terça-feira, 26 de outubro de 2021

Brasil perde uma livraria a cada três dias.

País tem uma loja de livros a cada 96 mil habitantes – muito longe da proporção que a Unesco considera ideal, uma a cada 10 mil. "Resistentes", pequenos livreiros apostam em nichos para sobreviver nesse mercado.

Banca Tatuí, em São Paulo, se preocupa em ter um catálogo de qualidade de pequenas editoras.

"Parece um chavão, mas manter uma livraria hoje no Brasil é um ato de resistência. Não é fácil." Em tom de desabafo, a frase dita pelo livreiro, editor e escritor João Varella resume bem a situação das casas do ramo que existem hoje no Brasil. Ele próprio é um dos que nadam contra o fluxo: em 2014, ele abriu a Banca Tatuí, em São Paulo, e quatro anos mais tarde, quase em frente, a Sala Tatuí.

Enquanto isso, os números que já não eram bons só pioraram. De tempos em tempos, sem periodicidade fixa, a Associação Nacional de Livrarias (ANL) faz um levantamento de quantas lojas de livro existem no país. Em 2014 eram 3.095, hoje são 2.200. Significa que, no Brasil, uma livraria encerra suas atividades a cada três dias, em média.

De acordo com Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o adequado é que haja uma livraria para cada 10 mil habitantes. No Brasil, há uma a cada 96 mil. "Temos um déficit gigantesco com relação ao número ideal que seria algo em torno de 20 mil livrarias", admite Bernardo Gurbanov, presidente da ANL.

"A formação de leitores depende mais de adequadas políticas públicas nos âmbitos da educação e da cultura do que das ações da sociedade civil", acredita ele. "Lamentavelmente, os índices que medem o desempenho escolar e os hábitos de leitura demonstram que estamos diante de um enorme fracasso institucional no que diz respeito à formação de leitores. Uma verdadeira tragédia nacional. Soma-se a isso a histórica fratura social e econômica que sofre a sociedade brasileira, fruto da desigual distribuição de renda."

Paa Gurbanov, a redução no número de livrarias no Brasil é consequência da recessão econômica e da mudança nos hábitos de consumo, após a consolidação "das novas tecnologias que possibilitaram a intensificação do comércio on-line". Sim, essa queda acentuada não necessariamente significa que o consumo de livros está ainda menor, mas também que as livrarias ganharam concorrentes de peso – as grandes plataformas de varejo digital.

Os concorrentes são ".com"

Todo esse contexto fez com que uma figura acabasse sendo valorizada por determinados nichos culturais: a do pequeno livreiro, como João Varella, capaz de indicar títulos sob medida para seu público e atender de forma calorosa, personalizada. O presidente da ANL observa que, em um cenário de fechamento de casas do ramo, é esse tipo de livraria que não só resiste, como ganha importância.

Aberta em março de 2020, Livraria Páginas se autointitula "a menor e mais charmosa" de Belo Horizonte

É o caso também da Livraria Páginas, que se autointitula "a menor e mais charmosa" de Belo Horizonte. Aberta em março de 2020, ela nasceu com a proposta de ser "uma livraria de bairro". "A maioria [dos consumidores] compra dos gigantes. O que fazemos é oferecer um atendimento personalizado. Temos um Instagram ativo com dicas literárias e fazemos lives com autores. Atendemos também com delivery. Receber bem e criar uma clientela fidelizada é o nosso propósito", diz a escritora e jornalista Leida Reis, fundadora da livraria.

Varella conta que na Banca Tatuí a preocupação está em ter um catálogo de qualidade de pequenas editoras, "que não chegam à Amazon, principalmente". "O espaço físico traz uma experiência diferente, um vendedor que entende de publicações e pode dialogar com o leitor, apontar, provocar, dizer o que ler e o que não ler. No fim das contas, o livro arma uma briga contra esse mundo algoritmizado", filosofa ele.

"A gente não tem muito como concorrer [com as gigantes do comércio eletrônico], por isso a gente afirma outro mundo: o mundo que elas não oferecem, que é o mundo do olho no olho e das muitas dimensões de vivências que uma livraria de rua oferece", argumenta o livreiro Eduardo Ribeiro da Luz Fernandes, da Livraria Casa da Árvore, aberta no ano passado no Rio de Janeiro.

"Para isso, também é preciso atacar nichos onde as pessoas são mais conscientes desse processo. Se a gente entrar na lógica de trabalhar com os mais vendidos, não temos como sobreviver."

Aposta é no pequeno livreiro, como João Varella, da Sala Tatuí (foto), capaz de indicar títulos sob medida para seu público e atender de forma calorosa

Pequenos catálogos, com curadoria

Quando voltou ao Brasil, após viver na Holanda, Carolina de Albernaz Nesi lamentou o fato de sua cidade, Vinhedo, no interior paulista, não contar com nenhuma livraria. "Todas haviam fechado", relata.

Ao longo de um ano ela fantasiou e planejou como abrir um negócio do tipo – na Europa, ela havia criado uma livraria voltada a expatriados na cidade de Delft, onde vivia.

Em maio deste ano, finalmente a Duli Delft abriu as portas em Vinhedo. Para atrair a freguesia, ela aposta em um catálogo pequeno, mas bem selecionado. E alguns itens complementam a ideia do livro – de chocolates a vinhos. "Meu propósito era criar uma experiência para aqueles que frequentam a Duli", conta. "Nosso títulos promovem a curiosidade, a cultura e o conhecimento."

Em meio a tantas plataformas on-line, Nesi afirma que "comprar numa pequena livraria passa a ser uma escolha do cliente, que sabe claramente qual é o valor agregado de entrar naquela livraria específica".

A livraria Duli Delft, em Vinhedo, aposta em um catálogo pequeno, mas bem selecionado

No fundo, o que esses livreiros apostam é numa consciência do consumidor – da mesma maneira que há espaço, afinal, para aqueles que escolhem alimentos mais sustentáveis nas gôndolas do supermercado ou preferem adquirir comida diretamente do produtor.

"A gente tenta acessar um público mais consciente, que entende que comprar no conforto de casa, com um preço muito baixo, pode ter consequências terríveis para o mercado editorial", comenta o livreiro Fernandes, da Casa da Árvore.

 "Além disso, sempre procuramos a persuasão positiva, com campanhas do tipo 'vem pra livraria' e 'viva a livraria de rua'", completa. "O importante é reforçar a ideia de que a compra consciente é uma maneira de manter os pequenos comércios vivos."

Nessas histórias, tem também uma pitada de idealismo – e muito amor pelos livros. Fernandes costuma dizer que visitar uma livraria de rua é uma experiência tão subjetiva quanto abrir um livro físico. "Algo que não existe em outros suportes", defende.

"Uma livraria independente não deixa ninguém rico, obviamente. Mas traz muitas experiências interessantes e aponta um caminho mais humano para a cidade", argumenta Fernandes. "Vale a pena manter uma livraria para mostrar que tipo de sociedade queremos construir."

Deutsche Welle Brasil, em 26.10.21

Eduardo Leite disse para a Veja que a homofobia de Jair Bolsonaro denota alguma incerteza sobre sua própria sexualidade:

“É uma fixação curiosa e, no mínimo, instigante. É uma fixação. A todo momento a piadinha, a todo momento uma brincadeira homofóbica, que denota e gera até especulação de algum tipo de incerteza ou de algum tipo de problema pessoal. 


Foto: Ana Maria Campos / O Antagonista

"Eu não quero fazer especulações. Mas a fixação no assunto gera, sem dúvida nenhuma, alguma especulação sobre… Eu entendo, uma pessoa é de outro tempo, de outro tipo de formação, que tenha suas próprias crises, suas próprias dificuldades”.

Em seguida, ele acrescentou:

“Estamos cansados de ver políticos que se apresentam de um jeito e depois a gente descobre que são outra coisa”, afirmou. “O importante é que para mim é algo bem resolvido e eu me apresento por inteiro. Se alguém tem algo a esconder, pior, com rachadinhas, com mensalão do outro lado, com petrolão, com superfaturamento de vacinas na aquisição. A esconder têm eles. Eu não tenho nada a esconder. Minha vida pessoal não deveria ser alvo de debate público. Mas, se é para ser, eu me apresento por inteiro. Não escondo nada.”

Publicado originalmente por O Antagonista, em 26.10.21.

CPI da Covid: o que pode acontecer com Bolsonaro após a divulgação do relatório

As suspeitas de crime comum serão encaminhadas à Procuradoria-Geral da República (PGR), que avaliará uma possível denúncia criminal contra Bolsonaro.

 Já as de crime de responsabilidade vão para análise da Câmara dos Deputados, para possível abertura de processo de impeachment. 

Por fim, as acusações de crimes contra a humanidade serão enviadas ao Tribunal Penal Internacional (TPI), onde o presidente poderia sofrer um processo.

CPI investigou atos e omissões do governo Bolsonaro durante a pandemia (Reuters)

O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, apresentado na semana passada pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), recomenda que o presidente Jair Bolsonaro seja investigado e, eventualmente, responsabilizado em três frentes devido à gestão do seu governo na pandemia de coronavírus: por crimes comuns, por crimes de responsabilidade e por crimes contra a humanidade.

O relatório está sendo votado nesta terça (26/10) pelo Senado. Caso ele seja aprovado pela maioria da comissão, essas acusações contra o presidente serão analisadas em três órgãos.

As suspeitas de crime comum serão encaminhadas à Procuradoria-Geral da República (PGR), que avaliará uma possível denúncia criminal contra Bolsonaro. Já as de crime de responsabilidade vão para análise da Câmara dos Deputados, para possível abertura de processo de impeachment. Por fim, as acusações de crimes contra a humanidade serão enviadas ao Tribunal Penal Internacional (TPI), onde o presidente poderia sofrer um processo.

No entanto, juristas ouvidos pela BBC News Brasil consideram que os três caminhos oferecem obstáculos hoje para que o presidente de fato venha a ser punido por possíveis crimes durante a pandemia de coronavírus, doença que já matou mais de 600 mil pessoas no Brasil desde março de 2020.

Durante viagem ao Ceará, enquanto Calheiros lia seu relatório na CPI, Bolsonaro negou qualquer responsabilidade nas mortes.

"Como seria bom se aquela CPI tivesse fazendo algo de produtivo para nosso Brasil. Tomaram tempo de nosso ministro da Saúde, de servidores, de pessoas humildes e de empresários", criticou o presidente.

