Se faltar uma página ou o relatório chegar atrasado, ela pode ser multada. Violações repetidas podem levar a processos e até 2 anos de prisão.

A Reuters enviou perguntas detalhadas ao Kremlin, ao Ministério da Justiça e a outras agências russas sobre as regras impostas aos “agentes estrangeiros”. Ninguém fez qualquer comentário.

A dissidência na Rússia

Bandeiras georgianas e ucranianas em Tbilisi, Geórgia, onde 20 mil russos chegaram desde o início da guerra na Ucrânia, 12 de março de 2022

Pressionados por Putin e por sanções, russos vão para o exílio em busca de opções

Milhares de russos viram suas vidas confortáveis de classe média desaparecer da noite para o dia com a invasão da Ucrânia

Dissidência interna sobre liderança de Putin cresce com falta de resultados militares na Ucrânia

Fracassos da campanha de Putin se evidenciam no número estarrecedor de comandantes militares graduados que, acredita-se, foram mortos em combate

Perseguidos por Putin, jornalistas russos tentam manter cobertura do exterior

Repressão da mídia na Rússia que se seguiu à invasão da Ucrânia dizimou uma comunidade jornalística já quase extinta por anos de opressão

A burocracia não para por aí. As pessoas consideradas “agentes estrangeiros” devem constituir uma entidade legal, como uma Sociedade de Responsabilidade Limitada. Ela também é adicionada à lista de “agentes estrangeiros” e deve relatar suas atividades às autoridades.

O processo envolve encontrar instalações para registrar uma pessoa jurídica, elaborar selos e assinaturas eletrônicas, enviar documentos ao serviço fiscal e abrir uma conta bancária da empresa. A empresa tem de passar por auditorias anuais. Mas, como explica Arapova, os auditores não gostam de clientes com status de “agente estrangeiro”, e quem faz o trabalho costuma cobrar muito.

Ela estima que o cumprimento dos requisitos até agora lhe custou cerca de € 1.000. As despesas serão adicionadas a essa soma quando sua Sociedade de Responsabilidade Limitada passar por uma auditoria. Ainda mais caro é o tempo infinito gasto para atender aos requisitos.

“Isso tira tempo do meu trabalho e causa muito estresse psicológico”, disse ela. “Quando você é forçado a fazer esse tipo de coisa burocrática e humilhante sem sentido, é uma espécie de tortura psicológica.”

Tortura

E esse, dizem analistas, é o objetivo do Kremlin. Esses registros, segundo Ben Noble, professor de política russa na University College London, são “parte de um projeto mais amplo, que envolve agir contra indivíduos que criticam o governo e tentar impedir as pessoas de se envolverem com a oposição e intimidar o jornalismo crítico e independente, enquadrados como traidores.” “A repressão que estamos vendo agora é uma escalada espetacular de tendências já em evidência nos últimos anos”, disse Noble.

A Reuters entrou em contato com 76 pessoas da lista de “agentes estrangeiros” compilada pelo Ministério da Justiça e publicada em seu site. Sessenta e cinco responderam a uma série de perguntas sobre como a designação as afetou. Essas pessoas incluem jornalistas, aposentados, ativistas e artistas. Todos críticos do Kremlin.

Os entrevistados, todos cidadãos russos, negaram trabalhar para uma potência estrangeira. A maioria disse que não recebeu nenhuma explicação para sua inclusão na lista. Vários perderam o trabalho ou foram forçados a mudar de emprego. Outros disseram que deixaram a Rússia, pois não se sentiam mais seguros.

Dezenas disseram que reduziram sua atividade de mídia social porque tudo o que publicam, até mesmo postagens pessoais, devem conter um aviso de 24 palavras que os identifica como um “agente estrangeiro”.

Economia russa começa a rachar com peso de sanções

As sanções aplicadas por países ocidentais começam a impactar a economia russa. O risco de uma moratória da dívida se agrava e a inflação ameaça disparar.

Desde a invasão da Ucrânia, pelo menos cinco pessoas registradas disseram que foram brevemente detidas por envolvimento em protestos contra a guerra ou durante a realização de reportagens relacionadas à guerra.

Muitos críticos acusam Putin de trazer de volta a repressão ao estilo da era soviética. O Kremlin diz que está aplicando leis para impedir o extremismo e proteger o país do que descreve como influência estrangeira maligna.

Lista em expansão

Quando se trata da Ucrânia, Putin diz que está realizando uma “operação especial” que não é projetada para ocupar território, mas para destruir as capacidades militares de seu vizinho do sul, para “desnazificá-lo” e impedir o genocídio contra os falantes do russo, especialmente no leste do país. A Ucrânia e seus aliados ocidentais chamam isso de pretexto infundado para uma guerra com o objetivo de conquistar um país de 44 milhões de pessoas.

A lei dos “agentes estrangeiros” foi introduzida em 2012 e destinada a ONGs politicamente ativas que recebiam financiamento do exterior. A atividade política pode abranger trabalho jurídico e de direitos humanos ou jornalismo, disse Arapova.

A lei evoluiu para abranger um número cada vez maior de grupos e pessoas. Em 2017, o Ministério da Justiça da Rússia começou a designar os meios de comunicação como “agentes estrangeiros”. Em dezembro de 2020, as autoridades usaram a designação de uma nova maneira – rotularam indivíduos como “agentes estrangeiros” pela primeira vez.

Veronika Katkova, uma aposentada de 66 anos, que monitora as eleições para a organização de direitos de voto Golos, na região russa de Oriol, ao sul de Moscou, foi adicionada à lista no final de setembro de 2021. Isso foi logo após as eleições parlamentares que a oposição disse terem sido manipuladas em favor do partido Rússia Unida, de Putin.

Jornalista russa protesta durante transmissão ao vivo de telejornal do Chanel One , em 15 de março Foto: EFE

A Golos alegou que houve violações generalizadas na votação, o que o Kremlin negou. Katkova acredita que foi rotulada como “agente estrangeira” por causa de seu envolvimento com a Golos. As autoridades russas não responderam a perguntas sobre o assunto.

Como “agente estrangeira”, ela reporta trimestralmente todas as suas despesas ao Ministério da Justiça, incluindo alimentação, remédios e transporte, e a cada seis meses reporta suas atividades, como limpar a casa e cozinhar. Em janeiro, ela esqueceu de adicionar a um post o aviso sinalizando sua designação de agente estrangeira. O regulador de comunicações do país abriu um processo contra ela, que pode levar a uma multa.

Lyudmila Savitskaya, jornalista freelancer da região de Pskov, na Rússia, que faz fronteira com os Estados bálticos e uma das primeiras pessoas a serem adicionadas à lista, em dezembro de 2020, disse que a designação lhe deixou sem privacidade. “O Estado sabe tudo o que faço, como são minhas contas bancárias e despesas, onde vou e quais medicamentos compro.”

Trinta pessoas da lista disseram à Reuters que deixaram a Rússia. A jornalista Yulia Lukyanova, de 25 anos, é uma delas. Ela agora vive na capital da Geórgia, Tiblisi, onde muitos outros russos dissidentes estão se estabelecendo.

Os russos podem ficar na Geórgia, uma ex-república soviética, por até um ano sem visto. Mas alguns georgianos se ressentem de sua presença, com as memórias da invasão russa de 2008 ainda frescas. Lukyanova compartilhou uma foto de um adesivo antirrusso que, segundo ela, apareceu em sua rua. Mostra uma boneca matrioshka com dentes afiados. Ela acredita que os georgianos temem que, se seu país abrigar russos dissidentes, possa se tornar um alvo do Kremlin.

Lukyanova se opõe à guerra da Rússia na Ucrânia. “Eu não quero que as pessoas sejam enviadas para lutar em uma guerra que não escolheram, sejam presas por protestar contra ela ou realizar reportagens a respeito como jornalistas.”

Avanços e contraofensiva

(Rússia ataca bases em Lviv enquanto soldados ucranianos negam rendição em Mariupol)

Elizaveta Surnacheva, de 35 anos, jornalista de Moscou, mudou-se para Kiev em março de 2020, depois para Tiblisi e, finalmente, para Riga. Seu marido ucraniano, que está em idade de lutar, ficou na Ucrânia.

“É muito assustador”, disse Surnacheva. “Mesmo nos meus piores pesadelos, não podia imaginar que estaria discutindo com meu marido qual cobertor o protegeria melhor dos fragmentos do espelho do banheiro se ele se protegesse lá em uma explosão. Meu sonho agora é voltar para uma Ucrânia livre e ajudar a reconstruir Kiev e nossa vida lá.”

Ela continuou a adicionar o aviso de agente estrangeira em suas postagens nas mídias sociais, mesmo depois de deixar a Rússia, pois queria poder ir para casa visitar seus pais. Mas isso mudou em 24 de fevereiro, quando as tropas russas entraram na Ucrânia e a repressão de Putin contra seus oponentes domésticos se intensificou.

Agora Surnacheva e pelo menos 20 “agentes estrangeiros” entrevistados pela Reuters dizem que temem retornar à Rússia e serem presos ou perseguidos. “Tomei a decisão de não seguir mais nenhuma dessas regras de ‘agente estrangeiro’”, disse. “Está claro para mim que não irei à Rússia nos próximos anos.”

Processos

Outros enfrentaram consequências após serem acusados de não cumprirem as exigências da lei para agentes estrangeiros. Pelo menos nove pessoas da lista disseram que foram multadas ou tiveram processos abertos contra elas. A multa financeira pode chegar a 300 mil rublos (US$ 3,6 mil).

Como muitos outros, Arapova, a advogada de mídia, contestou sua inclusão no registro de “agentes estrangeiros”. Em uma audiência em fevereiro, ela soube que uma das razões para sua designação foi que ela recebeu financiamento estrangeiro – um pagamento de US$ 400 por falar em uma conferência na Moldávia sobre proteção de dados na Europa.

Lukyanova, a jornalista, recebeu uma explicação semelhante em seu recurso. Ela trabalhava para a Proekt, uma agência de notícias investigativa russa, cuja editora Project Media está registrada nos EUA. Isso significava que ela recebia salário estrangeiro.

Em 2021, o Ministério da Justiça declarou a Project Media uma organização “indesejável”, forçando-a a encerrar suas operações na Rússia. O cadastro de organizações “indesejáveis” começou com quatro nomes em 2015; agora, contém 53.

As pessoas que contestaram sua inclusão na lista de “agentes estrangeiros” também receberam outros motivos, como republicar conteúdo de outros “agentes estrangeiros” e transferir dinheiro de contas bancárias estrangeiras para suas contas russas. Até agora, ninguém conseguiu remover seu nome da lista.

‘Extremistas’

No início da manhã de 15 de fevereiro de 2019, policiais armados e agentes de inteligência invadiram a casa de Timofey Zhukov, em Surgut, uma cidade petrolífera no oeste da Sibéria. Eles o derrubaram no chão e começaram a revistar seus pertences.

