segunda-feira, 1 de novembro de 2021

O medo é o pior dos conselheiros

A reeleição de Bolsonaro ou o retorno de Lula ao poder suscitam temores justificados. Mas uma nova via precisa ser construída sobre a esperança

Após quatro mandatos de um governo populista à esquerda e um mandato de sua contraparte populista à direita, os altos índices de rejeição aos dois candidatos que lideram as pesquisas para a eleição de 2022 revelam que boa parte da sociedade a vê como uma oportunidade de renovação da política.

A reeleição de Jair Bolsonaro significaria a manutenção de uma crassa incompetência administrativa e da maior ameaça à democracia brasileira desde 1964. O retorno do lulopetismo significaria reeditar uma agenda que negligenciou as condições para o desenvolvimento sustentável, alimentou o corporativismo e o clientelismo, disseminou ainda mais a corrupção endêmica, precipitou o País na maior recessão de sua história e, por último, mas não menos importante, inflamou o sectarismo que alçou Bolsonaro ao poder.

Ante a erosão econômica, social e moral provocada pelo lulopetismo e agravada pela incúria e o autoritarismo de Bolsonaro, o empresariado tem se mobilizado cada vez mais em nome do interesse público, seja em defesa dos alicerces democráticos, como nos manifestos contra as agressões do presidente às instituições republicanas, seja em apoio a políticas públicas inovadoras de inclusão social, meio ambiente ou educação.

“Vejo um crescente envolvimento da sociedade na política. Vejo mais gente querendo se candidatar a cargos públicos”, disse ao Estado o empresário Fabio Barbosa, que foi signatário de um manifesto em apoio ao sistema eleitoral e participa de grupos de executivos empenhados em promover a racionalidade no debate político. “Eu quero que as pessoas votem por acreditar, e não por ter medo.”

Foi o medo de um quinto mandato lulopetista que alavancou o apoio de parte do empresariado a Bolsonaro em 2018. Aqueles que se deixaram enganar pelas promessas fajutas de liberalismo de Paulo Guedes já perceberam que ele só entregou demagogia. Barbosa lembrou os malogros do governo, incapaz de dar o devido arranque ao novo marco do saneamento básico ou encampar privatizações e reformas, como a tributária e a administrativa. Hoje, a política econômica é refém dos interesses patrimonialistas do Centrão e do projeto de poder de Bolsonaro.

A esquerda, por sua vez, “se apropriou indevidamente do monopólio do discurso do bem social”, como lembrou Barbosa. Essa apropriação, retoricamente alimentada pela vilanização da iniciativa privada, serviu na prática ao aparelhamento de um Estado cujos pedaços foram distribuídos a políticos corruptos e empresários gananciosos. O PT se jacta de ter se servido do superciclo das commodities para ampliar os programas sociais gestados na administração FHC. Mas esses programas não foram estruturados para alavancar a independência de seus beneficiários. Além disso, os investimentos em infraestrutura e capital humano foram negligenciados e a irresponsabilidade fiscal arruinou as contas públicas, levando à deterioração da renda e ao desemprego recorde. Em outras palavras, se o lulopetismo deu um pouco às populações carentes com uma mão, tirou muito mais com a outra.

Ante o fracasso dos modelos populistas, é compreensível o temor que aflige a parte mais sensata do eleitorado. Mas, carentes de propostas, os dois adversários se valem justamente do medo um do outro para retroalimentar suas ambições eleitorais. Assim como a campanha bolsonarista foi e é fundada sobre o antipetismo, a campanha petista se resume ao antibolsonarismo.

A esperança pode vencer o medo. Mas, para isso, os candidatos que se apresentarem como seus portadores precisarão propor uma agenda modernizante. Não, porém, costurada nos recessos das cúpulas partidárias, e sim com as lideranças da sociedade civil. As articulações políticas que resgataram a democracia do País nas “Diretas Já” e superaram as grandes crises da Nova República com os impeachments de Fernando Collor e Dilma Rousseff foram erguidas sobre uma mobilização cívica. Só com essa mobilização será possível evitar que o lulopetismo e o bolsonarismo perpetuem a crise que eles fabricaram e colocar o País nos trilhos do desenvolvimento.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 01 de novembro de 2021 

Sex shops dedicadas a evangélicos crescem no Rio: ‘Público é fiel’, diz proprietária

Carolina afirma que seu negócio tem como propósito ajudar os casamentos a perdurarem e casais a ficarem juntos. Já a empresária Andréa dos Anjos conta que envia produtos em caixa de remédio e saco de padaria.


Empresária Carolina Marques: curadoria cuidadosa e produtos com nomes lúdicos — Foto: Arquivo pessoal

A empresária Carolina Marques, de 26 anos, já tinha um filho de outro relacionamento quando conheceu o atual marido, com quem é casada desde janeiro. Mesmo assim, convertida à Assembleia de Deus há três anos, Carolina esperou se casar para ter um envolvimento sexual com ele.

Depois de oficializar a relação, no entanto, nada de monotonia na cama. Pelo contrário.

Dona da sex shop ConSensual, direcionada ao público evangélico, Carolina quer levar aos clientes desse nicho a ideia de que o sexo não precisa ser um tabu nem deve ser visto como algo sujo -- desde que aconteça entre um homem e uma mulher e dentro do casamento. 

Em sua loja de artigos eróticos, que ela prefere chamar de 'Love Store' no lugar de 'Sex Shop', as aparências importam. As embalagens são de cores sóbrias, e os produtos não têm nomes sugestivos em seu negócio, inaugurado em maio. Sabores mais lúdicos, como algodão-doce e outros inspirados nos famosos chicletes Bubbaloo, têm uma receptividade melhor.

“Não tem como vender produtos chamados ‘ppk louca’, ‘ ‘vai fundo’, isso assusta esse público, pode acabar afastando”, diz ela.
Carolina vê em seu negócio mais que uma fonte de renda e acredita que sua marca tem um propósito: ajudar os casamentos a perdurar.

Para isso, Carolina, massoterapeuta de formação, conta que faz uma curadoria muito cuidadosa dos artigos, já que para quase todas as clientes aquela é a primeira vez que elas usam um produto do tipo. Então, é importante que a qualidade seja boa, para mostrar que o investimento vale a pena. 

“A ideia é mostrar que o sexo pode ser uma conversa saudável, um assunto para se tratar sem medo e que começa muito antes da cama. Se a esposa não quer porque está cansada, o marido tem que pensar se ele tem feito a parte dele na casa. Às vezes, a mulher só está sobrecarregada com as tarefas, o trabalho, os filhos”, diz ela.  

Produtos para sexo anal, por exemplo, não são o foco de sua loja. “Dentro do meio cristão, a região anal é vista como uma área fisiológica. Tanto que não existe ali lubrificação natural. A mulher engravida a partir da penetração na vagina, aquilo já foi feito para isso”, diz ela. 

Quanto ao sexo oral, há mais liberdade, pela prática ser vista como um tipo de carinho, dentro da retórica evangélica. 

Produtos enviados em caixa de remédio e saco de padaria

Andrea dos Anjos, de 43 anos, é outra vendedora do setor erótico gospel no Rio. Há 17 anos, ela frequenta a Igreja Batista e, desde 2019, é dona da loja Memórias da Clo, que atende esse público. Andrea tem visto o interesse de seu público aumentar, principalmente na Zona Norte e nos bairros da Barra e do Recreio, na Zona Oeste.

“São clientes um pouco diferentes da maioria, porque, devido à religião e a alguns dogmas, ficam envergonhados e constrangidos, mas é um público fiel. Dou consultoria informalmente”, explica.
Andrea, assim como Carol, vende seus produtos pela internet e ganha clientes no boca a boca. 


Empresária Andréa dos Anjos — Foto: Arquivo pessoal

Para esse público, muito reservado, uma loja física, identificável, não é tão interessante, já que a discrição é uma das chaves do sucesso. 

“Tenho clientes que pedem para eu mandar os produtos em caixa de remédio, em saco de padaria, para que ninguém saiba mesmo”, conta ela.

As duas afirmam que mulheres são 95% de seu público. A idade costuma variar bastante.  

‘Me chamavam de crente do rabo quente’

Carolina foi julgada pela mãe e teve que convencer até o marido de que sua ideia era boa. “Me chamavam de crente do rabo quente, meu marido falou que não sabia se ia dar certo, por sermos cristãos, mas eu sabia que a marca teria um propósito”, diz ela. 

Ambas as vendedoras conversam com as conhecidas da igreja, que indicam para outras fiéis, e assim as marcas se propagam e crescem.

“Eu só não levo para dentro da igreja, entrego do lado de fora”, explica Carol.
Vibradores não estão no catálogo da ConSensual, pelo menos não ainda. “Um homem pode ficar muito intimidado de ver a mulher com uma prótese que pareça um pênis. Por que ter outro pênis ali? No futuro, quero trazer vibros, mas do tipo colorido, para usar junto, mas as pessoas precisam se acostumar aos poucos com essa ideia. Primeiro um gel beijável, um lubrificante, e depois algo a mais”, explica. 

Clientes têm medo de julgamento, mas aprovam produtos
O g1 conversou com mulheres evangélicas que preferiram não ser identificadas, mas garantem que incluir os produtos em suas vidas sexuais fez diferença. 

“Tinha medo de ser julgada. Produtos íntimos, até onde apresentavam pra mim com naturalidade, eram produtos de higiene. Em uma sex shop normal, me sentia atacada de informação, imagens apelativas, próteses de genitálias na nossa cara durante o atendimento”, diz uma das clientes da ConSensual. 

Com a loja, isso mudou. A cliente passou a se sentir mais à vontade sabendo que está com outra mulher evangélica. 

Cliente da Memórias da Clo, outra mulher que prefere não se identificar conta que os acessórios mudaram seu casamento e que fez diferença ter uma vendedora que compartilhasse de sua fé. 

