segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Acuado, Bolsonaro exibe Guedes e resgata tema da privatização da Petrobras para tentar acalmar o mercado

Após alta do dólar e demissões, mandatário aparece com ministro em pleno domingo para argumentar que o furo do teto de gastos não altera a política de austeridade. Semana começa com incerteza sobre a reação dos investidores e expectativa de anúncios de novos nomes da Economia


Bolsonaro e Guedes durante coletiva de imprensa na sexta-feira. (Ueslei Marcelino / Reuters)

Antecipando mais uma semana que promete ser de pressão do mercado, o presidente Jair Bolsonaro saiu às ruas em pleno domingo ao lado do ministro da Economia, Paulo Guedes, para tentar contornar a mais recente crise gerada pelo anúncio de que o Governo federal vai furar o teto de gastos. Dois dias depois de virem a público negar rumores de queda do ministro, o presidente e seu auxiliar voltaram a defender a medida como forma de subsidiar o programa Auxílio Brasil, que substituirá o Bolsa Família, e ajudar caminhoneiros diante da alta dos preços —uma justificativa eleitoreira que levou à demissão de quatro nomes importantes da pasta e ainda fez com que o dólar disparasse na sexta-feira.

Em conversa com jornalistas em Brasília, Guedes tirou da manga a proposta de privatização da Petrobras. Segundo o ministro, a petroleira deveria seguir o mesmo caminho da Eletrobras e dos Correios, que estão sendo desestatizados em dois processos, porém, muito criticados por economistas e analistas do mercado financeiros. “Só o BNDES tem uma fortuna, bilhões e bilhões em ações da Petrobras. Se formos para o Novo Mercado [segmento nobre da Bolsa, onde estão as empresas com alta governança corporativa], criamos entre 100 e 150 bilhões [de reais] de riqueza para os brasileiros. Vamos usar esse dinheiro para ajudar os mais frágeis”, defendeu Guedes.

O ministro tentou mais uma vez argumentar que a quebra do pacto fiscal não altera a agenda econômica que defendeu na campanha que levou Bolsonaro a ser eleito em 2018. “Eu sou um defensor do teto, eu vou continuar defendendo o teto, eu defendo as privatizações”, afirmou, dizendo que o Governo precisa “flexibilizar um pouco” para “atender a população mais vulnerável”. Em clima eleitoral, atribuiu ao Senado a culpa pela falta de recursos para ampliar os programas sociais, uma vez que esse dinheiro deveria vir da reforma tributária do imposto de renda. A medida, aprovada na Câmara do aliado Arthur Lira (PP-AL), encontrou uma barreira na Casa comandada por Rodrigo Pacheco (MG), que acaba de se filiar ao PSD de olho em 2022 e que nos últimos meses engrossou o coro contra ataques de Bolsonaro contra o sistema de votação e a democracia.

Por sua vez, Bolsonaro afirmou que não tem responsabilidade pelo avanço dos preços dos combustíveis e ainda alertou que novas altas virão nesta semana. “Teremos aí, ao que tudo indica, reajuste nos combustíveis. Não precisa ter bola de cristal nem informação privilegiada. É só ver o preço do barril de petróleo lá fora e o comportamento do dólar aqui dentro”, disse aos jornalistas, logo após afirmar que não vai interferir no preço dos combustíveis. “Isso já foi feito no passado e não deu certo.”

Bolsonaro afirmou que apenas a Petrobras tem condições de mexer no preço e como se trata de um “monopólio”, a empresa é “praticamente independente”. “Eu indico o presidente [da estatal]. Nada além disso”, afirmou. Em fevereiro deste ano, o mandatário colocou o general Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa, no lugar de Roberto Castello Branco no comando da Petrobras, argumentando que “jamais” iria intervir na empresa e em sua política de preços, mas que o povo não podia “ser surpreendido com certos reajustes”. Depois, mudou o discurso: “É para interferir mesmo, eu sou o presidente”, disse em maio.

Desde então, o consumidor continuou sendo surpreendido com a alta dos preços nos combustíveis. Na semana passada, dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) mostraram que o valor do litro da gasolina comum avançou 0,6% para 6,361 reais, em relação à semana anterior. Diesel e etanol também subiram. O preço máximo da gasolina chegou a 7,469 reais. Desde janeiro, a gasolina comum já acumula uma alta média 35,5%.

