quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Estudo acusa alta global do autoritarismo e cita Bolsonaro

Presidente brasileiro é incluído entre líderes que contribuem para deterioração mundial da democracia em análise publicada por grupo britânico. Apenas 45% da população do planeta vivia numa democracia em 2021, aponta.

Um relatório divulgado nesta quinta-feira (10/02) aponta que a democracia continua a se deteriorar mundialmente em meio à pandemia e ao crescente apoio ao autoritarismo. A análise da Economist Intelligence Unit (EIU) aponta Bolsonaro como um exemplo de líder populista que provoca a erosão da democracia atacando as instituições.

Sediada em Londres e vinculada ao grupo The Economist, a EIU elabora anualmente seu Índice de Democracia conforme indicadores separados em cinco categorias: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis.

O grupo afirma que o índice "lança luz sobre os desafios contínuos à democracia em todo o mundo, sob pressão da pandemia de coronavírus e crescente apoio a alternativas autoritárias".

Nesta edição, o relatório anual, chamado Índice de Democracia, registra sua maior queda desde 2010 e estabelece "outro recorde sombrio", com a pior pontuação global desde que a análise foi produzida pela primeira vez em 2006.

"Os resultados refletem o impacto negativo da pandemia na democracia e na liberdade no mundo pelo segundo ano consecutivo, com a extensão considerável do poder do Estado e a erosão das liberdades individuais", diz o estudo.

Bolsonaro e a piora recorde na América Latina

Citando o presidente Jair Bolsonaro como um dos exemplos no continente, a EIU afirma que América Latina teve nesta edição a maior queda anual no índice de democracia entre todas as regiões do globo desde que o relatório é elaborado.

O documento afirma que a "pontuação da região piorou em todas as categorias", atribuindo a isso sobretudo "um declínio acentuado na cultura política".

"O compromisso cada vez mais fraco da América Latina com uma cultura política democrática abriu espaço para o crescimento de populistas iliberais, como Jair Bolsonaro no Brasil, Andrés Manuel López Obrador no México e Nayib Bukele em El Salvador, além de fomentar regimes autoritários na Nicarágua e na Venezuela", aponta o relatório.

O texto lembra os ataques do presidente brasileiro ao Supremo Tribunal Federal e suas investidas contra o sistema eletrônico de votação. 

"O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, exigiu a renúncia de dois membros do Supremo Tribunal Federal após uma investigação sobre alegações de que grupos pró-Bolsonaro estavam espalhando 'fake news'", diz o relatório.

"Bolsonaro chegou ao ponto de dizer que ignoraria os resultados das eleições presidenciais e legislativas de 2022 – comentários que ele retirou posteriormente", acrescenta.

A análise aponta o governante brasileiro como uma ameaça para a campanha eleitoral deste ano. "Bolsonaro provavelmente continuará com seus ataques às instituições democráticas e minará a confiança na integridade eleitoral, diante das eleições de outubro de 2022."

Impacto da pandemia

Menos da metade (45,7%) da população mundial agora vive em algum tipo de democracia, um declínio significativo em relação a 2020, quando o número era de 49,4%.

Ainda menos (6,4%) residem agora em uma "democracia plena" - categoria que inclui apenas 21 de 167 países e territórios analisados -, depois que Chile e Espanha foram rebaixados para "democracias imperfeitas".  

Mais de um terço da população mundial (37,1%) vive sob regime autoritário, grande parte na China. "A China não se tornou mais democrática porque se tornou mais rica. Pelo contrário, tornou-se menos livre", disse a EIU. Dos países analisados, 59 foram incluídos nessa categoria.

Os três primeiros lugares do índice são ocupados por Noruega, Nova Zelândia e Finlândia, enquanto os três últimos países são Coreia do Norte, Mianmar e Afeganistão.

Junto com a Tunísia, Mianmar e Afeganistão registraram as maiores quedas no índice após o golpe militar e a tomada do Talibã nesses dois últimos países.

Deustche Welle Brasil, em 10.02.22

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato 

Abro a coluna com uma deliciosa historinha da Bahia.

Se deixou, não há crime

Cosme de Farias foi um grande advogado dos pobres da Bahia. Enveredou também pela política. Vereador e deputado estadual por muito tempo. A historinha. Um ladrão entrou na Igreja do Senhor do Bonfim e roubou as esmolas. Cosme de Farias foi para o júri:

– Senhores jurados, não houve crime. Houve foi um milagre. Senhor do Bonfim, que não precisa de dinheiro, é que ficou com pena da miséria dele, com mulher e filhos em casa com fome e lhe deu o dinheiro, dizendo assim:

– Meu filho, este dinheiro não é meu. Eu não preciso de dinheiro. Este dinheiro foi o povo que trouxe. É do povo com fome. Pode levar o dinheiro.

E ele levou. Que crime ele cometeu? Se houve um criminoso, o criminoso é o Senhor do Bonfim, que distribuiu o dinheiro da Igreja. Então vão buscá-lo agora lá e o ponham aqui no banco dos réus. E ainda tem mais. Senhor do Bonfim é Deus, não é? Deus pode tudo. Se ele não quisesse que o acusado levasse o dinheiro, tinha impedido. Se não impediu, é porque deixou. Se deixou, não há crime.

Cosme de Farias ganhou no verbo. O réu foi absolvido.

Panorama visto do alto

As melhores visões são do alto. Quando os olhos estão próximos aos objetos, certas partes serão bem focadas, mas os contextos podem ficar de fora. É oportuno um enquadramento que flagre o conjunto. Ver do alto é melhor. Vamos tentar enxergar os fenômenos sob essa perspectiva.

1. A cereja

As esquerdas tentam compor uma ampla frente sob a liderança de Luiz Inácio. A cereja para atrair fatias do centro e até da direita tem o nome de Geraldo Alckmin. É um chamariz que impacta no primeiro momento, mas, com o tempo, tende a perder a vitalidade e cair na mesmice da velha política. Truque de Lula, que, ao fim e ao cabo, se for o vitorioso, fará o governo do PT, com o PT e para o PT. Compromisso histórico. Pano de fundo: os dois governos Lula. Não, os de Dilma.

2. O bolo da esquerda

Como é sabido, o PT virou uma igreja. Mais acolhedora a seus fiéis. O núcleo duro está saindo dos buracos em que se escondeu e mostra sua velha cara: Gleisi, Mercadante, Mantega, Franklin Martins, os laboratórios da Fundação Perseu Abramo etc. O bolo seria uma federação de partidos de esquerda, liderada pelo PT e pelo PSB. Difícil de agradar ao paladar dos partidos por causa das conveniências eleitorais. O PT vai acabar indo pra guerra com seus exércitos.

3. O bolo da direita

À direita, a novidade teria o nome de União Brasil, fusão do PSL, com 55 deputados, e o DEM, com 26. Seria o maior bolo do Parlamento. Seria. Mas como as conveniências partidárias nos Estados são bem diferentes, a debandada está bem assinalada. Até o fechamento da janela partidária, em abril, espera-se uma debandada de pelo menos 20 deputados da bancada bolsonarista do PSL. Bivar pode ir aposentando sua ideia de compor uma chapa como vice.

4. O voo baixo de Sergio Moro

A escalada do ex-juiz Sergio Moro está muito devagar, quase parando. É verdade que, nas últimas semanas, Moro mergulhou fundo nas águas da política, correndo regiões, conversando com uns e outros, até posando junto à imagem do padre Cícero, de Juazeiro/CE. Mas não tem agregado apoios substantivos. A galera parlamentar espera vê-lo alçar voos mais altos, subindo nas pesquisas. Oscila entre 8% e 12%.

5. Mulher na chapa

Além de Alckmin, há outra cereja no bolo eleitoral. Uma mulher para compor a chapa. Mulher está na onda eleitoral, envolvida em um manto de grandes valores – honestidade, sinceridade, maior assepsia política, ou seja, se posiciona melhor como contraponto à velha política. Fosse mais conhecida, Simone Tebet estaria bem posicionada nas pesquisas eleitorais. É considerada, ainda, como um forte potencial na condição de vice em outras chapas, como a tucana liderada por João Doria. Mas o MDB decidiu bancar sua candidatura que conta com a simpatia de tucanos de plumagem densa, como Tasso Jereissati e José Aníbal.

6. Os ciclos da campanha

É evidente que a campanha ainda está morna. Vivemos o primeiro ciclo – o das articulações, fusões, noivados e casamentos. Entraremos no segundo ciclo em abril, quando o quadro geral se firmar na parede. Maio/junho e julho serão meses de consolidação e fechamento de articulações. O terceiro ciclo, como se vê, será dedicado aos lançamentos oficiais. Agosto, o quarto ciclo, é o mês dos grandes embates. Setembro, o pico da montanha e a corrida pelo país. O Senhor Imponderável poderá nos visitar a qualquer momento. O quinto ciclo será o mês das grandes decisões. Na primeira semana de outubro, teremos festas e velórios.

7. Os círculos do presidente

Pergunta recorrente: Bolsonaro crescerá? Irá ao segundo turno? Respostas: a) a depender das circunstâncias – economia, adjutórios sociais, intensa polarização, clima de guerra – ou eu ou ele; b) mudança de postura, tentativa de ser mais equilibrado; c) apoio centrífugo – mais engajamento dos contingentes do centro; d) divisão extremada da esquerda, que pode dividir os votos do arco ideológico. Em suma, Jair precisa engrossar, avolumar os círculos de apoio e engajamento.

8. As lembranças dos dutos

A imagem do duto que joga dinheiro – aquela massificada imagem de corrupção, divulgada diariamente por meses pela TV Globo por ocasião da Lava Jato deverá aparecer. A não ser que a Globo, a essa altura, já tenha decidido caminhar junto com Lula, o que já faz parte das conversas. A banalização da imagem negativa acabou repartindo seus efeitos por toda a classe política.

9. Ciro, sempre o mesmo

Não será desta vez que o marqueteiro João Santana alavancará a imagem de Ciro Gomes. Mudança ligeira de linguagem passará despercebida pelas correntes das margens sociais. Ciro é Ciro e não haverá argamassa capaz de mudar sua fachada. É bom de debate e conhece o Brasil. Mas o pouco debate não deixa emergir tais qualidades.