“Sou casada há 15 anos, conversei com meu esposo que uma amiga minha que também é evangélica vendia esses produtos e se ele aceitaria usá-los para sairmos da rotina”, conta ela. Ele aceitou e os dois vêm curtindo as novidades. 

“Mudou muito o meu casamento, com toda certeza, não é porque somos evangélicas que também não podemos usar umas coisinhas, né?”, brinca.

Elisa Soupin, do Rio de Janeiro, RJ, para o g1, em 01.10.21

Brasil não sabe quantos homicídios são esclarecidos porque maioria das vítimas é negra

Quando começaremos a oferecer justiça às famílias negras em luto?

Tornou-se um triste lugar-comum tipicamente brasileiro lembrar que somos os líderes mundiais em homicídios, considerando o total de ocorrências. Após uma leve melhora após 2017, o ano de nossa história em que mais somamos vítimas de mortes violentas, os homicídios voltaram a subir em 2020, acrescentando mais dor a todo o sofrimento que a epidemia nos trouxe.

Como no Brasil temos por hábito associar tragédias, além das dezenas de milhares de vítimas anuais de assassinatos, pouco fazemos para oferecer justiça aos mortos e a seus familiares. É notável, por exemplo, que no país com mais homicídios no mundo e com a terceira maior população carcerária do planeta, apenas 11% dos detentos sejam condenados ou estejam sendo acusados de homicídios. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a maioria dos presos, em torno de 40% deles, tem ligação com o tráfico de drogas, em sua grande maioria detidos com uma pequena quantidade de drogas e sem terem praticado atos violentos. Outros 36% estão associados a crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos.

A composição da massa carcerária denota de forma explícita o modelo de segurança pública que vigora no país, apesar dos seus resultados pífios: um modelo de policiamento orientado ao confronto, em detrimento da investigação e da perícia policial; investimento massivo em armas que não deveriam ser utilizadas num país que não esteja em guerra, em veículos e aeronaves de combate orientados a bairros periféricos e pobres e operações policiais orientadas ao confronto e ao flagrante, cujo principal resultado é termos a polícia que mais mata, mas também mas morre no mundo, e pequenas apreensões de armas e drogas. Crimes que dependem de investigações mais complexa s e que muitas vezes não ocorrem nas ruas e por isso não são interrompidos em flagrante, justamente como os homicídios, restam impunes em sua maioria.

Essas reflexões levaram o Instituto Sou da Paz a se debruçar sobre o esclarecimento de homicídios no Brasil há cinco anos e a primeira constatação foi desanimadora: mal havia informações sobre a quantidade de mortes violentas efetivamente esclarecidas pela polícia, com seus acusados denunciados à Justiça pelo Ministério Público. Como melhorar algo cuja dimensão nem se conhece? Como o país com mais homicídios no mundo não apresenta de forma organizada e periódica os dados sobre a impunidade do mais atroz dos crimes? Estas foram as primeiras perguntas que nos chocaram. Desde então passamos a buscar anualmente tanto os Tribunais de Justiça quanto os MPs estaduais para buscar dados que nos permitissem calcular um indicador nacional de esclarecimento de homicídios e pressionar estados a produzirem estes dados e estabelecerem metas para a melhoria de seus índices, a partir de sua própria realidade ― como, aliás, as políticas educacionais são avaliadas há muito tempo.

Há poucas semanas lançamos a 4ª edição da pesquisa “Onde Mora a Impunidade”, onde apresentamos os dados que obtivemos referentes aos homicídios ocorridos em 2018. Embora mais uma vez fracassamos em obter dados válidos para todos os estados brasileiros, comemoramos o aumento significativo de estados que produziram dados desde a primeira edição, em 2017. Naquele ano, apenas seis unidades federativas nos responderam de forma satisfatória. Neste ano, 17 estados apresentaram dados que nos permitiram calcular o índice. Não é possível tratar o tema de forma simplória, considerando a típica diversidade regional brasileira. Se o Paraná e o Rio de Janeiro apresentam índices baixos, de pouco mais de 10% de esclarecimento de homicídios, estados como Santa Catarina e Mato Grosso do Sul superam os 80%.

Conhecer estes números é fundamental para que cada unidade da federação possa planejar políticas de combate aos homicídios e trazer justiça à memória dos mortos e algum alento a seus familiares. Defendemos que estes dados deveriam ser coletados e publicados pelo Governo Federal, para que possam orientar ações coordenadas em todo o território nacional. Há projetos no Congresso Nacional e no Conselho Nacional do Ministério Público para obrigar a produção destes dados pelos estados e a coleta e publicação por órgãos centrais e é urgente que sejam aprovados.

Em nosso país, há tragédias que se repetem de forma crônica. No caso da violência, assassinatos e do encarceramento, o raio cai sempre no mesmo lugar: as comunidades pobres, negras e periféricas brasileiras. Talvez uma cruel explicação para o fato de que o país que mais registra assassinatos no mundo nem sabe ao certo quantos acusados de mortes violentas foram ao menos julgados em seus tribunais seja o racismo estrutural da sociedade brasileira. Não nos preocupamos com nossos mortos de homicídios porque são, em sua quase totalidade, jovens pretos. Dados recentes do Atlas da Violência mostram que 77% das vítimas de homicídio em 2019 eram negras. A chance de um negro ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes maior do que de alguém não negro. Os mesmos negros pobres aprisionados por pequenas quantidades de mortes em geral são os mesmos mortos pelo crime e pela polícia, assim muitas vezes são policiais negros são mortos em operações inúteis e mal planejadas. Além de uma necessidade para se orientar o combate ao homicídio no Brasil, a produção de um indicador nacional de esclarecimento de homicídios é um sinal mínimo de respeito a todos as pessoas negras mortas anualmente no Brasil, assim como a seus familiares, cuja dor resta aprisionada em seus corpos, que não interessam ao Estado.

Felippe Angeli, o autor deste artigo, é gerente de advocacy do Instituto Sou da Paz. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 30.10.21

Na COP26, ONU pressiona líderes a "salvarem a humanidade"

Em discurso na abertura da cúpula em Glasgow, chefe das Nações Unidas diz que é hora de dizer "basta" ao desastre climático. "Ou paramos ele, ou ele nos para. Estamos cavando nossas próprias covas", afirma Guterres.


O anfitrião da COP26, o premiê britânico Boris Johnson, a chanceler alemã Angela Merkel e o chefe da ONU, António Guterres

Na abertura da Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas (COP26) nesta segunda-feira (01/11), o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, pressionou os líderes mundiais a tomarem ações concretas para "salvar a humanidade" e proteger o planeta da crise do clima.

Sem o brasileiro Jair Bolsonaro mais de 120 chefes de Estado e de governo estão reunidos em Glasgow, na Escócia, para a cúpula climática de dois dias, que seus organizadores dizem ser crucial para traçar um caminho que não leve a um aquecimento global catastrófico.

"Ao abrirmos esta tão esperada conferência sobre o clima, ainda estamos caminhando para um desastre climático. Os jovens sabem disso. Cada país vê isso. Pequenos Estados insulares em desenvolvimento – e outros vulneráveis – vivem isso. Para eles, o fracasso não é uma opção. O fracasso é uma sentença de morte", declarou Guterres.

"Ou paramos [esse desastre], ou ele nos para. E é hora de dizer 'basta'. Basta de brutalizar a biodiversidade. Basta de nos matarmos com carbono. Basta de tratar a natureza como um banheiro. Basta de queimar, perfurar e minerar nosso caminho mais a fundo. Estamos cavando nossas próprias covas", continuou o português, reforçando sua reputação de ser um dos maiores defensores de ações urgentes pelo clima.

Guterres disse ainda que, se os governos mundiais fracassarem em apresentar compromissos ambiciosos na COP26, eles terão que retornar anualmente com promessas melhoradas, em vez dos atuais cinco anos acordados anteriormente.

"Não tenhamos ilusões: se os compromissos forem insuficientes até o final desta COP, os países deverão rever seus planos e políticas climáticas nacionais. Não a cada cinco anos, mas todos os anos, até que possamos garantir o nível de 1,5 °C [de aquecimento global, ante os níveis pré-industriais]. Até que os subsídios aos combustíveis fósseis acabem, até que haja um preço para o carbono, e até que o carvão seja eliminado", disse.

O chefe da ONU também defendeu a importância de um financiamento anual bilionário para apoiar medidas climáticas em países de baixa renda, acordado em Paris em 2015.

"O compromisso de financiamento climático de 100 bilhões de dólares por ano em apoio aos países em desenvolvimento precisa se tornar realidade. Isso é fundamental para restaurar a confiança e a credibilidade", afirmou. "Os que mais sofrem – ou seja, os países menos desenvolvidos e os pequenos Estados insulares em desenvolvimento – precisam de financiamento urgente."

Ele observou que os países do G20 são responsáveis por 80% das emissões globais de gases de efeito estufa e, portanto, têm uma responsabilidade maior.

Por fim, Guterres declarou apoio ao ativismo climático comandado pelas gerações mais jovens. "O exército da ação climática – liderado por jovens – é imparável. Eles são maiores. São mais barulhentos. E, garanto a vocês, eles não vão desistir", disse. "Eu estou com eles."

Johnson: "Se fracassarmos, nossos filhos não nos perdoarão"
Guterres falou logo em seguida ao anfitrião da COP26, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que em seu discurso também recorreu à retórica de que o mundo caminha para um fim se não agir contra a crise climática.

Segundo ele, o aquecimento global é como um "dispositivo do Juízo Final" amarrado à humanidade, fazendo referência ao agente secreto fictício James Bond, amarrado a um bomba que destruirá o planeta e tentando descobrir como desarmá-la.

A única diferença é que "este não é um filme e o dispositivo do Juízo Final é real", declarou Johnson. "Falta um minuto para meia-noite nesse relógio do Juízo Final e precisamos agir agora." A ameaça, segundo ele, é a mudança climática, desencadeada pela queima de carvão, petróleo e gás natural.