Bolsonaro culpa o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), um tributo estadual que incide sobre os combustíveis, pela alta. E ressalta que há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão dos Estados esperando ser julgada no Supremo Tribunal Federal. “O Governo federal mantém os impostos [PIS/Cofins] congelados desde 2019, o que não acontece com o ICMS”, afirma. A equipe econômica de Bolsonaro defende que os Estados fixem o valor do ICMS ou que ele seja pago nas refinarias e não nos postos de gasolina (onde o valor é mais caro). “Os governadores ganham cada vez que sobe o preço [do combustível]. É injusto”, afirmou o presidente, que destacou o fechamento dos Estados para tentar conter a pandemia como outra das razões da crise econômica. “Sabemos agora que o preço do ‘fique em casa, a economia a gente vê depois, chegou’”, declarou, insistindo no discurso que o levou a CPI da Pandemia a imputar a ele a suspeita de nove crimes, incluindo contra a humanidade, pela gestão da crise sanitária que matou mais de 600.000 brasileiros.

Bolsonaro reafirmou a “total confiança” em Guedes para espantar rumores de troca na pasta. “Foi sensacional o trabalho dele em 2019 e melhor ainda em 2020″, disse, exagerando dados para ressaltar os feitos à da Economia. “Terminamos 2020 com mais carteira assinada do que em 2019 graças à equipe econômica”, destacou o presidente. Dados do IBGE mostram, no entanto, que o país terminou o ano de 2019 com 33,2 milhões de brasileiros com carteira assinada. No ano seguinte, esse número caiu para 30,6 milhões.

O ministro da Economia ressaltou que “o Brasil vai crescer mais de 5% neste ano”, apontando estimativa semelhante à feita pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) —que, entretanto, pirou a projeção para o país em seu último relatório. “Essa história de que o Brasil não vai crescer é narrativa política”, disse. Guedes se empolgou no discurso contra adversários políticos. “Ele [Bolsonaro] é um político popular, mas não é populista. Tem muito político aí candidato à Presidência, falando [em auxílio de] 600, 700, 800 [reais]. Mas eles quebram o Brasil e não fizeram esse auxílio emergencial. Eles quebraram o Brasil e não tiveram coragem de taxar o super-ricos”. Omitiu, no entanto, que o auxílio emergencial da forma como foi aprovada é um plano do Congresso Nacional, e que o imposto para o super-ricos, uma demanda da sociedade civil, sequer foi mencionado em seu projeto de reforma tributária.

Além da expectativa sobre a reação do mercado às aparições e falas de Guedes e Bolsonaro desde sexta, esta semana começa com a espera do anúncio de novos nomes de auxiliares da Economia. Dos quatro cargos vagos em protesto contra o furo do teto de gastos, apenas dois tiveram os substitutos confirmados: o economista Paulo Valle, que será o novo secretário do Tesouro Nacional, e Esteves Colnago, novo secretário do Tesouro e Orçamento.

REGIANE OLIVEIRA e DANIELA MERCIER, de São Paulo para o EL PAÍS, em 24.10.21

Facebook exclui live em que Bolsonaro relaciona falsamente vacina a aids

Vídeo também foi excluído do Instagram. É a primeira vez que empresa suprime live do presidente. Declaração mentirosa com o objetivo de alimentar paranoia contra vacinas anticovid provocou repúdio de médicos e políticos.

Bolsonaro tem feito declarações contra vacinas desde o ano passado. Ele também se recusa a tomar qualquer imunizante contra a covid-19

O Facebook apagou na noite deste domingo (24/10) a última live semanal do presidente Jair Bolsonaro, transmitida na quinta-feira. O vídeo também foi excluído do Instagram, que pertence à empresa.

Em nota, o Facebook afirmou que as políticas da plataforma "não permitem alegações de que as vacinas de covid-19 matam ou podem causar danos graves às pessoas."

O motivo da exclusão foram declarações de Bolsonaro que associaram falsamente as vacinas contra covid-19 ao risco de desenvolver aids.

Esta foi a primeira vez que o Facebook excluiu uma live semanal de Bolsonaro.

Até o último fim de semana, a empresa só havia se limitado a apagar, em março de 2020, um vídeo em que Bolsonaro  aparecia afirmando falsamente que a cloroquina era uma "cura" contra a covid-19. YouTube e Twitter também já excluíram ao longo da pandemia vídeos em que o presidente aparecia fazendo declarações falsas.