"Nada produziram, a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Mas sabemos que não temos culpa de absolutamente nada, fizemos a coisa certa desde o primeiro momento", disse ainda.

Entenda a seguir o que pode acontecer concretamente contra o presidente, caso o relatório seja aprovado pela maioria da CPI, nos três tipos de crimes que Bolsonaro é citado no texto de Calheiros.

1) Acusações de crimes de responsabilidade

Calheiros ressalta em seu relatório que, entre os crimes de responsabilidade previstos na legislação brasileira, está o ato de atentar contra o exercício dos direitos sociais e contra a probidade na administração.

Além disso, ele destaca que o direito à saúde é previsto como um dos direitos sociais no artigo 6º da Constituição, enquanto o artigo 196 estabelece que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Relatório de Renan Calheiros ainda precisa ser aprovado por maioria da CPI; votação ocorre na próxima semana. (Ag. Senado)

Na avaliação de Calheiros, porém, a investigação da CPI mostrou que a gestão de Bolsonaro agiu em sentido contrário: ao invés de proteger a vida dos brasileiros da covid-19, o presidente teria contribuído para o agravamento da pandemia ao demorar a comprar vacinas, incentivar o uso de medicamentos sem comprovação científica, promover aglomerações, entre outras posturas.

"A minimização constante da gravidade da covid-19, a criação de mecanismos ineficazes de controle e tratamento da doença, com ênfase em protocolo de tratamento precoce sem o aval das autoridades sanitárias, o déficit de coordenação política, a falta de campanhas educativas sobre a importância de medidas não farmacológicas, o comportamento pessoal contra essas medidas, e, por fim, a omissão e o atraso na aquisição de vacinas e a contratação de cobertura populacional baixa do consórcio da OMS foram algumas das condutas do Chefe do Poder Executivo Federal que incontestavelmente atentaram contra a saúde pública e a probidade administrativa", diz trecho do relatório.

Apesar das duras acusações do relator, porém, hoje parece pouco provável que elas gerem abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro. O único que pode iniciar esse procedimento é o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), que atualmente mantém boa relação com presidente.

E, a partir dessa aliança com Lira, o Palácio do Planalto construiu uma base de apoio entre os deputados do chamado Centrão (siglas de centro-direita de comportamento mais fisiológico), sustentada pela distribuição de cargos para indicados desses parlamentares e pelo envio de verbas federais para investimentos em seus redutos eleitorais. Com isso, hoje o presidente parece reunir o mínimo de 172 votos na Câmara necessários para barrar a aprovação de um processo de impeachment.

Outro elemento que reduz as chances desse processo ser iniciado é o fato de os protestos de rua realizados ao longo desse ano pedindo a cassação do presidente não terem reunidos um público tão grande quantos os atos que pressionaram pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) em 2016.

Já as pesquisas de opinião têm indicado que o governo Bolsonaro é reprovado pela maioria da população, mas ainda é bem avaliado por cerca de um terço dos brasileiros — patamar de aprovação superior ao que Dilma tinha quando foi cassada.

2) Acusações de crimes comuns

Para Calheiros, as condutas de Bolsonaro também podem ser enquadradas em sete crimes comuns, previstos no Código Penal.

São eles: epidemia com resultado de morte (por suspeita de propagar o vírus); infração de medida sanitária preventiva (por realizar aglomerações e não usar máscara); charlatanismo (devido ao incentivo de uso de medicamentos sem eficácia), incitação ao crime (por incentivar aglomeração e o não uso de máscara); falsificação de documento particular (por ter apresentado uma falsificação como sendo um documento oficial do Tribunal de Contas da União que provaria haver um excesso na contabilização de mortes por covid-19); emprego irregular de verbas públicas (por uso de recursos públicos na compra de medicamentos ineficazes); e prevaricação (por supostamente não ter mandado investigar denúncias de corrupção na compra de vacinas).

Caso o relatório seja aprovado, os elementos que baseiam essas acusações serão encaminhadas à PGR, pois o procurador-geral da República, Augusto Aras, é a única autoridade que pode apresentar uma denúncia criminal contra o presidente no Supremo Tribunal Federal (STF).

Aras é visto como aliado de Bolsonaro e hoje parece improvável que o denuncie, já que a PGR tem arquivado diversas queixas-crimes que já foram apresentadas solicitando a investigação criminal de Bolsonaro por sua conduta na pandemia.

A PGR, por exemplo, já arquivou pedido de investigação devido ao não uso de máscara por entender que isso configura infração administrativa, sujeita a multa, e não um crime.

O órgão também recusou pedido de investigação por causa das aglomerações provocadas pelo presidente. Segundo a PGR, Bolsonaro só poderia ser processado por disseminar coronavírus se estivesse contaminado com a doença e contrariasse ordem médica para se isolar.

Protesto em Brasília contra as mais de 600 mil mortes por covid (Reuters)

Por outra lado, a PGR já abriu inquérito para investigar se Bolsonaro prevaricou ao não tomar providências após ser informado pelo deputado Luiz Miranda (DEM-DF) de supostas ilegalidades no contrato para compra da vacina indiana Covaxin. A investigação está em andamento.

Quanto a suspeitas de crimes pelo incentivo de Bolsonaro ao chamado "tratamento precoce" (uso de medicamentos sem eficácia contra covid-19), Aras informou ao STF em junho que havia iniciado uma apuração preliminar para avaliar a abertura de investigação. Críticos de Aras, porém, o acusam de usar esse tipo de procedimento para responder a pressões para investigar Bolsonaro sem de fato adotar medidas concretas contra o presidente.

Para o criminalista Pierpaolo Bottini, professor da Universidade de São Paulo (USP), é difícil cravar que Aras não dará qualquer encaminhamento as acusações do relatório da CPI.

"Não é só uma avaliação política, tem uma avaliação jurídica que ele terá que fazer. Ele vai ter que motivar (justificar juridicamente) seja qual for a decisão dele. Se tiver muito subsídio (sustentando as acusações), também é difícil ele deixar de dar qualquer encaminhamento", acredita.

Segundo Bottini, há um outro caminho jurídico para Bolsonaro ser denunciado no STF. Em caso de omissão da PGR, ou seja, se o órgão demorar para dar alguma resposta ao relatório da CPI, as próprias vítimas da pandemia poderiam processar o presidente por meio de uma ação penal privada subsidiária da pública.

A Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico) disse à BBC News Brasil que de fato analisa essa possibilidade. A organização apresentou em junho à PGR um pedido de investigação contra Bolsonaro, mas a análise desse pedido tem transcorrido em sigilo e a própria Avico enfrenta dificuldades para obter informações sobre seu andamento.

Eventual apresentação de uma ação contra Bolsonaro pelas vítimas da pandemia seria algo inédito. Segundo Bottini, provavelmente o STF faria uma primeira avaliação de admissibilidade (decidir se a ação está dentro dos requisitos jurídicos necessários) e depois encaminharia a denúncia para análise da Câmara dos Deputados.

O professor ressalta que a Constituição só permite que o Presidente da República seja processado após aval de 342 deputados (mesmo número necessário para abertura de um processo de impeachment).

3) Acusações de crimes contra a humanidade

Calheiros também defende em seu relatório que Bolsonaro seja investigado no Tribunal Penal Internacional (TPI), Corte sediada em Haia, na Holanda, que julga graves violações de direitos humanos, como genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.

No entanto, são poucas as denúncias recebidas pelo Tribunal que de fato geram investigações - e, quando isso ocorre, os casos se alongam por muitos anos, explicou à BBC News Brasil o juiz criminal e professor da USP Marcos Zilli, estudioso do funcionamento do Tribunal Penal Internacional.

Em tese, diz ele, o TPI pode condenar criminosos a penas de 30 anos de prisão e até a prisão perpétua, mas essas punições máximas nunca foram aplicadas pela Corte.

A intenção inicial de Calheiros era acusar o presidente de crime de genocídio contra populações indígenas, mas essa ideia foi abandonada devido à oposição de outros membros da CPI. Com isso, a proposta do relator é enviar ao TPI duas acusações de crimes contra a humanidade por parte do presidente.

Esses crimes estão previstos no Tratado de Roma, incorporado ao direito brasileiro desde setembro de 2002.

Uma das acusações propostas por Calheiros sustenta que Bolsonaro cometeu crime contra a humanidade a praticar "ato desumano que afete gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental". Isso teria ocorrido, segundo o senador, quando vidas humanas foram usadas como "cobaias" em estudos fraudulentos para aplicação de tratamentos sem eficácia contra covid-19.

Ele cita, por exemplo, a promoção do "tratamento precoce" pelo Ministério da Saúde durante a crise de falta de oxigênio em Manaus, no início de 2021. Outro argumento usado pelo senador foi o uso em massa de hidroxicloroquina pelo plano de saúde Prevent Senior. Resultados de um suposta pesquisa da empresa atestando a eficácia do remédio contra covid foram divulgados por Bolsonaro - no entanto, o estudo não havia sido autorizado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e ex-médicos da Prevent Senior acusaram o plano de fraudar os resultados.

A outra acusação é de crime contra a humanidade devido à postura do governo Bolsonaro em relação aos povos indígenas. O relatório destaca a decisão do STF de determinar em julho de 2020 a adoção de um plano emergencial pelo governo de apoio a essas populações durante a pandemia "diante das muitas falhas na política de enfrentamento à pandemia junto aos povos indígenas e da preocupação com a rápida interiorização da doença, que prenunciavam um desastre".

Ainda segundo o parecer de Calheiros, "esta CPI identifica o Presidente da República Jair Messias Bolsonaro como o responsável máximo por atos e omissões intencionais que submeteram os indígenas a condições de vida, tais como a privação do acesso a alimentos ou medicamentos, com vista a causar a destruição dessa parte da população, que configuram atos de extermínio, além de privação intencional e grave de direitos fundamentais em violação do direito internacional, por motivos relacionados com a identidade do grupo ou da coletividade em causa, que configura atos de perseguição".

O relatório final da CPI da covid foi lido no Senado nesta quarta-feira (Ag. Senado)

Segundo o professor Marcos Zilli, essas acusações, caso sejam realmente apresentadas pela CPI ao TPI, passarão por um longo processo de análise e não necessariamente vão gerar investigações internacionais contra o presidente brasileiro.