10. João Doria, o vacinador

O governador de São Paulo será embalado no manto das vacinas, como o homem público que abriu as gavetas da vacinação em massa. Mas o jeito João Doria de ser – sofisticação e paulista no corpo e mente – será uma barreira de difícil travessia. Faz um bom governo. Mas o governo gira em torno de si. Parece não ter equipe. Suas mensagens não chegam às massas.

11. Simone, a surpresa

Simone Tebet, a senadora do MDB do Mato Grosso do Sul, se conseguir ter boa visibilidade, poderá alçar voo. Tem estofo e postura de inovação.

12. Bolsonaro na Rússia

Imprudência, inoportunidade, falta de bom senso. São os termos que cobrem a marcada visita de Bolsonaro à Rússia, nesse momento de tensão com a Ucrânia. Uma bela foto de Putin e Bolsonaro no Kremlin será vista pelo mundo. Mas o isolamento do Brasil será mais intenso. Bolsonaro sonha com a foto., que não o fará um estadista.

13. Haddad versus Garcia

Em São Paulo, é muito provável que Fernando Haddad, o ex-prefeito da capital, seja o candidato do PT a enfrentar Rodrigo Garcia, que foi eleito pelo DEM, mas virou tucano. É este vice-governador que João Doria quer eleger governador. Face à polarização, Garcia terá mais chance que Haddad. São Paulo, capital, abriga os maiores núcleos antipetistas do país. A conferir.

14. Ezequiel no RN

O presidente da Assembleia Legislativa do RN, Ezequiel Ferreira de Souza (PSDB), está articulando uma ampla frente para derrotar a atual governadora, Fátima Bezerra. Ele tem condições, mesmo considerando que a máquina governamental que administra é uma forte alavanca da governadora. Mas a máquina legislativa é também poderosa.

15. Disputa ferrenha

O deputado José Dias (PSDB) explica: "A primeira etapa é a definição da candidatura a senador. Quanto a isso, não há decisão alguma. Mas, o meu desejo e a minha expectativa é de que Rogério Marinho e Fábio Faria entrem em entendimento e decidam essa questão até o final dessa semana, pois não temos muito tempo. Essa conversa é apenas entre os dois ministros e as lideranças do governo do presidente Jair Bolsonaro. Nós não temos a menor interferência nesse diálogo. Acreditamos que o melhor nome da oposição para o governo é o de Ezequiel, que conta com o apoio político de, pelo menos, 18 deputados estaduais e 130 prefeitos espalhados pelo Estado". Fátima lidera a intenção de votos. Se Lula estiver bem folgado nas pesquisas, será difícil remover a governadora.

O carro se atolou-se

Nesses tempos de chuvarada, fecho a coluna com atoleiro.

Walfredo Paulino de Siqueira foi um típico coronel da política pernambucana. Escrivão de polícia, comerciante, deputado, industrial, presidente da Assembleia, vice-governador de PE. Era uma figura folclórica, como conta Ivanildo Sampaio, ex-diretor de redação do Jornal do Commercio, de Pernambuco, e meu contemporâneo na faculdade. Um dia, dois eleitores discutiam sobre o uso da partícula "se". O exemplo era com um automóvel que ficara preso em meio a um atoleiro. O primeiro afirmava que a forma correta de se expressar era falar que "o carro atolou-se"; o outro insistia que não; o correto era "o carro se atolou". Consultado, Walfredo deu a sentença salomônica:

– Escutem aqui. Se os pneus que ficaram presos foram os dois da frente, o correto é dizer que "o carro se atolou". Se foram os pneus traseiros, a gente fala assim: "o carro atolou-se". Mas, acontecendo de ficarem presos os quatro pneus, os da frente e os de trás, então, meus filhos, a forma correta mesmo é "o carro se atolou-se"...

Torquato Gaudêncio, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo e consultor de Marketing Político.

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Federações partidárias: horizonte incerto

Por Marcos Queiroz

As recém-criadas federações partidárias vão estrear nas eleições gerais deste ano como uma incógnita na política nacional. Embora muito semelhantes às extintas coligações proporcionais, esse instituto ainda gera certa insegurança. Isso porque, ao contrário das coligações, não se restringe apenas à eleição. A aliança necessita ser mantida em âmbito nacional durante todo o período de mandato dos eleitos.

O grande mérito das federações é a tentativa de dar mais organicidade à política ao unir partidos de visões ideológicas idênticas ou aproximadas. Diferentemente do pragmatismo eleitoral das coligações, nas quais parlamentares de visões completamente opostas eram eleitos na mesma chapa.

Apesar de uma maior afinidade de pensamento entre as legendas federadas, não há garantia de coesão. Os interesses imediatos e futuros são empecilhos que não permitem afirmar antecipadamente que o funcionamento desse instituto será bem-sucedido na prática.

No interesse imediato, mira-se apenas a eleição de outubro. As siglas maiores pretendem fortalecer candidaturas executivas (governadores e presidente da República) ao agregar mais legendas em torno de si e propiciar maior estrutura de campanha.

De outro lado, estão os partidos menores, que têm na eleição à Câmara dos Deputados sua trincheira de sobrevivência, pois o desempenho nesse pleito determina o montante de dinheiro que vão receber dos fundos partidário e eleitoral e o direito a tempo de mídia gratuito. Sem tais recursos, essas legendas serão asfixiadas. Nessa eleição, a cláusula de barreira terá como requisitos mínimos a obtenção de 2% dos votos nacionais ou a eleição de 11 deputados federais. 

Portanto, para esses partidos a federação representa uma boia de salvação, na medida em que coligados a outros permite-se que alcancem quociente eleitoral para eleger candidatos. Isso dificilmente ocorreria se disputassem o pleito sozinhos.

O aspecto relacionado à eleição parlamentar embute ainda algumas questões que os partidos têm analisado com certa cautela, pois podem ser cruciais no resultado final. Vejamos alguns pontos que fazem parte do cálculo eleitoral.

— Número de candidatos: a Lei 14.211/2021 estabeleceu que cada partido ou federação só possa lançar candidatos no mesmo número de vagas em disputa para os cargos proporcionais (deputados federais, estaduais e vereadores), acrescido de mais uma cadeira. A regra anterior permitia que cada um pudesse lançar entre 150% e 200% do número de lugares a preencher. Dessa forma, como a federação corresponde a agremiação única, o total de candidatos deve ser dividido entre as legendas que a compõem. Esse é um ponto de grande receio, pois é determinante para o desempenho das siglas.

— Sobras: a mesma Lei 14.211/2021 também definiu que só poderão concorrer às vagas remanescentes após a divisão das vagas entre as representações que atingiram o quociente eleitoral, conhecidas como "sobras", apenas os partidos que tenham alcançado 80% do quociente e candidatos que tenham obtido votos em número igual ou superior a 20% desse quociente. Caso não seja possível atender a esse critério, as vagas serão preenchidas pelos candidatos mais votados. Esse é um ponto que favorece quem apresenta os nomes com maior potencial de voto.

— Cota de gênero: por força da Lei 12.034/2009, cada partido e federação são obrigados a reservar no mínimo 30% e no máximo 70% de candidaturas para cada sexo. Obviamente, devido à baixa participação feminina na política, os 30% se destinam às mulheres. Esse critério deve ser observado não só no total de candidaturas da federação, mas também em cada legenda integrante da aliança. Somado a isso à Emenda Constitucional 111/2021, que determina apenas para efeito da distribuição dos recursos dos fundos públicos já mencionados, os votos recebidos por candidatas mulheres são contabilizados em dobro. Esse ponto, em específico, revela-se bastante vantajoso para as siglas que possuem candidatas com boa densidade eleitoral.

Entretanto, a conjunção de tais regras torna ainda mais complexa a montagem da "nominata" dos partidos dentro de uma federação e ainda mais incertos os resultados.

Em relação ao futuro, há uma grande discussão sobre o processo de tomada de decisões. Não há lei para disciplinar como será exercida a liderança da federação em sua atuação parlamentar, nem mesmo o peso que cada legenda terá nas deliberações internas. Essa é uma relação que os partidos devem negociar, pois suscita divergências.

Outro ponto de discórdia que se projeta para adiante e necessita de pactuação diz respeito às eleições municipais de 2024. Quem terá a preferência nas disputas? Será permitido que agremiações parceiras em âmbito nacional disputem ente si no pleito local?

Dadas as muitas indefinições, os pretensos federados solicitaram ao  Supremo Tribunal Federal a extensão do prazo para formalização das uniões. Em decisão liminar, o ministro Luís Roberto Barroso havia determinado que as federações devem ser oficializadas até 1º de março. Porém, no julgamento em curso no Pleno da corte, a maioria dos ministros acolheu o pedido de dilação do prazo para 31 de maio.

Como se vê, o horizonte está repleto de senões. Portanto, previsibilidade não é a palavra do momento. Aguardemos os próximos capítulos.

Marcos Queiroz, o augtor deste artigo, é jornalista, analista político e consultor da Arko Advice. Publicado originalmente pelo Consultor Jurídico, em 10.02.22.

Capez: Considerações sobre a lógica do poder na política

É um erro político primário menosprezar a ambição alheia ou estabelecer limites éticos ao adversário que busca o poder a qualquer custo. A política revela o melhor e o pior de cada ser humano. 

Há quase três mil anos, Sun Tzu apontou em seu livro "A Arte da Guerra" ("The Book of War") um dos segredos para o triunfo no campo de batalha: "Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas" [1]. Na política não é tão simples, nela nem sempre é fácil identificar o inimigo, muitas vezes camuflado de aliado. O amigo na bonança pode ser o adversário na tormenta, quando não o agente provocador. A lógica da sobrevivência política compreende vários aspectos, mas é fundamental entender que ela, paradoxalmente, está longe de ser um processo lógico. A chegada e manutenção no poder pressupõem saber identificar os obstáculos que estão por vir e os inimigos que se ocultam na mesma trincheira. É um erro político primário menosprezar a ambição alheia ou estabelecer limites éticos ao adversário que busca o poder a qualquer custo. A política revela o melhor e o pior de cada ser humano. Por isso, muito interessante a obra de James D. Morrow, Randolph M. Siverson, Alastair Smith e Bruce Bueno de Mesquita denominada "A Lógica da Sobrevivência Política" ("The Logic of Political Survival") [2], que buscou identificar os imperativos lógicos em um processo não tão lógico, como o da batalha pelo poder.