Foi uma das pelo menos 20 batidas policiais em Surgut naquele dia. Ele disse que todos os alvos eram Testemunhas de Jeová, uma organização que havia sido banida na Rússia dois anos antes, depois que a Suprema Corte a considerou extremista. As autoridades russas argumentaram que a organização promove suas crenças como superiores a outras religiões.

Zhukov e seus companheiros de religião foram detidos para interrogatório e acusados de “continuar as atividades de uma organização extremista”, um crime que pode levar à prisão. As autoridades russas não responderam a perguntas da Reuters sobre o assunto.

Zhukov, que se formou como advogado, disse à Reuters que ele e os outros não fizeram nada ilegal. “A filial Surgut das Testemunhas de Jeová foi fechada após a proibição”, disse Zhukov. “Mas continuamos acreditando, independentemente de haver uma entidade legal”.

O caso de Zhukov ainda está tramitando nos tribunais. Mas seu nome já consta no registro de “terroristas e extremistas” e ele não pode viajar para fora da cidade sem permissão.

A lista de “terroristas e extremistas” tem crescido constantemente. No final de 2021, havia mais de 12.200 indivíduos e grupos no registro, um aumento de 13% em relação ao ano anterior.

 Por Lena Masri, da Reuters. TRADUÇÃO DE LÍVIA BUELONI GONÇALVES. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 19.04.22.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Arquitetura da impunidade

Indícios de desvios são abundantes. Se houve crime ou não, cabe à Justiça decidir, mas o fato é que Bolsonaro cultiva condições propícias ao florescimento da corrupção

   O presidente Jair Bolsonaro se jacta de não haver corrupção em seu governo. Mas, se não houve, ainda, condenação na Justiça, os indícios são abundantes.

Para ficar só no ano de 2021: o então ministro do Meio Ambiente foi acusado de dificultar a fiscalização ambiental e patrocinar interesses privados de madeireiros ilegais; o superintendente do Ministério da Saúde do Rio de Janeiro foi demitido após assinar contratos sem licitação para reformas dos prédios da pasta; o Ministério da Saúde firmou um compromisso de compra de vacinas por um preço 1.000% maior do que o anunciado pelo fabricante e seu ex-diretor de Logística foi acusado de pedir propina para autorizar a compra de vacinas. Em 2022, o Estadão revelou que dois pastores atuavam em nome do Ministério da Educação (MEC) para privilegiar municípios na distribuição de recursos; agora, vêm à tona indícios de compras com sobrepreço e improbidade na gestão do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

A Justiça decidirá se nesses casos – assim como em relação aos indícios de peculato (“rachadinha”) de Bolsonaro e seus filhos no exercício de seus mandatos parlamentares – houve ou não crime. Mas desde já é demonstrável que há um modus operandi propício ao florescimento da corrupção.

Como apontou ao Estadão o economista Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, desde 2016 a Lei Anticorrupção e o aumento do controle sobre as empresas dificultaram os megaescândalos que grassaram na gestão petista, como o mensalão e o petrolão. Hoje, “o que resta em termos de negociação para um governo fraco é a corrupção do varejo”.

A cultura do segredo está disseminada. O gabinete secreto do MEC espelha um outro, revelado na CPI da Pandemia: o do Ministério da Saúde. Em maio, o Estadão revelou que Bolsonaro e seus suseranos do Centrão maquinaram um orçamento secreto de bilhões em emendas parlamentares distribuídos às bases do governo.

Bolsonaro subverteu a lógica elementar da administração pública: a transparência, que deveria ser a regra, transformou-se na exceção. O governo tentou ampliar a discricionariedade de servidores para classificar documentos como sigilosos e instrui seus ministros a negar pedidos via Lei de Acesso à Informação. Na pandemia, a opacidade foi tanta que a imprensa criou um consórcio para garantir informações confiáveis.

Há indícios de aparelhamento em todos os principais órgãos de controle: da Polícia Federal à Agência Brasileira de Inteligência, Receita, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional ou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras.

Mas, além da corrupção em seu sentido estrito, como tipo penal, o estilo Bolsonaro de governar propicia a corrupção em seu sentido amplo de corrosão, erosão, desintegração. Para ele, “governar” é “mandar”, e quando distingue interesses de Estado, de governo e de família, é só para sobrepor os últimos aos primeiros. É a política do “filé para os filhos”.

Além da transparência, não há um só dos demais princípios da administração pública (impessoalidade, eficiência, moralidade e legalidade) que não tenha sido degradado. O mesmo vale para as tentativas de corroer os alicerces do Estado democrático, como o processo eleitoral ou a participação da sociedade civil.

Os indícios de disseminação de notícias falsas por um “gabinete do ódio” se acumulam e devem aumentar no ano eleitoral. Só em 2021, o presidente já questionou, sem provas, a integridade do sistema eleitoral, ameaçou ignorar os resultados das eleições e pediu a cabeça de dois ministros do Supremo Tribunal Federal. Ao mesmo tempo, após seu indicado Kassio Nunes Marques assumir sua vaga na Corte, declarou: “Hoje, eu tenho 10% de mim no STF”. Depois, disse que as indicações para o STF em 2023 importam mais que as eleições. O motivo é indisfarçável: blindar amigos e garantir vista grossa à intimidação de inimigos.

Reza a sabedoria popular que quem não deve não teme. Então, por que tanto afinco em institucionalizar uma cultura do segredo e interferir em órgãos de controle?

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de abril de 2022 | 03h00

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Os eternos candidatos populistas

O atual embate a que o Brasil assiste lembra os estertores da República Romana, com o sangrento confronto entre Mário e Sila.

As eleições de outubro deste ano voltam a ter dois candidatos populistas, como ocorreu no segundo turno em 1989, entre Fernando Collor de Mello e Lula. Só que, desta vez, o radicalismo das legiões de fanáticos que seguem os dois notórios postulantes vai levar a campanha a níveis de baixeza nunca dantes experimentados.

Desde 1930, com a queda da Primeira República, houve sempre um líder populista que se apresentou como defensor do povo “contra os seus exploradores”. E estes “condutores do povo” sempre derrotaram os candidatos democráticos, civilizados, representados, primeiramente, pela antiga União Democrática Nacional (UDN), e que formulavam propostas coerentes para as grandes questões nacionais. Quem venceu o primeiro embate eleitoral entre essas duas forças foi o maior e mais longevo líder populista de nossa história, o ex-ditador Getúlio Vargas, à frente dos chamados queremistas; depois, por intermédio do seu preposto Eurico Gaspar Dutra, em 1946; e, novamente, por ele próprio, em 1951. Seguiram-se Juscelino Kubitschek, em 1956; Jânio Quadros, em 1961; Collor, em 1990; Lula, em 2003; sua preposta Dilma Rousseff, em 2011; e Jair Bolsonaro, em 2019.

Todos esses vitoriosos demagogos não têm nenhuma vocação democrática. Sempre estiveram e estão em busca de modelos autoritários na esquerda e na direita: Benito Mussolini, Hugo Chávez, Recep Erdogan, Fidel Castro, Viktor Orbán, Manuel Noriega, Juan Perón, Alberto Fujimori, Donald Trump, Vladimir Putin, etc.

Ocorre que no Brasil real estes ilusionistas do povo sempre se puseram a serviço do nosso secular patrimonialismo e corporativismo extrativista e predatório. A exceção foi Fernando Henrique Cardoso, na esteira do Plano Real. Foi o único presidente eleito com espírito público, que procurou modernizar o Estado, mas acabou entregando o poder, como os seus colegas populistas, ao arcaico e corrupto estamento político liderado pelo famigerado Centrão, coadjuvado por partidos falsamente oposicionistas.

O atual embate direto entre os nossos dois candidatos populistas lembra os estertores da República Romana, que nos anos 80 antes de Cristo experimentou o sangrento confronto eleitoral entre Mário e Sila, dois cônsules demagogos que se digladiaram pelo poder na Urbe. Essa disputa extremamente radicalizada levou à instauração da autocracia imperial, com a supressão da democracia romana, que havia se sustentado por quatro séculos (508 a.C. – 60 a.C.) na base da não reeleição para nenhum cargo (edil, pretor, tribuno, cônsul), do voto direto da cidadania e da supremacia da Assembleia democrática sobre o aristocrático Senado.

Descrevendo esses dois terríveis cônsules, Indro Montanelli (Storia di Roma) nos dá as características do líder populista: “Pessoa que tem o raro talento de conhecer os seres humanos e os meios de explorar, de forma fria e calculista, suas fraquezas e suas preferências”.

É exatamente isso. O político populista não tem nenhum compromisso, a não ser com o exercício do poder pelo poder e pelo doentio culto de sua personalidade. Faltam-lhe, sobretudo, caráter, ética, humanidade, amor ao próximo e preocupação com sua honra pessoal ou com os compromissos que falsamente assume perante o povo. Estes demagogos não têm noção do que sejam políticas públicas, permanentes ou de governo. Ao contrário, procuram, com discursos duais, encantar os eleitores apontando para inimigos imaginários: “nós e eles”, “o perigo comunista”, “a desagregação dos costumes”, etc. Procuram, sobretudo, incutir nos eleitores uma falsa sensação de que o povo partilha do poder, no permanente combate aos fictícios males que fantasiosamente apontam. Com um cínico discurso, praticam o estelionato eleitoral e político, enquanto formam uma legião que os segue, alimentada por símbolos criados ou usurpados, explorando as frustrações, fomentando ódios, sectarismos, fobias, racismos, e negando as conquistas do conhecimento.

Uma vez no gozo do poder, passam a culpar o mundo pelo desastre de sua administração, que sempre leva à degeneração do Estado e à desagregação da sociedade. Esta última acaba se dividindo em duas grandes facções fundadas no ódio, na mentira e na violência, separando famílias, gerações e dissolvendo amizades – desintegrando, enfim, os valores indispensáveis ao convívio social.

Enquanto tivermos o sistema de reeleição para presidente, governadores, senadores, deputados e vereadores; o voto proporcional, ao invés do voto distrital; o monopólio dos partidos impedindo o acesso independente da cidadania à vida pública; e, ainda, enquanto mantivermos o assalto oficial dos recursos públicos que permite o domínio dos políticos profissionais, eternamente reeleitos na base das emendas parlamentares ao Orçamento, do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral, não sairemos desta camisa de força que nos condena a viver sob o jugo de líderes populistas, com seus discursos falsos que nos infelicitam e destroem nosso presente e nosso futuro

Modesto Carvalhosa, o autor deste artigo, é Advogado. Autor de "Uma nova Constituição para o Brasil", ( LVM, 2021). Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 06.04.22.