Todas as representações criminais feitas ao TPI são analisadas pela Procuradoria da Corte, órgão responsável por realizar investigações de forma independente. Um filtro inicial da procuradoria descarta casos em que os crimes denunciados claramente não são de competência do Tribunal.

Se a representação passar dessa etapa, ela é submetida a um exame preliminar, em que a Procuradoria avalia a presença dos elementos necessários à instauração de uma investigação formal. Nesse momento, é analisado, por exemplo, a gravidade dos crimes apontados na representação e se há omissão da Justiça nacional em apurar esses delitos.

"A experiência que nós temos no Tribunal Penal Internacional revelam que os casos demandam muitos anos de investigação, caso uma investigação seja instaurada, e muitos anos de processo também, caso o processo seja aberto", explica Zilli.

Na sua avaliação, a acusação envolvendo populações indígenas é a que teria mais potencial de prosperar no TPI, devido ao contexto mais amplo de ações da gestão Bolsonaro relacionadas a esses povos, como a redução da proteção aos seus territórios e falas recorrentes do presidente defendendo a exploração econômica das terras indígenas.

O TPI, inclusive, já recebeu algumas acusações contra Bolsonaro, envolvendo tanto os povos indígenas como a conduta na pandemia. Por enquanto, apenas uma relacionada aos indígenas, apresentada em 2019, avançou para a etapa de análise preliminar pela procuradoria.

Mariana Schreiber - @marischreiber, de Brasília, DF, para a BBC News Brasil. Texto atualizado em 26.10.21.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Escalada eleitoreira de Bolsonaro balança Guedes no cargo e ameaça implodir a economia brasileira

Ministro da Economia nega que tenha pedido demissão e diz que licença para furar o teto “não altera os fundamentos fiscais da economia”, mas não convenceu o mercado financeiro

Jair Bolsonaro ao lado de Paulo Guedes durante entrevista coletiva nesta sexta-feira. (Evaristo Sá / AFP)

As palavras de Paulo Guedes já não trazem mais alento aos seus antigos companheiros do mercado financeiro. O ministro da Economia enfrenta a pressão de seus pares após o Governo anunciar que vai furar o teto de gastos para financiar o novo programa Auxílio Brasil e ajudar caminhoneiros diante da alta dos combustíveis. Desta vez, o mercado não parece disposto a perdoar a quebra do pacto de apoio firmado com Bolsonaro ainda no período pré-eleitoral, no qual o então candidato se comprometia a não mexer na regra que limita as despesas públicas à inflação do ano anterior. Um divórcio lento e penoso para o país foi posto em curso, e, não por acaso, logo antes de um novo ano eleitoral.

Em mais um dia nervoso, a Bolsa de Valores de São Paulo conseguiu reverter perdas maiores e fechou em queda de 1,34%, a 106.296 pontos. Esse é o pior resultado desde 20 de novembro de 2020, quando o pregão chegou a 106.042 pontos. O dólar, que chegou a disparar para 5,71 reais no decorrer do dia, recuou 0,65%, sendo vendido a 5,55 reais. Nos bastidores do mercado financeiro, analistas afirmam que, a partir de agora, o Brasil “virou cassino”, com todos apostando contra o país. “A especulação começará a testar os novos patamares de preço da Bolsa”, afirmou um operador do mercado, que preferiu não se identificar. O momento é de ganhar dinheiro apostando contra o real e pressionando para acelerar as privatizações. “Afinal, é bom comprar ativos na baixa. 2022 será o ano do fim de feira e preços de xepa”, disse. Não há consenso quanto a permanência de Guedes à frente da Economia. Para alguns, sem ele pode ser bem pior, mas houve quem tomasse um vinho para celebrar antecipadamente sua saída.

Trata-se de uma reação forte daqueles que utilizam o teto como bússola de futuro, num ambiente de forte incerteza política. “Sem o teto de gastos o mercado fica sem ter parâmetro”, afirma Luciano Sobral, economista-chefe da Neo Investimentos. Segundo ele, o grande choque não foi descobrir que o Congresso não tem pudor de mexer na regra fiscal, mas sim que não há defesa no Ministério da Economia. A análise corrobora a impressão daqueles que enxergam no presidente mais interesse em se reeleger do que em manter alguma estabilidade econômica no país. “A aldeia gaulesa que funcionava ali pediu as contas”, afirma o economista, em referência aos quatro membros da equipe de Guedes que deixaram o Governo após perder a batalha pelo teto.

O próprio Guedes teve de vir a público desmentir os rumores de que teria pedido demissão. E aproveitou para defender “um ajuste fiscal menos intenso”. “Não vamos deixar milhões de pessoas passarem fome para tirar 10 em política fiscal”, disse o ministro em entrevista coletiva, acompanhado do presidente Jair Bolsonaro, que declarou ter confiança absoluta de que o Guedes não fará “nenhuma aventura” na economia. Guedes amenizou o que chamou de uma “aparente briga” entre a ala política do Governo ―que defendia ampliar os recursos aos mais vulneráveis para 600 reais―, e a ala econômica ―que queria a manutenção do teto de gastos e, por isso, só via possível pagar 300 reais.

A palavra final teria sido de Bolsonaro, que defendeu um meio termo: os 400 reais que devem ser pagos aos beneficiários do novo Auxílio Brasil, programa que vai substituir o Bolsa Família, lançado pelo petista Luiz Inácio Lula da Silva há 18 anos. Guedes reforçou que desde o início da campanha já havia o plano da implementação de um programa de renda básica. A origem dos recursos seria a reforma do imposto de renda, hoje parada no Senado. O ministro reconheceu que “teve muito barulho”, fruto de uma falta de comunicação do Governo. Mas garantiu que as medidas anunciadas nesta quinta-feira não vão ferir a responsabilidade fiscal. “Do ponto de vista fiscal, não altera os fundamentos fiscais da economia brasileira. Os fundamentos são sólidos”, garantiu.

Linhas tortas

O economista Luciano Sobral ressalta que o problema não é a ampliação do novo auxílio emergencial, que ele considera necessário em um país extremamente desigual, mas a forma como ela está sendo feita. “Em nenhum momento se rediscute a redistribuição de renda. O mercado financeiro aplaudiria se o dinheiro viesse da reforma tributária, taxando os dividendos, por exemplo. O problema é que o Governo vai se endividar mais para isso.”

A preocupação é que não se sabe realmente de quanto a mais será esse gasto. Uma comissão especial da Câmara aprovou nesta quinta-feira a regra da correção do teto de gastos embutida na PEC dos Precatórios, apresentada para determinar um limite para as despesas com as dívidas da União reconhecidas pela Justiça. Caso os deputados e senadores aprovem essa proposta, estarão liberados mais cerca de 84 bilhões de reais além do teto estabelecido para despesas em 2022. E a expectativa é de que esse valor fique ainda maior, pois a medida deve ganhar emendas parlamentares no caminho rumo à aprovação. “Onde passa 80 bilhões, pode passar bem mais. Precisamos ter um freio, que seria o ministro da Economia. Mas sabemos que Guedes não vai fazer esse papel”, diz Sobral.

André Perfeito, economista-chefe da Necton Investimentos, concorda. “Tanto faz se será um real ou 1 trilhão acima do teto, o problema é que, sem o teto de gastos, não temos nada para regular essa dinâmica. Parte do gasto de auxílio vai ser determinado pelos parlamentares e não sabemos o que vai ser o montante total”, argumenta. O economista se recusa a acreditar que o plano de distribuir 400 reais seja simplesmente populismo de Bolsonaro. “Estamos falando de pessoas que estão revirando o lixo atrás de comida, comendo restos de ossos”, ressalta. Ele explica que o problema não é o dinheiro, mas a falta de planejamento para poder dar apoio aos mais vulneráveis. A reforma tributária do imposto de renda, que promete aumentar a arrecadação, seria uma solução. “A reforma foi anunciada com destaque, enfrentou críticas, foi aprovada na Câmara e, quando chega no Senado, morre. Bolsonaro está vendo que a situação da população está muito ruim, mas ele precisa tomar uma atitude política, que vem com um ônus. E ele não quer ter esse ônus”, diz Perfeito.

O economista lembra que o teto de gastos foi uma medida emergencial num momento em que o país estava traumatizado após o impeachment de Dilma Rousseff, mas nunca foi uma medida adequada, porque traz muita “rigidez para as contas públicas”. Agora, a forma como o teto de gastos está sendo abandonado, sem discussão, incomoda até críticos mais ferrenhos do Governo. “Guedes criou o teto de gastos endógeno. Quando os gastos batem no teto e o Governo quer gastar mais, eleva-se a altura do teto. É bestial! Se eu soubesse que ia ser assim não teria perdido tanto tempo criticando o teto de gastos”, disse o economista José Luis Oreiro. Ele defende como alternativa ao limite de endividamento a utilização do “resultado primário ajustado pelos ciclos econômicos”. “Essa metodologia foi desenvolvida pela Secretaria de Política Econômica em 2015, na gestão do economista Manuel Pires, e é usada pela União Europeia, Alemanha, Espanha e outros. Essa é a maneira civilizada e moderna de se fazer política fiscal, ao contrário desse teto fiscal anacrônico que só existe no Brasil”, disse.

Frederico Mazzuchelli, economista e ex-secretário da Fazenda do Estado de São Paulo, diz que o problema é justamente o teto de gastos. “Tem sentindo, em um país como o Brasil, manter os gastos com saúde e educação constantes? Não tem sentido. Não fosse o auxilio emergencial teria ainda mais gente morrendo”, diz. “Mas aí eles colocam no meio disso tudo o perigo da dívida pública. A dívida pública pode crescer e não causar problema nenhum, em moeda soberana.”

Para Mazzuchelli, o furo no teto já era esperado. “Desde o início sabemos que o teto não vai aguentar, ainda mais com a pandemia”, diz. “O problema não é o teto, mas a regra fiscal, que é inadequada. Rico paga menos imposto que pobre.” Por isso, o economista afirma que a estratégia deve ser outra. “É preciso haver uma uma regra inteligente e justa, separar despesa corrente do que é investimento e melhorar a tributação. O mercado enfiou isso na cabeça de todo mundo, dizendo que o teto é sagrado.”