No entanto, a live da última quinta ainda permanecia no YouTube na manhã desta segunda-feira.

Mentira sobre aids

No vídeo da última quinta-feira, Bolsonaro leu um texto afirmando que vacinados com as duas doses contra a covid-19 estariam desenvolvendo a "síndrome da imunodeficiência adquirida" - o nome oficial da aids - "mais rápido do que o previsto" e que tal conclusão era supostamente apoiada em "relatórios oficiais do governo do Reino Unido".

No entanto, não há estudos do governo do Reino Unido que mencionam tal risco. Entidades médicas e cientistas imediatamente desmentiram o presidente em redes sociais.

A notícia falsa citada por Bolsonaro foi publicada originalmente pelos sites Stylo Urbano e Coletividade Evolutiva, este último um site antivacinas que já veiculou fake news ao longo da pandemia. Os dois sites se basearam numa página em inglês conhecida por espalhar teorias conspiratórias.

O site Aos Fatos apontou que os textos divulgados por Stylo Urbano e Coletividade Evolutiva inseriram de maneira fraudulenta uma tabela que não existia em documentos oficiais das autoridades sanitárias do Reino Unido.

Bolsonaro parece ter se dado conta na live sobre o potencial de sanções das redes sociais e se limitou a ler apenas o título e recomendar aos espectadores a procurarem ler o material. "Não vou ler porque posso ter problemas com minha live."

Não é a primeira vez que Bolsonaro menciona estudos inexistentes para embasar sua agenda negacionista. 

Em fevereiro, ele mencionou um "estudo de uma universidade alemã" para afirmar que o uso de máscaras são "prejudiciais a crianças". No entanto, como a DW Brasil revelou, o tal "estudo" não passava de uma mera enquete online altamente distorcida. 

Da mesma forma, a notícia havia sido divulgada inicialmente por ativistas negacionistas antes de chegar ao presidente.

Bolsonaro tem feito declarações contra vacinas desde o ano passado. Num dos casos mais notórios, ele comemorou publicamente uma suspensão temporária de testes sobre a eficácia da Coronavac. Ele também continua se recusando a tomar qualquer vacina contra a covid-19. É o único líder de um país do G20 que ainda não o fez.

Repúdio

A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) foi um dos grupos que desmentiu a fala de Bolsonaro que associou vacinas à aids. Em nota, a entidade repudiou "toda e qualquer notícia falsa que circule e faça menção a esta associação inexistente". A nota foi endossada pela Associação Médica Brasileira (AMB).

No Twitter, a epidemiologista Denise Garrett, do Instituto de Vacinas Sabin (EUA), reiterou que nenhuma das vacinas para covid-19 aprovadas pela Food and Drug Administration (FDA) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) causam HIV. Ela também chamou Bolsonaro de "inescrupuloso", "mentiroso" e "criminoso".

A microbiologista Natalia Pasternak também usou o Twitter para afirmar que nenhuma vacina faz com que as pessoas desenvolvam aids.

Já o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) pediu à CPI da Pandemia que envie ao Supremo Tribunal Federal (STF) um requerimento com uma compilação das mentiras divulgadas por Bolsonaro na live semanal. O senador deseja que o documento seja anexado no inquérito das fake news que tramita no tribunal.

Já o relator da CPI da Pandemia, senador Renan Calheiros (MDB-AL), afirmou que Bolsonaro faz "terrorismo de Estado". "Isso não é apenas fake news, é mais do que uma simples mentira – isso é terrorismo de Estado. A Justiça precisa frear essa loucura", escreveu o senador no Twitter.

Na semana passada, o relatório da CPI da Pandemia imputou nove crimes a Bolsonaro, inclusive o de "incitação ao crime" por espalhar sistematicamente notícias falsas e incitar o desrespeito às medidas contra a pandemia. O relatório também apontou que Bolsonaro comanda uma rede de fake news com a participação de seus filhos e blogueiros bolsonaristas.

Deutsche Welle Brasil, em 25.10.21

Tripé ‘liberal’

A social-democracia empreendeu, no poder, medidas de cunho liberal, enquanto os ‘liberais’ atuais estão semostrando discípulos dos petistas.

O governo “liberal” de Bolsonaro inovou em seu liberalismo ao inventar um novo tripé: o bolsa eleitoral, dito “Auxílio Brasil”; o bolsa caminhoneiro, denominado por um de seus líderes de bolsa “esmola”; e o bolsa “Centrão, conhecido por emendas parlamentares dos mais diferentes tipos, além de cargos governamentais.