Terceira via decide lançar um só candidato à sucessão de Bolsonaro

Tebet é a mais cotada para encabeçar chapa da aliança entre MDB, PSDB, União Brasil e Cidadania 

   

  A senadora Simone Tebet; antes da definição, o União Brasil ainda pretende submeter uma sugestão de nome à análise do grupo, até o próximo dia 14. Foto: Gabriela Biló/Estadão

Dirigentes do MDB, PSDB, União Brasil e Cidadania fecharam um acordo nesta quarta-feira, 6, e decidiram lançar apenas um candidato à Presidência da República. Mesmo assim, o grupo da terceira via só baterá o martelo sobre quem será o candidato no dia 18 de maio.

Até agora, o nome mais cotado para encabeçar a chapa única é o da senadora Simone Tebet (MDB-MS). O ex-governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite (PSDB) também se movimenta, mas admite ser vice, caso haja essa dobradinha. O impasse ocorre porque quem venceu as prévias do PSDB foi João Doria, ex-governador de São Paulo, e não Leite.

Em comunicado emitido após reunião em Brasília, as cúpulas dos quatro partidos declararam que o objetivo dessa aliança  é apresentar uma alternativa à polarização entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que hoje lideram as pesquisas. “Conclamamos outras forças políticas democráticas para que possam se incorporar a esse projeto em defesa do Brasil e de todos os brasileiros", diz a carta.

O texto é assinado pelo presidente do União Brasil, Luciano Bivar; do MDB, Baleia Rossi; do PSDB, Bruno Araújo; e do Cidadania, Roberto Freire. Antes da definição, o União Brasil ainda pretende submeter uma sugestão de nome à análise do grupo, até o próximo dia 14.

O ex-juiz Sérgio Moro se filiou ao União Brasil após deixar o Podemos, mas seu novo partido não quer que ele seja candidato à sucessão de Bolsonaro. A ideia é que Moro concorra a uma vaga na Câmara dos Deputados, por São Paulo. A cúpula do União Brasil avisou que no próximo dia 14 submeterá o nome indicado pelo partido para apreciação do MDB, PSDB e Cidadania.

Na tarde desta quarta-feira, Eduardo Leite se reuniu com Simone Tebet, no Senado. Nesta manhã, em entrevista à Rádio Eldorado, a senadora afirmou ver Leite como um "grande ativo do PSDB".

VINÍCIUS VALFRÉ, O Estado de S.Paulo, em 06 de abril de 2022 | 18h27

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Indignação contra Rússia aumenta após imagens de massacre, e UE pode banir importações de petróleo e carvão

Estados Unidos querem suspender russos de Conselho de Direitos Humanos da ONU, enquanto Moscou nega acusações e alega fraude

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, em Bucha, subúrbio de Kiev, nesta segunda-feira Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP

As acusações de crime de guerra contra a Rússia aumentaram nesta segunda-feira, após a divulgação pelo governo ucraniano de imagens de cadáveres abandonados em subúrbios de Kiev, sobretudo em Bucha, a 37 quilômetros da capital, no domingo, em um indício de massacres cometidos por forças russas.

Em um comunicado no qual condena as supostas execuções de civis, a União Europeia (UE) disse que prepara com urgências novas sanções para punir Moscou.

Em nome do bloco de 27 países, Josep Borrell, o principal diplomata da UE, responsabilizou “as autoridades russas por essas atrocidades, cometidas enquanto detinham o controle efetivo da área”. A nota diz que “a UE continuará a apoiar firmemente a Ucrânia e avançará, com urgência, no desenvolvimento de novas sanções contra a Rússia”.

UCRÂNIA DENUNCIA MASSACRE EM BUCHA; VEJA FOTOS

Corpo é encontrado baleado e com as mãos amarradas por pano branco em Bucha Foto: ZOHRA BENSEMRA / REUTERS

Cova comum próximo à igreja da cidade de Bucha, nos arredores da capital Kiev Foto: SERGEI SUPINSKY / AFP

Vasily, 55, passa pelo corpo de um parente, que, segundo ele, foi morto por soldados do exército russo Foto: ZOHRA BENSEMRA / REUTERS

Homem caminha próximo a corpo de vítima do massacre russo Foto: SERGEI SUPINSKY / AFP



Segundo a Otan, foram recolhidos cerca de 300 corpos pela ruas de Bucha Foto: SERGEI SUPINSKY / AFP

Corpos jazem em rua residencial, ao lado de carro carbonizado, em Bucha Foto: ZOHRA BENSEMRA / REUTERS

O presidente francês, Emmanuel Macron, defendeu a proibição das importações de carvão e petróleo da Rússia, avaliando que pode ser possível conseguir um consenso entre os países europeus para aprovar essa medida. No entanto, ele não pediu um embargo ao gás russo, crucial para países como Alemanha e Itália.

— Há indícios muito claros de crimes de guerra — disse Macron em entrevista a uma rádio francesa. — O que aconteceu em Bucha exige uma nova rodada de sanções e medidas muito claras. Então, vamos coordenar isso rapidamente com nossos parceiros europeus, especialmente com a Alemanha.

Embaixadores da UE devem discutir um novo pacote de sanções à Rússia na quarta-feira. O bloco, atualmente presidido pela França, até agora só se comprometeu a reduzir as importações da energia russa, temendo o impacto de uma proibição total sobre as economias da região.

As imagens, que foram divulgadas por autoridades ucranianas e ainda não puderam ser verificadas por fontes independentes, motivaram críticas de vários outros líderes internacionais, do Japão à Espanha.

Os EUA e o Reino Unido disseram que solicitarão à Assembleia Geral das Nações Unidas que suspenda a Rússia do Conselho de Direitos Humanos.

A Rússia está em seu segundo ano de um mandato de três anos no conselho, que tem sede em Genebra. A suspensão exigiria uma maioria de dois terços dos votos dos 193 membros. Falando em Bucareste na segunda-feira, a embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, disse que "a participação da Rússia no Conselho de Direitos Humanos é uma farsa".

— E está errada, e é por isso que achamos que é hora da Assembleia Geral da ONU votar para removê-la.

A Assembleia Geral da ONU já adotou duas resoluções desde a invasão em 24 de fevereiro denunciando a Rússia com pelo menos 140 votos a favor.

— Minha mensagem para os 140 países que corajosamente se uniram é: as imagens de Bucha e a devastação na Ucrânia nos forçam a combinar nossas palavras com ação — disse Thomas-Greenfield, em visita à Romênia para ver como o país lida com o influxo de refugiados da Ucrânia.

Já a ministra das Relações Exteriores do Reino Unido, Liz Truss, disse no Twitter que: "diante das fortes evidências de crimes de guerra, incluindo os relatos sobre valas comuns e o massacre perverso de Bucha, a Rússia não pode continuar sendo membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU. A Rússia deve ser suspensa".

Um alto funcionário do prefeito de Bucha disse que 50 dos 300 corpos encontrados após a retirada das forças do Kremlin foram vítimas de execuções extrajudiciais realizadas por tropas russas.

Em um vídeo divulgado à noite, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, chamou os soldados russos de "assassinos, torturadores, estupradores, saqueadores, que se classificam como Exército e merecem apenas a morte depois do que fizeram". Ele começou o seu discurso em ucraniano e terminou em russo.

A Rússia nega qualquer responsabilidade sobre as denúncias e nesta segunda-feira o Kremlin rejeitou "categoricamente todas as acusações".

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, afirmou que funcionários do Ministério da Defesa russo encontraram sinais de "falsificações nos vídeos" e de "falsificações" nas imagens apresentadas pelas autoridades ucranianas.

Peskov também disse que a Rússia é a favor de discutir a situação em Bucha no Conselho de Segurança da ONU.

— Nossos diplomatas continuarão com esforços ativos para colocar esse assunto na agenda do Conselho de Segurança. O assunto é muito sério — disse Peskov.

Respondendo à pergunta de quem, do ponto de vista do Kremlin, deve participar da investigação dos acontecimentos em Bucha, Peskov disse:

— Não posso responder a essa pergunta agora, mas pelo menos a própria iniciativa de trazer esse tema ao Conselho de Segurança indica o que a Rússia quer e o que a discussão realmente exige.

O Reino Unido, que detém a presidência do Conselho de Segurança da ONU em abril, já rejeitou um pedido russo de convocar uma reunião sobre Bucha.

O Globo e agências internacionais, em 04/04/2022 - 10:13 / Atualizado em 04/04/2022 - 15:41

Vala comum e massacre de civis: fotos e relatos de ataques na Ucrânia chocam e provocam reação internacional

Corpos foram enterrados ao lado de igreja; escavação começou em 10 de março

As mãos de uma mulher morta em Bucha, cidade nas imediações de Kiev: ucranianos denunciam massacre feitos por tropas russas Foto: ZOHRA BENSEMRA / Reuters

A invasão russa da Ucrânia volta a causar forte indignação e repúdio nos principais países do Ocidente diante de um novo e chocante relato de atrocidades cometidas pelas forças armadas comandadas por Vladimir Putin no país invadido. A União Europeia, os Estados Unidos e grande parte da comunidade internacional reagiram com estupor às denúncias de massacres cometidos na cidade de Bucha, ao Norte de Kiev.

O governo ucraniano acusa os russos de terem promovido uma matança na cidade, revelada em relatos e imagens após a retirada das tropas de Putin na sexta-feira. Moscou nega.

Imagem de satélite mostra vala comum em Bucha, cidade que teria sido alvo de massacre russo Foto: Maxar Technologies / Via Reuters

Imagens de satélite mostram uma vala comum com quase 14 metros de comprimento cavada no terreno de uma igreja ucraniana na cidade de Bucha, que passou semanas ocupada pelo Exército russo. No domingo, o governo ucraniano denunciou que a região foi palco de um "massacre deliberado" de civis. O governo Putin desconsidera a denúncia e diz que as imagens "são montagens". Esta seria a primeira prova tangível e visível da morte e devastação nas áreas ocupadas pelas tropas russas.

O prefeito de Bucha, Anatoly Fedoruk, disse à AFP que cerca de 300 moradores foram mortos durante a ocupação. Neste domingo, as autoridades anunciaram que uma fossa coletiva tinha mais de 70 corpos. Segundo a procuradora-geral ucraniana, Iryna Venediktova, ao todo foram encontrados corpos de 410 civis nos territórios da região de Kiev ocupados pelos russos, sendo que 140 foram examinados pelos peritos forenses.

À condenação de Bruxelas juntaram-se os Estados Unidos. O secretário de Estado, Antony Blinken, afirmou que as imagens de Bucha são um "soco no estômago" e do secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, que qualificou de "brutalidade" o assassinato de civis nesta cidade nos arredores da capital ucraniana. A condenação internacional coincide com a publicação de um relatório da organização Human Right Watch sobre possíveis crimes de guerra em vários pontos do front Norte da guerra.