REGIANE OLIVEIRA e MARINA ROSSI, de São Paulo para o EL PAÍS, em 22.10.21

Acuado, Bolsonaro exibe Guedes e resgata tema da privatização da Petrobras para tentar acalmar o mercado

Após alta do dólar e demissões, mandatário aparece com ministro em pleno domingo para argumentar que o furo do teto de gastos não altera a política de austeridade. Semana começa com incerteza sobre a reação dos investidores e expectativa de anúncios de novos nomes da Economia


Bolsonaro e Guedes durante coletiva de imprensa na sexta-feira. (Ueslei Marcelino / Reuters)

Antecipando mais uma semana que promete ser de pressão do mercado, o presidente Jair Bolsonaro saiu às ruas em pleno domingo ao lado do ministro da Economia, Paulo Guedes, para tentar contornar a mais recente crise gerada pelo anúncio de que o Governo federal vai furar o teto de gastos. Dois dias depois de virem a público negar rumores de queda do ministro, o presidente e seu auxiliar voltaram a defender a medida como forma de subsidiar o programa Auxílio Brasil, que substituirá o Bolsa Família, e ajudar caminhoneiros diante da alta dos preços —uma justificativa eleitoreira que levou à demissão de quatro nomes importantes da pasta e ainda fez com que o dólar disparasse na sexta-feira.

Em conversa com jornalistas em Brasília, Guedes tirou da manga a proposta de privatização da Petrobras. Segundo o ministro, a petroleira deveria seguir o mesmo caminho da Eletrobras e dos Correios, que estão sendo desestatizados em dois processos, porém, muito criticados por economistas e analistas do mercado financeiros. “Só o BNDES tem uma fortuna, bilhões e bilhões em ações da Petrobras. Se formos para o Novo Mercado [segmento nobre da Bolsa, onde estão as empresas com alta governança corporativa], criamos entre 100 e 150 bilhões [de reais] de riqueza para os brasileiros. Vamos usar esse dinheiro para ajudar os mais frágeis”, defendeu Guedes.

O ministro tentou mais uma vez argumentar que a quebra do pacto fiscal não altera a agenda econômica que defendeu na campanha que levou Bolsonaro a ser eleito em 2018. “Eu sou um defensor do teto, eu vou continuar defendendo o teto, eu defendo as privatizações”, afirmou, dizendo que o Governo precisa “flexibilizar um pouco” para “atender a população mais vulnerável”. Em clima eleitoral, atribuiu ao Senado a culpa pela falta de recursos para ampliar os programas sociais, uma vez que esse dinheiro deveria vir da reforma tributária do imposto de renda. A medida, aprovada na Câmara do aliado Arthur Lira (PP-AL), encontrou uma barreira na Casa comandada por Rodrigo Pacheco (MG), que acaba de se filiar ao PSD de olho em 2022 e que nos últimos meses engrossou o coro contra ataques de Bolsonaro contra o sistema de votação e a democracia.

Por sua vez, Bolsonaro afirmou que não tem responsabilidade pelo avanço dos preços dos combustíveis e ainda alertou que novas altas virão nesta semana. “Teremos aí, ao que tudo indica, reajuste nos combustíveis. Não precisa ter bola de cristal nem informação privilegiada. É só ver o preço do barril de petróleo lá fora e o comportamento do dólar aqui dentro”, disse aos jornalistas, logo após afirmar que não vai interferir no preço dos combustíveis. “Isso já foi feito no passado e não deu certo.”

Bolsonaro afirmou que apenas a Petrobras tem condições de mexer no preço e como se trata de um “monopólio”, a empresa é “praticamente independente”. “Eu indico o presidente [da estatal]. Nada além disso”, afirmou. Em fevereiro deste ano, o mandatário colocou o general Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa, no lugar de Roberto Castello Branco no comando da Petrobras, argumentando que “jamais” iria intervir na empresa e em sua política de preços, mas que o povo não podia “ser surpreendido com certos reajustes”. Depois, mudou o discurso: “É para interferir mesmo, eu sou o presidente”, disse em maio.

Desde então, o consumidor continuou sendo surpreendido com a alta dos preços nos combustíveis. Na semana passada, dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) mostraram que o valor do litro da gasolina comum avançou 0,6% para 6,361 reais, em relação à semana anterior. Diesel e etanol também subiram. O preço máximo da gasolina chegou a 7,469 reais. Desde janeiro, a gasolina comum já acumula uma alta média 35,5%.

Bolsonaro culpa o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), um tributo estadual que incide sobre os combustíveis, pela alta. E ressalta que há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão dos Estados esperando ser julgada no Supremo Tribunal Federal. “O Governo federal mantém os impostos [PIS/Cofins] congelados desde 2019, o que não acontece com o ICMS”, afirma. A equipe econômica de Bolsonaro defende que os Estados fixem o valor do ICMS ou que ele seja pago nas refinarias e não nos postos de gasolina (onde o valor é mais caro). “Os governadores ganham cada vez que sobe o preço [do combustível]. É injusto”, afirmou o presidente, que destacou o fechamento dos Estados para tentar conter a pandemia como outra das razões da crise econômica. “Sabemos agora que o preço do ‘fique em casa, a economia a gente vê depois, chegou’”, declarou, insistindo no discurso que o levou a CPI da Pandemia a imputar a ele a suspeita de nove crimes, incluindo contra a humanidade, pela gestão da crise sanitária que matou mais de 600.000 brasileiros.

Bolsonaro reafirmou a “total confiança” em Guedes para espantar rumores de troca na pasta. “Foi sensacional o trabalho dele em 2019 e melhor ainda em 2020″, disse, exagerando dados para ressaltar os feitos à da Economia. “Terminamos 2020 com mais carteira assinada do que em 2019 graças à equipe econômica”, destacou o presidente. Dados do IBGE mostram, no entanto, que o país terminou o ano de 2019 com 33,2 milhões de brasileiros com carteira assinada. No ano seguinte, esse número caiu para 30,6 milhões.

O ministro da Economia ressaltou que “o Brasil vai crescer mais de 5% neste ano”, apontando estimativa semelhante à feita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) —que, entretanto, pirou a projeção para o país em seu último relatório. “Essa história de que o Brasil não vai crescer é narrativa política”, disse. Guedes se empolgou no discurso contra adversários políticos. “Ele [Bolsonaro] é um político popular, mas não é populista. Tem muito político aí candidato à Presidência, falando [em auxílio de] 600, 700, 800 [reais]. Mas eles quebram o Brasil e não fizeram esse auxílio emergencial. Eles quebraram o Brasil e não tiveram coragem de taxar o super-ricos”. Omitiu, no entanto, que o auxílio emergencial da forma como foi aprovada é um plano do Congresso Nacional, e que o imposto para o super-ricos, uma demanda da sociedade civil, sequer foi mencionado em seu projeto de reforma tributária.

Além da expectativa sobre a reação do mercado às aparições e falas de Guedes e Bolsonaro desde sexta, esta semana começa com a espera do anúncio de novos nomes de auxiliares da Economia. Dos quatro cargos vagos em protesto contra o furo do teto de gastos, apenas dois tiveram os substitutos confirmados: o economista Paulo Valle, que será o novo secretário do Tesouro Nacional, e Esteves Colnago, novo secretário do Tesouro e Orçamento.

REGIANE OLIVEIRA e DANIELA MERCIER, de São Paulo para o EL PAÍS, em 24.10.21

Facebook exclui live em que Bolsonaro relaciona falsamente vacina a aids

Vídeo também foi excluído do Instagram. É a primeira vez que empresa suprime live do presidente. Declaração mentirosa com o objetivo de alimentar paranoia contra vacinas anticovid provocou repúdio de médicos e políticos.

Bolsonaro tem feito declarações contra vacinas desde o ano passado. Ele também se recusa a tomar qualquer imunizante contra a covid-19

O Facebook apagou na noite deste domingo (24/10) a última live semanal do presidente Jair Bolsonaro, transmitida na quinta-feira. O vídeo também foi excluído do Instagram, que pertence à empresa.

Em nota, o Facebook afirmou que as políticas da plataforma "não permitem alegações de que as vacinas de covid-19 matam ou podem causar danos graves às pessoas."

O motivo da exclusão foram declarações de Bolsonaro que associaram falsamente as vacinas contra covid-19 ao risco de desenvolver aids.

Esta foi a primeira vez que o Facebook excluiu uma live semanal de Bolsonaro.

Até o último fim de semana, a empresa só havia se limitado a apagar, em março de 2020, um vídeo em que Bolsonaro  aparecia afirmando falsamente que a cloroquina era uma "cura" contra a covid-19. YouTube e Twitter também já excluíram ao longo da pandemia vídeos em que o presidente aparecia fazendo declarações falsas.

No entanto, a live da última quinta ainda permanecia no YouTube na manhã desta segunda-feira.

Mentira sobre aids

No vídeo da última quinta-feira, Bolsonaro leu um texto afirmando que vacinados com as duas doses contra a covid-19 estariam desenvolvendo a "síndrome da imunodeficiência adquirida" - o nome oficial da aids - "mais rápido do que o previsto" e que tal conclusão era supostamente apoiada em "relatórios oficiais do governo do Reino Unido".

No entanto, não há estudos do governo do Reino Unido que mencionam tal risco. Entidades médicas e cientistas imediatamente desmentiram o presidente em redes sociais.

A notícia falsa citada por Bolsonaro foi publicada originalmente pelos sites Stylo Urbano e Coletividade Evolutiva, este último um site antivacinas que já veiculou fake news ao longo da pandemia. Os dois sites se basearam numa página em inglês conhecida por espalhar teorias conspiratórias.

O site Aos Fatos apontou que os textos divulgados por Stylo Urbano e Coletividade Evolutiva inseriram de maneira fraudulenta uma tabela que não existia em documentos oficiais das autoridades sanitárias do Reino Unido.

Bolsonaro parece ter se dado conta na live sobre o potencial de sanções das redes sociais e se limitou a ler apenas o título e recomendar aos espectadores a procurarem ler o material. "Não vou ler porque posso ter problemas com minha live."

Não é a primeira vez que Bolsonaro menciona estudos inexistentes para embasar sua agenda negacionista. 

Em fevereiro, ele mencionou um "estudo de uma universidade alemã" para afirmar que o uso de máscaras são "prejudiciais a crianças". No entanto, como a DW Brasil revelou, o tal "estudo" não passava de uma mera enquete online altamente distorcida. 