Tais iniciativas são todas paliativas, algumas tidas por temporárias, quando vieram para ficar, numa aparente obediência às regras legais e constitucionais; outras almejam a permanência do grupo no poder, tendo como objetivo assegurar a reeleição do atual presidente. O mesmo uso que se faz de ajuda aos pobres, embora necessária, encobre uma desmedida política, que não hesita diante de nada para alcançar as suas finalidades, a custo de produzir o desmoronamento fiscal, econômico e social do País. O que mais espanta é o desaparecimento de qualquer perspectiva de trabalho pelo bem comum, esquartejado nos interesses particulares e corporativos.

Evidentemente, os pobres devem ser ajudados. Trata-se de respeito moral com o próximo e obediência política à Constituição. Ocorre, porém, que tal argumento está sendo empregado para furar o teto da lei dos gastos públicos, como se essa infração fosse condição deste atendimento social. Atente-se para o fato de que o alvo do governo consiste em abrir a porteira para o estouro da boiada, pois, em ato imediatamente seguinte, o presidente anunciou que, com a folga obtida, criaria o bolsa esmola para os caminhoneiros e pagaria e ou aumentaria as emendas parlamentes. Ou seja, estabelece como regra a irresponsabilidade fiscal, hipoteca o futuro e aumenta a espiral dos juros e da inflação, com péssimas consequências para os investimentos privados nacionais e estrangeiros. Os mesmos pobres atendidos hoje pagarão por isso amanhã.

Acontece que o governo precisa seguir o seu novo tripé. Poderia, ao contrário do que faz, não dar mais nenhuma bolsa Centrão, transferindo estes recursos para os mais necessitados. Poderia reduzir os subsídios fiscais concedidos a vários setores empresariais; poderia reduzir o custo da máquina pública; poderia reduzir privilégios nos diferentes Poderes, alguns exorbitantes. Se assim o fizesse, estaria adotando uma posição liberal no verdadeiro sentido do termo. Contudo, optou por assassinar o liberalismo em nome da causa liberal!

O governo do ex-presidente Fernando Henrique, criticado por ser social-democrata e, nesse sentido, de “esquerda”, foi muito mais liberal do que o apregoado por seus detratores. Levou a cabo um impressionante e bem-sucedido programa de privatizações, reformando o Estado, algo que o atual governo foi incapaz de fazer. Elaborou um exitoso combate à inflação graças ao Plano Real, cujos alicerces estão sendo agora desmontados. Criou uma Lei de Responsabilidade Fiscal, complementada pela Lei do Teto de Gastos Públicos, de iniciativa do ex-presidente Michel Temer, algo que está sendo substituído pela irresponsabilidade fiscal.

A social-democracia empreendeu, no poder, medidas de cunho liberal, enquanto os “liberais” atuais estão se mostrando discípulos dos petistas. Não sem razão, o ex-presidente Lula está elogiando as iniciativas de ajuda aos pobres, não cansando de repetir que, caso eleito, não seguirá a responsabilidade fiscal e a Lei do Teto de Gastos Públicos. Isto é, as afinidades entre os petistas e os ditos “liberais” expõem um parentesco para além das clivagens tradicionais entre (extrema)direita e esquerda.

Com a mudança legal do indexador de cálculo da Lei do Teto de Gastos Públicos, uma artimanha jurídica para cobrir de legalidade uma atitude ilegal, o governo também se mostra um seguidor dos petistas, pois, na verdade, estamos diante de uma nova forma de “contabilidade criativa”. A da ex-presidente Dilma foi, em sua dimensão, menor do que a que está sendo atualmente implantada, e terminou pagando por isso. Os atuais detentores do poder, cientes disso, procuraram dar uma cobertura jurídica para evitar tal desenlace, o que não diminui a sua responsabilidade.

Eis por que o bolsa Centrão é tão importante. Graças a isso, o impeachment tem muito menos chance de prosperar, possibilitando que os recursos públicos sejam partidariamente, privadamente e corporativamente apropriados. Numa situação completamente atípica, o presidente perde o controle do Orçamento, contentando-se com discursos em todos os cantos do País como se não mais precisasse governar, procurando tão exclusivamente a sua própria reeleição.