A Maxar Technologies, que coletou e divulgou as imagens de satélite, informou que os primeiros sinais de escavação de uma vala no local foram vistos em 10 de março. O registro mais recente do local é de 31 de março.

Uma equipe da agência Reuters que esteve em Bucha no sábado viu corpos nas ruas da cidade e também registrou uma vala comum ainda aberta perto de uma igreja. Mãos e pés eram vistos para fora da terra cobrindo os corpos. A agência não conseguiu confirmar, porém, se era o mesmo templo mostrado pela Maxar.

As forças russas se retiraram da região ao redor de Kiev após Moscou afirmar que terminara a primeira fase da guerra e que iria se concentrar "na libertação" de áreas no Leste, onde atuam os separatistas pró-Moscou, e no Sul. Tropas ucranianas já tinham reconquistado algumas áreas e reocuparam as restantes das quais os russos se retiraram.

Em um post na rede social Telegram, o Ministério da Defesa da Rússia classificou como "fake news" as denúncias de supostas atrocidades cometidas pelos militares do país e tachou as imagens e fotografias de corpos de "mais uma provocação" do governo ucraniano. Em ocasiões anteriores, o Kremlin sempre negou que suas forças tenham civis como alvo.

O Ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, pediu ao G7, grupo que reúne sete das maiores economias do mundo,  que imponha novas sanções "devastadoras" a Moscou. Ele disse já ter pedido ação ao Tribunal Penal Internacional (TPI).

O Globo e agências internacionais, em 04/04/2022 - 06:37 / Atualizado em 04/04/2022 - 11:51

Catástrofe contratada

A vingarem as propostas e ideias de Lula e Bolsonaro, por ora favoritos na corrida presidencial, o Brasil tem um encontro marcado com desastre maior a partir de 2023

O futuro é extremamente desafiador para o Brasil, e a escolha do próximo presidente da República definirá quão prolongados serão os efeitos perniciosos de uma crise política, econômica, social e moral que há mais de três anos tem sido pintada com cores vivíssimas, diante dos olhos de todos. Das duas, uma: ou as forças genuinamente democráticas da sociedade superam veleidades e constroem uma alternativa responsável às forças do atraso que ora parecem triunfar, ou o País tem um encontro marcado com um desastre ainda maior do que o atual a partir de 2023.

Nenhuma eleição pode ser considerada mais importante do que outra, pois todas são cruciais ao tempo de sua realização. Mas é possível afirmar que os riscos envolvidos na escolha dos eleitores em 2022 são de magnitude poucas vezes vista na história recente do País. Há sérios obstáculos políticos e econômicos a serem superados, como já estiveram em jogo em tantos outros pleitos. Mas, a julgar pelo que propõem os dois pré-candidatos que lideram as pesquisas de intenção de voto no momento, o ex-presidente Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro, nada indica que caminhos serão abertos para que o Brasil saia desse lamaçal caso um dos dois seja o vencedor do pleito em outubro.

Tanto pior porque Lula e Bolsonaro são hábeis em açular seus apoiadores mais radicais e poluir o debate público com mentiras e distorções da realidade. Ao fazerem do ódio e da dissimulação instrumentos de ação política, tanto um como outro impedem a coesão social mínima em torno de um diálogo honesto e propositivo com vistas à reversão de nossas mazelas.

Cerca de 50 milhões de brasileiros convivem com a insegurança alimentar, ou seja, não têm renda suficiente para garantir comida no prato todos os dias. O número de desempregados – embora tenha recuado de 14,6% para 11,2% no trimestre encerrado em fevereiro, em comparação com o mesmo período no ano passado – ainda é assustador: são 12 milhões de cidadãos em idade economicamente ativa sem trabalho no País, de acordo com o IBGE. Economistas preveem que o porcentual de desocupação permanecerá no patamar de dois dígitos, no mínimo, até 2024. A inflação renitente corrói a renda dos que têm um emprego. Juros em ascensão freiam a capacidade de expansão da atividade econômica.

Na educação, o cenário é de terra arrasada. A cultura e a política externa foram transformadas pelo bolsonarismo em flancos de uma “guerra cultural” que seria apenas caricatura da estupidez de uns tresloucados caso não impingisse tantos danos ao País. Na seara ambiental, o Brasil foi da condição de interlocutor indispensável a pária internacional.

Diante desse quadro trevoso, é desalentador constatar que tudo o que Lula e Bolsonaro propõem só tende a agravar os problemas do País. É o exato oposto do que se espera de candidatos à Presidência da República.

O pouco que se conhece do programa econômico de Lula para um eventual terceiro mandato não apenas não resolve os problemas atuais, como os aprofunda. O papel aceita quase tudo. Lula pode escrever à vontade que “os melhores momentos do Brasil foram nos governos do PT”, mas não pode reescrever a História.

Bolsonaro pode dizer para seus apoiadores que o País “tem tudo” para crescer e se desenvolver, e que ele ainda não conseguiu fazer do Brasil a “pátria grande” porque “alguns poucos atrapalham” e deveriam “calar a boca” e deixá-lo trabalhar.

O fato é que nem Lula nem Bolsonaro têm projetos certos para atacar os problemas do País. Não propõem nada além de suas supostas virtudes pessoais em relação ao oponente. À frente da disputa pela Presidência, ao menos por ora, estão dois mitômanos que talvez só acreditem nas próprias patranhas pela força da repetição.

O País precisa de um líder moderno, atinado com a agenda política, social, econômica e ambiental do século 21. Um conciliador. Alguém que pense o futuro com responsabilidade, empatia e espírito público. Ou seja, alguém que ainda está por se fazer conhecido e, sobretudo, despertar a esperança dos brasileiros em um futuro melhor.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 03 de abril de 2022 | 03h00

Eduardo Leite sinaliza que pode ser vice em chapa com Simone Tebet

Eduardo Leite disse em entrevista à Rádio Eldorado que a convenção do PSDB é mais importante que as prévias do partido, vencidas por João Doria, e que Simone Tebet 'tem toda a condição' de liderar a terceira via

     Leite afirmou que deve intensificar conversas sobre seu futuro político a partir desta semana.  Foto: Dida Sampaio e Felipe Rau

O ex-governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite (PSDB) sinalizou que pode ser vice na chapa da senadora Simone Tebet (MDB) para a disputa da Presidência da República. Em entrevista à Rádio Eldorado nesta segunda-feira, 4, o tucano afirmou ter “humildade” para abrir mão de aspirações pessoais e fazer composição com uma candidatura que se mostre viável contra a polarização. A parlamentar, segundo ele, “tem toda a condição de liderar esse projeto”. 

"Temos de ter um entendimento do nosso papel como lideranças políticas, não apenas buscando ocupar um espaço político concorrendo, mas apoiando eventualmente aqueles que tenham essa capacidade. Entre outras pessoas, há o nome da senadora Simone Tebet, que tem toda a condição de ser uma liderança nesse projeto. É muito prematuro falar em que posição cada um tem que assumir. Mas a disposição nossa tem que ser construindo, apoiando, disputando na chapa como vice-presidente, se for o caso", afirmou Leite.

Segundo o tucano, a senadora tem uma aspiração legítima em se apresentar como candidata. "Tudo tem de ser muito conversado para viabilizar aquilo que tenho mais capacidade eleitoral. Tenho muito respeito pelo mandato da senadora, e sua aspiração legítima de se apresentar como candidata. Ainda não avançamos em conversas nessa direção, mas haverá o momento apropriado", complementou, sobre a formação da chapa.

Após ser derrotado nas prévias do PSDB, Leite intensificou articulações com o PSD para se viabilizar como possível pré-candidato do partido, mas, por fim, decidiu permanecer no ninho tucano. Este, segundo ele, foi mais um movimento que indica sua disposição de abrir mão de ser cabeça de chapa, já que, de acordo com o ex-governador, a sigla de Gilberto Kassab não foi a única a oferecer a possibilidade. 

“Se eu quisesse mesmo ser candidato, tinha mais opções que o PSD. Eu tinha opções para uma candidatura, e mesmo assim não fui atrás desses caminhos mais fáceis”. 

O gaúcho disse considerar que o momento pede “desprendimento” por parte dos nomes que se apresentam como “terceira via”. Seu principal adversário no PSDB, o governador João Doria, atual pré-candidato do partido, tem mostrado resistência a assumir o posto de vice de outras chapas. Na última quinta-feira, o paulista admitiu que, ao anunciar desistência da eleição, sua intenção era forçar a legenda a dar primazia à sua pré-candidatura, movimento que ele classificou como “estratégia política”. 

Hoje, dias após telefonar a Doria dizendo respeitar o resultado das prévias, das quais o governador de São Paulo saiu vitorioso, Leite afirmou que a convenção nacional do partido é soberana, dando a entender que a candidatura do tucano paulista continua não sendo definitiva no partido. Leite afirmou que, até a data do evento, marcado para julho, “cada um vai ajustar seu papel nesse processo”. Esse ajuste, ele adiantou, será feito após conversas “francas e honestas” com Doria. 

Apesar de reiterar que respeita as prévias, Leite condicionou seu respaldo a Doria ao alcance de viabilidade eleitoral do paulista. Disse que o governador terá “todo seu apoio”, desde que se mostre viável. “O PSDB reconhece a legitimidade das prévias, mas sabe também que vai precisar estar atento à competitividade das candidaturas”, afirmou. Além da baixa intenção de voto de Doria nas pesquisas - 2% -, Leite citou a alta rejeição marcada por ele, em torno de 30%, como uma dificuldade para o avança de seu nome.

O gaúcho afirmou que deve aproveitar esta semana, a primeira após deixar o Palácio Piratini, para intensificar conversas e tomar uma decisão sobre seu futuro político. Ele disse estar pronto tanto “para liderar o projeto, se for o caso”, quanto para apoiar aquele que tiver as melhores condições.

Redação, O Estado de S.Paulo, em 04 de abril de 2022 | 09h50. Atualizado 04 de abril de 2022 | 13h34

Maioria prefere democracia com toda a sua bagunça a seguir China num novo tipo de totalitarismo', diz Niall Ferguson

"A maioria das pessoas no mundo, tendo a possibilidade de escolher, preferiria aceitar a democracia com toda a sua bagunça, complexidade e decepções do que seguir a China rumo a um novo tipo de totalitarismo", afirmou o especialista em entrevista à BBC News Brasil.

Putin e Xi Jinping reunidos em 4 de fevereiro de 2022, em Pequim (GETTY IMAGES)

Com a invasão russa à Ucrânia e a forte reação dos Estados Unidos e da Europa às ações de Vladimir Putin, observam-se importantes e decisivas mudanças na geopolítica global. Mas, para o historiador britânico Niall Ferguson, a democracia deve prevalecer como modelo dominante em todo o mundo.

"Por isso, minha esperança é que a democracia prevaleça."