"Se fracassarmos, nossos filhos não nos perdoarão. Nos julgarão com amargura e terão razão", disse o premiê britânico às dezenas de chefes de governo e Estado reunidos em Glasgow.

Ele ainda alertou que um aumento de 2 °C na temperatura global colocaria em risco a distribuição de alimentos; com 3 °C haveria mais incêndios descontrolados e cinco vezes mais secas; e com 4 °C "daremos adeus a cidades como Miami e Alexandria".

O discurso de Johnson foi o primeiro entre os líderes globais, que apresentarão nesta COP suas estratégias para cumprir com o objetivo de limitar o aquecimento global em 1,5 °C.

Em seguida, os negociadores indicados pelos governos, blocos comunitários, organizações e empresas buscarão fechar, durante as duas próximas semanas, um acordo final para a COP26.

"Estava em Paris seis anos atrás, quando concordamos com as emissões zero e em limitar o aquecimento em 1,5 °C. Mas essas promessas não terão sido mais que 'blá blá blá' se não fizermos desta COP o momento de sermos realistas contra a mudança climática", disse Johnson.

"A COP26 não pode e não será o fim da luta contra a mudança climática, no entanto, embora não seja o fim, deve marcar o início do fim", completou, pedindo trabalho com criatividade e imaginação dos líderes globais. (ek (Efe, AP, AFP, Reuters).

Deutsche Welle Brasil, em 01.11.21

Deputadas trans querem mudar política alemã

Nyke Slawik e Tessa Ganserer foram eleitas para compor o Bundestag, o Parlamento alemão, e são as duas primeiras deputadas publicamente abertas sobre sua identidade trans. Ambas querem usar sua influência política para lutar por uma sociedade mais aberta e diversa.    

Nyke Slawik e Tessa Ganserer foram eleitas para compor o Bundestag, o Parlamento alemão, e são as duas primeiras deputadas publicamente abertas sobre sua identidade trans. Ambas querem usar sua influência política para lutar por uma sociedade mais aberta e diversa.    

"Ainda temos tantas leis que são discriminatórias. Por exemplo, existe a legislação transexual na Alemanha, pela qual as pessoas trans são ainda tratadas como doentes mentais", disse Ganserer. 

Ambas são deputadas do Partido Verde e têm em suas agendas, primordialmente, o combate contra a discriminação de pessoas trans e a fomentação de políticas verdes de mobilidade, além de pavimentar um futuro com menos barreiras para políticos e políticas trans.

"Tenho certeza de que será bem mais fácil para as pessoas trans que vierem depois de nós", concluiu.

Deutsche Welle Brasil, em 01.11.21

Ex-potência ambiental, Brasil chega à COP26 com reputação derretida

Com desmatamento e emissões em alta sob Bolsonaro, país sofre desgaste internacional e perde prestígio que acumulou em negociações climáticas anteriores. ONU vê regressão nas metas brasileiras.

Área desmatada no Pará em 2020: antiga boa reputação do Brasil na área ambiental havia sido construída a partir de uma queda drástica do desmatamento na Amazônia

Após um intervalo de dois anos devido à pandemia de covid-19, a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), em Glasgow, na Escócia, é encarada como uma das mais decisivas. Nesta edição, é aguardado que países anunciem metas mais ousadas de corte de emissão de gases de efeito estufa para que a temperatura média do planeta não aumente mais que 1,5 ºC em relação aos níveis pré-industriais até o fim de século, patamar estabelecido no Acordo de Paris.

Com um histórico respeitável em discussões internacionais como essa, desta vez o Brasil não deve ter uma performance de impacto. Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência com uma política antiambiental, a reputação do país como potência nessa área se derreteu, assim como sua habilidade de destravar nós diplomáticos.

"A capacidade que o país tinha de influenciar as negociações foi enfraquecida. O governo Bolsonaro vive uma situação caótica sob esse ponto de vista, principalmente com o aumento do desmatamento", pontua Raoni Rajão, professor de Gestão Ambiental e Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Programa lançado às pressas

Nem o chamado Programa Nacional de Crescimento Verde (PNCV), lançado às pressas antes da COP26, empolgou. Segundo o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, o programa, apresentado na última segunda-feira (25/10), tem o objetivo de reduzir as emissões, conservar florestas e usar racionalmente os recursos naturais, com geração de emprego e crescimento econômico.

Na prática, no entanto, a direção parece ser outra. Em 2020, o país registrou uma alta de 9,5% nas emissões puxada pelo aumento do desmatamento, principalmente na Amazônia, conforme levantamento feito pelo Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG).

"Não se espera muito do Brasil. O país não conseguiu articular nada consistente em termos de proposta de redução de emissões que tivesse transparência, etapas claras a serem cumpridas e compromissos", analisa Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasilia e membro da Coalizão Ciência e Sociedade.

O decreto que criou o PNVC fala ainda em investimento para pesquisa em biodiversidade e serviços ecossistêmicos como bases para esse crescimento verde. Ironicamente, ele foi publicado poucas semanas depois de um grande corte de recursos para a ciência , à beira de um colapso iminente.

"É mais um movimento errático", comenta Bustamante sobre o PNVC. "O governo tem consciência de que a imagem está muito desgastada. Esse plano não tem nada consistente apontando para uma mudança de trajetória."

Manobra nas contas

A COP26 terá que lidar com uma matemática difícil. Os gases de efeito estufa lançados na atmosfera ainda levam a um aquecimento além do 1,5 ºC estipulado pelo Acordo de Paris. Todas as promessas de cortes de emissões feitas pelos 192 países que ratificaram o pacto levam o termômetro para uma elevação de pelo menos 2,7 °C neste século, segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) publicado nesta semana.

Essas promessas estão nas chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas, ou NDCs, na sigla em inglês. É por meio da NDC que um país indica o quanto está disposto a cortar de CO2 para frear o aquecimento do planeta.

Uma contribuição brasileira para melhorar essa conta não deve surgir durante a reunião. Na sua NDC original, apresentada em 2015 na COP de Paris, o país fixou o compromisso de reduzir suas emissões líquidas em 37% até 2025. Para 2030, estipulou o corte de 43% - ambos em relação ao ano de 2005.

Numa revisão submetida à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), que organiza as COPs, o país manteve as percentagens, mas alterou a base de cálculo. Na prática, a "nova" NDC permite ao Brasil chegar a 2030 emitindo 400 milhões de toneladas de CO2 a mais que o proposto em 2015.

A "pedalada" não passou despercebida: no relatório Emissions Gap Report publicado nesta semana, a poucos dias da COP26, o Pnuma destacou que o Brasil regrediu na ambição de suas metas.

Credibilidade abalada

A antiga boa reputação internacional do Brasil na área ambiental havia sido construída a partir de uma queda drástica do desmatamento na Amazônia. O país foi o que mais reduziu emissões no planeta entre 2004 e 2012, por causa de uma redução de 80% no corte da floresta.

O país também sediou a conferência que deu vida à UNFCCC, a ECO-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992. Durante as últimas décadas, os negociadores brasileiros ganharam papel de destaque, em particular quando o Acordo de Paris foi firmado. Mas o cenário mudou nos últimos anos.

"Hoje, o Brasil enfrenta enormes desafios com o aumento do desmatamento e da violência contra os povos indígenas e o enfraquecimento da governança socioambiental", comenta Toerris Jaeger, secretário-geral da Rainforest Foundation Norway. "Isso com certeza será discutido em eventos paralelos e nos corredores da COP, pois deve haver coerência entre o que é dito no cenário internacional e o que está acontecendo no território."

Susanne Dröge, especialista em política climática do Instituto Alemão para Política Internacional e Segurança (SWP), concorda que a imagem do governo brasileiro se deteriorou, mas ressalta que o peso do país é grande quando se consideram os estoques de carbono da maior floresta tropical do mundo.

"O Brasil é sempre solicitado a proteger a Amazônia, e a ajuda internacional continuará sendo importante para isso. Suspender o Fundo Amazônia não pode ser uma solução permanente", comenta Dröge, ressaltando que muitas entidades precisam de apoio internacional.

Além disso, o Brasil [e uma âncora na região, exercendo influência sobre outros países latino-americanos, analisa Dröge. "A cooperação com o Brasil também é essencial nesse sentido", diz.

Ainda assim, não há sinais de que doadores internacionais se comprometam a enviar recursos para o país proteger a floresta. O Fundo Amazônia, criado para incentivar o uso sustentável da floresta e combater o desmatamento, foi paralisado após a chegada de Bolsonaro à presidência. Por causa da indefinição, inúmeros projetos financiados pelo fundo tiveram que suspender as atividades.

Deutsche Welle Brasil, em 01.11.21

Ato com Bolsonaro em Roma acaba em violência contra jornalistas brasileiros

Enquanto isso, eles permitiam que apoiadores se aproximassem de Bolsonaro para tirar selfies.

Uma manifestação pró-Bolsonaro com brasileiros que vivem na Itália acabou em violência e intimidação contra jornalistas que cobriam o evento na região da embaixada do Brasil em Roma neste domingo (31/10). Agentes de segurança italianos e brasileiros empurraram, deram socos, arrancaram celular de um repórter que filmava o ato, seguraram, gritaram e impediram repórteres de chegar perto do presidente para entrevistá-lo.

O ato começou pacificamente por volta das 15h (horário local) e reuniu dezenas de pessoas no lado dos fundos da representação brasileira. Vestidos de verde e amarelo. Eles cantavam o hino brasileiro e gritavam palavras de ordem a favor do presidente enquanto aguardavam o presidente. Cerca de uma hora depois, Bolsonaro acenou da sacada e em seguida desceu para discursar para apoiadores reunidos numa praça do centro da capital italiana.

Bolsonaro se defendeu das críticas e acusações à sua gestão da pandemia e fez críticas à imprensa e à CPI da Covid, entre outros assuntos. Enquanto isso, ele era filmado das janelas da embaixada por integrantes de sua comitiva.