Da mesma forma, a notícia havia sido divulgada inicialmente por ativistas negacionistas antes de chegar ao presidente.

Bolsonaro tem feito declarações contra vacinas desde o ano passado. Num dos casos mais notórios, ele comemorou publicamente uma suspensão temporária de testes sobre a eficácia da Coronavac. Ele também continua se recusando a tomar qualquer vacina contra a covid-19. É o único líder de um país do G20 que ainda não o fez.

Repúdio

A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) foi um dos grupos que desmentiu a fala de Bolsonaro que associou vacinas à aids. Em nota, a entidade repudiou "toda e qualquer notícia falsa que circule e faça menção a esta associação inexistente". A nota foi endossada pela Associação Médica Brasileira (AMB).

No Twitter, a epidemiologista Denise Garrett, do Instituto de Vacinas Sabin (EUA), reiterou que nenhuma das vacinas para covid-19 aprovadas pela Food and Drug Administration (FDA) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) causam HIV. Ela também chamou Bolsonaro de "inescrupuloso", "mentiroso" e "criminoso".

A microbiologista Natalia Pasternak também usou o Twitter para afirmar que nenhuma vacina faz com que as pessoas desenvolvam aids.

Já o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) pediu à CPI da Pandemia que envie ao Supremo Tribunal Federal (STF) um requerimento com uma compilação das mentiras divulgadas por Bolsonaro na live semanal. O senador deseja que o documento seja anexado no inquérito das fake news que tramita no tribunal.

Já o relator da CPI da Pandemia, senador Renan Calheiros (MDB-AL), afirmou que Bolsonaro faz "terrorismo de Estado". "Isso não é apenas fake news, é mais do que uma simples mentira – isso é terrorismo de Estado. A Justiça precisa frear essa loucura", escreveu o senador no Twitter.

Na semana passada, o relatório da CPI da Pandemia imputou nove crimes a Bolsonaro, inclusive o de "incitação ao crime" por espalhar sistematicamente notícias falsas e incitar o desrespeito às medidas contra a pandemia. O relatório também apontou que Bolsonaro comanda uma rede de fake news com a participação de seus filhos e blogueiros bolsonaristas.

Deutsche Welle Brasil, em 25.10.21

Tripé ‘liberal’

A social-democracia empreendeu, no poder, medidas de cunho liberal, enquanto os ‘liberais’ atuais estão semostrando discípulos dos petistas.

O governo “liberal” de Bolsonaro inovou em seu liberalismo ao inventar um novo tripé: o bolsa eleitoral, dito “Auxílio Brasil”; o bolsa caminhoneiro, denominado por um de seus líderes de bolsa “esmola”; e o bolsa “Centrão, conhecido por emendas parlamentares dos mais diferentes tipos, além de cargos governamentais.

Tais iniciativas são todas paliativas, algumas tidas por temporárias, quando vieram para ficar, numa aparente obediência às regras legais e constitucionais; outras almejam a permanência do grupo no poder, tendo como objetivo assegurar a reeleição do atual presidente. O mesmo uso que se faz de ajuda aos pobres, embora necessária, encobre uma desmedida política, que não hesita diante de nada para alcançar as suas finalidades, a custo de produzir o desmoronamento fiscal, econômico e social do País. O que mais espanta é o desaparecimento de qualquer perspectiva de trabalho pelo bem comum, esquartejado nos interesses particulares e corporativos.

Evidentemente, os pobres devem ser ajudados. Trata-se de respeito moral com o próximo e obediência política à Constituição. Ocorre, porém, que tal argumento está sendo empregado para furar o teto da lei dos gastos públicos, como se essa infração fosse condição deste atendimento social. Atente-se para o fato de que o alvo do governo consiste em abrir a porteira para o estouro da boiada, pois, em ato imediatamente seguinte, o presidente anunciou que, com a folga obtida, criaria o bolsa esmola para os caminhoneiros e pagaria e ou aumentaria as emendas parlamentes. Ou seja, estabelece como regra a irresponsabilidade fiscal, hipoteca o futuro e aumenta a espiral dos juros e da inflação, com péssimas consequências para os investimentos privados nacionais e estrangeiros. Os mesmos pobres atendidos hoje pagarão por isso amanhã.

Acontece que o governo precisa seguir o seu novo tripé. Poderia, ao contrário do que faz, não dar mais nenhuma bolsa Centrão, transferindo estes recursos para os mais necessitados. Poderia reduzir os subsídios fiscais concedidos a vários setores empresariais; poderia reduzir o custo da máquina pública; poderia reduzir privilégios nos diferentes Poderes, alguns exorbitantes. Se assim o fizesse, estaria adotando uma posição liberal no verdadeiro sentido do termo. Contudo, optou por assassinar o liberalismo em nome da causa liberal!

O governo do ex-presidente Fernando Henrique, criticado por ser social-democrata e, nesse sentido, de “esquerda”, foi muito mais liberal do que o apregoado por seus detratores. Levou a cabo um impressionante e bem-sucedido programa de privatizações, reformando o Estado, algo que o atual governo foi incapaz de fazer. Elaborou um exitoso combate à inflação graças ao Plano Real, cujos alicerces estão sendo agora desmontados. Criou uma Lei de Responsabilidade Fiscal, complementada pela Lei do Teto de Gastos Públicos, de iniciativa do ex-presidente Michel Temer, algo que está sendo substituído pela irresponsabilidade fiscal.

A social-democracia empreendeu, no poder, medidas de cunho liberal, enquanto os “liberais” atuais estão se mostrando discípulos dos petistas. Não sem razão, o ex-presidente Lula está elogiando as iniciativas de ajuda aos pobres, não cansando de repetir que, caso eleito, não seguirá a responsabilidade fiscal e a Lei do Teto de Gastos Públicos. Isto é, as afinidades entre os petistas e os ditos “liberais” expõem um parentesco para além das clivagens tradicionais entre (extrema)direita e esquerda.

Com a mudança legal do indexador de cálculo da Lei do Teto de Gastos Públicos, uma artimanha jurídica para cobrir de legalidade uma atitude ilegal, o governo também se mostra um seguidor dos petistas, pois, na verdade, estamos diante de uma nova forma de “contabilidade criativa”. A da ex-presidente Dilma foi, em sua dimensão, menor do que a que está sendo atualmente implantada, e terminou pagando por isso. Os atuais detentores do poder, cientes disso, procuraram dar uma cobertura jurídica para evitar tal desenlace, o que não diminui a sua responsabilidade.

Eis por que o bolsa Centrão é tão importante. Graças a isso, o impeachment tem muito menos chance de prosperar, possibilitando que os recursos públicos sejam partidariamente, privadamente e corporativamente apropriados. Numa situação completamente atípica, o presidente perde o controle do Orçamento, contentando-se com discursos em todos os cantos do País como se não mais precisasse governar, procurando tão exclusivamente a sua própria reeleição.

O cenário é totalmente esquizofrênico na medida em que o País real, em suas necessidades e carências, encontra-se divorciado de sua classe política e das narrativas presidenciais, de nítido teor demagógico. Diz-se respeitar a lei numa flagrante violência da mesma, como se a irresponsabilidade fiscal tivesse mudado de nome. A perversão no uso das palavras é mais um indicativo do desmoronamento da moralidade pública e, sobretudo, de respeito para com o País.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Eio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.10.21

      


Perspectiva promissora para os partidos

Há 33 partidos registrados na Justiça Eleitoral. Mas têm surgido indícios de uma possível melhora da representação partidária, com a redução do número de legendas

No Brasil, ter um partido político foi sempre um bom negócio. Por diversos meios, o sistema político-eleitoral favoreceu ao longo do tempo a proliferação de legendas, num quadro de explícita disfuncionalidade. A alta fragmentação partidária continua existindo. Há 33 partidos políticos registrados na Justiça Eleitoral. No entanto, têm surgido indícios importantes de uma possível melhora da representação partidária, com a redução do número de legendas.

Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atualizou uma regulamentação de 2018 a respeito da criação, organização, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos. Além de fixar um procedimento comum para as novas solicitações de registro, a medida regula a situação de 67 legendas em processo de formação na Justiça Eleitoral que, depois de dois anos, ainda não obtiveram as assinaturas necessárias para sua formalização.

É muito oportuna a nova regulamentação. Dentro de um regime constitucional de pluripartidarismo, é importante que o procedimento para a criação de novos partidos tenha critérios bem definidos, em um marco jurídico objetivo e seguro. Ao mesmo tempo, impressiona a quantidade de partidos em formação sem nenhuma viabilidade jurídica. São quase sete dezenas de pedidos parados por falta de apoio popular. Com a nova resolução, o não cumprimento das condições resultará na desconsideração do pedido, o que contribui para um sistema mais razoável.

Outra mudança – essa de natureza constitucional – que, aos poucos, vai produzindo mais efeitos positivos é a cláusula de barreira, aprovada pela Emenda Constitucional (EC) 97/2017. Trata-se de importante medida saneadora, que introduz de forma gradual restrições a partidos políticos sem representatividade popular.

A cláusula de barreira foi aplicada pela primeira vez nas eleições de 2018. Os partidos políticos que não alcançaram nenhum dos dois patamares mínimos de voto – a obtenção de 1,5% dos votos válidos para deputado federal ou a eleição de nove deputados – deixaram de ter acesso, desde 2019, aos recursos do Fundo Partidário e à chamada propaganda gratuita no rádio e na televisão.

Nas eleições de 2018, 14 partidos não superaram a cláusula de barreira. No pleito do ano que vem, as exigências serão um pouco maiores. Para 2022, a EC 97/2017 estabelece, como critério mínimo para cada partido, a obtenção de 2% dos votos válidos para deputado federal ou a eleição de 11 deputados federais.

Por outras razões não ligadas diretamente à cláusula de barreira, mas que se alinham com o novo regime jurídico de mais restrições aos partidos, os diretórios nacionais do DEM e do PSL aprovaram no início de outubro a fusão das duas legendas. Com o nome de União Brasil, o novo partido terá 82 deputados federais e 8 senadores.

Esse movimento do DEM e PSL, criando a maior bancada da Câmara, contribuiu para que outras legendas negociassem possíveis fusões. Além de conveniência política, outros partidos conversam com seus pares por uma razão de sobrevivência. A cláusula de barreira segue vigente.