Segundo Ferguson, que é pesquisador da Universidade de Stanford, na Califórnia, e já foi professor em Harvard, Oxford e na London School of Economics, as democracias resistiram muito bem até o momento porque são "economicamente, tecnologicamente e militarmente dominantes".

"Há países que podem optar pelo modelo chinês, mas eles precisam estar cientes de que isso implica um controle muito mais drástico do indivíduo pelo governo", diz o autor de 16 livros, dos quais seis se tornaram best-sellers.

Na entrevista concedida em 24 de março, o historiador que será um dos palestrantes especiais do Fórum da Liberdade 2022, tratou também das muitas possibilidades para o futuro do conflito na Ucrânia que, segundo ele, pode durar anos até que o país seja reduzido a escombros.

'Minha esperança é que a democracia prevaleça', diz Niall Ferguson

"Meu medo é que essa guerra se estenda primeiro por semanas, depois por meses e depois por anos. E no final, a Ucrânia será reduzida a escombros e se transformará em um país independente que foi amplamente despovoado", avalia.

De acordo com Ferguson, o mundo deveria estar preocupado com "o perigo da guerra na Ucrânia se transformar em um confronto maior e, potencialmente, em uma guerra nuclear".

À BBC News Brasil, o historiador disse ainda esperar um futuro brilhante para o Brasil, desde que o país consiga superar o choque da pandemia, impulsione reformas e se mantenha como economia de mercado.

"O Brasil é a economia mais importante da América Latina e um país que nunca se deve subestimar por seus recursos naturais, sua população e seu ambiente de negócios cada vez mais favorável ao mercado", diz.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Niall Ferguson à BBC News Brasil.

BBC News Brasil - Estamos realizando esta entrevista no dia 24 de março, ou seja, um mês depois do início da guerra na Ucrânia. O senhor acredita que ainda há espaço para uma resolução diplomática?

Niall Ferguson - Tem que haver. As guerras geralmente terminam quando há um impasse que leva a negociações ou quando um lado é derrotado. No momento, não há sinal de uma vitória decisiva ou de um impasse definitivo. Creio que provavelmente ainda teremos mais algumas semanas de guerra pela frente.

Mas estamos chegando a um ponto em que será muito difícil para a Rússia manter sua iniciativa, pois suas linhas de suprimento estão sobrecarregadas, o país sofreu muitas baixas importantes para uma guerra tão curta e o ritmo de seus avanços claramente diminuiu. É difícil ver Kiev caindo tão cedo. Portanto, espero que negociações sérias comecem quando os russos realmente não puderem avançar mais.

E já podemos ver os contornos de um acordo em alguns aspectos. Está claro que a Ucrânia não vai se tornar um membro da OTAN e será um país neutro, mas com garantias de segurança de algumas potências externas. A parte difícil está na divisão territorial, porque a Ucrânia teve um desempenho superior até agora e há um sentimento de que o país não deveria fazer concessões reconhecendo a anexação da Crimeia de 2014 ou cedendo [as províncias separatistas de] Donetsk e Luhansk. E esse é o problema com as guerras: quanto mais duram, mais difícil se torna chegar a um acordo, porque muitas vidas foram perdidas e as apostas aumentaram.

Me preocupo que tenhamos perdido a oportunidade de acabar com essa guerra há duas semanas e que tudo só tenha ficado mais difícil desde então. Também tenho sentido falta da presença dos Estados Unidos nas negociações. Creio que será difícil chegar a qualquer tipo de cessar-fogo ou acordo de paz até que os EUA estejam diretamente envolvidos.

BBC News Brasil - Como o senhor acredita que os historiadores no futuro verão o momento atual? Como os principais personagens dessa guerra serão retratados nos livros de história?

Ferguson - Os futuros historiadores podem dizer foi assim que a Terceira Guerra Mundial começou. Em outras palavras, eles podem comparar a situação atual com a de 1939 na Europa, quando a Polônia foi invadida após receber promessas de apoio das potências ocidentais que provaram ser praticamente inúteis. Ou então dirão que esta foi a primeira 'guerra quente' de uma segunda Guerra Fria. Eu tendo a acreditar mais nessa segunda analogia, pois creio que já estamos na vivendo a segunda Guerra Fria. Acho que a Ucrânia é hoje o que a Coreia foi para a primeira Guerra Fria.

Mas há muitas outras analogias que podem ser mais apropriadas. A verdade é que não se pode escrever a história com antecedência, tudo o que se pode fazer é oferecer cenários com mais ou menos plausibilidade e tentar atrair probabilidades. E o que acontece a seguir dependerá muito da China, assim como dos Estados Unidos

Temo que a guerra possa durar anos e a Ucrânia seja reduzida a escombros, diz Neill Ferguson (REUTERS)

Meu medo - e esta é a última observação que farei - é que essa guerra se estenda primeiro por semanas, depois por meses e depois por anos. E no final, a Ucrânia será reduzida a escombros e se transformará em um país independente que foi amplamente despovoado.

BBC News Brasil - Como esse conflito afeta o confronto entre EUA e China e a posição de Pequim em relação a Taiwan?

Ferguson - Do ponto de vista do governo [americano de Joe] Biden, a China é mais importante do que a Rússia em ordem de magnitude. Creio que há uma crença em Washington de que se a situação atual na Ucrânia acabar mal para [o presidente russo Vladimir] Putin, isso impedirá a China de tentar assumir o controle de Taiwan.

Há relatos de que a China planejava invadir Taiwan já em outubro deste ano e isso provavelmente não ocorrerá mais depois dos últimos acontecimentos. Mas não acho que o país vá desistir da ideia, porque Xi Jinping fala sobre isso há anos e quer inclusive estender seu mandato para dar continuidade ao plano.

Mas este é o momento da verdade para a China, pois se Xi Jinping está mesmo decidido a assumir o controle de Taiwan não pode demorar muito. Nos próximos anos, o Ocidente vai aprender muitas lições com a Ucrânia e vai armar Taiwan até os dentes para impedir uma invasão da China.

BBC News Brasil - E o resto do mundo? Haverá uma mudança nas forças geopolíticas após o conflito?

Ferguson - Já estamos vendo uma tremenda mudança ocorrer com a demonstração de força e unidade do Ocidente. A importância da Otan também foi realçada, pois afinal de contas nada do que estamos vendo hoje aconteceria se a Ucrânia já estivesse na aliança. A outra grande transformação que observo é a aproximação entre Rússia e China. Se eu estiver certo, estamos vivendo uma segunda Guerra Fria - e está bem claro quem está do lado de quem no Hemisfério Norte.

Mas ainda há algumas alguns quebra-cabeças na região sul. No Oriente Médio, o Irã está do lado da Rússia e da China, enquanto os Estados árabes e Israel se mostram desapontados com a política do governo Biden de tentar ressuscitar o acordo nuclear iraniano. Já a Índia, que deveria ser uma aliada americana, não está interessada em tomar partido contra a Rússia. E cada vez mais países da Ásia estão se perguntando: importa mais a uma aliança com os EUA em prol da segurança nacional ou uma aliança com a China pelo bem da economia? Essa é uma questão para o Brasil e muitos outros países da América Latina também.

Felizmente, o Brasil está longe do conflito e pode adotar uma abordagem mais relaxada, evitando escolher lados. Há inclusive vantagens, pois o aumento dos preços das commodities pode ser uma boa notícia economicamente. Mas a desvantagem é que a inflação não para de subir em todo o mundo e pode ser uma dor de cabeça.

BBC News Brasil - No início dos anos 2000 falava-se muito sobre a ascensão econômica de países como Brasil, China, Rússia, Indonésia e outros. Na sua opinião, essa ainda é uma possibilidade?

Ferguson - Sempre fui um pouco cético em relação aos Brics e as teorias de que Brasil, Rússia, Índia e China eram as economias do futuro. Quando adicionaram a África do Sul foi ainda mais difícil de acreditar. Meu principal argumento é que há diferenças enormes entre a China e os outros. O crescimento chinês pôde ser sustentado e envolveu a criação da maior economia industrial do mundo. Estamos vendo uma desaceleração causada por fatores demográficos e pelo peso da dívida, mas ainda é concebível que a China possa ser a maior economia do mundo nos próximos 10 ou 20 anos.

A situação dos demais Brics sempre foi diferente. A Índia tem grandes problemas com sua população grande, porém pouco educada, e provavelmente não se tornará uma potência manufatureira como a China se tornou. Já a Rússia preferiu ressuscitar seu império por meio da força militar e se fechou para a economia global como resultado dos eventos das últimas quatro semanas.

'Sempre fui um pouco cético em relação aos Brics' (VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL)

A situação do Brasil sempre foi distinta. O Brasil é a economia mais importante da América Latina e um país que nunca se deve subestimar por seus recursos naturais, sua população e seu ambiente de negócios cada vez mais favorável ao mercado.

O Brasil de hoje é muito diferente daquele da minha infância nos anos 1960 e tem um caminho relativamente brilhante pela frente. Estou otimista sobre os rumos do Brasil caso o país consiga superar o choque da pandemia, aproveitar algumas das reformas que estavam sendo feitas no início do mandato do presidente Bolsonaro e lembrar à sua população que tem um futuro excepcional como economia de mercado.

BBC News Brasil - O pensamento Ocidental permanecerá dominante nas próximas décadas?

Ferguson - Uma das grandes lições que a História nos ensinou é que existem alternativas à democracia, ao livre mercado e ao Estado de direito. O único problema é que elas não são boas alternativas. Podemos experimentá-las, inclusive mais de uma vez, mas o resultado será sempre o mesmo. Uma sociedade que restringe a liberdade será uma sociedade menos inovadora do que uma sociedade que permite a liberdade.

Não estou dizendo que o modelo americano seja perfeito. Há muitas coisas erradas nos Estados Unidos - às vezes olho para nossa política e nossos debates culturais e me desespero, porque usamos nossa liberdade para dizer coisas sem sentido. Mas sempre vou concordar com Winston Churchill, que disse que a democracia era o pior dos sistemas políticos, à exceção de todos os demais.

BBC News Brasil - Mas veremos a democracia prevalecer nos próximos anos ou novos regimes autoritários e antidemocráticos ganharão força?

Ferguson - As democracias resistiram muito bem até agora. Periodicamente ouvimos dizer que elas estão em recessão, mas não é como se o autoritarismo tivesse ganhado muito espaço desde a década de 1990. Houve uma enorme onda de democratização após a queda da União Soviética. Mesmo que a Rússia e algum países do antigo bloco soviético tenham recuado, outros se saíram tremendamente bem, particularmente aqueles como os Países Bálticos que entraram na União Europeia.

Se olharmos para o mundo com cuidado, veremos que as democracias são economicamente, tecnologicamente e militarmente dominantes e que as opções autoritárias são muito menos atraentes. Há países que podem optar pelo modelo chinês, mas eles precisam estar cientes de que isso implica um controle muito mais drástico do indivíduo pelo governo.