Depois de sua fala, ouvida em silêncio por todos, ele decidiu caminhar pelas ruas do centro de Roma. Foi quando o tumulto começou.

Jornalistas de diversos veículos brasileiros, entre eles a BBC News Brasil, credenciados para a cobertura da reunião do G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo), tentaram se aproximar do presidente para entrevistá-lo. Bolsonaro foi questionado sobre os motivos de sua ausência na COP26 (Cúpula do Clima na Escócia) e sobre a greve dos caminheiros prevista para esta segunda-feira (1º/11) no Brasil, entre outros temas.

Mas ele não respondeu a nenhuma das perguntas durante sua caminhada de menos de dez minutos, registrada por câmeras de jornalistas, assessores e apoiadores.

Bolsonaro não respondeu a nenhuma das perguntas durante sua caminhada de menos de dez minutos Matheus Magenta / BBC News Brasil).

Enquanto isso, os agentes de segurança do Brasil e da Itália que o cercavam só deixavam apoiadores com as cores verde e amarela e membros da comunicação do governo se aproximarem do presidente para tirarem fotos e se abraçarem enquanto intimidavam e agrediam jornalistas no entorno do mandatário. Parte dos apoiadores xingou e intimidou repórteres.

O jornalista Jamil Chade, que cobria o ato para o portal UOL, teve o celular arrancado de suas mãos, enquanto filmava a manifestação, por um agente de segurança italiano que não quis se identificar. Em seguida, o aparelho foi jogado no chão pelo policial durante a manifestação pró-Bolsonaro e recuperado pelo jornalista instantes depois.

Jornalistas brasileiros são atacados durante passagem do presidente em Roma (Matheus Magenta / BBC News Brasil)

Ao fim do evento, diversos jornalistas brasileiros questionaram os agentes de segurança italianos à paisana sobre as agressões que eles cometeram durante o ato. Em resposta, eles diziam "podem registrar queixa" e não se identificaram. Parte dos profissionais de mídia do Brasil que cobriram o ato iria sim formalizar as agressões com a polícia italiana.

Procurada pela BBC News Brasil para comentar a violência contra os jornalistas, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República não respondeu aos questionamentos da reportagem até o momento da publicação deste texto.

Matheus Magenta, de Roma para a BBC News Brasil, 31.10.21

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Procuradoria abre investigação preliminar sobre Bolsonaro e outros 12 a partir da CPI da Pandemia

Procedimento é apenas o primeiro ato formal da PGR e não implica que os pedidos de indiciamento apresentados pela comissão foram endossados pelo procurador Augusto Aras

Os senadores da CPI da Pandemia entregam oelatório final ao procurador-geral Augusto Aras na quarta-feira. (Antonio Augusro, SECOM/MPF)

O procurador-geral da República, Augusto Aras, tomou seu primeiro ato formal sobre as acusações feitas pela CPI da Pandemia contra o presidente Jair Bolsonaro e os outros 12 portadores de foro privilegiado que protagonizam o relatório final da CPI. A abertura de uma investigação preliminar é um procedimento padrão e não significa que Aras tenha considerado válidos os argumentos apresentados nas 1.288 páginas do documento, em que Bolsonaro é acusado de crime contra a humanidade, entre outros oito delitos, por sua gestão da pandemia de covid-19. “Esperamos que prospere. A CPI da Covid encerrou suas atividades de maneira formal, mas continuamos trabalhando e acompanhando para que o relatório tenha seus resultados esperados”, escreveu o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), em seu perfil no Twitter ao saber da abertura da apuração

O discurso de vigilância de Rodrigues se explica pelo histórico de Aras, que até agora, em mais de dois anos de Procuradoria Geral da República (PGR), não passou da abertura de investigações preliminares no que diz respeito a Bolsonaro. A desconfiança em relação a seu trabalho levou a PGR a divulgar uma nota nesta quinta-feira, para refutar “textos especulativos acerca do tratamento a ser dado ao Relatório da CPI da covid 19 pela Procuradoria-Geral da República”. “A Procuradoria-Geral da República reitera o respeito ao trabalho feito ao longo de seis meses pelos senadores que integram a CPI que, inclusive, não permite e não condiz com eventuais ilações acerca de análises de materiais que sequer chegaram de forma oficial ao órgão ministerial”, diz a mensagem. Nesta quinta, circularam informações de que assessores de Aras teriam considerado o conteúdo do relatório “devastador”, o que não parece ser a avaliação do procurador-geral.

A cúpula da CPI da Pandemia se reuniu com Aras na quarta-feira, um dia após a aprovação do relatório que pede o indiciamento de 78 pessoas —13 delas com prerrogativa de foro— e duas empresas, para marcar publicamente a entrega do documento. Na ocasião, o procurador-geral fez uma saudação protocolar ao trabalho dos parlamentares. “Esta CPI já produziu resultados. Temos denúncias, ações penais e civis em curso, autoridades afastadas”, elogiou. “E a chegada desse material que envolve pessoas com prerrogativa de foro por função vai contribuir para que possamos dar a agilidade necessária à apreciação dos fatos que possam ser puníveis seja civil, penal ou administrativamente”, completou Aras.

Quem são os 80 alvos de pedidos de indiciamento do relatório final da CPI da Pandemia

Nesta quinta-feira, o périplo dos representantes da comissão passou pelo procurador-geral do Ministério Público do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira, pela presidenta do Tribunal de Contas da União, Ana Arraes, e pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux. “Como guardião da Constituição brasileira, tenho certeza que o Supremo tomará as providências cabíveis para que a justiça seja feita”, declarou o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM), ao entregar o documento para Fux. Desde a aprovação do relatório final, redigido pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), os senadores se escoram em eventos como esses para manter as atenções sobre aqueles que os parlamentares determinaram como os principais responsáveis pelas mais de 607.000 mortes da pandemia no Brasil.

Também nesta quinta-feira, os senadores criaram um Observatório da Pandemia, para receber novas denúncias e fiscalizar as ações das autoridades brasileiras no combate ao coronavírus, além de acompanhar o andamento formal das denúncias apresentadas pela CPI. Entre as autoridades com foro implicadas pela comissão estão ss ministros da Saúde, Marcelo Queiroga, do Trabalho, Onyx Lorenzoni, da Defesa, Braga Netto, e da Controladoria Geral da União, Wagner Rosário. Há ainda um senador —Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ)—, um governador —Wlson Lima (PSC)— e seis deputados: o líder do Governo, Ricardo Barros (Progressistas-PR), Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF), Osmar Terra (MDB-RS), Carla Zambelli (PSL-SP) e Carlos Jordy (PSL-RJ).

Rodolfo Borges, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 28.10.21

Bloqueio da China à carne brasileira põe em risco 10 bilhões de reais neste ano

Estimativa da CNA leva em conta produção que seria vendida até dezembro ao país asiático, responsável por comprar mais da metade do produto exportado pelo Brasil. Atritos de Bolsonaro com chineses e preço do boi afetam o negócio

Linha de produção em frigorífico de Xinguara (PA). (Bruno Cecim, Ag. Pará. Fotos públicas).

A suspensão da exportação da carne bovina para a China deve resultar em perdas para o Brasil de até 1,8 bilhão de dólares (10,1 bilhões de reais) se durar até o fim do ano. No melhor dos cenários, a Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA) estima que os produtores brasileiros perderiam 1,2 bilhão de dólares (6,8 bilhões de reais). O histórico de atritos de Bolsonaro com os chineses e o preço do boi afetam o negócio há quase dois meses. A China é responsável por comprar 56% da carne bovina brasileira exportada. A razão oficial para o bloqueio é o registro de dois casos suspeitos da doença da “vaca louca” descobertos no dia 3 de setembro em Minas Gerais e no Mato Grosso. Os chineses suspenderam as aquisições no dia 4 daquele mês e ainda não voltaram atrás, mesmo após o pronunciamento da Organização Mundial de Saúde Animal de que o Brasil representa risco insignificante para a doença.

Além da questão técnico-sanitária, ao menos outros três elementos rondam este tema, conforme analistas e diplomatas relataram ao EL PAÍS: o alto preço da carne, a tentativa do Governo chinês de estimular o tradicional consumo de suínos ao invés dos bovinos e, em menor escala, uma retaliação ao Governo Jair Bolsonaro, outrora marcadamente hostil aos chineses. “O presidente e seu entorno já foram muito duros com a China. Agora, são só elogios. Mas talvez o passado tenha interferido na demora para essa retomada da negociação”, disse um diplomata ouvido pela reportagem.

Até meados deste ano o presidente brasileiro tinha uma relação de atritos com a China. Ele já colocou em suspeita a origem do coronavírus e a confiabilidade das vacinas produzidas naquele país, mas mudou a postura recentemente. Na cúpula dos Brics, em 9 de setembro, Bolsonaro rasgou elogios a Xi Jinping e disse que a parceria entre os países se mostrou essencial para o controle da pandemia de covid-19.

A estimativa da perda para os produtores brasileiros foi feita pelo diretor técnico da CNA, Bruno Lucchi. Sua conta leva em consideração a média de exportações feitas para a China nos últimos três meses do ano, que varia de 400 milhões de dólares a 600 milhões de dólares ao mês. “Esse é o período em que a China mais compra a carne bovina, para estocar para o ano novo chinês [comemorado em fevereiro]”, detalhou o dirigente.

"Quando você deixa de comprar, você acaba induzindo uma queda no valor. É o que o Governo chinês está fazendo. Charles Tang, da Câmara de Comércio Brasil-China

Uma das queixas dos chineses é o preço do gado. A arroba chegou a custar 322 reais em junho deste ano. Desde o veto à carne brasileira, em setembro, o preço da arroba começou a despencar. No dia 28 de outubro, fechou a 258,10 reais. É o menor valor desde outubro de 2020, de acordo com dados do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo.