Outra novidade que pode favorecer um cenário de menor fragmentação é a criação, por meio da recente Lei 14.208/21, da figura das federações partidárias. Sob essa modalidade de convênio, os partidos podem se unir para a disputa das eleições, passando a atuar como uma só legenda.

Ainda que seja uma medida de escape da cláusula de barreira, a nova lei fixa requisitos que podem contribuir para uma maior funcionalidade do quadro partidário. A federação partidária deve ter abrangência nacional e duração mínima de quatro anos, podendo ser constituída apenas até a data das convenções partidárias. Ou seja, não será tábua de salvação para partidos sem voto que não se uniram antes das eleições.

O cenário é novo, e muito dele ainda está no plano das possibilidades. De toda forma, em comparação ao anterior, é inegavelmente positivo. Merece, portanto, aplauso o Congresso que, apesar das pressões, manteve a cláusula de barreira. Sem ela, nada disso seria possível.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 25 de outubro de 2021 

Brasil deve reduzir desmatamento a nível de 10 anos atrás para atrair investidor, diz Joaquim Levy

Para Levy, a discussão não é sobre a regra fiscal, mas sobre como se tenta fazer mudanças duras nos ramos do país sem informar e conscientizar a população de seus objetivos finais. Segundo ele, os políticos brasileiros ainda não entenderam que "o povo não gosta de populista, o povo gosta de ver os resultados".

Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda, hoje integra o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (BBC News Brasil)

O ex-ministro da Fazenda, ex-presidente do BNDES e ex-secretário do Tesouro Nacional Joaquim Levy se entusiasma ao falar da floração de ipês e das espécies da Mata Atlântica que aparecem em seu fundo de tela enquanto dá entrevista via zoom à BBC News Brasil.

Nos últimos tempos, Levy tem se dedicado a estudar um tipo específico de mercado — o de carbono — e vê no Brasil condições de "caminhar rapidamente para uma economia de emissões zero com grandes benefícios", em linha com a urgência que o tema do aquecimento global tem despertado entre os líderes ocidentais.

A menos de uma semana do início da COP-26, a Conferência do Clima da ONU que acontece em Glasgow, na Escócia, com a missão de ser mais relevante para o planeta do que as resoluções do Acordo de Paris, há seis anos, Levy afirma que o empresariado brasileiro chegará ao encontro com ambições mais verdes e maiores do que o próprio governo, tendência que ele identifica também em outros países.

Levy integra o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS, uma associação civil sem fins lucrativos fundada por grandes empresários brasileiros inspirados nas discussões da Cúpula do Rio 1992) e tem viajado o país para verificar in loco iniciativas empresarias verdes, como as da chamada agricultura de baixo carbono.

Embora tenha deixado o governo Bolsonaro em julho de 2019 em um episódio tumultuado — Levy pediu as contas da chefia do BNDES depois de declaração do presidente de que sua cabeça estava "a prêmio" — ele não demonstra rancor nas moduladas críticas à atuação da atual administração.

De modo propositivo, diz que investidores internacionais estão atentos a métricas e a fim de atrai-los, seria importante para o Brasil trazer os níveis de desmatamento na Amazônia para os valores medidos em 2012, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) aferiu cerca de 4,5 mil quilômetros quadrados de floresta desmatada.

Em 2019 e 2020, o número encostou nos 11 mil quilômetros quadrados de perdas e atraiu intensas críticas internacionais e questionamentos à política ambiental de Jair Bolsonaro, que paralisou demarcações de terras indígenas e de reservas ambientais.

"Eu acho que toda política tem um ritmo de altos e baixos, isso é natural numa democracia. Evidentemente todo mundo vai aplaudir — ou muita gente vai aplaudir — se o Governo Federal vier a tomar alguma decisão de colocar terras em proteção ambiental", diz Levy.

Defensor histórico da austeridade fiscal e egresso da mesma Escola de Chicago que formou o ministro da economia Paulo Guedes, Levy também evitou dizer se o movimento feito pelo presidente Bolsonaro — de furar o teto de gastos para vitaminar o Bolsa Família e rebatizá-lo como Auxílio Brasil há menos de um ano da eleição — poderia ser definido como "pedalada fiscal", como disseram alguns de seus colegas, entre os quais o economista Edmar Bacha. "Eu não sei te dizer até porque eu nunca consegui apreender plenamente o que é o sentido de pedalada", disse Levy. Para ele, termos como "pedalada" ou "liberalismo" e "neoliberalismo" são "rótulos" que levam à perda de foco no debate público.

Levy, no entanto, afirmou que programas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, funcionam porque "são desenhados com bases racionais, não são de curto prazo, não são para ganhar uma eleição". "Eu acho que uma lição importante no Brasil é que políticas mais personalistas ou clientelistas tipicamente são menos eficientes", disse.

Ex-ministro aponta que para atrair investidores internacionais seria importante para o Brasil trazer os níveis de desmatamento na Amazônia para os valores medidos em 2012. (GreenPeace Photo/ Daniel Beltra)

E embora defendesse que um aumento de 30% do benefício pudesse ter sido feito por decreto e sem gerar mal estar no mercado — que teve na semana passada seu pior período desde o início da pandemia — enquanto que o aumento de 100% pedido por Bolsonaro forçou ao rompimento do teto, Levy ecoou as explicações de Guedes sobre a manobra ao dizer que "a nossa situação é relativamente positiva no curto prazo fiscalmente, as receitas vão boas. Nesse sentido, dado que ainda têm populações que estão em dificuldades, a gente deve tentar atendê-las? Sim. Se é em cima do teto, fora do teto, eu não sei".

Para Levy, a discussão não é sobre a regra fiscal, mas sobre como se tenta fazer mudanças duras nos ramos do país sem informar e conscientizar a população de seus objetivos finais. Segundo ele, os políticos brasileiros ainda não entenderam que "o povo não gosta de populista, o povo gosta de ver os resultados".

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Levy à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza.

Nos últimos tempos, Levy tem se dedicado a estudar um tipo específico de mercado - o de carbono - e vê no Brasil condições de " caminhar rapidamente para uma economia de emissões zero com grandes benefícios" (BBC News)

BBC News Brasil - Parece existir uma mudança forte de mentalidade globalmente em relação à necessidade de combater as mudanças climáticas. Enquanto isso, nos últimos três anos o Brasil chegou a negar o problema e tem sido acusado de fazer pouco, especialmente em relação ao desmatamento. O Brasil está perdendo o bonde da história?

Joaquim Levy - A questão climática é existencial, as evidências disso vêm se acumulando. O que chama atenção aqui e ao redor do mundo é que nós vemos a sociedade, o setor privado e as empresas, às vezes, com uma ambição e uma atividade mais intensa do que os próprios governos (para combater o aquecimento global).

Então, por exemplo, na Europa você tem um mercado regulado de carbono. Nos Estados Unidos, não tem, mas por outro lado, você tem muitas empresas que estão procurando se posicionar no mercado voluntário, se comprometendo com metas de descarbonificação, etc.

No Brasil também é bem claro que muitas empresas têm andado mais rápido do que o governo e o ambiente político como um todo. Eu acho isso muito positivo. Inclusive, em Glasgow, a gente deve ter um contingente muito forte de empresas brasileiras comprometidas com o meio ambiente. O Brasil é um país é muito diversificado mas tem um movimento cada vez mais forte da atenção ambiental inclusive no agronegócio, onde existem algumas clivagens ainda, a gente não deve esconder as coisas como são, mas há grupos bastante fortes no agronegócio que estão bem conscientes da importância climática e também da importância da proteção de Amazônia.

BBC News Brasil - Essa movimentação do empresariado brasileiro, inclusive em Glasgow, é uma preocupação com possíveis sanções internacionais aos produtos do Brasil?

Levy - As empresas brasileiras, principalmente o setor mais exposto ao comércio internacional, entende as expectativas dos nossos parceiros e dos nossos investidores, além das demandas internas que existem para a conservação da Floresta Amazônica e de novas técnicas de agricultura de baixo carbono. O setor agropecuário tem se manifestado de uma maneira cada vez mais atenta e criando programas que talvez há quatro, cinco anos atrás ninguém pensasse que seria possível. A gente encontra parcerias com governos subnacionais para fazer rastreamento de animais, ter certeza que a carne brasileira não está maculada pelo desmatamento.

Às vezes não é fácil fazer isso, tem que ter muita persistência, mas as empresas estão fazendo isso e nós temos governos (estaduais) que estão cooperando, inclusive porque aqui no Brasil a gente tem ferramentas que permitem muita coisa. É óbvio que um animal que é exportado, ele é controlado, ele tem guias de saúde, de transporte. Então você tem que incorporar isso também para ter certeza que não tem nenhuma violação das leis de desmatamento do Brasil.

Embora tenha deixado o governo Bolsonaro em julho de 2019 em um episódio tumultuado, Levy não demonstra rancor nas moduladas críticas à atuação da atual administração. (AFP)

BBC News Brasil - Recentemente, a BBC News Brasil noticiou que o Congresso dos EUA debate um projeto de lei pra proibir importação de carne bovina que possa ter passado por área de desmatamento, o que afetaria o Brasil. A Europa trabalha com o mesmo arcabouço legal. Há uma percepção de que o risco de sanção é alto?

Levy - Todo importador gosta de transparência. Então é evidente que, às vezes, quando você não tem fluxo de informação que reflita a própria realidade, você às vezes tem essas ações. Mas o objetivo do Brasil é ter uma produção que tenha conformidade com os padrões. E aí cada país tem o direito de impor um padrão na sua importação que achar conveniente. A gente não deve esperar histerismo, acho que tem que ter um certo cuidado.

BBC News Brasil - O Itamaraty tem reconhecido que o Brasil tem um problema de imagem internacional negativa no aspecto ambiental. E parece haver uma preocupação de que isso esteja afugentando os investidores. O senhor vê desconfiança dos investidores em relação ao Brasil?

Levy - Eu acho que os investidores têm dado certas indicações do que lhes daria maior conforto (em investir no Brasil). Quem é investidor gosta de métrica, e existem algumas que são bem precisas.

Por exemplo, tem uma variável bastante conhecida que é a área desmatada por ano no Brasil. Essa área aumentou. É óbvio que isso cria um desconforto e alguns investidores dizem 'bom, olha, eu acho ótimo ter todos os esforços (anunciados de combate ao desmatamento), mas a gente precisa ver resultados'.