O cenário é totalmente esquizofrênico na medida em que o País real, em suas necessidades e carências, encontra-se divorciado de sua classe política e das narrativas presidenciais, de nítido teor demagógico. Diz-se respeitar a lei numa flagrante violência da mesma, como se a irresponsabilidade fiscal tivesse mudado de nome. A perversão no uso das palavras é mais um indicativo do desmoronamento da moralidade pública e, sobretudo, de respeito para com o País.

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Eio Grande do Sul. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.10.21

      


Perspectiva promissora para os partidos

Há 33 partidos registrados na Justiça Eleitoral. Mas têm surgido indícios de uma possível melhora da representação partidária, com a redução do número de legendas

No Brasil, ter um partido político foi sempre um bom negócio. Por diversos meios, o sistema político-eleitoral favoreceu ao longo do tempo a proliferação de legendas, num quadro de explícita disfuncionalidade. A alta fragmentação partidária continua existindo. Há 33 partidos políticos registrados na Justiça Eleitoral. No entanto, têm surgido indícios importantes de uma possível melhora da representação partidária, com a redução do número de legendas.

Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atualizou uma regulamentação de 2018 a respeito da criação, organização, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos. Além de fixar um procedimento comum para as novas solicitações de registro, a medida regula a situação de 67 legendas em processo de formação na Justiça Eleitoral que, depois de dois anos, ainda não obtiveram as assinaturas necessárias para sua formalização.

É muito oportuna a nova regulamentação. Dentro de um regime constitucional de pluripartidarismo, é importante que o procedimento para a criação de novos partidos tenha critérios bem definidos, em um marco jurídico objetivo e seguro. Ao mesmo tempo, impressiona a quantidade de partidos em formação sem nenhuma viabilidade jurídica. São quase sete dezenas de pedidos parados por falta de apoio popular. Com a nova resolução, o não cumprimento das condições resultará na desconsideração do pedido, o que contribui para um sistema mais razoável.

Outra mudança – essa de natureza constitucional – que, aos poucos, vai produzindo mais efeitos positivos é a cláusula de barreira, aprovada pela Emenda Constitucional (EC) 97/2017. Trata-se de importante medida saneadora, que introduz de forma gradual restrições a partidos políticos sem representatividade popular.

A cláusula de barreira foi aplicada pela primeira vez nas eleições de 2018. Os partidos políticos que não alcançaram nenhum dos dois patamares mínimos de voto – a obtenção de 1,5% dos votos válidos para deputado federal ou a eleição de nove deputados – deixaram de ter acesso, desde 2019, aos recursos do Fundo Partidário e à chamada propaganda gratuita no rádio e na televisão.

Nas eleições de 2018, 14 partidos não superaram a cláusula de barreira. No pleito do ano que vem, as exigências serão um pouco maiores. Para 2022, a EC 97/2017 estabelece, como critério mínimo para cada partido, a obtenção de 2% dos votos válidos para deputado federal ou a eleição de 11 deputados federais.

Por outras razões não ligadas diretamente à cláusula de barreira, mas que se alinham com o novo regime jurídico de mais restrições aos partidos, os diretórios nacionais do DEM e do PSL aprovaram no início de outubro a fusão das duas legendas. Com o nome de União Brasil, o novo partido terá 82 deputados federais e 8 senadores.

Esse movimento do DEM e PSL, criando a maior bancada da Câmara, contribuiu para que outras legendas negociassem possíveis fusões. Além de conveniência política, outros partidos conversam com seus pares por uma razão de sobrevivência. A cláusula de barreira segue vigente.

Outra novidade que pode favorecer um cenário de menor fragmentação é a criação, por meio da recente Lei 14.208/21, da figura das federações partidárias. Sob essa modalidade de convênio, os partidos podem se unir para a disputa das eleições, passando a atuar como uma só legenda.

Ainda que seja uma medida de escape da cláusula de barreira, a nova lei fixa requisitos que podem contribuir para uma maior funcionalidade do quadro partidário. A federação partidária deve ter abrangência nacional e duração mínima de quatro anos, podendo ser constituída apenas até a data das convenções partidárias. Ou seja, não será tábua de salvação para partidos sem voto que não se uniram antes das eleições.