Uma das razões pelas quais os chineses conseguiram bloquear e controlar a propagação da covid foi justamente o poder draconiano que o Partido Comunista tem sobre a vida cotidiana. A China tem um sistema de vigilância que invade a liberdade individual de maneiras que nós, nos países ocidentais, consideraríamos intoleráveis. Portanto, não creio que existam muitos países que estejam realmente ansiosos para aderir a um sistema de governo de partido único e vigilância total.

A maioria das pessoas no mundo, tendo a possibilidade de escolher, preferiria aceitar a democracia com toda a sua bagunça, complexidade e decepções do que seguir a China rumo a um novo tipo de totalitarismo. Por isso, minha esperança é que a democracia prevaleça.

BBC News Brasil - Na sua opinião, onde a América Latina e o Brasil se encaixam nesse mundo dividido entre Oriente e Ocidente?

Ferguson - Hoje em dia são as perguntas fáceis que as pessoas parecem achar mais difíceis. É claro que a América Latina faz parte do Ocidente. Assim como a América do Norte, o continente foi colonizado por europeus e suas instituições foram essencialmente importadas da Europa Ocidental. Apesar das instituições de Portugal e Espanha serem diferentes daquelas da Inglaterra ou França, o ponto de origem é muito semelhante.

As Américas como um todo são, em muitos aspectos, a parte mais dinâmica do que chamamos de mundo Ocidental. E estou relativamente otimista sobre o que pode ser alcançado na América Latina nas próximas décadas desde que as pessoas não se esqueçam das lições da História e não apostem mais uma vez em experimentos socialistas que sempre fracassam economicamente. Como economia de mercado, a América Latina tem muito a seu favor.

Contanto que se invista na educação e se proporcione às pessoas que nascem na pobreza a chance de sair dela, o futuro de um país como o Brasil deve ser muito brilhante. Considerando minhas chances de uma vida pacífica e próspera, eu certamente preferiria nascer hoje no Brasil do que no Leste Europeu.

BBC News Brasil - Segundo o Banco Mundial, a pandemia ampliou a desigualdade de renda mundial. O senhor disse no passado que a crise financeira de 2008 ajudou a abrir os olhos das pessoas para o tema. O que será preciso agora para que a redução da desigualdade volte a ser importante para a população e para os governos?

Ferguson - Acho que é justo dizer que a desigualdade subiu na hierarquia de relevância com a pandemia. Em alguns países, houve uma mudança em direção à esquerda na política. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos em 2020 - a covid-19 foi a razão pela qual Donald Trump não foi reeleito. E isso provavelmente vai acontecer no Brasil também.

Portanto, talvez a principal consequência da pandemia tenha sido deslocar a política um pouco mais para a esquerda e, dessa forma, aumenta-se a probabilidade de políticas fiscais mais redistributivas.

BBC News Brasil - O senhor afirmou no passado que muitos dos erros que levaram ao agravamento da pandemia não podem ser inteiramente atribuídos a presidentes ou primeiros-ministros. Mas é difícil para o público não culpar aqueles que estão no topo da cadeia de comando por eventos como a pandemia. Na sua opinião, como a atual crise de saúde pode afetar as eleições?

Ferguson - Em 2020, quando a pandemia se espalhou pelo mundo, foi muito tentador culpar o presidente [americano] Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro, o primeiro-ministro [britânico] Boris Johnson ou Narendra Modi da Índia pelas altas taxas de mortalidade nos países em que governavam. E muita gente fez isso. Esses líderes cometeram todo o tipo de erro, e não quero subestimar isso - às vezes parecia que havia uma competição para ver qual deles poderia ser o mais estúpido em relação à saúde pública.

Mas se analisarmos com cuidado, vemos que houve mortalidade alta em muitos países que não tinham líderes populistas no poder. A realidade é que o fracasso de vários países ocidentais, do Hemisfério Norte e Sul, teve maior relação com as falhas cometidas por aqueles [que ocupam cargos] na burocracia da saúde pública do que com decisões tomadas pelos presidentes.



O presidente Jair Bolsonaro (,MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL)

Como tudo isso vai influenciar no Brasil é difícil de prever. Neste momento, meus amigos brasileiros parecem esperar a volta de Lula à Presidência e a derrota de Bolsonaro, mas não sou especialista em política brasileira. Direi apenas que, nos Estados Unidos, certamente foi a covid-19 que garantiu que Donald Trump não cumprisse um segundo mandato. Ele teria sido reeleito se não fosse a pandemia.

BBC News Brasil - Depois de ler seu livro mais recente sobre desastres globais (Catástrofe, da Editora Planeta), algumas pessoas o chamaram de pessimista. No momento atual, considerando tudo o que vivemos nos últimos anos e as previsões para o futuro, o senhor se sente pessimista?

Ferguson - Não creio que 'Catástrofe' seja um livro pessimista, pois inclusive ressalto que a possibilidade do mundo acabar é muito pequena. Os desastres que temos que enfrentar - e teremos que enfrentar novos desastres no futuro - não vão matar grandes proporções da humanidade ou acabar com nossa existência na Terra.

Mas posso pensar em algumas razões para preocupação no momento, entre elas o perigo da guerra na Ucrânia se transformar em um confronto maior e, potencialmente, em uma guerra nuclear. Posso pensar ainda em um cenário de nova pandemia, com uma doença ainda pior e mais mortal. Mas a mensagem do livro é que se estivermos cientes dos riscos, poderemos desenvolver tecnologia e conhecimento científico para lidar com eles.

O verdadeiro inimigo do sucesso é o fatalismo. Posso estar ciente dos riscos que enfrentamos, mas não sou fatalista. Sempre podemos agir para reduzir nossa vulnerabilidade e melhorar as chances de uma vida longa, próspera e feliz.

Julia Braun, da BBC News Brasil em São Paulo, em 2 abril 2022


sexta-feira, 1 de abril de 2022

Recuo de Moro e vaivém de Doria mudam xadrez da 3ª via e podem fortalecer polarização

Movimentações repentinas geram desconfianças e são vistas como benéficas por aliados de Lula e Bolsonaro


O governador de São Paulo, João Doria, entrega a medalha Ordem do Ipiranga, no grau Grã-Cruz, ao então ministro da Justiça, Sergio Moro, em 2019 - Eduardo Knapp - 28.jun.2019/Folhapress

O vaivém de João Doria (PSDB-SP) e a desistência de Sergio Moro (União Brasil) de disputar a Presidência da República ampliaram as indefinições na terceira via para criar uma candidatura competitiva às de Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL).

A mudança no xadrez político das eleições deste ano ocorreu com movimentações repentinas dos dois postulantes no mesmo dia.

Moro saiu do Podemos, se filiou à União Brasil e, em meio a resistências dentro do novo partido, anunciou que abria mão, neste momento, da disputa à Presidência.

Doria ensaiou se manter no cargo de governador de São Paulo e abandonar a pretensão de concorrer ao Planalto, mas recuou horas depois e manteve a candidatura —vista com desconfiança após a oscilação que irritou inclusive seus apoiadores.

Na avaliação de aliados de Lula e Bolsonaro, as mudanças fortalecem a polarização entre os dois primeiros colocados nas pesquisas. Apesar disso, na terceira via, alguns setores consideram haver a oportunidade de unificação em torno de algum nome mais competitivo.

Se for mantida a decisão de Moro de não se candidatar à Presidência, restam no campo da terceira via Ciro Gomes (PDT), Doria, a senadora Simone Tebet (MDB) e o deputado federal André Janones (Avante).

Eduardo Leite (PSDB-RS) também corre por fora para tentar se viabilizar. A ideia desses partidos é tentar escolher alguém até meados do ano para fazer frente a Lula e Bolsonaro. ​

Moro filiou-se à União Brasil sob pressão de ala do partido para desistir de disputar a Presidência, e teve de ceder, mesmo que momentaneamente, para evitar que sua filiação fosse questionada e até mesmo inviabilizada.

"A troca de legenda foi comunicada à direção do Podemos, a quem agradeço todo o apoio. Para ingressar no novo partido, abro mão, nesse momento, da pré-candidatura presidencial e serei um soldado da democracia para recuperar o sonho de um Brasil melhor", afirmou o ex-juiz em declaração pública.

O ex-juiz chegou a redigir uma primeira nota informando a respeito da filiação no partido, mas que não mencionava a desistência na corrida pelo Palácio do Planalto.

Esse primeiro documento chegou às mãos de integrantes da ala da União Brasil que resiste ao ex-ministro, capitaneada pelo secretário-geral do partido, ACM Neto (BA). Insatisfeito com o teor do texto, o grupo decidiu divulgar posicionamento com veto à candidatura presidencial do ex-ministro.

Após a divulgação da nota, Moro mudou de posição e resolveu anunciar a retirada, neste momento, de seu nome na disputa pela Presidência da República.

Moro assina ficha de filiação da União Brasil - Arquivo pessoal

Embora o recuo seja lido como definitivo por alguns dirigentes da União Brasil, aliados de Moro admitem, sob reserva, que ele não desistiu por completo do plano de se candidatar ao Planalto.

A declaração do ex-ministro foi dada, então, como forma de driblar as resistências internas e evitar, por ora, um questionamento à sua filiação.

Após se filiar à União Brasil, Moro conversou com ACM Neto, que expôs a ele as divergências.

O grupo que resiste ao ex-juiz aceita que ele dispute o Senado ou uma vaga de deputado federal por São Paulo, para onde o ex-magistrado transferiu seu domicílio eleitoral, que antes era no Paraná.

Esta ala fará frente à outra da União Brasil, que é entusiasta do ex-juiz.

"É um privilégio ter Moro no partido. Ele vai agregar eleitoralmente em qualquer cargo que ele venha a disputar", afirmou o deputado Júnior Bozella (União Brasil-SP), um dos principais fiadores e articuladores da migração de Moro à União Brasil. .

O coordenador da campanha presidencial do ex-juiz, Luís Felipe Cunha, afirmou que ele não poderia entrar na sigla fazendo exigências.

"Você não chega em um partido exigindo posições. Moro tem o desprendimento necessário para participar da construção de um projeto de país", disse o coordenador à Folha.

A decisão de Moro irritou a cúpula do Podemos, partido ao qual o ex-ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro havia se filiado em novembro do ano passado.

"Para a surpresa de todos, tanto a Executiva Nacional quanto os parlamentares souberam via imprensa da nova filiação de Moro, sem sequer uma comunicação interna do ex-presidenciável", afirmou a presidente do Podemos, em nota divulgada nesta quinta.

Apesar da declaração, o ex-magistrado estava sendo pressionado também no Podemos a desistir da candidatura presidencial. Uma das razões seria a falta de recursos do partido em sustentar uma campanha robusta ao Palácio do Planalto.