“Quando deixa de comprar, você acaba induzindo uma queda no valor. É o que o Governo chinês está fazendo”, diz o presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China, Charles Andrew Tang. Na avaliação dele, quando o mercado estiver mais estável e a China sentir segurança nas questões sanitárias, o comércio será restabelecido entre os dois países.

Alimentação cara e seca prolongada

Lucchi explica que o preço do boi estava alto porque o custo de alimentação dos animais disparou, como consequência da seca intensa e prolongada pela qual passou o país nos últimos anos, e também porque houve uma retenção de fêmeas para gerar novos bezerros. Em 2019, uma série de abates de vacas resultou na redução de nascimentos e atrapalhou o ciclo de reprodução e reposição do gado. “Não tem mais tanta oferta como antigamente”, sintetiza.

Nenhum parceiro comercial do Brasil tem capacidade de ocupar o espaço da China. De acordo com a CNA, anualmente os chineses compram 920.000 toneladas de carne bovina brasileira. Somadas, todas as outras nações compram 900.000 toneladas. Em tese, a carne que não é vendida para a China deveria passar a ser consumida pelos próprios brasileiros.

Essa mudança na destinação da proteína gerou uma redução do preço no atacado. A média do corte bovino caiu de 17 reais para 14 reais. Contudo, até o momento, os varejistas preferiram ampliar suas margens de lucro a repassar essa redução ao consumidor final. Nas gôndolas dos açougues e dos supermercados, essa diminuição quase não vem sendo sentida. A queda no preço foi de apenas 0,31% em outubro, após 16 meses seguidos de alta. Os dados são do IPCA-15, a prévia da inflação divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Diante da indefinição dos chineses, no último dia 20 o Ministério da Agricultura do Brasil determinou que os frigoríficos habilitados a exportar para a China suspendam a produção para o país asiático. Com isso, a tendência é que aumente a oferta no mercado brasileiro, e o preço finalmente caia.

Funcionários de frigorífico em Xinguara, no Pará. (Bruno Cecim, Ag. Pará. Fotos públicas.

Bolha a estourar

De acordo com a CNA, porém, com a redução do valor da arroba e o aumento dos insumos para alimentação do gado confinado, os produtores passaram a amargar altos prejuízos. Se antes eles ganhavam cerca de 300 reais por animal vendido, agora têm o prejuízo de aproximadamente 500 reais. “Quem pode, segura o gado no pasto agora por um período até a situação se normalizar e, só depois, manda para o abate”, diz Lucchi. Essa retenção, em médio prazo, deverá elevar o preço.

Na tentativa de reverter o bloqueio temporário da compra, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina Dias, cogitou viajar a Pequim para negociar a retomada do comércio com o Governo local. Mas recebeu a sinalização de que não seria necessário no momento. Enquanto isso, técnicos do Ministério da Agricultura brasileiro e da Administração Geral de Aduanas da China se reúnem com frequência para analisar o processo de retomada das exportações.

“Essas reuniões virtuais servem para esclarecer procedimentos implementados no Brasil para o controle e vigilância da enfermidade e fornecer informações complementares solicitadas pelos técnicos chineses”, explicou o MAPA, em nota. “As relações entre Brasil e China são boas, em breve esse problema será superado”, avalia Chang, da Câmara de Comércio. Mais da metade da carne bovina exportada do Brasil depende diss.

AFONSO BENITES, de Brasília, DF, para o EL PAÍS, em 29.10.21

Bolsonaro no G20: Brasil tem pior perspectiva de crescimento em 2022 entre países do grupo

Inflação, juros e dólar em alta devem fazer Brasil ter pior desempenho entre as maiores economias do mundo no próximo ano. Furo do teto de gastos e eleições turbulentas agravam o cenário. 

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) participa neste sábado e domingo (30 e 31/10) da Reunião de Cúpula do G20, grupo que reúne os 19 países mais ricos do mundo e a União Europeia. (AFP)

Na pauta, estarão temas como a criação de um tributo global sobre empresas multinacionais, os preços do petróleo, a crise energética que afeta diversos países do mundo, e os gargalos logísticos e de fornecimento de insumos, que também têm prejudicado o desempenho da economia mundial.

O grupo se reúne num momento em que o mundo enfrenta uma desaceleração do crescimento, diante do avanço das pressões inflacionárias, e da perda de ritmo da economia chinesa, em meio à crise do setor imobiliário e energética enfrentada pela superpotência asiática.

Pelas projeções do órgão multilateral, o PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro deve crescer 5,2% este ano, mas apenas 1,5% no ano que vem. O crescimento projetado para 2022 é menor do que o esperado para outros emergentes, como Rússia (2,9%), Argentina (2,5%) e África do Sul (2,2%).

Projeções do FMI para PIB dos membros do G20 em 2022

Nas estimativas da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), divulgadas ao fim de setembro, o quadro não é muito diferente.

O "clube dos países ricos" espera que o PIB do G20 deve desacelerar de um crescimento de 6,1% em 2021, para 4,8% em 2022. Para o Brasil, a previsão é de uma perda de ritmo bem mais acentuada: de alta de 5,2% este ano, para 2,3% no ano que vem. Segundo a OCDE, o país só ficaria à frente do Japão (2,1%) e da Argentina (1,9%) em termos do crescimento esperado para 2022.

Se o cenário já não parece muito bom na comparação internacional olhando esses dados, a tendência é a coisa piorar.

Isso porque as projeções das entidades multilaterais como FMI e OCDE são atualizadas com menos frequência do que aquelas feitas pelos economistas de mercado, que trabalham em bancos, gestoras de recursos e consultorias, acompanhando a economia brasileira no seu dia a dia.

Alguns desses economistas passaram a prever nesta semana que o PIB brasileiro pode entrar em recessão ou ficar estagnado em 2022, diante do desarranjo das contas públicas provocado pela quebra do teto de gastos — regra que limita o crescimento da despesa do governo à inflação.

É o caso do Itaú, que revisou na segunda-feira (25/10) sua projeção para o PIB do país em 2022 para queda de 0,5%. O banco J.P. Morgan e a consultoria MB Associados cortaram suas estimativas de 0,9% e 0,4%, respectivamente, para 0%.

E mesmo quem ainda espera algum crescimento para o Brasil em 2022, está baixando a bola de suas expectativas, caso da XP Investimentos, que cortou sua estimativa para o PIB do próximo ano de 1,3% para 0,8%. O Credit Suisse reduziu de 1,1% para 0,6%. E a ASA Investments, de 1,5% para 0,4%.

Estimativas para PIB do Brasil em 2022, em % ?

Assim, mesmo o microcosmo do G20 parece desmentir a fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, na última sexta-feira (22/10): "O Brasil é um país bem visto lá fora. As pessoas veem o que a gente está fazendo aqui. O Brasil vai crescer bem mais no ano que vem", disse Guedes, durante coletiva ao lado de Bolsonaro, em que ambos confirmaram o furo do teto de gastos.

Entenda por que a economia do mundo todo deve desacelerar em 2022 e como o Brasil deve ter desempenho ainda pior do que os outros países.

Por que a economia mundial vai crescer menos em 2022

"O crescimento global deve ser menor e a inflação maior devido à desaceleração na China e ao aumento dos preços de energia em todo o mundo", resumiu o Itaú, em relatório recente.

A economista Margarida Gutierrez, professora do Coppead/UFRJ (Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro), explica que o aumento da inflação em todo o mundo deve levar os bancos centrais de diversos países a encerrar o ciclo de estímulos em resposta à pandemia e normalizar suas políticas monetárias.

A mudança de direção na ação dos bancos centrais deve funcionar como um freio para a atividade econômica em todo o mundo.

"Com a inflação batendo na porta dos Estados Unidos e da Zona do Euro — economias que estavam com taxas de juros zero ou próximas de zero —, vai começar a ter uma normalização das políticas monetárias, então os juros vão começar a subir", diz Gutierrez.

"O caso da economia americana é emblemático: pelo quinto mês consecutivo, os Estados Unidos têm apresentado uma inflação de 5,4% em 12 meses, o que sinaliza que não é uma inflação transitória, como inicialmente se supunha", acrescenta a economista.

"Nesse cenário, o FED [Federal Reserve System, o sistema de bancos centrais dos Estados Unidos] e o Banco Central Europeu já sinalizaram que vão reduzir seus programas de compras de ativos e, depois disso, vão começar a subir as taxas de juros, praticando o que chamamos de normalização monetária. Essa subida de juros já é um freio à atividade econômica por si só."

A inflação global tem sido puxada pela alta de preços das commodities, em meio ao aumento da demanda global com a reabertura das economias após o isolamento social provocado pelo coronavírus; e pela desorganização das cadeias produtivas, que tem provocado falta de insumos para a indústria — como o setor de automóveis, que tem sofrido com a escassez de semicondutores.

Escassez de carvão está paralisando parte do setor produtivo da China

Já na China, são dois os problemas principais: uma crise no setor imobiliário, puxada pelo alto endividamento da incorporadora Evergrande; e uma crise energética, provocada pela disparada de preços e escassez de carvão, num momento em que o país asiático também tenta reduzir suas emissões de carbono, visando atingir metas ambientais estabelecidas para 2030 e 2060.

"Na China, desde a crise de 2008, eles promoveram um padrão de crescimento muito baseado no endividamento", explica Gutierrez. "Essas construtoras que agora estão em crise são um exemplo disso, estão inadimplentes, após serem estimuladas pelos empréstimos de bancos públicos e por uma política de governo de incentivo ao endividamento."

"Soma-se a isso a escassez de carvão que está paralisando parte do setor produtivo. Então a China tem um problema grave aí que é o seu modelo de crescimento", diz a professora.

O FMI prevê que a China desacelere de um crescimento de 8% este ano, para 5,6% em 2022. Já a OCDE, projeta um avanço de 8,5% do PIB da China em 2021 e de 5,8% no próximo ano.