O cenário é novo, e muito dele ainda está no plano das possibilidades. De toda forma, em comparação ao anterior, é inegavelmente positivo. Merece, portanto, aplauso o Congresso que, apesar das pressões, manteve a cláusula de barreira. Sem ela, nada disso seria possível.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 25 de outubro de 2021 

Brasil deve reduzir desmatamento a nível de 10 anos atrás para atrair investidor, diz Joaquim Levy

Para Levy, a discussão não é sobre a regra fiscal, mas sobre como se tenta fazer mudanças duras nos ramos do país sem informar e conscientizar a população de seus objetivos finais. Segundo ele, os políticos brasileiros ainda não entenderam que "o povo não gosta de populista, o povo gosta de ver os resultados".

Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda, hoje integra o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (BBC News Brasil)

O ex-ministro da Fazenda, ex-presidente do BNDES e ex-secretário do Tesouro Nacional Joaquim Levy se entusiasma ao falar da floração de ipês e das espécies da Mata Atlântica que aparecem em seu fundo de tela enquanto dá entrevista via zoom à BBC News Brasil.

Nos últimos tempos, Levy tem se dedicado a estudar um tipo específico de mercado — o de carbono — e vê no Brasil condições de "caminhar rapidamente para uma economia de emissões zero com grandes benefícios", em linha com a urgência que o tema do aquecimento global tem despertado entre os líderes ocidentais.

A menos de uma semana do início da COP-26, a Conferência do Clima da ONU que acontece em Glasgow, na Escócia, com a missão de ser mais relevante para o planeta do que as resoluções do Acordo de Paris, há seis anos, Levy afirma que o empresariado brasileiro chegará ao encontro com ambições mais verdes e maiores do que o próprio governo, tendência que ele identifica também em outros países.

Levy integra o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS, uma associação civil sem fins lucrativos fundada por grandes empresários brasileiros inspirados nas discussões da Cúpula do Rio 1992) e tem viajado o país para verificar in loco iniciativas empresarias verdes, como as da chamada agricultura de baixo carbono.

Embora tenha deixado o governo Bolsonaro em julho de 2019 em um episódio tumultuado — Levy pediu as contas da chefia do BNDES depois de declaração do presidente de que sua cabeça estava "a prêmio" — ele não demonstra rancor nas moduladas críticas à atuação da atual administração.

De modo propositivo, diz que investidores internacionais estão atentos a métricas e a fim de atrai-los, seria importante para o Brasil trazer os níveis de desmatamento na Amazônia para os valores medidos em 2012, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) aferiu cerca de 4,5 mil quilômetros quadrados de floresta desmatada.

Em 2019 e 2020, o número encostou nos 11 mil quilômetros quadrados de perdas e atraiu intensas críticas internacionais e questionamentos à política ambiental de Jair Bolsonaro, que paralisou demarcações de terras indígenas e de reservas ambientais.

"Eu acho que toda política tem um ritmo de altos e baixos, isso é natural numa democracia. Evidentemente todo mundo vai aplaudir — ou muita gente vai aplaudir — se o Governo Federal vier a tomar alguma decisão de colocar terras em proteção ambiental", diz Levy.

Defensor histórico da austeridade fiscal e egresso da mesma Escola de Chicago que formou o ministro da economia Paulo Guedes, Levy também evitou dizer se o movimento feito pelo presidente Bolsonaro — de furar o teto de gastos para vitaminar o Bolsa Família e rebatizá-lo como Auxílio Brasil há menos de um ano da eleição — poderia ser definido como "pedalada fiscal", como disseram alguns de seus colegas, entre os quais o economista Edmar Bacha. "Eu não sei te dizer até porque eu nunca consegui apreender plenamente o que é o sentido de pedalada", disse Levy. Para ele, termos como "pedalada" ou "liberalismo" e "neoliberalismo" são "rótulos" que levam à perda de foco no debate público.

Levy, no entanto, afirmou que programas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, funcionam porque "são desenhados com bases racionais, não são de curto prazo, não são para ganhar uma eleição". "Eu acho que uma lição importante no Brasil é que políticas mais personalistas ou clientelistas tipicamente são menos eficientes", disse.

Ex-ministro aponta que para atrair investidores internacionais seria importante para o Brasil trazer os níveis de desmatamento na Amazônia para os valores medidos em 2012. (GreenPeace Photo/ Daniel Beltra)

E embora defendesse que um aumento de 30% do benefício pudesse ter sido feito por decreto e sem gerar mal estar no mercado — que teve na semana passada seu pior período desde o início da pandemia — enquanto que o aumento de 100% pedido por Bolsonaro forçou ao rompimento do teto, Levy ecoou as explicações de Guedes sobre a manobra ao dizer que "a nossa situação é relativamente positiva no curto prazo fiscalmente, as receitas vão boas. Nesse sentido, dado que ainda têm populações que estão em dificuldades, a gente deve tentar atendê-las? Sim. Se é em cima do teto, fora do teto, eu não sei".