Os autores pesquisaram as razões pelas quais governantes conseguem permanecer muito tempo no poder, independentemente do sistema institucional do país. Afirmam que não basta o suporte das Forças Armadas ou prestígio popular, sendo necessário o apoio de uma elite dominante, política ou econômica, capaz de enxergar no líder o meio para a preservação de seus interesses. A sobrevivência política é, acima de tudo, a sobrevivência do poder de mando, quase sempre predatório e personalista. Como bem dizia John Dalberg-Acton: "O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus" [3].

Contemporaneamente, a classe política considera a estabilidade econômica como importante trunfo para a manutenção do poder. A percepção histórica revela que as grandes transformações sociais e guerras na história da humanidade tiveram como causa preponderante a economia.

O estopim da Revolução Francesa ocorreu com a crise agrária provocada, entre outras causas, por um vulcão que entrou em erupção na Islândia, destruindo as safras e propagando fome e desespero na população, sobretudo a do Terceiro Estado, formado por camponeses e burgueses, representando 98% do total. Toleraram as excentricidades e guerras de Luís XIV, o Rei Sol ("L´État c´est moi"), as festas e desperdícios de Luís XV ("Rien de tout"), mas, com o agravamento das condições econômicas, perderam a paciência quando a miséria lhes bateu à porta, depondo Luís XVI, para depois decapitá-lo ("Aprés moi le déluge").

A Segunda Grande Guerra, maior catástrofe humanitária do século passado, começou nas pesadas dívidas de guerra impostas à Alemanha pelo Tratado de Versailles e o crack da Bolsa de Nova York em 1929. O desespero econômico da população germânica abriu as portas para sua manipulação política por um grupo de fanáticos desprovidos de limites éticos e liderados por um genocida.

Na campanha presidencial norte-americana de 1992, quando o então candidato do Partido Democrata, governador do pequeno estado do Arkansas, Bill Clinton, enfrentou o ex-presidente republicano George Bush, credenciado pelo sucesso militar na Guerra do Golfo, o estafe democrata se questionava quais seriam os pontos vulneráveis da gestão Bush capazes de provocar sua derrota e assegurar a vitória de Clinton.

Uns apontaram o belicismo da política internacional e a demonstração de força da América (Mighty America), outros, a solução dos problemas sociais, até que o marqueteiro da campanha, James Carville, cunhou a frase: "It is the economy, stupid" ("É a economia, estúpido"). Nasce, então, a convergência de quase toda a classe política ocidental no sentido de que o bem-estar econômico, fundado no crédito e aumento do poder de compra, seria o alicerce para um governante se reeleger.

Em se tratando de mecanismos de perpetuação do poder, faz-se necessário compreender as razões pelas quais uma sociedade não só escolhe alguém para governar, como ainda o mantém no governo. A estabilidade econômica é um bom termômetro, mas não o único. Adeptos da escola neo-institucionalista, os autores dividem os mecanismos de sobrevivência política de acordo com a estrutura institucional do país, a saber: regimes autoritários e democráticos, concluindo pela maior longevidade nas ditaduras.

É fato que a situação financeira das pessoas tem grande influência, pois, se o poder de compra aumenta e as contas conseguem ser pagas, cria-se uma sensação de bem-estar propícia à preservação do poder. Em uma métrica cartesiana, existe uma "equação sociológica" que passa necessariamente pela economia, a qual se considera um dos mais importantes e decisivos "imperativos de ação para permanência no poder".

Mas outros pontos também merecem destaque, entre os quais a legitimação do poder. O governante pode ser escolhido por meio do voto, hereditariedade ou força. Em todas essas três formas, após chegar ao poder, terá de traçar estratégias para sua manutenção. É o que os autores chamaram de "teoria dos selecionadores" (selectorate theory) e "coalizão vencedora" (winning coalition).

A teoria dos selecionadores estuda a forma de seleção dos líderes em cada país. Escolhido ou imposto, não importa o meio, o líder terá de prover sua governabilidade e segurança no cargo, por meio de uma coalizão vencedora (winning coalition).

A coalizão vencedora nos regimes democráticos terá de ser majoritária nas casas legislativas, a fim de evitar a obstrução da agenda de governo ou sua deposição por impeachment. Por essa razão, independentemente da identidade de ideias, o líder político precisa construir meios de contato com adversários de outros partidos, inclusive os derrotados no pleito, visando a buscar apoio e pontos de convergência. Sem a winning coalition, corre o risco de não governar ou até ser deposto.

Em um Estado democrático, o líder tem seu poder limitado pela Constituição e a oposição possui mecanismos de participação por meio de vetos ou obstruções, ou ainda provocando o Poder Judiciário quando vislumbrada alguma inconstitucionalidade ou abuso de autoridade. Ao mesmo tempo, a coalizão vencedora ocupará espaços na Administração Pública, dividindo com o líder a responsabilidade de gerenciamento do Estado e o exercício do poder.

Nos regimes autoritários, a chegada e permanência no poder se processam de modo diverso. Ao invés de eleições diretas, o autocrata chega ao poder por meio de um golpe de Estado com apoio das Forças Armadas e, às vezes, de parcela da própria população. A ascensão ao poder também pode ocorrer mediante processo revolucionário, no qual um grupo ideológico toma para si o poder e se autoproclama fiel defensor dos interesses do povo. Existe ainda a possibilidade de líderes autoritários chegarem ao poder por meio de falsas eleições, tais como as que elegiam Saddam Hussein no Iraque em um pleito unipartidário e era reeleito com a totalidade dos votos. Por fim, citamos ainda os exemplos da extinta União Soviética e de Cuba, onde os líderes emergiram da vontade da cúpula do Partido Comunista.

Depois de chegar ao poder, o autocrata centralizará suas ações na sua manutenção, mantendo e expandindo os privilégios dos selecionadores que lá o colocaram. A coalizão vencedora responsável pela segurança e governabilidade do autocrata traduzirá os anseios de uma pequena aristocracia, ligada aos líderes do partido dominante, Forças Armadas ou conglomerado econômico que o selecionou. A governabilidade é pautada pela lealdade pessoal ao líder, uma vez que os integrantes da aristocracia gozam de benefícios privados por fazerem parte de sua base de sustentação e não desejam colocar em risco os privilégios alcançados.

Há de se ressaltar que os dados referentes à permanência de um líder no poder não podem ser interpretados isoladamente, uma vez que no regime democrático o sistema de governo instituído poderá falsear as conclusões obtidas. Enquanto no sistema presidencialista temos a limitação de permanência no poder a um ou dois mandatos eletivos (exemplos: Brasil e Estados Unidos), no parlamentarista não há fixação de tempo de exercício do poder pelo primeiro-ministro. Dessa forma, ignorado o contexto histórico e levados em conta apenas os anos de permanência no poder, uma democracia parlamentarista poderia, equivocadamente, ser tida como um regime autoritário.

Diante de todas as ponderações, a referida obra mostra-se de fundamental importância na compreensão dos mecanismos de perpetuação do poder, lastreados na estrutura histórico-institucional do Estado. Bastante atual e adaptado a qualquer regime político, o trabalho nos induz à reflexão e mostra que os métodos apresentam similaridade com os regimes da Antiguidade, como o da Roma Antiga, com uma diferença básica: normalmente, as 23 punhaladas no imperador Caio Júlio César na entrada do Senado romano, em regra, se apresentam em sentido figurado, na forma de sutis traições. Triunfar na política pressupõe conhecer as mazelas da alma humana e saber liderar com elas, até para conseguir fazer o bem.

[1] TZU, Sun. A Arte da Guerra, 1ª edição, Ed. L&PM POKET, 2012.

[2] MORROW, James D.; SIVERSON, Randolph M.; ALASTAIR, Smith e MESQUITA, Bruce Bueno de. A Lógica da Sobrevivência Política, 1ª edição, Ed. Vide Editorial, 2022.

[3] "Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely in such manner that great men are almost bad men". Carta para o Bispo Mandell Creighton, 5 de abril de 1887, In FIGGS, J. N. e LAURENCE, R. V. Historical Essays and Studies: Macmillan, 1907

Fernando Capez, o autor deste artigo,  é procurador de Justiça, mestre e doutor em Direito e presidente do Procon-SP. Publicado originalmente pelo Consultor Juridico, em 10.02.22.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Futuro roubado

Não é difícil avaliar o impacto negativo que a alfabetização tardia tem no desenvolvimento das crianças

Os impactos da pandemia de covid-19 sobre a educação só não são mais trágicos do que os que se abateram sobre as famílias dos mais de 630 mil brasileiros mortos em decorrência da doença. Para os que sofreram a perda de entes queridos, não há reparo possível. Para a educação, há, mas isso demandará um monumental esforço concentrado do governo, nas três esferas da administração, e da sociedade. Será necessária, sobretudo, a reconstrução do Ministério da Educação (MEC), reduzido a pó e mofo ideológico pela torpeza do presidente Jair Bolsonaro, que instrumentalizou a pasta para defender seus delírios anticomunistas e interesses eleitorais – não raro congruentes.

Um levantamento da organização Todos Pela Educação, publicado pelo Estadão, mostrou que o número de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever cresceu 66,3% entre 2019 e 2021. Em números absolutos, isso significa que, desde o início da pandemia, a quantidade de crianças que não foram alfabetizadas saltou de 1,43 milhão para 2,39 milhões. É um desastre. Não é difícil avaliar o desdobramento que terá a alfabetização tardia no desenvolvimento educacional dessas crianças.

Além desse problema, grave por si só, o levantamento do Todos Pela Educação, feito com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)  Contínua, do IBGE, lança mais luz sobre a profunda desigualdade social e econômica no Brasil, uma chaga que a pandemia de covid-19 só agravou. Entre as crianças mais pobres, o porcentual das que não sabiam ler e escrever saltou de 33,6% para 51% entre 2019 e 2021. A razão é de uma simplicidade revoltante: a imensa maioria das crianças mais pobres depende da educação pública. E sabe-se que a educação pública foi absolutamente negligenciada pelos governos federal, estaduais e municipais no curso da pandemia, ampliando ainda mais o abissal fosso que separa as crianças mais carentes das crianças que podem contar com as escolas particulares.