E eu acho que nessas coisas a gente tem que ter uma diplomacia de resultados. Será importante para o Brasil voltar a baixar os níveis de desmatamento pelo menos para o patamar que já tivemos há dez ou oito anos atrás, quando tínhamos um desmatamento de quatro mil quilômetros quadrados por ano, que já é bastante, mas dada a Amazônia, é um número mais razoável. Ou seja, (bem abaixo do) número de 10 ou 11 mil quilômetros quadrados atuais. Eu tenho o entendimento que o próprio governo está tentando reduzir, a questão é com que intensidade essa redução vai ser alcançada pra gente atender às expectativas internas e externas. Esse é o desafio que se coloca.

Há um entendimento hoje bem espalhado de que você pode aumentar a produção tanto de carne quanto de grãos sem nenhum desmatamento, meramente intensificando a produção da carne, integrando a produção da carne com a produção de grãos, fazendo a rotação de áreas, que são atividades que na verdade são lucrativas e sustentáveis, acumulam carbono no solo e evitam o desmatamento.

BBC News Brasil - Dada a percepção de que não é preciso desmatar para produzir mais e melhor, a quem interessa e como a gente pode explicar o alto nível de desmatamento atual?

Levy - Esse desmatamento é ilegal e (para combater) tem que fazer um esforço. Num certo momento, perdeu-se um pouco o ritmo desse esforço para coibir os desmatamentos ilegais e a venda de produtos de áreas desmatadas. Há mais de dez anos a gente tem aquele acordo, a moratória da soja (compromisso entre agricultores, ambientalistas e o governo que proíbe compra da soja plantada em área desmatada), que tem se mostrado muito efetiva e não tem atrapalhado o crescimento do Brasil. O Brasil tem produzido mais soja sem desmatar na Amazônia, tem dez anos que isso funciona.

BBC News Brasil - Seria a hora de uma moratória da carne?

Levy - Ela já está acontecendo. Aí também tem uma diferença entre grandes e pequenos produtores. Às vezes, o pequeno produtor faz caminhos mais informais em que esse controle é menor, mas na medida em que os Estados também já estão se aparelhando para fazer esse tipo de monitoramento, isso está começando a evoluir.

E outro ponto importante é a questão fundiária, porque às vezes a pessoa desmata nem mesmo para produzir carne. Ela ocupa a terra com a pecuária mas o objetivo final dela é eventualmente vir a se candidatar a regularizar uma terra que ela vem ocupando de uma maneira ilegal.

Aí também há uma série de mecanismos que estão começando a ser postos em prática, inclusive com a designação de algumas áreas públicas como reserva legal. Semana passada, aliás, o estado do Pará, por exemplo, designou uma nova reserva de conservação, a São Benedito (o Refúgio de Vida Silvestre dos Rios São Benedito e Azul, nos municípios de Jacareacanga e Novo Progresso) e com isso fica muito claro que aquela não é uma terra vazia, uma terra que está ali para ser ocupada, para quem chegar, pegar.

"Em relação ao desmatamento, qualquer trajetória (de redução) é bem-vinda", afirma (Fábio Rodrigues Pozzebom, Ag. Brasil).

BBC News Brasil - O senhor citou exemplos de políticas estaduais. No âmbito federal, o governo paralisou a demarcação de terras indígenas e de reservas ambientais. É uma decisão equivocada?

Levy - Eu acho que toda política tem um ritmo de altos e baixos, isso é natural numa democracia. Evidentemente todo mundo vai aplaudir se o governo federal — ou muita gente vai aplaudir — se o Governo Federal vier a tomar alguma decisão de colocar terras em proteção ambiental.

Mas eu acho que não existe uma só solução para esse problema e se tivermos sucesso nesse novo movimento de intensificação de uso e melhoria dos pastos, a gente chegará a um novo patamar. Até porque o objetivo no médio prazo tem que ser você diminuir drasticamente as emissões de metano ou compensá-las com acúmulo de carbono no solo. Então, se você tem uma intensificação das pastagens que permite liberar áreas para regeneração natural assistida, quando você faz um balanço (de impacto climático) de uma fazenda você começa a ter uma situação muito mais estável pelo menos por 20 ou 30 anos, o período mais crítico para a gente chegar a uma economia de emissões zero, o que permite à pecuária ficar muito mais sustentável. Isso é o que a Austrália e outros países vêm defendendo, o problema da pecuária não é único no Brasil.

BBC News Brasil - O que o Brasil deveria apresentar na COP em termos de métricas?

Levy - Em relação ao desmatamento, qualquer trajetória (de redução) é bem-vinda. A trajetória é o que todo mundo gosta. Quando trabalhei tanto no governo quanto no Banco Mundial ou em empresas privadas, a gente sempre queria ter trajetórias (para apresentar), que dá para os investidores um guia, um senso de localização. Então a meta às vezes a gente consegue alcançar, às vezes fica um pouquinho atrás mas é uma demonstração de que a gente está destinando os nossos esforços num dado caminho. Então acho que qualquer sinalização nesse sentido sempre é muito positiva.

BBC News Brasil - O ministro Paulo Guedes anunciou um investimento em torno de US$ 2 bilhões para impulsionar o crescimento verde. É o que outras economias desse tamanho têm feito?

Levy - Não sei exatamente o que o mundo está fazendo. Existe um problema de falta de comparabilidade de métricas. O que eu posso dizer é que no Brasil, tenho feito uns tantos estudos, a gente tem como caminhar rapidamente para uma economia de emissões zero com grandes benefícios.

No Brasil, a gente pode ser mais ambicioso em relação à eletrificação. Se você reparar já tem alguns investidores estrangeiros que querem aproveitar a nossa capacidade de geração elétrica sustentável ou renovável até para produzir hidrogênio, para exportar hidrogênio. A gente conseguiria fazer uma eletrificação da nossa frota de automóveis com bastante conforto porque o potencial de geração eólica e solar é da ordem de quatro a cinco vezes o que a gente tem hoje de capacidade instalada.

A economia brasileira hoje já é talvez a economia com a pegada de carbono mais baixa do mundo se você considerar emissões fósseis por população ou por PIB. O que a gente tem que fazer é obviamente aproveitar essa vantagem competitiva para investir, criar emprego. A mensagem de todos os empresários que estão aí é: 'vamos focar no que a gente tem que fazer e desenvolver as coisas em que a gente pode liderar'.

Nós temos vantagens em muitos setores, alguns até não muito reconhecidos. Ao redor do mundo tem um pouco de incompreensão em relação ao etanol, mas o etanol é positivo e não vai ficar preso ao motor de combustão interna, não. Já está havendo investimento e discussão de parceiros estrangeiros para usar o etanol no motor elétrico. Você transforma etanol em hidrogênio, depois usa a célula do motor elétrico inclusive de uma maneira muito mais eficiente do que você produzir e tentar transportar hidrogênio que é muito difícil.

BBC News Brasil - O senhor foi um dos maiores defensores de redução dos gastos públicos no país e apanhou muito por causa disso. Como o senhor vê agora essa perspectiva da mudança da regra para furar o teto?

Levy - A preocupação do mercado se justifica porque muitas regras foram sendo mudadas e, às vezes, é difícil de entender quais as prioridades que estão ali.

A questão fiscal tem que ser sempre entendida no seu conjunto. Não adianta eu querer mudar uma regra depois querer mudar outra. Isso só cria incerteza, então a situação do Brasil eu acho que a gente vai ter que pensar o que a gente quer como proposta fiscal, olhando para frente. Nós temos alguns elementos que são robustos mas flexíveis como, por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal, em que você procura um equilíbrio entre receitas e despesas de tal maneira que a dívida não cresça excessivamente.

De modo mais geral, precisa de duas coisas. Primeiro, uma priorização de gastos para melhora da qualidade de gasto, maior transparência de gastos. Isso você consegue com programas bem desenhados. Eu acho que uma lição importante no Brasil é que políticas mais personalistas ou clientelistas tipicamente são menos eficientes.

Então, por exemplo, se você quer proteger uma cidadezinha num estado pobre, não é mandando dinheiro pra lá ou fazendo uma obrinha aqui, uma obra acolá que você faz isso. Nossa experiência nos últimos anos mostra que é desenvolvendo projetos que são sistemáticos, que tem governança e que acabam sendo inclusive sustentáveis. Aqui no Brasil, como que a gente enfrentou momentos de dificuldades? A gente tem o sistema do SUS, você tem o médico da família, todas essas coisas são absolutamente impessoais e é bom porque muda de um governo para o outro mas aquilo continua funcionando.

Então acho que toda a discussão fiscal tem que ser vista com quais os objetivos do governo, que tipo de mecanismo eu quero ter para garantir essa isonomia, essa impessoalidade, essa continuidade das ações. Então, talvez parte da preocupação do mercado hoje é entender se isto continua sendo a regra, essa racionalidade em que o Brasil avançou bastante nos últimos anos, se nós vamos continuar a ter isso. Porque essa é a única maneira de você, com os recursos que você dispõe, você conseguir realmente entregar as coisas e começar a melhorar a vida das pessoas.

O melhor exemplo é o Bolsa Família. O Bolsa Família custa 0,5% do PIB, afeta a vida de 50 milhões de pessoas,tem participação em todos os municípios, e quase 70% das pessoas que já passaram pelo Bolsa Família saíram do Bolsa Família, encontraram emprego, estão trabalhando. Por quê? Porque é uma política desenhada com bases sólidas, com bases racionais, não é de curto prazo, não é para ganhar uma eleição.

Levy diz que programas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, funcionam porque "são desenhados com bases racionais, não são de curto prazo, não são para ganhar uma eleição" (Jefferson Rudy / Ag. Senado)

Continuar nesse caminho é muito importante. Em última instância, é isso que também dá tranquilidade até ao próprio mercado, porque tem certeza que a gente tem programas bem estabelecidos, programas que são perenes. Isso significa que a gente vai continuar melhorando (o social) sem ter choques no orçamento. Então acho que a discussão do teto tem que ser feita dentro de quais os objetivos das políticas sociais, quanto vai requerer de dinheiro e qual é a nossa estratégia tributária de tal maneira que o que eu vou estabelecer realmente me garanta esse equilíbrio fiscal de médio prazo.