A saída de Moro, ainda que não seja considerada definitiva pelo ex-juiz, foi celebrada por outros partidos da chamada terceira via, já que afunila a quantidade de candidaturas.

Em outro movimento relevante no campo que quer se opor a Lula e Bolsonaro, Doria protagonizou um vaivém que acabou por ampliar o racha no próprio partido.

Ele chegou a comunicar seu vice, Rodrigo Garcia (PSDB-SP), na quinta-feira (30), que ficaria no cargo e desistiria de disputar a Presidência. A decisão gerou um alvoroço no PSDB, já que Doria tinha um acordo com Garcia para deixá-lo assumir o governo a partir de abril para disputar a sua sucessão.

À tarde, Doria anunciou que havia desistido de ficar no governo e que sairia candidato ao Planalto.

Entre dirigentes de partidos que querem se opor a Lula e Bolsonaro, a avaliação é que o tucano sai enfraquecido no dia por demonstrar instabilidade.

A leitura é que o gesto aumenta a desconfiança e a descrença sobre a candidatura de Doria, tornando difícil que outros partidos queiram endossar sua candidatura. Para aliados de Eduardo Leite, isso abre espaço para uma eventual candidatura do gaúcho.

Aliados de Doria discordam que ele tenha perdido força e avaliam que ele sai maior por ter conseguido apoio do presidente da sigla à sua candidatura. O presidente do PSDB, Bruno Araújo, divulgou uma carta dizendo que o tucano deixaria, sim, o governo e disputaria a Presidência da República.

O gesto de Araújo, porém, foi lido por outras alas do PSDB mais como uma forma de salvar a candidatura de Rodrigo Garcia ao Governo de São Paulo, já que ele seria prejudicado com a decisão de Doria.

Na prática, o vaivém do governador tucano ampliou o racha no PSDB e fortaleceu a intenção de integrantes do partido de impulsionar a candidatura de Leite, que perdeu as prévias internas da sigla.

Os aliados do gaúcho apostam que Doria não vai decolar e já pensam numa programação de viagens para Leite para que ele chegue a um patamar de 5% nas intenções de voto em meados do ano.

A ideia é torná-lo competitivo para ser considerado como uma opção de presidenciável pelas siglas cujas cúpulas buscam uma terceira via: PSDB, União Brasil, Podemos e MDB.

O PSD também quer lançar um candidato, mas ainda não tem um nome definido e não participa das conversas com as outras legendas.

Para outros candidatos, o vaivém de Doria e o recuo de Moro mudam pouco o cenário de polarização entre Lula e Bolsonaro. Pelo contrário. A instabilidade e indefinição nessas candidaturas podem até reforçar a briga entre o presidente e o ex-mandatário e antecipar para o primeiro turno uma disputa de votos úteis —isto é, anti-Lula ou anti-Bolsonaro.

"O segundo turno já começou", afirmou o ministro Ciro Nogueira (Casa Civil) à Folha.

"Cada vez mais a terceira via vai ficando mais distante. O juiz venal lançou candidatura simplesmente para tentar puxar voto para o partido dele. E o Doria mostra que a confusão está grande no PSDB, fragilizando o partido e acho que tem dificuldade de crescer depois dessa bravataria", diz o deputado Rui Falcão (PT-SP). "Vai ficando mais claro que a disputa será entre Lula e Bolsonaro", avalia.

Integrantes de outras campanhas avaliam que o PT pode sair prejudicado pela saída de Moro pelo fato de que o voto do ex-juiz tende a ir para Bolsonaro. Isso, porém, terá de ser medido em pesquisas, avaliam petistas.

Aliados do presidente Jair Bolsonaro viram na desistência de Sergio Moro na disputa pelo Planalto mais um passo para a polarização ainda no primeiro turno. Como a Folha mostrou, o entorno do mandatário aposta todas as fichas no antipetismo para a reeleição.

Ainda que João Doria se mantenha na disputa, a leitura é de que os votos do lava-jatismo, que eram de Moro, estão mais próximos de Bolsonaro do que dos demais concorrentes. Avaliam ainda que o antipetismo falará mais alto nas urnas.

Auxiliares palacianos e ministros sempre apostaram suas fichas que Moro eventualmente desistiria. Seja pela falta de estrutura e recursos na campanha pelo Podemos, seja por simplesmente não decolar, como esperava.

Nas redes bolsonaristas, a desistência fortaleceu a tese de que o ex-juiz da Lava Jato é traidor. Primeiro, de Bolsonaro. Agora, do Podemos.

Na visão do presidente do PDT, Carlos Lupi, a saída de Moro fortalece a candidatura de Ciro. "O eleitor que estava apoiando o Moro é um eleitor que é ex-Bolsonaro, mas jamais será Lula. Então é mais natural eles virem para a gente do que para outra via. A gente quer mostrar nosso projeto, nossa proposta, nossa independência. Então acho que isso vai se dar naturalmente", disse.

Por Julia Chaib , Marianna Holanda , Matheus Teixeira , Danielle Brant e Renato Machado para a Folha de S. Paulo, em 31.03.22, às 23 hs.

quinta-feira, 31 de março de 2022

MPF pede na Justiça retirada 'urgente' de nota do Ministério da Defesa em comemoração ao golpe de 1964

Em fevereiro, órgão já tinha acionado Justiça para que governo federal não fizesse manifestações elogiosas na data, como em anos anteriores. À ocasião, Executivo disse que não havia 'perigo de prática, repetição ou continuação do equívoco'.

Ministro da Defesa, Walter Braga Netto — Foto: Marcos Corrêa/PR

O Ministério Público Federal (MPF) pediu à Justiça que determine a retirada "urgente" de uma nota publicada nesta quinta-feira (31), pelo Ministério da Defesa, em comemoração ao golpe militar de 1964, que completa 58 anos nesta data.

O pedido foi reiterado na ação, que já havia sido ajuizada no mês passado, na qual o MPF solicitava que o governo federal não fizesse publicações elogiosas à data. À ocasião, o Executivo disse que não havia "perigo de prática, repetição ou continuação do equívoco".

Até a tarde desta quinta, não havia decisão sobre a ação. Questionado sobre o pedido, o Ministério da Defesa não tinha se manifestado até a última atualização desta reportagem.

Nota da Defesa

Miriam Leitão: Nota do Min. da Defesa sobre golpe de 1964 é uma ‘coleção de mentiras’

O texto publicado nesta quinta-feira no site da pasta é assinado pelo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e afirma que o golpe militar "é um marco histórico da evolução política brasileira, pois refletiu os anseios e as aspirações da população da época".

Alega ainda que "a história não pode ser reescrita, em mero ato de revisionismo, sem a devida contextualização". Segundo o MPF, a conduta adotada pelo ministro da Defesa "desrespeita o princípio da moralidade instituído pela Constituição brasileira".

"Não condiz com o conteúdo desse princípio o agente público valer-se da função pública exercida para fazer, em canal oficial de comunicação, menções elogiosas ao regime de exceção instalado no País por meio do golpe militar de 1964, que violou, de forma sistemática, direitos humanos, valendo-se, inclusive, da prática de tortura e execuções de pessoas, e que, reconhecidamente, levou à responsabilização do Brasil em âmbito internacional", afirma o órgão.

O Ministério Público diz ainda que "é patente a reiteração do ato ilícito objeto da presente ação civil pública, demonstrando verdadeiro menoscabo por parte do governo federal e seus agentes em relação à Constituição da República, às leis, bem como ao Estado Democrático de Direito".

Ação na Justiça

Em fevereiro, ao propor a ação que pedia que o governo não fizesse publicações elogiosas ao regime, a Procuradoria da República no Distrito Federal argumentou que comemorações referentes à data são atos inconstitucionais.

O processo foi motivado por uma publicação feita em 31 de março de 2019, quando o golpe completou 55 anos. À ocasião, um vídeo em defesa do regime foi distribuído por um dos canais de comunicação do Palácio do Planalto.

O vídeo, divulgado em um grupo de WhatsApp voltado para distribuição de informações a jornalistas, negava que um golpe de estado instaurou a ditadura militar no Brasil. A Secretaria de Imprensa da Presidência não soube dizer quem enviou para o canal.

Planalto divulga vídeo sobre o golpe de 64, dizendo que o Exército salvou o Brasil

Na gravação, um homem não identificado fala de uma época em que havia no Brasil "um tempo de medo e ameaças" provocadas pelo comunismo. E que "jornais, rádios, TVs e principalmente o povo na rua" apelaram ao Exército.

O vídeo termina com a imagem da bandeira nacional e a inscrição "31 março", e um locutor afirmando que "o Exército não quer palmas nem homenagens. O Exército apenas cumpriu o seu papel".

O procurador responsável pela ação, Pablo Coutinho Barreto, afirmou no pedido que o material ofensivo "causou um dano com proporções nacionais".

Segundo o integrante do MPF, o material divulgado é "incompatível com os valores democráticos na Constituição de 1988", e a consequência do vídeo é um "incomensurável constrangimento às incontáveis famílias que perderam familiares em razão das nefastas e arbitrárias práticas levadas a efeito ao tempo do regime ditatorial".

Na ação, o procurador pediu pagamento de multa, responsabilização das pessoas que produziram e divulgaram o vídeo, e instauração de "procedimento administrativo disciplinar" contra agentes públicos, civis ou militares, que promovam publicações sobre celebrações ao golpe de 1964.

Segundo o MPF, após a apresentação do pedido, o governo federal alegou no processo que a proibição não precisava ser atendida, já que a publicação era de 2019 e que, entre outras coisas, continuavam sendo adotadas medidas cabíveis para evitar novos episódios.

Publicado originalmente por g1 DF, em 31.03.22

Para cúpula tucana, 'blefe' de Doria esvazia candidatura e ajuda a impulsionar articulação por Leite

O resultado concreto da ameaça, segundo avaliação desses tucanos, é que o movimento considerado “errático” do governador acabou esvaziando a candidatura.

João Doria oficializa saída do governo de SP e se mantém na corrida presidencial

Integrantes da cúpula do PSDB ouvidos pelo Blog avaliam que a ameaça do governador João Doria de retirar a pré-candidatura a presidente e não renunciar ao mandato de governador acabou produzindo efeito contrário — na tarde desta quinta, Doria oficializou a saída do governo de São Paulo e disse que a pré-candidatura à Presidência está mantida.

Além disso, ressaltam dirigentes do partido, o movimento impulsionou internamente o nome do governador gaúcho Eduardo Leite para a corrida presidencial.

A ameaça de Doria foi classificada pelas principais lideranças tucanas como um “blefe” para tentar arrancar uma garantia de que seria o candidato da legenda.

Ao vazar que ficaria no cargo até o final do mandato, Doria conseguiu extrair uma nota do presidente do PSDB, Bruno Araújo, na qual ele afirmou que as prévias seriam respeitadas e que Doria seria o candidato do partido.