O levantamento do Todos Pela Educação também mostrou que a negligência com a educação pune mais as crianças pretas e pardas, em geral mais pobres e mais dependentes da educação pública. Os porcentuais de pretas e pardas que não sabiam ler e escrever saltaram, respectivamente, de 28,8% e 28,2% em 2019 para 47,4% e 44,5% em 2021. Entre as crianças brancas, houve prejuízos, mas em menor grau. Entre estas, o crescimento das que não leem nem escrevem foi de 20,3% para 35,1% no mesmo período.

“A educação precisa ser, de fato, prioritária na pauta política do País para que possamos mitigar esses efeitos”, escreveu Gabriel Corrêa, líder de políticas educacionais do Todos pela Educação, em análise para o Estadão. Ele tem razão. É urgente a coordenação entre o MEC e as Secretarias da Educação nos Estados e municípios para definição de políticas públicas de resgate da aprendizagem perdida. Não será um esforço trivial, mas, se a educação não sair do campo dos discursos e passar para o campo da ação, triste é o futuro que o País tem à frente.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 09 de fevereiro de 2022 | 03h05

Sobe para 41% fatia das crianças de 6 a 7 anos que não sabem ler e escrever

Em 2012, eram 28%, segundo estudo do Todos pela Educação com base na Pnad Contínua

Menina de 5 anos, aluna de escola municipal de São Paulo, tenta escrever o próprio nome. No país, 41% das crianças de 6 e 7 anos não aprenderam a ler e escrever - Marlene Bergamo - 13.dez.20/Folhapress

O Brasil atingiu o maior patamar, desde 2012, de crianças de 6 e 7 anos que não sabem ler e escrever. No ano passado, chegou a 40,8% a fatia da população dessa faixa etária que não havia sido alfabetizada, o equivalente a 2,4 milhões.

Os dados são de um estudo divulgado nesta terça-feira (8) pelo Todos pela Educação, com base na Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE. Na pesquisa, os responsáveis pelos domicílios responderam se suas crianças sabiam ler e escrever.

Por lei, as crianças deveriam ter assegurado o direito de aprender a ler e a escrever até o fim do 2º ano do ensino fundamental, ou seja, aos 7 anos. O país, no entanto, atingiu o recorde dos últimos dez anos de crianças sem acesso a esse direito. Em 2012, 28,2% da população dessa idade não estava alfabetizada, cerca de 1,7 milhão.

O aumento de crianças de 6 a 7 anos nessa situação ocorreu durante a pandemia de Covid-19. Em 2019, 1,4 milhão não tinha sido alfabetizada (25,1% da população dessa faixa etária).

O impacto é ainda maior entre as crianças mais pobres, pretas e pardas. Além de terem tido menos oportunidade de continuar estudando a distância, foram esses alunos que ficaram mais tempo com as escolas fechadas no país.

"Os dados reforçam o que outras pesquisas já apontaram, a pandemia teve impactos brutais no aprendizado das crianças e reforçou as imensas desigualdades que já existiam no país. É urgente colocar em prática políticas que tenham como prioridade o ensino das crianças mais pobres, pretas e pardas", diz Gabriel Corrêa, gerente de políticas educacionais do Todos pela Educação.

Entre as crianças que moram nos 25% de domicílios mais pobres do país, 51% não sabem ler e escrever. Já entre as que moram nos 25% mais ricos, 16,6% ainda não tinham aprendido.

As crianças pretas e pardas, que já tinham o direito menos assegurado em anos anteriores, foram ainda mais impactadas. A diferença entre o percentual de crianças brancas e pretas que não sabiam ler e escrever subiu de 8,5 pontos percentuais para 12,3 entre 2019 e 2021.

Em 2019, 20,3% das crianças brancas não sabiam ler e escrever. O percentual subiu para 35,1%, em 2021. No mesmo período, entre as crianças pretas, a proporção cresceu de 28,8% para 47,4%. Entre as pardas, subiu de 28,2% para 44,5%.

"As crianças negras e as mais pobres tiveram menos oportunidade de continuar estudando durante a pandemia, principalmente por terem tido menos acesso ao ensino remoto. Por isso, precisamos de ações que sejam pensadas para quem foi mais prejudicado. Infelizmente, não é o que estamos vendo", diz Corrêa.

Desde o início da pandemia, o Ministério da Educação, que tem uma secretaria exclusiva para a alfabetização, não desenvolveu nenhum programa ou destinou recursos extras às escolas para evitar prejuízos nessa fase de aprendizado. Questionada, a pasta não respondeu sobre suas ações.

Segundo Corrêa, com a ausência do governo federal, é importante que os estados apoiem técnica e financeiramente os municípios para garantir a qualidade da educação nos primeiros anos escolares. "As escolas municipais são responsáveis pela maioria das matrículas nos anos iniciais do fundamental, mas não podemos achar que o desafio é só ter as crianças dentro da sala de aula, precisamos garantir educação de qualidade. E os estados precisam ajudar."

Na cidade mais rica do país, nem mesmo a matrícula de todas as crianças dessa idade foi garantida no início deste ano letivo. Em São Paulo, até 14 mil alunos que estão ingressando no 1º ano do ensino fundamental não tiveram vaga assegurada pelo governo estadual nem pela prefeitura.

"É o reflexo da falta de planejamento e cooperação entre o governo e a prefeitura. Essa situação dá um indicativo do tamanho do desafio que estados e municípios mais pobres podem ter pela frente se não tiverem organização e apoio. Garantir escola é só o primeiro passo, nós precisamos de escola de qualidade", diz Corrêa.

Isabela Palhares, para a Folha de S. Paulo, em 09.02.22

Por que Alemanha e outros países proíbem o nazismo?

"Uma ideia que tem circulado cada vez mais é a de que numa democracia as pessoas devem ter o direito a expressar e fazer coisas que destruam a própria democracia", afirma o historiador Federico Finchelstein, especialista em fascismo da New School, em Nova York.

Em podcast, apresentador Monark disse que deveria haver um 'partido nazista reconhecido pela lei' (Divulgação)

Ao argumentar que foi um "erro" a criminalização do nazismo pela Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) tocou em um dos maiores desafios para as democracias liberais contemporâneas: qual a linha que separa a liberdade de expressão e a apologia ao crime? Quando a garantia à liberdade de expressão de um grupo representa dar-lhes os instrumentos democráticos para destruir a própria democracia? Por que, afinal, a Alemanha, um dos países mais democráticos do mundo, criminaliza até hoje o discurso nazista?

A fala de Kim Kataguiri - que em janeiro anunciou que se filiará ao Podemos - aconteceu na última segunda-feira (7/2), durante a participação do integrante do Movimento Brasil Livre (MBL) no programa de podcast Flow, conduzido pelo apresentador Bruno Aiub, conhecido como Monark.

"O que eu defendo, e acredito que o Monark também defenda, é que por mais absurdo, idiota, antidemocrático, bizarro, tosco o que o sujeito defenda, isso não deve ser crime porque a melhor maneira de você reprimir uma ideia antidemocrática, tosca, bizarra, discriminatória é você dando luz àquela ideia, pra que aquela ideia seja rechaçada socialmente", disse Kataguiri no podcast.

No mesmo programa, Monark afirmou que "deveria existir um partido nazista legalizado no Brasil" e que "se o cara for anti-judeu ele tem direito de ser anti-judeu".

O 'falso' paradoxo da liberdade

Nesta terça (8/1), o apresentador disse que estava "muito bêbado" durante o podcast e se desculpou pelas palavras. Afirmou que foi "insensível" e que pareceu defender "coisas abomináveis" quando na verdade queria argumentar a favor da liberdade de expressão. O podcast Flow anunciou que Monark havia sido retirado da apresentação da atração e deixado a sociedade que gerencia o produto.

Alguns anunciantes do programa, que tem quase 4 milhões de inscritos no Youtube, divulgaram que romperiam seus contratos com o Flow. A Confederação Israelita do Brasil (Conib) condenou, em nota, "a defesa da existência de um partido nazista" e até a Embaixada da Alemanha no Brasil soltou nota em que afirmou que "defender o nazismo não é liberdade de expressão".

Um dia após o episódio, a Procuradoria Geral da República abriu investigação contra Kataguiri e Monark por eventual crime de apologia ao nazismo. No Brasil, divulgar o nazismo pode resultar em pena de 2 a 5 anos de cadeia e pagamento de multa.

O deputado federal foi às redes sociais argumentar que sua defesa era da liberdade de expressão e não do nazismo. Em nota, afirmou que vai "colaborar com as investigações pois meu discurso foi absolutamente anti-nazista, não há nada de criminoso em defender que o nazismo seja repudiado com veemência no campo ideológico para que as atrocidades que conhecemos nunca sejam cometidas novamente".

Especialistas em democracia e fascismo ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, veem no argumento pró-liberdade de expressão absoluta de Kataguiri e Monark um falso - e perigoso - paradoxo.

"Uma ideia que tem circulado cada vez mais é a de que numa democracia as pessoas devem ter o direito a expressar e fazer coisas que destruam a própria democracia", afirma o historiador Federico Finchelstein, especialista em fascismo da New School, em Nova York.

Finchelstein apela para uma metáfora futebolística para explicar por que a lógica de Kataguiri e Monark é incorreta.

"Imagine que a democracia é um jogo de futebol, com todas as regras do jogo, como só jogar com os pés. Todos podem jogar, desde que sigam as regras. Ao defender que alguns têm o direito de expressar e aplicar ideias que destroem a democracia, essas pessoas estão dizendo que parte dos jogadores vai jogar futebol com a mão, o que destrói o jogo. É algo perigoso e típico do fascismo, uma manipulação para causar confusão com a noção de liberdade, como se a liberdade na democracia incluísse ser livre para contaminar os outros, para eliminar grupos sociais, para cassar vozes alheias", diz Finchelstein.