BBC News Brasil - O ministro Paulo Guedes defendeu que a mudança para acomodar esses mais de R$ 80 bilhões de gastos adicionais não altera os fundamentos fiscais da economia política brasileira. O senhor concorda com essa avaliação?

Levy - Nós estamos vivendo um bom momento de arrecadação, em parte por conta da surpresa inflacionária e em parte por causa do impulso fiscal que foi dado no ano passado, de um trilhão de reais que foi gasto. Parte desse dinheiro virou lucro das empresas, parte foi usado para as pessoas comerem, talvez algo foi poupado, mas aquilo que ajudou a retomar a economia foi essa política keynesiana. Como toda política keynesiana, se você tem espaço, a atividade produtiva cresce, se você não tem espaço, ela vira inflação. Esse dinheiro está voltando também para os cofres do governo em forma de arrecadação. E isso significa que a gente está em uma circunstância fiscal bastante favorável por uma série de coincidências.

Você tem um perigo iminente? Não, porque a economia mostra resiliência. Nós também tivemos dois anos do setor externo extremamente favoráveis, aumento do valor das exportações de dezenas de bilhões de dólares. Então a nossa situação é relativamente positiva no curto prazo fiscalmente, as receitas vão boas.

Nesse sentido, dado que ainda têm populações que estão em dificuldades, a gente deve tentar atendê-las? Sim. Se é em cima do teto, fora do teto, eu não sei. Eu tenho chamado a atenção de que o governo poderia dar um aumento de 30% no Bolsa-Família sem dificuldade nenhuma, até por decreto, e que de certo modo foi o que acabou sendo feito na primeira parte do aumento (20% de reajuste anunciados na semana passada pelo ministro João Roma). Então estaria absolutamente dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal e preservaria o poder de compra dos benefícios.

BBC News Brasil - Por decreto seria se fossem os 30% de aumento, né? Mas o benefício praticamente dobrou de valor. É justificável um aumento dessa monta?

Levy - Eu não vi nenhum estudo, então não sei te dizer e eu tenho dificuldade de fazer um achismo. Acho que sempre tudo que a gente pode dar para as pessoas que estão em dificuldade, há mérito nisso. Agora eu não vi nenhum estudo que indicasse que o valor devesse ser x ou y. Então eu não tenho como dizer se é certo, se é muito, se é pouco. As coisas têm que ser feitas lastreadas em estudos. A legislação prevê pelo menos a manutenção do poder de compra, agora se há uma situação no mercado de trabalho que suscite você fazer uma outra coisa, aí é só uma questão de demonstrar, apresentar direitinho e tomar as decisões cabíveis.

Em junho de 2019, o economista pediu demissão da presidência do BNDES após Bolsonaro declarar que sua cabeça estava 'a prêmio' (Reuters)

BBC News Brasil - Waiver "extra-teto" foi o termo usado por Guedes para classificar o estouro do teto. Waiver extra-teto pode ser classificado como "pedalada fiscal"?

Levy - Eu não sei te dizer até porque eu nunca consegui apreender plenamente o que é o sentido de pedalada. Então eu acho que fica um pouquinho naquela categoria dos rótulos que a gente não sabe muito bem o que quer dizer.

BBC News Brasil - E no entanto foi essa a justificativa para o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Levy - E eu não sei exatamente. Acho que o cumprimento das regras é muito importante mas a gente tem que ter cuidado de não usar rótulos para isso e para aquilo porque senão o debate acaba perdendo um pouquinho de foco.

BBC News Brasil - Como o senhor espera que vá reagir a economia brasileira diante do aumento dos gastos públicos, inflação em alta e aumento nos juros? Há risco de recessão no ano que vem?

Levy - Nós estamos projetando algo na faixa de 1% de crescimento para o ano que vem e um crescimento relativamente modesto, mas acho que todas as economias mundiais vão ter um pouquinho de ressaca o ano que vem. Esperamos que a gente supere as dúvidas e incertezas fiscais porque eu acho que isso é fundamental para você ter decisões de investimento e com isso acelerar a recuperação do emprego. Hoje o principal é acalmar um pouco o jogo, realmente resolver essa questão mais premente do Bolsa Família, dar garantia às famílias mais vulneráveis no tamanho que for. E com isso criar um ambiente favorável ao investimento privado para manter uma taxa de crescimento. E com maior tranquilidade, mais confiança, o próprio dólar recua, o real também se aprecia, e diminui um pouquinho a pressão sobre os preços.

BBC News Brasil - A sua experiência no governo e a trajetória do ministro Guedes, que chegou com uma postura muito liberal e agora tem feito inúmeros concessões contra essa agenda, sugerem que é muito difícil cortar gastos no Brasil. Por que afinal é tão difícil cortar gastos no Brasil?

Levy - Quando se pensa em reforma administrativa é muito importante pensar o seguinte: qualquer empresa, antes de querer demitir todo mundo, precisa explicar o que essa empresa quer fazer, qual é o serviço que eu quero entregar. E aí com todos o avanço tecnológico que tem hoje você começa a desenhar qual é o quadro de funcionários que você precisa para entregar esse serviço. A verdadeira reforma administrativa tem que estar olhando para essas coisas, tem que estar atenta para cortar excessos, abusos, mas principalmente repensar o Estado que eu quero daqui a cinco, dez ou 15 anos. Não precisa virar uma Estônia, mas você pode dar uma modernizada.

Tem um trabalho sério para ser feito em relação a isso, e portanto, acho que a questão de se consigo ou não consigo cortar o gasto tem muito a ver com onde quero chegar. A minha experiência de gestor tanto público quanto privado é que é muito mais fácil você tomar decisões duras quando as pessoas sabem porque, não só porque vai ter um terremoto, mas é dizer 'olha, este aqui é o caminho para chegar lá e outras opções estão sendo abertas'. A experiência de você diminuir os gastos fiscais e com isso abrir espaço com taxas de juro menores, a gente experimentou um pouquinho disso, e começou a ver IPOs, uma porção de coisas, e isso pode realmente redesenhar a economia brasileira, e realmente democratizar o empreendedorismo.

Mas para isso eu tenho que ter uma estratégia: a discussão fiscal tem que estar dentro desse escopo de onde eu quero ir. E aí os instrumentos para chegar lá ficam muito mais claros. O (linguista e filósofo de esquerda Noam) Chomsky e tantos outros dizem que a democracia é aquela em que você tem que persuadir as pessoas. Então, com técnica e com um pouquinho de arte, você tem que persuadir que o caminho é diminuir os gastos e isso vai te permitir baixar a taxa de juros, vai permitir que mais pessoas tomem dinheiro emprestado, que mais empresas cresçam ou contratem. E você vai ter uma economia mais saudável.

BBC News Brasil - Então o problema não é fiscal, é um problema de comunicação? O senhor diria que é um problema de informar a população?

Levy - Informar é a primeira etapa, a pessoa tem que incorporar, ela tem que entender, tem que acreditar. Ela tem que ver que é isso mesmo. Uma coisa que eu já vi muitas vezes acontecer é o seguinte - e isso às vezes escapa aos políticos - o povo não é bobo. Então a gente já viu o que o povo entende quando às vezes uma coisa um pouco mais dura mas se ele está vendo que aquilo é um movimento legítimo e ele entende o que resulta dali, há aceitação para isso. Mas você tem que ser absolutamente genuíno. Você tem que sim fazer um esforço de comunicação, porque às vezes as coisas são complexas, as ligações são complexas. Você tem que ter confiança que as pessoas vão entender. A ideia de que 'não a pessoa não vai entender o povo, o povo gosta de populista'. O povo não gosta de populista, o povo gosta de ver os resultados. E quanto mais quieto, melhor. Então, esse é o trabalho democrático. Não é fácil agora como era fácil na época de Abraham Lincoln. Mas essa é a graça da democracia.

BBC News Brasil - O senhor acha então que o problema está em como se faz política no Brasil, há uma incompreensão… (interrompe)

Levy - No Brasil e no mundo todo. Esse é o desafio. O povo entende sim! Dá trabalho, não vai cair do céu, desejar que tudo esteja em condições ideais não faz sentido ter que lutar a gente tem que lutar pelo que acredita, se a gente acredita em democracia, você acredita num governo que funciona por métodos e por objetivos, por ambições compartilhadas, e para isso existe eleição, então vamos trabalhar para isso.

BBC News Brasil - O senhor vê semelhanças entre o senhor e o ministro Paulo Guedes?

Levy - Há indicações fortes que ambos estiveram em Chicago (risos), certamente há algo aí.

 - Justamente por isso te pergunto, os senhores sempre foram tomados como grandes liberais. Faz sentido ainda pensar a partir dessas noções de liberalismo e neoliberalismo?

Levy - Colocar rótulo, em geral, não funciona muito bem. Eu acho que tem duas coisas que são ingredientes fundamentais para o crescimento econômico: de um lado, a gente ter esse aspecto social, porque eu preciso de todo mundo no Brasil, a gente não vai nunca conseguir ser um país (desenvolvido) se só tiver metade da população e a outra metade não tiver com capacidade, educada. Então é obrigação de cada um de nós lutar para isso.

O outro lado é o seguinte: a gente sabe que você ter liberdade de empreender, de você ter empresas, aqui no Brasil as empresas têm uma certa liberdade. É complicado, tem imposto, tem isso, tem aquilo, mas não tem controle político das empresas, cada um faz o que bem entende, eu quero para abrir um negócio, eu abro o negócio e estamos entendidos. Lógico, tem regras, mas não tem que pedir favor a ninguém, não tem que pedir autorização que não aquelas previstas por lei. Então esses dois componentes são componentes que a gente precisa para o crescimento.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washington, DC, para aBBC News Brasil, em 25.10.21.

Um Poeta

 Bonfim Tobias


 LIBERTAS QUAE SERA TAMEN


A consciência de muitos semi-morta,

Meticulosamente amortalhada,

É punhal cego, é faca que não corta,

É vontade perdida, confinada!


Em milhões e milhões a fome brota

Como praga nos campos espalhada,

Futuro que a descrença fecha a porta,

Desejo e alegria escorraçadas!


Nossa terra de opaca ilusão,

Estátua fria, inerte coração,

Perdida no caminho ladro imundo!


Mas chegará um dia que este povo

Os cegos olhos abrirá de novo,

Vendo o Brasil um esmoler no Mundo!…