Com a China representa sozinha cerca de 18% do PIB mundial e é uma grande compradora internacional de commodities produzidas por outros países, uma desaceleração dessa magnitude tende a afetar a economia do mundo todo.

Como o Brasil vai ter desempenho ainda pior que o resto do mundo

"Não tem nenhum motor de crescimento no Brasil", diz Claudio Considera, coordenador do Núcleo de Contas Nacionais do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

"O desemprego está enorme, a inflação está fazendo com que as famílias percam renda, isso diminui o consumo", enumera. "O investimento também não tem nenhum estímulo, porque ninguém acredita que o Brasil vai crescer. Então a economia não tem qualquer impulso de crescimento."

'Não tem nenhum motor de crescimento no Brasil. O desemprego está enorme, a inflação está fazendo com que as famílias percam renda', diz Claudio Considera, do Ibre-FGV (Roberto Parizotti)

Esse cenário tende a ser agravado pela alta de juros que está sendo feita pelo Banco Central, na tentativa de conter a inflação.

Nesta quarta-feira (27/10), o Copom (Comitê de Política Monetária) elevou a Selic de 6,25% para 7,75% ao ano, alta de 1,5 ponto percentual.

O comitê indicou ainda que deve fazer outro aumento de igual magnitude na sua próxima reunião, marcada para dezembro, o que deve levar a taxa para 9,25%. Parte dos economistas aposta que o ciclo de aperto monetário não deve parar por aí, com a taxa básica de juros indo a dois dígitos no começo do próximo ano.

"Com isso, as famílias que gostariam de tomar crédito para consumo não vão mais fazer isso. E essa alta de juros vai espantar os investimentos também, porque ninguém vai investir tendo que pagar juros elevados, é melhor colocar o dinheiro na compra de títulos da dívida e ganhar 10% a 12% de retorno sem os riscos do investimento produtivo", diz Considera.

Mas se o mundo inteiro está sofrendo com inflação, por que a alta de preços no Brasil é tão mais significativa do que nos demais países, exigindo essa dose cavalar de juros em resposta?

"No Brasil, além de sofrer tudo que o mundo está sofrendo, nós temos uma taxa de câmbio super pressionada por causa das nossas incertezas, da nossa percepção de risco, que está subindo muito", explica Margarida Gutierrez, da Coppead/UFRJ.

"A nossa taxa de câmbio está absolutamente descolada do resto do mundo, e o câmbio mais desvalorizado gera pressões inflacionárias, isso contamina as expectativas de inflação e, por isso, nossa inflação é tão maior do que a de outros países".

O dólar fechou 2020 cotado a R$ 5,19 e nesta semana já supera os R$ 5,60, tendo encostado nos R$ 5,70 na semana passada, quando foi confirmada a quebra do teto de gastos. Acompanhando esse movimento, as expectativas para a inflação em 2021 começaram o ano em 3,3% e estão atualmente próximas dos 9%, segundo o boletim Focus do Banco Central.

Na prévia da inflação de outubro, medida pelo IPCA-15, a taxa acumulada em 12 meses chegou a 10,34%.

O câmbio desvalorizado afeta, por exemplo, os custos industrias, já que boa parte dos insumos da nossa indústria são importados. Impacta também os preços dos combustíveis, já que o petróleo é cotado internacionalmente em dólares. E estimula as exportações, reduzindo a oferta de alimentos no mercado interno, o que também contribui para a alta de preços.

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes durante coletiva em que confirmaram a quebra do teto de gastos em 2022 (Getty Images)

E por que a quebra do teto de gastos piorou ainda mais esse cenário já desfavorável

Porque, sem o teto como referência para os gastos do governo, os investidores deixam de ter clareza sobre a trajetória da dívida pública. Com isso, a percepção de risco de insolvência do Brasil aumenta e investidores estrangeiros tiram divisas do país, desvalorizando o câmbio e alimentando as expectativas de inflação, o que leva o Banco Central a ter que subir mais os juros para controlá-la.

Por fim, a cereja nesse bolo desandado do Brasil é que 2022 é ano de eleições no país.

"Serão eleições altamente incertas e polarizadas, com dois presidenciáveis a favor do aumento do gasto público, o que pode agravar a situação fiscal. Isso está minando a confiança dos agente para o ano que vem", diz Gutierrez.

Assim, podemos esperar novas revisões para baixo nas projeções de crescimento para o Brasil feitas pelo FMI e pela OCDE, mesmo com o Brasil já estando atualmente na rabeira das expectativas do G20.

"Certamente serão revisadas. Eles devem esperar os resultados da economia no terceiro trimestre, mas devem trazer esses números para baixo, com certeza", acredita Considera, da FGV. "Estamos entrando numa situação que eu não imaginava jamais que nós voltaríamos", lamenta o economista.

Thais Carrança, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 29.10.21

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

TSE rejeita pedido de cassação de Bolsonaro e Mourão

Por unanimidade, ministros arquivam ações que acusavam chapa de crimes relacionados ao disparo de mensagens em massa nas eleições de 2018. Em 2022, contudo, prática pode configurar abuso de poder, decide plenário.

Por unanimidade, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) votou nesta quinta-feira (28/10) contra a cassação do presidente Jair Bolsonaro e de seu vice, Hamilton Mourão, pelo escândalo de disparos de mensagens em massa nas eleições de 2018.

Por outro lado, a Corte definiu que, nas eleições de 2022, o uso de aplicativos de mensagens "para realizar disparos em massa, promovendo desinformação, diretamente por candidato ou em seu benefício e em prejuízo de adversários políticos", pode ser considerado abuso do poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação social.

O julgamento no TSE analisava duas ações que questionavam o uso de empresas contratadas para realizar disparos de mensagens em aplicativos como o WhatsApp durante a campanha eleitoral de 2018, quando Bolsonaro foi eleito.

As ações foram apresentadas pela coligação O Povo Feliz de Novo, que reúne os partidos PT, PCdoB e Pros e que teve o ex-ministro e ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad como candidato à Presidência em 2018. O petista perdeu para Bolsonaro no segundo turno.

Nas ações, os partidos defendiam que os disparos de mensagens afetaram o resultado das eleições e configuram os crimes de abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação social. Com a cassação, Bolsonaro e Mourão ficariam ainda inelegíveis por oito anos.

Os votos dos ministros

O julgamento teve início na terça-feira, com os votos de três ministros, incluindo o relator, Luís Felipe Salomão. O TSE retomou a sessão nesta quinta, com os votos dos demais quatro juízes.

Para Salomão, foi comprovado que houve um esquema de propagação de notícias falsas a fim de favorecer Bolsonaro nas eleições de 2018.

"No mínimo desde o ano de 2017, pessoas próximas ao hoje presidente da República atuavam de modo permanente, amplo e constante na mobilização digital de eleitores", afirmou o relator, dizendo que a prática ganha "contornos de ilicitude". A estratégia principal do esquema, segundo o ministro, era atacar adversários políticos, candidatos "e, mais recentemente, as próprias instituições democráticas".

O ministro Mauro Campbell Marques, também na terça-feira, concordou com Salomão, mas ambos entenderam que as provas existentes não justificam a cassação da chapa. Segundo eles, embora tenha havido um esquema de disparos em massa, ainda não há como comprovar que ele influenciou o resultado do pleito.

Outro ministro a votar na terça-feira foi Sérgio Banhos. O julgamento foi então suspenso e retomado nesta quinta com os votos de Carlos Horbach, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso.

Horbach defendeu que o simples uso do WhatsApp e outros aplicativos de mensagens para disparos de mensagens não pode ser considerado uso indevido dos meios de comunicação.

"Se não é possível extrair dos votos todos os aspectos (conteúdo da mensagem, repercussão desse conteúdo, abrangência da ação), como afirmar de modo peremptório que houve disparos em massa com conteúdos inverídicos voltados a prejudicar adversários? As afirmações têm pouco respaldo no conjunto probatório das ações", considerou Horbach.

Ao votar em seguida, Fachin seguiu o colega. "Não se extrai do conjunto probatório indicações seguras de que as violações de termos de uso no Whatsapp estão relacionadas ao uso massivo de envio de mensagens", declarou.

"Todo mundo sabe o que ocorreu"

Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal (STF), disse ser "mais que notório" que o disparo em massa ocorreu, mas reconheceu não haver provas que comprovem os crimes.

"A Justiça Eleitoral pode ser cega, mas não pode ser tola. Não podemos criar um precedente avestruz. Todo mundo sabe o que ocorreu, todo mundo sabe o mecanismo utilizado nas eleições e depois. Uma coisa é se há a prova específica. É fato mais que notório que ocorreu. Houve disparo em massa. Se os autores negligenciaram na ação, é outra questão", declarou.

Por último, o presidente Barroso, ele próprio alvo de ataques e ameaças por redes bolsonaristas, fez críticas duras à propagação de fake news e discursos de ódio nas redes sociais, mas também salientou não haver provas que justifiquem a cassação.

"Todo mundo sabe o que aconteceu. Quem tem dúvida que as mídias sociais foram inundadas com ódio, com desinformação, com calúnias, teorias conspiratórias? Basta ter olhos de ver", afirmou o chefe da Corte.

"Ainda que o uso de disparos seja notório, exige-se que a prova efetivamente comprove a compra de pacotes e a existência dessa estrutura piramidal de comportamentos mafiosos para distribuição de conteúdos falsos. Apesar de todos reconhecermos a notoriedade dos fatos, para que possa gerar uma condenação, é preciso que haja prova", continuou. "Não foi demonstrado o envio de mensagens por aqueles números a grupos de Whatsapp nem a concatenação entre empresários e a campanha dos candidatos."

Deutsche Welle Brasil, em 28.10.21

Como PEC dos precatórios pode prejudicar professores da rede pública?