Filósofo Karl Popper disse que "a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância" (Getty Images)

O suposto paradoxo da democracia - de garantir liberdades que podem destruir a própria democracia - não é uma ideia nova na filosofia e na política. Em 1945, o filósofo liberal Karl Popper publicava o seu "A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos", escrito ainda durante a Segunda Guerra Mundial. Na obra, ele afirma que "a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então, os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles".

'Democracia militante': a experiência alemã

Para Johannes von Moltke, especialista em movimentos de direita e sua atuação nas mídias, da Universidade de Michigan, foi essa lição que a Alemanha falhou em entender há quase 90 anos e que a levou a ter um governo nazista no comando.

"A Alemanha do pós segunda guerra não proibiu o nazismo apenas pela experiência do Holocausto. Os alemães estavam muito preocupados em não repetir os erros da era pré-nazista, da chamada República de Weimar (1919-1933), que permitiu que partidos como o nacional-socialista de Hitler se estabelecessem. O que o deputado brasileiro está defendendo é basicamente a rota de uma democracia não liberal para o fascismo, justamente o caminho que a Alemanha tomou no final dos anos 1920, que levou à eleição do Partido Nazista, responsável por cassar todas as salvaguardas democráticas na sequência", explica von Moltke.

Ao tomar o controle da então frágil e jovem democracia alemã, Adolf Hitler não só destruiu as instituições democráticas como passou a usar a máquina do Estado alemão para perseguir e exterminar minorias: judeus, negros, homossexuais. As ações de Hitler desaguaram na Segunda Guerra Mundial, da qual ele saiu derrotado e, o país, dividido

Em 1949, o governo da então Alemanha Ocidental baniu legalmente o uso de símbolos, linguagem e propagandas nazistas. Estudioso do desenvolvimento de leis contra o discurso e os crimes de ódio no mundo, o professor da Faculdade Middlebury College, Erik Bleich lembra que até mesmo a famosa saudação "Heil Hitler!" foi oficialmente proibida pelos alemães.

Em 1949, o governo da então Alemanha Ocidental baniu legalmente o uso de símbolos, linguagem e propagandas nazistas (Getty Images)

No entanto, ainda levaria quase duas décadas para que os alemães passassem a olhar de modo crítico para a própria história, resgatassem a memória das atrocidades do período nazista e discutissem nas escolas os crimes cometidos pelos avós dos estudantes. Ainda nos anos 1960, passou a ser crime "incitar ódio e violência contra parcelas da população", lei que foi atualizada para criminalizar também o racismo e expressamente banir racismo e fascismo.

"É um requisito de uma democracia em funcionamento que as pessoas tolerem ideias com as quais discordam. No entanto, alguns discursos, alguns grupos, alguns partidos podem ser tão prejudiciais que os políticos e o público concluem que os riscos que eles representam superam os benefícios de protegê-los. Os alemães viram em primeira mão onde o nazismo pode levar e por isso mesmo a Alemanha está entre os defensores mais ativos do que é chamado de 'democracia militante' - em outras palavras, a noção de que a democracia deve ser defendida, mesmo ao custo de restringir algumas liberdades quando essas liberdades estão sendo exploradas para minar a democracia", afirmou Bleich à BBC News Brasil.

Segundo Bleich, a Alemanha é a democracia mais restritiva enquanto os Estados Unidos, onde é relativamente comum ver manifestações da extrema direita com suásticas e símbolos de supremacia branca, têm menos regulações.

"Ambos os países ainda permitem uma variedade muito grande de discursos e ações, em diversos espectros ideológicos. A parte difícil dessa história para as democracias é descobrir como restringir, banir ou punir apenas os discursos, grupos e partidos realmente perigosos, deixando o escopo mais amplo possível do que é permitido. Diferentes países desenvolveram soluções diferentes para este enigma", diz Bleich.

No Brasil, durante o governo Bolsonaro, a questão entrou na ordem do dia. Por um lado, integrantes do governo foram acusados de promover propaganda fascista. Em janeiro de 2020, o então secretário da Cultura, Roberto Alvim foi demitido depois de divulgar um vídeo que fazia referência à fala de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista. Ele atribuiu o episódio a uma "coincidência retórica". Em março de 2021, o assessor para Assuntos Internacionais da Presidência da República Filipe Martins foi acusado de fazer gesto supremacista branco durante sessão no Congresso. Martins negou intenção racista em seu gesto e acabou absolvido na Justiça.

De outro lado, integrantes do governo e o próprio presidente passaram a acusar a Justiça de cercear a liberdade de expressão dos brasileiros. Seus apoiadores chegaram a ameaçar invadir o Supremo Tribunal Federal, que deu sucessivas decisões contra o que considerou serem atos anti-democráticos de bolsonaristas. Entre as decisões judiciais estão a derrubada de páginas de internet e perfis de redes sociais que espalhavam desinformação favorável ao atual governo.

Segundo Finchelstein, existe uma ressurgência do fascismo em diversos países e o Brasil não escapa desse movimento global, que seria uma busca por respostas para os problemas da vida cotidiana, como a pandemia e suas restrições, as crises econômicas, a intensidade das migrações com a globalização. "Há uma espécie de crise da democracia. As pessoas estão descontentes com o desenvolvimento político, econômico e social. Mas elas parecem esquecer que a solução que o fascismo propõe é ainda pior do que uma democracia problemática, diz Finchelstein.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washinton,DC, para a a BBC News Brasil.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

MPF pede à Justiça que governo Bolsonaro seja proibido de fazer publicações celebrando golpe de 1964

Procuradoria também pediu que ex-secretário de Comunicação Social Floriano Barbosa e empresário sejam condenados a pagar indenização de R$ 1 milhão

O presidente Jair Bolsonaro, durante visita ao Comando do Exército Foto: Marcos Corrêa/Presidência/11-05-2021

O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública na qual pede que o governo federal seja proibido de fazer publicações que celebrem o golpe militar de 1964. Também solicitou que o ex-secretário de Comunicação Social do governo de Jair Bolsonaro, Floriano Barbosa, e o empresário Osmar Stábile sejam condenados a pagar uma indenização por dano moral coletiva de R$ 1 milhão por ocasião de um vídeo divulgado em 2019 com celebração da ditadura militar, classificado pelo MPF como "antidemocrático".

O referido vídeo, que trata o golpe de 1964 como um momento da história em que o Exército "salvou" o Brasil de supostas ameaças comunistas, foi divulgado pela Secretaria de Comunicação Social na rede de WhatsApp do Palácio do Planalto em 31 de março de 2019. Em resposta ao MPF, o governo federal disse que o vídeo foi publicado por engano por um funcionário do Planalto e que não teve uso de recursos públicos, por ter sido produzido pelo empresário.

"Diante dos elementos informativos colhidos na investigação, não convence a tese sustentada de que a postagem se deu por um equívoco de um servidor público, notadamente quando verificado o contexto dos fatos. A publicação de um vídeo em um canal oficial de comunicação da Presidência da República não é — e não pode ser — um ato tão simples e banal, uma vez que ficou incontroverso que sempre há uma autorização expressa do Secretário de Comunicação Social da Presidência da República, conforme nota técnica", escreveu o procurador Pablo Coutinho Barreto, na ação apresentada à Justiça Federal do Distrito Federal.

"A defesa e exaltação de regime ditatorial, por instituição ou agente públicos, sob qualquer pretexto, também viola a ordem constitucional vigente, incorrendo, também, em ato ilícito aquele que financia a defesa e exaltação de regime ditatorial promovida por instituição ou agente públicos", completou.

A ação ainda cita a Comissão Nacional da Verdade, instaurada para apurar "graves violações a direitos humanos" e que reconheceu, em seu relatório final, a prática dessas violações pelo Estado brasileiro durante a ditadura militar.

Para o procurador, o dano moral coletivo ficou configurado porque o vídeo tomou proporção nacional, já que foi objeto de reportagens na imprensa a respeito da sua veiculação pelo Palácio do Planalto. Durante a investigação, foi constatado que a repercussão gerou inclusive um aumento no cache pago pelo empresário ao ator que atuou no vídeo, passando de R$ 500,00 para R$ 35 mil.

Ao final, o MPF fez três pedidos à Justiça Federal envolvendo a União. Primeiro, uma determinação ao governo para que "abstenha-se de promover novas publicações que façam qualquer tipo de celebração/comemoração em relação ao do Golpe Militar de 1964". Em seguida, que a União publique uma mensagem retificadora esclarecendo os equívocos das informações que constam no vídeo divulgado em 2019.

Aguirre Talento e Mariana Muniz para O Globo, em 08/02/2022 

O rico PT dá calote trabalhista

Dos quase R$ 24 milhões devidos pelo PT, 70% são débitos com a Previdência Social. Débito de FGTS soma R$ 135 mil

O Partido dos Trabalhadores (PT) é o partido político que acumula a maior dívida com os cofres públicos entre todas as legendas. E a maior parte desse passivo, quem diria, é composta por débitos com a Previdência Social. Portanto, uma dívida de natureza trabalhista.

O PT que alardeia ser o grande defensor dos interesses da classe trabalhadora do País é o mesmo partido que acumula as maiores dívidas com o Tesouro pelo não recolhimento das contribuições para o INSS e para o FGTS dos funcionários de seus diretórios estaduais e municipais.

É muito fácil assumir o papel de patrono das grandes causas dos desvalidos da porta de casa para fora. Benemerência com chapéu alheio é extremamente confortável.

Os débitos do partido do sr. Lula da Silva somam R$ 23,7 milhões, quase o quádruplo do valor devido pela segunda legenda mais endividada, o DEM, com R$ 6,5 milhões. Cerca de 70% da dívida petista é com a Previdência Social (R$ 16,4 milhões). Em seguida, vêm as multas aplicadas pela Justiça Eleitoral (R$ 5,1 milhões), impostos não pagos (R$ 709 mil) e o não recolhimento de valores devidos ao FGTS (R$ 135 mil).

O Estadão procurou a direção nacional do PT para obter explicações, mas o partido não quis se manifestar. É difícil explicar mesmo. É no mínimo inusitado que um dos partidos políticos mais ricos do País seja também o maior caloteiro. O PT foi o segundo partido que mais recebeu recursos do Fundo Partidário em 2021 (R$ 95,7 milhões), atrás apenas do PSL (R$ 112,7 milhões). Além disso, o partido conta com uma militância tão aguerrida que já se mostrou disposta a pagar até as multas aplicadas a alguns de seus líderes condenados pela Justiça.