Segundo tucanos, essa carta foi negociada com interlocutores de Doria a fim de garantir que ele deixasse o cargo para o vice Rodrigo Garcia assumir o Palácio dos Bandeirantes.

“Mas, sem a caneta, a sobrevida de Doria será curta. Ele saiu extremante fragilizado do episódio e não há qualquer garantia de candidatura presidencial. Pelo contrário”, disse ao Blog uma importante liderança do PSDB que participou da negociação da carta.

Ainda na madrugada, os caciques tucanos ficaram preocupados com o estrago que Doria poderia fazer na candidatura de Rodrigo Garcia ao governo paulista se permanecesse no Palácio dos Bandeirantes.

Por isso, a operação no ninho tucano nesta quinta-feira foi para garantir a renúncia dele ao cargo de governador.

“Em São Paulo, os 'doristas' abandonaram ele com essa pixotada”, disse outro dirigente tucano que acompanhou as negociações. “Doria foi o maior impulsionador de Leite com essa atitude”, reforçou.

'Mais cedo, o Blog já tinha informado que a avaliação reservada no PSDB é que os movimentos do governador e do ex-ministro Sergio Moro devem fortalecer o projeto presidencial do governador Eduardo Leite como o candidato da terceira via — Moro deixou o Podemos, se filiou ao União Brasil e anunciou que abriu mão da pré-candidatura a presidente.

Moro e Doria sinalizaram precocemente fragilidade na corrida presidencial. A percepção é que a rejeição elevada se tornou o maior obstáculo para ambos. E o governador de São Paulo já estava esvaziado antes mesmo desse movimento.

Gerson Camaroti para o g1, em 31.03.22

Sergio Moro abre mão de pré-candidatura à Presidência

Ex-juiz deixa o Podemos, se filia ao União Brasil e desiste por ora de disputar o Planalto. No novo partido, Moro estaria sendo pressionado a concorrer ao Congresso, mas cargo ainda não está definido.

O ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sergio Moro assinou nesta quinta-feira (31/03) sua filiação ao União Brasil e anunciou que abriu mão da pré-candidatura à Presidência da República.

"O Brasil precisa de uma alternativa que livre o país dos extremos, da instabilidade e da radicalização. Por isso, aceitei o convite do presidente nacional do União Brasil, Luciano Bivar, para me filiar ao partido e, assim, facilitar as negociações das forças políticas de centro democrático em busca de uma candidatura presidencial única", escreveu Moro em rede social.

"A troca de legenda foi comunicada à direção do Podemos, a quem agradeço todo o apoio. Para ingressar no novo partido, abro mão, nesse momento, da pré-candidatura presidencial e serei um soldado da democracia para recuperar o sonho de um Brasil melhor", completou

A cerimônia de filiação ocorreu em um hotel em São Paulo, para onde Moro transferiu seu domicílio eleitoral. Presente na assinatura, o deputado e vice-presidente do União Brasil, Junior Bozzella, afirmou que o partido vai definir o "melhor lugar pertinente onde ele possa se encaixar".

"Ele estava habilitado a concorrer a diversos cargos, trouxe o domicílio eleitoral para São Paulo. Ele vem para somar, tem 10% nas pesquisas", declarou Bozzella, citado pela imprensa brasileira.

O ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro havia se filiado ao Podemos em novembro do ano passado, um ano e meio depois de deixar o governo federal, oficializando sua entrada de vez na política partidária. À época, Moro assumiu uma postura de pré-candidato à Presidência, embora não tenha feito um anúncio específico sobre concorrer a esse cargo, afirmando que "estava à disposição" do Brasil para assumir um papel de liderança de um "projeto nacional" de "reconstrução".

Possível candidato a deputado

Agora no novo partido, Moro estaria sendo pressionado a disputar o Congresso. Nesta quinta-feira, o deputado federal Alexandre Leite, do União Brasil, disse que o ex-juiz será candidato a deputado federal por São Paulo. Segundo o jornal O Globo, a equipe de comunicação de Moro primeiro confirmou a decisão dele de concorrer ao Congresso, mas depois recuou dizendo que o cargo ainda não está definido.

Em nota, a assessoria de imprensa de Leite informou que "Moro vem para o União com a expectativa de ser um dos deputados mais votados da história do país. Daremos todas as condições para isso". A informação também foi confirmada pelo deputado ao jornal Folha de S. Paulo.

Leite, também tesoureiro do União Brasil (resultante da fusão entre DEM e PSL), é um dos líderes do partido em São Paulo, juntamente com o pai, o vereador Milton Leite, que é presidente da Câmara Municipal paulistana, e Antonio Rueda, presidente do diretório estadual.

Nas pesquisas eleitorais para presidente da República, Moro aparecia bem atrás de Bolsonaro e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Enquanto o petista obteve 43% das intenções de voto na última sondagem do Datafolha, na semana passada, o atual presidente apareceu em segundo lugar, com 26%. Empatados em terceiro lugar pela margem de erro estavam Moro (8%) e o ex-ministro Ciro Gomes (PDT, com 6%).

Lava Jato e governo Bolsonaro

Sergio Moro teve seu nome projetado nacionalmente pela Operação Lava Jato, que provocou um terremoto no mundo político brasileiro. Em 2018, ele oficialmente entrou para a política ao aceitar integrar o atual governo como um superministro da Justiça, levantando questionamentos sobre sua conduta como magistrado.

Afinal, ele havia sido diretamente responsável por tirar do páreo nas eleições de 2018 o ex-presidente Lula, beneficiando diretamente o político de extrema direita Bolsonaro, com quem o então juiz viria a se aliar oficialmente meses após a prisão do petista.

Moro finalmente rompeu com Bolsonaro em abril de 2020, após permanecer tumultuados 16 meses no cargo de ministro. Ele deixou o Ministério da Justiça acusando o presidente de interferência política na Polícia Federal.

Mas o ex-juiz também acumula desgastes, tendo sua própria carga de escândalos e uma trajetória política tumultuada. Nos últimos anos, Moro acumulou sucessivas derrotas junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), que macularam ainda mais sua conduta na Lava Jato.

Em março de 2021, o ministro Edson Fachin anulou todas as condenações de Lula no âmbito da operação, incluindo a notória sentença do triplex elaborada por Moro que abriu a porta para que o petista ficasse de fora do pleito de 2018. Em junho, foi a vez de o plenário do STF manter uma decisão que declarou que Moro era suspeito para julgar Lula.

Os ministros se basearam especialmente nas revelações feitas pelo site The Intercept Brasil, que em julho de 2019 divulgou diálogos privados entre Moro e o procurador Deltan Dallagnol. As conversas indicaram conluio e várias condutas ilegais executadas pela dupla para assegurar a condenação de Lula e outros réus.

Também pesou no entendimento da maioria dos ministros do STF o fato de Moro ter aceitado um cargo de ministro no governo Bolsonaro poucos meses após ter determinado a prisão de Lula.

Desde que deixou o governo, Moro adicionou mais questionamentos sobre sua conduta ética. Ele também perseguiu iniciativas mais lucrativas, tornando-se membro da Alvarez & Marsal, empresa de consultoria com sede nos Estados Unidos que atua – e lucra – como administradora judicial de empreiteiras emparedadas pela Lava Jato.

No final de outubro, a Alvarez & Marsal e Moro encerraram a parceria, deixando o ex-juiz livre para se filiar ao Podemos.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 31.03.22

Doria renuncia ao governo paulista para disputar Presidência

Tucano recua e mantém pré-candidatura ao Planalto após carta do presidente nacional do PSDB. Vice Rodrigo Garcia vai assumir o governo de São Paulo e será o candidato tucano ao cargo.

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou nesta quinta-feira (31/03) sua renúncia ao cargo para concorrer à Presidência da República nas eleições deste ano.

Em pronunciamento para mais de 600 prefeitos no Palácio dos Bandeirantes, o tucano fez um aceno a outros candidatos da chamada "terceira via" e afirmou ser hora de "virar uma frente ampla e um tipo poderoso pelo Brasil e pelos brasileiros".

"Sim, serei candidato à Presidência da República pelo PSDB. Nosso partido. O Partido da Social Democracia Brasileira. E junto, ao lado de outros partidos valorosos, de políticos e de pessoas que têm respeito pela democracia, pela vida e pelos cidadãos, nós vamos vencer, vamos vencer o populismo, a maldade, a adversidade, a corrupção. E juntos, todos nós, vamos ter um novo Brasil", declarou.

Com a saída de Doria, o vice-governador Rodrigo Garcia, ex-DEM, assume o governo paulista a partir de 2 de abril e será o candidato do PSDB a governador do estado. "Daqui pra frente, nosso trabalho continua pelas mãos de Rodrigo Garcia, que, a partir do próximo dia 2, será governador do estado de São Paulo e será reeleito governador do estado de São Paulo", disse Doria.

O governador ainda aproveitou para criticar o presidente Jair Bolsonaro e as gestões petistas no governo federal, que configuram seus principais adversários na disputa pelo Planalto.

"Nesses três anos e três meses da nossa gestão no governo de São Paulo, enfrentamos grandes desafios. A continuidade da crise econômica, iniciada nos governos do PT. A volta da inflação, o aumento do desemprego, o crescimento da fome e da pobreza no governo Bolsonaro. Para piorar, o mundo foi surpreendido pela gravíssima pandemia da covid-19. E, o Brasil, surpreendido pelo negacionismo", atacou o tucano.

Recuo

A renúncia ao governo paulista veio em meio a discussões sobre uma possível desistência de Doria de disputar a Presidência. O anúncio de que, por fim, ele manteria a pré-candidatura ocorreu após o presidente nacional do PSDB, Bruno Araújo, reafirmar o apoio do partido a ele em uma carta.

"Sentia a necessidade de ter um apoio explícito do meu partido que foi dado pelo Bruno Araújo, presidente nacional do PSDB. Uma carta incontestável, agora não dá para nenhum outro imaginar que pode surrupiar ou pode copiar as prévias do PSDB. Prévias significam democracia e partidos devem seguir a democracia. Agora estou tranquilo", declarou.

Em novembro de 2021, Doria venceu as prévias do PSDB para concorrer à Presidência, derrotando o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.

Mas o governador paulista não teve sucesso nas pesquisas eleitorais desde então. Na última sondagem do instituto Datafolha, na semana passada, Doria aparece com apenas 2% das intenções de voto, atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 43%), Bolsonaro (PL, 26%), Sergio Moro (então Podemos, 8%) e Ciro Gomes (PDT, 6%).

Na mesma pesquisa, ele foi ainda o terceiro candidato mais rejeitado, com 30% de rejeição, atrás apenas de Bolsonaro (55%) e Lula (37%)..

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 31.03.22