Com o apoio do governo, a Câmara dos Deputados deverá votar nesta quinta-feira (28/10) uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que altera regras do chamado teto de gastos e cria novas normas para o pagamento de precatórios.

Aprovação de PEC a ser votada na Câmara pode afetar não só a confiança do mercado, mas professores da rede pública de Estados e municípios (Senado Federal)

A medida é vista por especialistas e parlamentares de oposição como uma manobra do governo para abrir espaço fiscal e financiar, entre outras coisas, o pagamento do Auxílio Brasil, um novo programa social. O que pouca gente sabe é que a aprovação da PEC pode afetar não só a confiança do mercado, mas professores da rede pública de Estados e municípios.

Precatórios são dívidas da União com diversos tipos de credores que a Justiça já reconheceu e sobre as quais não há possibilidade de recurso. Todos os anos, tribunais de todo o Brasil enviam uma relação dos precatórios (dívidas) que a União deverá pagar. A polêmica em torno do assunto começou no segundo semestre deste ano quando o governo passou a procurar formas de abrir espaço no orçamento de 2022 para financiar um novo programa social, agora batizado de Auxílio Brasil.

A previsão é de que o governo deveria pagar R$ 89,1 bilhões em precatórios em 2022. O governo procurou alternativas para evitar o pagamento desse valor, mas vem encontrando resistência em diversos setores, especialmente de agentes econômicos que criticam a medida e classificam como uma espécie de "calote".

Mesmo assim, o governo apoiou a PEC nº 23/2021, que ficou conhecida como PEC dos Precatórios. Na prática, ela abre espaço no orçamento do ano que vem de duas formas. Se for aprovada na Câmara, ela ainda precisa passar pelo Plenário do Senado antes de ser promulgada e entrar em vigor.

De um lado, a proposta altera a forma de correção do teto de gastos do governo. Até agora, a correção do teto de um ano era feito pela inflação calculada pelo IPCA entre julho e junho do ano anterior. O texto do relator Hugo Motta (MDB-PB) muda a regra e propõe a correção para o período de janeiro a dezembro e de forma retroativa a 2017, quando o teto entrou em vigor. Segundo dados do Instituto Fiscal Independente (IFI), essa mudança abriria uma margem de gastos para o governo federal em R$ 47,4 bilhões.

A segunda parte da PEC é que a muda as regras para o pagamento de precatórios. E é essa que pode acabar afetando os professores — possivelmente provocando atrasos para docentes da rede estadual e municipal em alguns lugares.

Rolar a dívida

Em 2022, o governo deveria pagar R$ 89,1 bilhões, um aumento de 64% em relação ao valor previsto para 2021, que foi de R$ 54 bilhões. Esse crescimento foi classificado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, como um "meteoro" nas contas públicas.

A PEC prevê o estabelecimento de um "teto" anual para o pagamento de precatórios. Em 2022, esse valor seria de R$ 41 bilhões. Considerando a dívida de R$ 89,1 bilhões, isso deixaria em aberto um total de R$ 48,1 bilhões para o ano seguinte.

O problema é que desses R$ 89,1 bilhões, pelo menos R$ 16 bilhões são referentes a dívidas que a União tem com os Estados da Bahia, Ceará, Pernambuco e Amazonas por conta de um erro do governo no repasse de recursos do antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que depois foi substituído pelo Fundo de Manutenção da Educação Básica (Fundeb).

União tem dívida com Bahia, Ceará, Pernambuco e Amazonas referentes ao antigo Fundef (Getty Images)

Pela legislação, o governo federal deveria fazer uma complementação ao salário dos professores da rede pública por meio do Fundef. Alguns Estados e municípios, no entanto, processaram a União alegando que o cálculo usado por ela para fazer os repasses era incorreto, ocasionando prejuízos.

Os casos foram levados ao Supremo Tribunal Federal (STF) que, nos últimos anos, vêm dando ganho de causa contra a União.

Uma lei de 2020 prevê que 60% dos valores de precatórios devidos pela União como pagamento de dívidas dos tempos do Fundef deveriam ser direcionados aos professores dos Estados e municípios que receberem os valores.

O texto da PEC, porém, prevê mecanismos que dificultam que esses entes recebam as dívidas, o que, em última instância, prejudica os professores.

Um desses mecanismos prevê que se a dívida não for paga dentro do teto estabelecido pela PEC, o Estado ou município credor pode optar por receber no final do ano seguinte com um desconto de até 40%. Na prática, isso poderia diminuir o valor a ser pago aos professores.

Outro dispositivo prevê que o credor que não quiser optar pelo desconto de 40%, pode receber a dívida em até 10 anos, o que também afetaria os professores.

Um terceiro mecanismo é o chamado "encontro de contas". Neste caso, a União poderá propor ao credor que a dívida da União (precatório) seja abatida do total de débitos que ele possa vir a ter com o governo federal.

Um exemplo é o do governo da Bahia que, em 2020, tinha uma dívida com a União de R$ 5,3 bilhões. Em maio deste ano, o STF deu ganho de causa o governo baiano e determinou que a União pagasse R$ 8,7 bilhões em precatórios relativos ao Fundef. Se a PEC for aprovada, o governo federal poderá propor uma espécie de abatimento da dívida, o que, ao final, reduziria o valor a ser recebido pelo Estado da Bahia, afetando, também, o quanto os professores receberiam.

'Tudo ou nada'

Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), Heleno Araújo, a PEC é "absurda" e permite que o governo faça política assistencialista com recursos que não lhe pertencem.

"A PEC é absurda e ilegal. O que o governo quer é fazer pegar um dinheiro que não é seu para fazer política assistencialista em ano eleitoral. Se isso passar, vai desestruturar qualquer confiança que se tenha em decisões da justiça contra a União", afirmou.

Manobra do governo para alterar o teto de gastos é criticada por especialistas (Getty Images)

A política assistencialista à qual Araújo se refere é o programa Auxílio Brasil, lançado pelo governo e que prevê o pagamento temporário de R$ 400 a pessoas em situação de extrema pobreza. Estima-se que o benefício vai atender a 17 milhões de famílias. A expectativa era de que o benefício começasse a ser pago a partir de novembro deste ano, a partir do fim do auxílio emergencial referente à Covid-19.

O economista e fundador e secretário-geral da organização não-governamental Contas Abertas, Gil Castelo Branco, avalia a PEC como uma manobra eleitoreira e que pode prejudicar não apenas os professores, mas o país como um todo.

"A PEC permite o estouro do teto e compromete a confiança do mercado na política fiscal do país. O governo foi para o tudo ou nada de olho nas eleições. É ruim para os professores, que tinham uma expectativa de ganho, mas é ruim também para a população em geral porque isso pode causar crise que afeta a economia", afirmou o economista.

Procurado pela BBC News Brasil, o Ministério da Economia enviou nota afirmando que não iria comentar o assunto.

Na semana passada, porém, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu, ao lado do presidente Jair Bolsonaro, a mudança nas regras do pagamento de precatórios e na correção do teto de gastos.

"Eu falei: 'Olha, furamos o teto ano passado para atender a saúde. Os efeitos econômicos sobre os mais frágeis foram devastadores, todo mundo está dizendo que os mais pobres estão sem comida, sem gás, tendo que cozinhar com lenha. Ora, ninguém quer tirar 10 em (política) fiscal e deixar os mais frágeis passarem fome", afirmou o ministro.

Castelo Branco diz ainda que, apesar do discurso do governo, o estouro do teto gerado pela PEC dos Precatórios não vai financiar apenas o Auxílio Brasil, mas também será usado para bancar as chamadas "emendas de relator", um tipo de emenda parlamentar mais difícil de rastrear em que a destinação dos recursos é feita pelo relator-geral do orçamento.

Reportagens publicadas pelo jornal O Estado de S. Paulo ao longo deste ano mostraram que esse tipo de mecanismo estaria sendo usado irregularmente pelo governo para beneficiar parlamentares da base. O governo, por sua vez, se defende afirmando que políticos de oposição também teriam recebido recursos das emendas de relator.

O diretor-executivo do Instituto Fiscal Independente do Senado (IFI), Felipe Salto, avalia que a PEC dos Precatórios poderá custar caro ao país porque o estouro do teto deverá afetar a confiança do mercado nas contas públicas.

"O que está acontecendo é que o governo quer abrir espaço no orçamento para prioridades eleitorais. O governo quer fazer espaço para emendas de relator e gasto social, que é importante, mas que poderia ser feito dentro do teto. Essa história é uma inovação que vai custar caro ao país porque vai afetar a credibilidade no governo", explicou.

Leandro Prazeres, de Brasília, DF, para a BBC News Brasil, em 28.10.21

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Muito mais que uma ‘conversinha’

Desmandos fiscais do presidente Bolsonaro e de sua equipe reforçam o pessimismo das projeções econômicas para o próximo ano.

O Brasil do ministro da Economia, Paulo Guedes, será o novo país dos sonhos dos brasileiros dispostos a emigrar, se descobrirem onde fica essa terra maravilhosa. Depois de uma recuperação em V, esse Eldorado continuará prosperando, com muita oferta de emprego e fartura para todos, sob o cuidado de um governo eficiente, prudente e atento aos mais vulneráveis. Quem prevê estagnação ou recessão repete a “conversinha” de sempre, disse o ministro, ao comentar a piora das projeções para 2022. Essa piora se acentuou diante da disposição do presidente, com apoio de Guedes, de arrebentar o teto de gastos federais, num claro rompimento com os padrões da responsabilidade fiscal.

A economia brasileira terá contração de 0,5% no próximo ano, segundo a nova projeção do Banco Itaú. A estimativa anterior, já muito sombria, indicava expansão de 0,5%. O Banco JP Morgan reduziu de 0,4% para zero o resultado previsto para 2022, revisão igual àquela anunciada pela consultoria MB Associados. O recuo das expectativas tem ocorrido de modo amplo, no mercado, como tem mostrado a pesquisa Focus, semanalmente realizada pelo Banco Central (BC). Em quatro semanas passou de 5,04% para 4,97% a mediana das projeções do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 2021. No mesmo intervalo, o desempenho esperado para 2022 diminuiu de 1,57% para 1,40%.