É bastante improvável que o PT, ou qualquer outra legenda, quite os seus débitos. O Fundo Partidário e o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), o chamado fundo eleitoral, são excrescências que fazem um mal terrível à democracia representativa. Quanto mais vultosos são os recursos públicos recebidos pelos partidos, maior é a distância que separa as legendas de seus apoiadores, os quais, afinal, os partidos deveriam atrair para obter doações e, assim, custear suas atividades, como qualquer outra organização privada da sociedade civil. Multas aplicadas pela Justiça Eleitoral obviamente não podem ser pagas com recursos dos fundos públicos. Logo, sem se esforçar para obter meios privados de pagamento, os partidos simplesmente ignoram os débitos.

Como se essa distorção causada pelos fundos públicos não fosse grave por si só, além de aboletar os caciques partidários em um confortável sofá recheado de recursos dos contribuintes, a dinheirama fácil, aliada à falta de sanções mais duras pela incúria, ainda tem o condão de fazer os partidos se sentirem intocáveis, pairando acima das mesmas leis que são aplicadas a quaisquer outras empresas – e é nisto em que se transformaram muitas legendas – que têm débitos com o Tesouro.

Ao dito popular “devo, não nego, pago quando puder”, em relação aos partidos políticos, pode-se acrescentar “e se quiser”.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 08.02.22

O Supremo – e a lei – sob ataque

O descumprimento pelo Congresso de decisão judicial sobre a publicidade das emendas de relator é parte do retrocesso institucional instaurado pelo bolsonarismo

São conhecidos os ataques e as ameaças do bolsonarismo contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Ao constatar a disposição do Judiciário em defender a Constituição – é a Justiça, e não o Congresso ou mesmo a oposição, que tem recordado os limites institucionais da Presidência da República –, Jair Bolsonaro transformou os ministros do Supremo em inimigos políticos. Mais do que Luiz Inácio Lula da Silva, seriam os membros do STF que demandam a constante mobilização dos bolsonaristas.

Inédita desde a redemocratização do País, essa atitude de confronto por parte do presidente da República contra o Judiciário expressa-se de diversas maneiras. Por exemplo, Jair Bolsonaro fala abertamente em deturpar o funcionamento do STF, prometendo usar as indicações presidenciais tanto para diminuir a independência da Corte como para aparelhá-la ideologicamente. Para piorar, Jair Bolsonaro apresenta esse aparelhamento do Judiciário como uma espécie de diferencial eleitoral. Só o bolsonarismo estaria disposto a realizar esse enviesamento ideológico e negacionista do Supremo.

Trata-se de desavergonhada promoção do retrocesso institucional. Ignorando a Constituição, Jair Bolsonaro trata o Supremo como mero ator político – e ainda subalterno ao Executivo. Essa manipulação não é apenas um erro teórico. Ela gera graves prejuízos ao País. Depois que o lulopetismo instalou a divisão do “nós contra eles”, o bolsonarismo tenta agora inserir o Supremo na mesma odiosa polarização.

Tem-se, assim, um cenário de desrespeito ao Estado Democrático de Direito, em especial a um de seus mais importantes elementos: o sistema de freios e contrapesos, que regula todo o funcionamento dos Poderes. O problema não se resume, portanto, à pretensão de Bolsonaro de agir fora dos limites constitucionais, o que por si só é grave. Sob a égide da bagunça bolsonarista – como se tudo fosse mera política, como se tudo ao final dependesse não das regras institucionais, mas da esperteza de cada um –, o peso da lei e, por consequência, o peso das decisões judiciais perdem importância.

Veja-se, por exemplo, o descumprimento pelo Congresso da decisão do STF sobre a publicidade do repasse das verbas públicas envolvendo as emendas de relator, como mostrou o Estadão. Após a revelação, no ano passado, por este jornal, do esquema do orçamento secreto – dinheiro público era usado para atender a interesses políticos discricionários, sem a devida transparência –, o Supremo determinou, entre outras medidas, que o Legislativo devia informar o nome do parlamentar que apresentou o pedido de verba. Trata-se de informação essencial numa democracia.

No entanto, o Congresso não vem cumprindo integralmente a determinação do Supremo. Por exemplo, entre 13 e 31 de dezembro do ano passado, o relator-geral do Orçamento, senador Márcio Bittar (PSL-AC), registrou no site do Congresso indicações no valor de R$ 4,3 bilhões, mas em 48% dos repasses os nomes dos parlamentares que apadrinharam esses pedidos não foram apresentados.

Além disso, as informações incluídas por Márcio Bittar não cobriram a totalidade do valor empenhado no período para as emendas de relator, da ordem de R$ 6,6 bilhões. Ou seja, além de a publicidade sobre R$ 4,3 bilhões ser incompleta, também não se sabe como ocorreu o repasse em relação a outros R$ 2,3 bilhões, se foram parlamentares que apresentaram os pedidos de repasse ou se foi o Executivo federal quem definiu o destino desses recursos.

É muito dinheiro público gasto sem a devida transparência. Ainda que fosse apenas um centavo, é muito descaramento essa parcial divulgação dos dados exigidos pelo Supremo. Num Estado Democrático de Direito, decisão judicial deve ser cumprida, e ponto final.

Engana-se quem pensa que os ataques de Jair Bolsonaro contra o Supremo e o descumprimento do Congresso de decisão da Corte são fenômenos independentes. A malemolência do Legislativo em dar plena publicidade aos dados das emendas de relator é parte do retrocesso institucional instaurado pelo bolsonarismo. É urgente restaurar o valor do STF – e da lei.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 08.02.22.

Moro defende lei contra aborto e imunidade tributária de igrejas em carta a evangélicos

O ex-ministro busca atrair votos conservadores que hoje são mais simpáticos ao presidente Jair Bolsonaro

Sergio Moro durante a filiação de membros do MBL ao Podemos - Adriano Vizoni - 26.jan.22/Folhapress

"Valorizaremos a autonomia da instituição familiar, respeitaremos as preferências afetivas e sexuais de cada indivíduo e a preservação dos direitos de cada um dos seus membros", escreveu.

O ex-juiz Sergio Moro lançou uma carta nesta segunda-feira (7) em que defende a atual lei que restringe as situações em que o aborto é permitido e promete manter a imunidade tributária das igrejas.

A iniciativa do pré-candidato à Presidência da República faz parte da estratégia eleitoral para atrair voto dos evangélicos, segmento em que o presidente Jair Bolsonaro (PL) conta com apoio de populares líderes religiosos.

O lançamento ocorreu em um evento no Ceará com a divulgação da "Carta de Princípios para Cristãos".

Moro não entrou no mérito das discussões sobre as garantias do público LGBTQIA+, mas defendeu respeito a este grupo da sociedade.

"Valorizaremos a autonomia da instituição familiar, respeitaremos as preferências afetivas e sexuais de cada indivíduo e a preservação dos direitos de cada um dos seus membros", escreveu.

O ex-ministro de Bolsonaro leu a carta e disse que as promessas estão "escritas na pedra" e que traduzem "princípios que não serão desconsiderados em qualquer hipótese, seja em 2022 ou em anos vindouros".

Moro também criticou "ataques e ofensas à imprensa" e disse que esses episódios refletem um comportamento agressivo "em relação a nós próprios". Ele disse que é contra discursos de ódio e que trabalhará contra a polarização que divide a sociedade.

Também se comprometeu em não fazer divulgações de campanha em celebrações religiosas e disse que buscará "apoio individual de lideranças eclesiásticas e de influenciadores do segmento" sem perseguir sustentação política institucional de igrejas.

Em sinalização para o campo conservador da sociedade, em que ele disputa voto com Bolsonaro, reiterou ser contrário a possibilidade de aumentar as hipóteses em que o abordo é permitido.

"Defenderemos a não ampliação da legislação em relação ao aborto e faremos a defesa da preservação da vida humana em todas as suas manifestações, conforme lei brasileira em vigor", disse.

Ele afirmou que irá prestigiar o "papel constitucional colaborativo das organização religiosas" e que pretende manter a imunidade tributária das igrejas.

Além disso, disse que já fez um trabalho de combate ao tráfico quando foi ministro da Justiça e que seguirá firme contra substâncias ilícitas.

Moro também se disse contra a "sexualização das crianças", termo usado por Bolsonaro para acusar, sem provas, líderes de esquerda de promoverem a pedofilia.

"O Estado deve evitar ao máximo invadir a esfera da liberdade privada, assim como deve preservar as crianças e adolescentes da sexualização precoce".

Matheus Teixeira, de Brasília para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 07.02.22., às 20h51

Por que o Brasil não consegue erradicar o trabalho escravo?

Número de trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão dobrou em um ano, e só 4,2% dos denunciados pela prática foram condenados em 11 anos. Projetos de lei discutem expropriação de terras de empregadores.

Quase 2 mil trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão em 2021, segundo dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho. Além de um crescimento de 106% em relação a 2020, o número de resgates em 2021 foi o maior desde 2014.

A pena para quem submete alguém à escravidão moderna vai de dois a oito anos de reclusão e multa. O empregador também é incluído por dois anos em um documento público chamado de Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão, popularmente conhecido como Lista Suja.

Uma emenda constitucional de 2014 também prevê a expropriação de propriedade urbana e rural em que for constatada a exploração de trabalho em condições análogas à escravidão e a sua destinação à reforma agrária, no caso das rurais, ou aos programas de habitação popular, no caso das urbanas. Os trabalhadores resgatados seriam incluídos com prioridade em assentamentos ou nos programas habitacionais.

Gráfico mostra perfil dos trabalhadores em  condições análogas à escravidão resgatados em 2021Gráfico mostra perfil dos trabalhadores em  condições análogas à escravidão resgatados em 2021

Perfil dos trabalhadores em condições análogas à escravidão resgatados em 2021

Apesar de prevista na Constituição Federal há quase dez anos, a procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso, coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT, explica que a emenda constitucional nunca foi aplicada e chegou a ser julgada ilegal.

"O Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] chegou a usar a Lista Suja como documento oficial de que o empregador explorou o trabalho escravo para abrir um processo de expropriação das suas terra, mas a AGU [Advocacia Geral da União] entendeu que, por não ser regulamentada, a emenda era ilegal", diz Cardoso.

A pauta sobre a expropriação de terras como punição a quem pratica trabalho escravo é anterior à emenda de 2014. Segundo a procuradora do MPT, a discussão vem desde a década de 1990, com a Lei da Reforma Agrária (Lei 8.629), mas nunca avançou por causa de pressões da bancada ruralista.

Nos anos 2000, a questão chegou a ser pautada no Congresso, mas foi usada como barganha para se alterar a definição de trabalho escravo prevista no Código Penal.

"Os projetos de lei que surgiram naquela época propunham a expropriação das terras mediante alteração do conceito de trabalho escravo, reduzindo o conceito para somente 'trabalho forçado'", explica Cardoso.

Elogiado fora do Brasil, o artigo 149 do Código Penal estabelece que o trabalho análogo ao de escravo ocorre em quatro modalidades, bastando a ocorrência de uma delas para que seja configurado o crime. São elas:

submeter o trabalhador a trabalhos forçados;

submeter o trabalhador a jornadas exaustivas de trabalho;

sujeitar o trabalhador a condições degradantes de trabalho (ex: falta de acesso à água potável ao longo da jornada de trabalho ou nos períodos de descanso; falta de instalações sanitárias ou a impossibilidade de sua utilização em condições higiênicas ou de preservação da privacidade, etc.);

restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com empregador (ex: reter documentos ou objetos pessoais; isolamento geográfico ou o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, etc.).

Um projeto de lei de 2019 (PL nº 1.678) e outro de 2021 (PL nº 1.678) propõem regulamentar a emenda da expropriação sem alterar o conceito de trabalho escravo. Ambos os projetos tramitam no Senado.

Porém, o presidente Jair Bolsonaro já declarou várias vezes ser contrário à expropriação das propriedades como forma de punir quem pratica trabalho análogo à escravidão.

Em 2019, Bolsonaro afirmou que a emenda de 2014 não seria aprovada em seu governo e justificou que o empregador "não quer maldade para o seu funcionário nem quer escravizá-lo". "Isso não existe. Pode ser que exista na cabeça de uma minoria insignificante, aí tem que ser combatido", disse.

Latifúndios, escravidão e reforma agrária

Dos 1.937 trabalhadores resgatados em 2021, 89% (1.727) estavam no trabalho rural, e 11% no urbano. 

Entre as cinco atividades econômicas com maior ocorrência de trabalho análogo ao de escravo, todas estão ligadas à produção agrícola e agropecuária, segundo dados do MPT.

Os dados refletem, de acordo com a coordenadora do programa Direitos Socioambientais da Conectas, Julia Neiva, a relação histórica entre trabalho escravo e latifúndios no país.

"O Brasil foi construído a partir de grandes latifúndios baseados em trabalho escravo, com grandes proprietários de terra escravagistas. E até hoje setores fundamentais da economia brasileira, como a produção do café e a agropecuária, dependem de mão de obra escrava", diz Neiva.

Por isso, para a coordenadora, promover a reforma agrária para resgatados a partir de terras expropriadas de empregador que explorou o trabalho escravo "é reconhecer a divisão extremamente desigual de terras no Brasil".  

Para a procuradora Cardoso, também "não é coincidência que todos os anos a maioria dos trabalhadores resgatados esteja no meio rural".

"Esses trabalhadores não têm acesso nem ao mercado de trabalho formal e nem aos meios de produção, ou seja, a terra. Por isso, a reforma agrária voltada para essas pessoas teria o poder de erradicar o trabalho escravo no Brasil", afirma Cardoso.

Reparação insuficiente

Desde 2002, o trabalhador resgatado tem direito a três parcelas do seguro-desemprego, independentemente do tempo de serviço prestado, pagas no momento do resgate, assim como o direito à reparação pelos danos morais e materiais sofridos durante a exploração.

"Mas, uma vez na Justiça, não temos como dizer quando as reparações serão pagas ao trabalhador, sem dizer que temos casos em que, depois de muito tempo de espera, a indenização foi de R$1 mil, R$1,5 mil. Isso nem de perto é suficiente para uma pessoa vulnerável seguir adiante, quanto mais para reparar o dano grave sofrido durante a escravidão", explica Cardoso.

O Auditor-Fiscal do Trabalho Magno Riga, coordenador do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), conta que, por falta de suporte social e financeiro após os resgates, não é raro encontrar o mesmo trabalhador novamente em condição análoga ao de escravo em outros trabalhos.

"O objetivo dos grupos móveis de fiscalização é o de erradicar o trabalho escravo, mas, na verdade, o que fazemos é combatê-lo. Para erradicá-lo, precisamos de uma mudança estrutural econômica e socialmente profunda. Basta ver que somos um país rico, mas com muitos trabalhadores miseráveis", diz Riga.

"Além de ser uma medida pedagógica a todos que submetem o trabalhador a essas condições, destinar as terras expropriadas à vítima de escravidão é relevante principalmente porque tem o poder de quebrar o ciclo do trabalho escravo no Brasil", afirma o auditor-fiscal do trabalho.

Apenas 4,2% condenados

Os projetos de lei que tramitam atualmente no Senado preveem que a expropriação das propriedades onde houve trabalho escravo será aplicada somente após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Porém, para o auditor-fiscal Riga, esperar a sentença penal condenatória poderá contribuir para a impunidade na área.

"Basta olhar para os dados de quantas pessoas foram condenadas criminalmente em última instância por trabalho escravo nos últimos anos: pouco mais de 100. Se depender de condenação criminal, a expropriação será só mais uma exceção para os denunciados", diz Riga.

Um estudo da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostrou que dos 2.679 denunciados por trabalho escravo entre 2008 e 2019, apenas 112 (4,2%) foram condenados em última instância.

Ou seja, se a emenda constitucional fosse regulamentada como os projetos de lei preveem, a expropriação seria possível em apenas 4,2% dos denunciados em 11 anos.

"A cada 100 réus acusados de trabalho escravo, cerca de quatro são condenados definitivamente. É mais que impunidade, chega a ser perda de tempo você movimentar a Justiça para condenar quatro pessoas", diz o coordenador da pesquisa, o juiz federal Carlos Haddad, professor da UFMG.

Alojamento de trabalhadores em situação análoga à de escravidão resgatados em uma fiscalização em novembro de 2021, em Porto Murtinho (MS)

Alojamento de trabalhadores em situação análoga à de escravidão resgatados em uma fiscalização em novembro de 2021, em Porto Murtinho (MS)Foto: Grupo Especial de Fiscalização Móvel

Mesmo se condenado criminalmente, Riga ainda lembra que o processo criminal é muito longo e correria o risco de prescrever.

"O processo criminal envolvendo trabalho escravo passa por julgamento na primeira e segunda instâncias, no STJ e no STF. Do jeito que estão os PLs, a ação de expropriação das terras teriam início somente após todo esse trâmite", diz Riga.

Por isso, para o Auditor-Fiscal do Trabalho, apenas o processo administrativo, já usado como elemento para incluir o nome do empregador na Lista Suja, deveria bastar para iniciar a ação de expropriação das propriedades com mão de obra análoga à escrava.

"Se os autos de infração feitos pelos fiscais [em campo] forem considerados válidos e o processo administrativo considerar o empregador culpado, mesmo após garantir ampla defesa ao denunciado, isso deveria bastar para dar início a ação de expropriação daquelas terras", defende Riga.

Lista Suja

Uma portaria interministerial instituiu a Lista Suja em 2004, um documento público com os nomes de empregadores que submeteram trabalhadores a condição análoga ao de escravo.

"A Lista Suja é uma iniciativa pioneira no mundo todo, que traz transparência sobre o tema para a sociedade, nos mostra quem são as empresas que utilizam trabalho escravo, mas ela ainda é frágil e precisa de uma lei para que não seja extinta", diz Neiva.

Em 2016, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio, considerou que a Lista Suja se ampara na Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11), uma vez que os autos de infração expedidos por auditores do trabalho são públicos.

Quem entra para a Lista Suja não tem acesso a créditos e financiamentos por dois anos, além de ser monitorado de perto pelos grupos de fiscalização móvel. Se constatada reincidência de trabalho escravo, o nome permanece no documento por mais dois anos.

"Não temos auditores nem estrutura para realizar o monitoramento nos locais incluídos na Lista Suja. Geralmente, quando fazemos, é porque recebemos informações novas, como uma nova denúncia de trabalho escravo no local", diz o auditor-fiscal Riga.

Dados do MPT mostram que cerca de 45% do quadro de auditores fiscais do trabalho estão vagos por falta de novas contratações. Nos últimos dez anos, a área também sofreu corte de quase 70% dos recursos orçamentários. 

"O principal pilar do combate ao trabalho escravo é a fiscalização. Sem ela, não tem Lista Suja, não tem resgates, não se tem políticas para enfrentamento", diz Neiva.

Laís Modelli para a Deutsche Welle Brasil, em 07/02/2022

Até que ponto as decisões judiciais são confiáveis?

A soberania estatal tem como uma de suas importantes vertentes a função judicial cuja precípua finalidade é a de conferir efetividade ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal).

Por José Rogério Cruz e Tucci

No âmbito das sociedades civilizadas, como é cediço, é defeso fazer justiça pelas próprias mãos. Assim, os litígios são resolvidos por um órgão predeterminado, dotado de jurisdição. Ao conduzir os processos e proferir as suas decisões, os tribunais devem agir de forma independente e imparcial.

Na mesma linha principiológica, que marca as denominadas "Normas Fundamentais do Processo Civil", constantes do preâmbulo do Código de Processo Civil em vigor, inspirando-se, por certo, na dogmática do Direito Privado, o legislador estabelece, no artigo 5º, uma cláusula geral de boa-fé processual, que deverá nortear a conduta, durante as sucessivas etapas do procedimento, de todos os protagonistas do processo: o juiz, as partes, o representante do Ministério Público, o defensor público e também os auxiliares da justiça (serventuários, peritos, intérpretes, etc.). O fundamento constitucional da boa-fé advém da cooperação ativa dos litigantes, especialmente no contraditório, que devem participar da construção da decisão, colaborando, pois, com a prestação jurisdicional. Não há se falar, com certeza, em processo justo e équo se as partes atuam de forma abusiva, conspirando contra as garantias constitucionais do devido processo legal.