A tal “conversinha” envolve, portanto, mais do que um par de grandes bancos e umas poucas consultorias. As expectativas captadas na pesquisa vêm piorando há meses. Nessa mudança, aumenta a inflação prevista e diminui o crescimento econômico estimado. Os novos ataques ao teto de gastos e à disciplina fiscal deram aos analistas novos argumentos para tornar mais sombrios os seus cenários.

A gestão mais irresponsável das finanças públicas, argumentam esses analistas, aumentará a insegurança dos investidores, favorecerá a instabilidade cambial, tornará mais cara a dívida pública, alimentará a inflação e prejudicará o crescimento econômico. A aceleração da alta de preços aparece tanto nas projeções quanto na experiência cotidiana e nos dados oficiais. Divulgada um dia depois do pronunciamento ministerial sobre a “conversinha”, a prévia da inflação de outubro confirmou o desajuste crescente no varejo de bens e serviços.

Apurado entre 15 de setembro e 13 de outubro, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo-15 (IPCA-15) subiu 1,20%. Foi a maior alta para outubro desde 1995 e o maior aumento mensal desde fevereiro de 2016, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 12 meses a variação chegou a 10,34%. Pressionadas pelas péssimas condições de emprego e pela erosão de sua renda, agravada pelo crescente custo de vida, as famílias serão incapazes de manter o consumo necessário para sustentar uma produção robusta de bens industriais e de serviços.

O desarranjo dos preços é mais um forte argumento a favor do pessimismo nas projeções para 2022. Não há sinal de abrandamento desse desarranjo. Ao contrário: a incerteza dos investidores, a insegurança dos empresários e a instabilidade cambial tenderão a realimentar a alta de preços, mantendo os consumidores sob pressão. Na terça-feira, a divulgação do IPCA-15 reforçou as apostas numa forte alta dos juros ao longo dos próximos meses, com prejuízo para o crescimento do PIB.

O aumento do Bolsa Família, com benefício elevado a R$ 400 e estendido a 17 milhões de pessoas, será insuficiente para mudar o quadro. A inflação reduzirá o poder de compra desse dinheiro. Além disso, esse programa, rebatizado como Auxílio Brasil, alcança um conjunto muito menor que o dos beneficiários da ajuda emergencial. As perspectivas, por enquanto, são muito ruins para a maior parte dessa população.

O apoio aos pobres, citado pelo ministro Guedes como bom motivo para a ruptura do teto, poderia ser mais amplo e mais compatível com a boa gestão fiscal. Haveria dinheiro para isso, se o presidente pudesse tocar sua vida política sem depender do apoio do Centrão, um sumidouro de dinheiro público.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 27 de outubro de 2021


Maduro manobra para evitar abertura de processo no Tribunal Penal Internacional

Chavismo solta presos e faz reformas judiciais na tentativa de melhorar sua imagem, à espera de visita do procurador-chefe de Haia


Nicolás Maduro na quinta-feira passada em Caracas (Venezuela). (Miguel Gutierrez, EFE)

O Governo de Nicolás Maduro faz manobras para esvaziar uma investigação do Tribunal Penal Internacional (TPI) sobre a situação no país. Com reformas judiciais e a libertação de vários seus 250 presos políticos, o chavismo tenta melhorar sua imagem apesar das acusações de violações sistemáticas de direitos humanos e crimes contra a humanidade. A amostra mais recente aconteceu nesta terça-feira. Dois dos três ativistas da organização Fundaredes detidos em julho, Omar de Dios García e Rafael Tarazona, foram libertados. Seu diretor Javier Tarazona, entretanto, continua detido. Há vários anos, essa ONG denuncia energicamente a presença de grupos guerrilheiros colombianos na Venezuela em conivência com o chavismo. Foram acusados de “terrorismo e traição à pátria”.

Estes movimentos ocorrem às vésperas da visita do procurador-chefe do TPI, Karin Khan, no final desta semana, como parte de uma viagem pela América Latina. O próprio Governo promove essa visita como um sinal de abertura e de mudança no sistema de Justiça, apontado um braço repressor do chavismo no último relatório da Missão Independente das Nações Unidas.

O pedido de investigação sobre a Venezuela pelo tribunal de Haia foi aberto em 2018 por iniciativa da Argentina, Canadá, Colômbia, Chile, Paraguai e Peru, em uma solicitação sem precedentes na curta vida desse tribunal, fundado em 2002. Depois, com a volta do kirchnerismo ao poder, a Argentina se desvinculou da iniciativa do chamado Grupo de Lima. O pedido teve a adesão também da ex-procuradora-geral venezuelana Luisa Ortega Díaz, que pediu asilo político na Espanha, e de organizações de direitos humanos e familiares de vítimas de execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias e torturas.

Fatou Bensouda, ex-procuradora-geral do TPI, considerou que havia evidências razoáveis para investigar crimes contra a humanidade na Venezuela. O parecer foi dado logo depois de uma visita do procurador-geral venezuelano, Tarek William Saab, na qual o chavismo tentou demonstrar esforços para melhorar o sistema de justiça no país. A decisão sobre a abertura da investigação é esperada desde julho, quando o novo procurador assumiu, com a intenção de fazer uma visita ao país e dar um último voto de confiança antes de autorizá-la. “Estou convencido de que o estreitamento das relações e a cooperação com os Estados integrantes melhorará o funcionamento do regime do Estatuto de Roma [que rege o TPI], em consonância com o princípio de complementariedade. A comunicação é essencial para explicar o mandato da Procuradoria e do TPI e para fomentar a confiança das partes interessadas. Aguardo com interesse a oportunidade de escutar e de aprender com esta minha primeira viagem à região como Procurador do TPI”, disse Khan em um comunicado. O Governo de Maduro tentará convencê-lo de que não há motivos para abrir uma investigação. As ONGs e vítimas defenderão o início de um processo contra membros do Executivo chavista.

Com a aproximação de uma eleição local que terá a participação de partidos da oposição pela primeira vez após sete anos de boicotes, o chavismo, encurralado em seu cerco diplomático, teve que ceder em vários aspectos. Sentou-se para negociar no México com a oposição, embora tenha congelado esse processo após a extradição para os Estados Unidos de Alex Saab, o operador comercial do Governo para fugir das sanções, também famoso como testa-de-ferro de Maduro. De fato, as reformas no sistema de justiça nacional constavam na pauta no México. Agora, o Governo se antecipou em adotá-las sem conciliar com a oposição, para atenuar as suspeitas no TPI.

O Executivo de Maduro se aferra a alguns marcos que testemunham sua mudança. Em 2018, quando o vereador opositor Fernando Albán morreu ao cair do 10º andar da sede do serviço de inteligência, o procurador Saab rapidamente lançou a tese do suicídio. Há cinco meses o funcionário se retratou, admitindo que se tratou de um assassinato, e três anos depois dos fatos ordenou a captura dos agentes que o custodiavam. Nessa mesma declaração, reconheceu como assassinatos os casos do capitão Rafael Acosta Arévalo, morto por tortura, e de Juan Pablo Pernalete, impactado pelo disparo de uma bomba de gás lacrimogêneo nos protestos de 2017.

Outro caso com o que o Governo tenta melhorar sua imagem é o de David Vallenilla, outro jovem morto nas manifestações de quatro anos atrás. No começo de outubro, uma juíza ordenou a absolvição do sargento que atirou nele. A decisão foi alvo de recurso pela família e o Ministério Público, e em tempo recorde o militar foi condenado a 23 anos da prisão.

Em setembro, muito discretamente, também começaram a ser soltos presos políticos como o ex-deputado Gilberto Sojo. Nesse mesmo mês, a Assembleia Nacional, subordinada ao chavismo, ditou sem maiores consultas públicas um pacote de leis que busca encobrir as graves falhas na situação dos direitos humanos no país. Alguns dos avanços legislativos têm a ver com a desmilitarização da Justiça ou a possibilidade de que ONGs de direitos humanos assumam a defesa de quem denunciar alguma violação de suas garantias fundamentais. Uma reforma do Código Penal reduz os prazos judiciais, para acelerar os julgamentos, e limita a três anos o período máximo de prisão sem trâmite em julgado.

“Se a Venezuela fosse um país de leis, estas mudanças legislativas trariam alguma melhora ao sistema de Justiça. Estas modificações não apontam para o enorme paquiderme que não se atrevem sequer a mencionar: que na Venezuela não temos juízes nem imparciais nem independentes, apenas simples funcionários que se limitam a cumprir ordens”, aponta uma análise sobre as reformas de Acesso à Justiça.

Trata-se de uma mudança radical na postura do Governo de Maduro. A pressão pelas acusações no TPI parecem ser sua maior encruzilhada, um terreno onde o chavismo tem pouca capacidade de manobra. Além das consequências jurídicas deste processo, que poderiam demorar, o processo em Haia acirra o cerco diplomático que Caracas tenta derrubar principalmente com a revogação de sanções, o restabelecimento de relações diplomáticas com a União Europeia e uma incipiente abertura comercial com a Colômbia.

Apesar desses esforços, a recente morte do general Raúl Isaías Baduel na prisão, sobre a qual o procurador Saab também antecipou como causa de morte a covid-19 – tese questionadapor sua família – agitou novamente a luta dos detentos políticos. A décima morte de um preso político custodiado pelo Governo ofusca os movimentos com os quais o chavismo procura se reerguer nos fóruns internacionais. Há duas semanas, os familiares de presos políticos protestaram para exigir que oTPI acelere sua decisão sobre a abertura de uma investigação contra Maduro e outros altos funcionários. A visita de Khan gera expectativas.

Florantonia Singer, de Caracas para o EL PAÍS,em 27.10.21