Note-se que a boa-fé processual se desdobra nos deveres de veracidade e de lealdade na realização dos atos processuais, contemplados nos artigos 77 e 142 do Código de Processo Civil. O descumprimento destes deveres caracteriza ato atentatório à dignidade da justiça e litigância de má-fé, cujas sanções estão detalhadamente previstas no diploma processual.

Acrescente-se, por outro lado, que o Código de Processo Civil também impõe comportamento ético e leal aos órgãos jurisdicionais, coibindo-os, por exemplo, de proferir "decisão-surpresa" (artigo 9º). Exemplo marcante da lealdade do órgão jurisdicional em relação aos litigantes vem expresso na preciosa regra do parágrafo único do artigo 932 do diploma processual: "Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado o vício ou complementada a documentação exigível".

Bem é de ver, por outro lado, que os pronunciamentos judiciais se revestem da presunção de legalidade. É dizer: as decisões, em princípio, devem se conformar com as normas jurídicas. Enquanto permanecerem hígidos, os atos decisórios são eficazes e traduzem confiança aos seus destinatários. Tanto é verdade, que a própria legislação processual autoriza o cumprimento de decisões mesmo antes de seu respectivo trânsito em julgado.

Sob diferente perspectiva, a segurança jurídica, como relevante vetor social, decorre da certeza do direito, materializada nos julgamentos de nossos tribunais.

Confiança e segurança constituem destarte o binômio para um pacífico convívio em sociedade.

Saliente-se outrossim que no âmbito do processo de cunho cooperativo, entre os deveres do juiz, destaca-se o de "auxílio", no sentido de exortar ou facilitar às partes a superação de eventuais dificuldades ou obstáculos que impeçam o exercício de direitos ou faculdades (por exemplo: ao julgar os embargos de declaração, atender, tanto quanto possível, ao escopo da pretensão da parte, explicitando o fundamento que restou omisso, para que este reste efetivamente prequestionado na complementação do acórdão).

Ademais, nessa linha de raciocínio, não é incomum que da decisão colegiada conste um obiter dictum, ou seja, uma recomendação a latere que, embora não sendo parte do núcleo do julgamento, presta-se a esclarecer tanto o juiz de primeiro grau quanto as partes envolvidas na demanda.

A esse propósito, para evitar a oposição de embargos de declaração, que tem causado confessadamente enorme repugnância aos integrantes dos tribunais, a prática revela que algumas turmas julgadoras têm "ameaçado" os litigantes com potencial aplicação de sanção processual, caso sejam opostos embargos de declaração. E, assim, iludindo as partes — que, de resto, depositam confiança no Judiciário —, fazem constar do acórdão capciosa exortação, mais ou menos nos seguintes termos:

"... Por fim, para facultar eventual acesso às vias especial e extraordinária, considero prequestionada toda a matéria infraconstitucional e constitucional, observando a sedimentada orientação do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, na hipótese de prequestionamento, é desnecessária a citação numérica dos dispositivos legais, bastando que a questão colocada tenha sido decidida... Desse modo, na hipótese de oposição de aclaratórios, incidirá o disposto no artigo 1.026 do CPC, com a imposição de multa".

O advogado, muitas vezes incauto pela inexperiência, por um lado, temeroso da aplicação da referida sanção processual, e, de outro, fiando-se piamente na afirmação provinda de quem detém o poder de dizer o direito, deixa de provocar o tribunal para, em atendimento ao enunciado das Súmulas 211/STJ e 356/STF, buscar o prequestionamento da tese que restou omissa no acórdão.

A despeito da inequívoca denegação de justiça, o passo seguinte da parte que deseja se insurgir contra o acórdão é então o da interposição de recurso especial e/ou extraordinário.

Pois bem, qual não é a decepção (para dizer o mínimo) do cliente e, em particular, do causídico, ao se depararem com o seguinte pronunciamento do Supremo ou do Superior Tribunal de Justiça, que nega seguimento ao recurso, forte no argumento de que:

"Caberia à parte alegar violação do artigo 1.022 do CPC/2015, o que não ocorreu. Dessa forma, à falta do indispensável prequestionamento, incide a Súmula nº 211 do Superior Tribunal de Justiça.

(...)

Ressalte-se que esta Corte Superior perfilha o entendimento de que a admissão do prequestionamento ficto previsto no art. 1.025 do CPC/2015 exige que se aduza, no recurso especial, violação do art. 1.022 do diploma processual (art. 535 do CPC/1973), providência não adotada pelo recorrente".

Do cotejo de ambas as decisões, isto é, a do tribunal de origem e a da corte superior, fica patenteada a impressão de que aquela não ostenta valor algum..., não vale o preço do papel em que é lançada...

Sim, porque, primeiro, tal certificação no acórdão recorrido não tem o condão de suprir o efetivo prequestionamento; segundo, o tribunal superior, preferindo pautar-se pelo rigor técnico, não demonstra qualquer espírito cooperativo com a parte recorrente. Faz ouvido de mercador à "promessa" contida no acórdão impugnado, deixando de cumprir o mandamento do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, visto que não tem a mínima preocupação em justificar o motivo pelo qual a tese exposta nas razões recursais não foi prequestionada de forma satisfatória.

Entendo, contudo, com mais de 40 anos de efetivo exercício da advocacia, que, em prestígio à segurança jurídica, as coisas não podem ser assim... A credibilidade que as decisões infundem aos cidadãos não pode ser desmoralizada no próprio seio do Judiciário, pela famigerada e muito mal vista "jurisprudência defensiva"!

É por esta razão que o diálogo dos pronunciamentos judiciais deve ser regido por um grau de respeito, integridade e coerência, a evitar situações como estas, que, a um só tempo, acarretam notório desgaste institucional e, muito pior, produzem considerável prejuízo ao direito dos litigantes!

José Rogério Cruz e Tucci, o autor deste artigo, é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Publicado originalmente no Consultor Juridico, em 8 de fevereiro de 2022, 8h00

Zezinho Bonifácio,

Muitas histórias contavam-se do Zezinho e de seus discursos irônicos

Por José Sarney

Zé Bonifácio — Zezinho, entre os seus colegas de Parlamento, José Bonifácio Lafayette de Andrada —, que foi signatário do Manifesto dos Mineiros e presidente da Câmara dos Deputados, era tido como homem de muito bom humor que gostava de contar pilhérias e, não raro, fazia graça com seus colegas. Mas a mim sempre tratou muito bem e com grande amizade.

Era um político muito esperto, de tal modo que, depois de 1945, transitava entre os grupos dos dois líderes que comandavam a UDN mineira, Magalhães Pinto e Milton Campos, conseguindo não se envolver com nenhum dos lados, o que lhe acarretava vantagens e desvantagens. Uma delas é que nenhum deputado mineiro lhe emprestava solidariedade quando ele precisava, uma vez que não se sabia a que lado ele pertencia.

O ramo mineiro dos Andrada vem de seu tetravô Martim Francisco Ribeiro de Andrada, casado com dona Gabriela Frederica, filha de seu irmão José Bonifácio, o Patriarca. Deles descenderam José Bonifácio, o Moço, o grande orador do 2o Império, e seu tio Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, presidente de Minas Gerais e da Constituinte de 34.

Após concluir seus estudos, Zezinho foi nomeado por Antônio Carlos para trabalhar com o secretário de Segurança, José Francisco Bias Fortes. Pouco depois os dois estavam casados com duas irmãs, dona Vera e dona Francisca, filhas do engenheiro Simão Gustavo Tamm.

Concorrentes e aliados em Barbacena, de onde ambos eram originários, se distanciaram com a Revolução de 30: Zé Bonifácio foi nomeado prefeito da cidade. A tradição era que os Bias Fortes tivessem o poder local, e os Andrada, o estadual e o federal. Seu cunhado não gostou, não compareceu à posse e tornou-se oposição violenta. Olegário Maciel e Arthur Bernardes tentaram um acordo: o Zezinho continuaria prefeito e o Bias Fortes receberia o título de chefe político de Barbacena. Não deu certo.

Em 1945, com a formação dos novos partidos, o Bias Fortes tornou-se chefe da máquina pessedista (PSD) e o Zezinho ficou com a UDN, consagrando o antagonismo.

Quando Bias Fortes visitava sua cunhada, Zezinho nunca estava presente em casa: ele arranjava sempre uma desculpa para não se encontrar com o Bias.

Essa luta continuou por muitos anos: quando eu era deputado federal, ainda encontrei o filho do Bias, o Biazinho, e o Zé Bonifácio na Câmara dos Deputados. Sem ser mineiro, consegui ser amigo dos dois, pendendo um pouco para os Andradas, que eram do meu partido.

Muitas histórias contavam-se do Zezinho e de seus discursos irônicos.

Quando Getúlio suicidou-se, houve um clima de grande consternação na Câmara dos Deputados. Zé Bonifácio pediu a palavra, foi à tribuna e começou seu discurso assim:

— PTB! PTB! O que fizestes de vosso chefe? Abandonastes-o na hora mais difícil! E ele morreu só!

O Lúcio Bittencourt, que era deputado por Minas Gerais, aparteou-o:

— Não faça isto! Respeite este momento: nós estamos solidários com o presidente.

O Zezinho, bom Parlamentar, perguntou:

— Onde o senhor estava?

O Lúcio Bittencourt respondeu-lhe:

— Em Minas.

Aí o Zezinho retrucou:

— Vejam: estava em Minas enquanto o presidente estava aqui às vésperas de colocar uma bala no coração! E como soube da morte do Getúlio?

Lúcio Bittencourt respondeu-lhe:

— Pelo rádio.

Foi um vexame tremendo, e o Zezinho conseguiu o que queria.

José Sarney, colega de José Bonifácio na mesma legislatura na Câmara Federal, foi Presidente da República. Publoicado originalmente n'O Estado do Maranhão, edição digital, em 06.02.22.