Para Levy, a discussão não é sobre a regra fiscal, mas sobre como se tenta fazer mudanças duras nos ramos do país sem informar e conscientizar a população de seus objetivos finais. Segundo ele, os políticos brasileiros ainda não entenderam que "o povo não gosta de populista, o povo gosta de ver os resultados".

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Levy à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza.

Nos últimos tempos, Levy tem se dedicado a estudar um tipo específico de mercado - o de carbono - e vê no Brasil condições de " caminhar rapidamente para uma economia de emissões zero com grandes benefícios" (BBC News)

BBC News Brasil - Parece existir uma mudança forte de mentalidade globalmente em relação à necessidade de combater as mudanças climáticas. Enquanto isso, nos últimos três anos o Brasil chegou a negar o problema e tem sido acusado de fazer pouco, especialmente em relação ao desmatamento. O Brasil está perdendo o bonde da história?

Joaquim Levy - A questão climática é existencial, as evidências disso vêm se acumulando. O que chama atenção aqui e ao redor do mundo é que nós vemos a sociedade, o setor privado e as empresas, às vezes, com uma ambição e uma atividade mais intensa do que os próprios governos (para combater o aquecimento global).

Então, por exemplo, na Europa você tem um mercado regulado de carbono. Nos Estados Unidos, não tem, mas por outro lado, você tem muitas empresas que estão procurando se posicionar no mercado voluntário, se comprometendo com metas de descarbonificação, etc.

No Brasil também é bem claro que muitas empresas têm andado mais rápido do que o governo e o ambiente político como um todo. Eu acho isso muito positivo. Inclusive, em Glasgow, a gente deve ter um contingente muito forte de empresas brasileiras comprometidas com o meio ambiente. O Brasil é um país é muito diversificado mas tem um movimento cada vez mais forte da atenção ambiental inclusive no agronegócio, onde existem algumas clivagens ainda, a gente não deve esconder as coisas como são, mas há grupos bastante fortes no agronegócio que estão bem conscientes da importância climática e também da importância da proteção de Amazônia.

BBC News Brasil - Essa movimentação do empresariado brasileiro, inclusive em Glasgow, é uma preocupação com possíveis sanções internacionais aos produtos do Brasil?

Levy - As empresas brasileiras, principalmente o setor mais exposto ao comércio internacional, entende as expectativas dos nossos parceiros e dos nossos investidores, além das demandas internas que existem para a conservação da Floresta Amazônica e de novas técnicas de agricultura de baixo carbono. O setor agropecuário tem se manifestado de uma maneira cada vez mais atenta e criando programas que talvez há quatro, cinco anos atrás ninguém pensasse que seria possível. A gente encontra parcerias com governos subnacionais para fazer rastreamento de animais, ter certeza que a carne brasileira não está maculada pelo desmatamento.

Às vezes não é fácil fazer isso, tem que ter muita persistência, mas as empresas estão fazendo isso e nós temos governos (estaduais) que estão cooperando, inclusive porque aqui no Brasil a gente tem ferramentas que permitem muita coisa. É óbvio que um animal que é exportado, ele é controlado, ele tem guias de saúde, de transporte. Então você tem que incorporar isso também para ter certeza que não tem nenhuma violação das leis de desmatamento do Brasil.

Embora tenha deixado o governo Bolsonaro em julho de 2019 em um episódio tumultuado, Levy não demonstra rancor nas moduladas críticas à atuação da atual administração. (AFP)

BBC News Brasil - Recentemente, a BBC News Brasil noticiou que o Congresso dos EUA debate um projeto de lei pra proibir importação de carne bovina que possa ter passado por área de desmatamento, o que afetaria o Brasil. A Europa trabalha com o mesmo arcabouço legal. Há uma percepção de que o risco de sanção é alto?

Levy - Todo importador gosta de transparência. Então é evidente que, às vezes, quando você não tem fluxo de informação que reflita a própria realidade, você às vezes tem essas ações. Mas o objetivo do Brasil é ter uma produção que tenha conformidade com os padrões. E aí cada país tem o direito de impor um padrão na sua importação que achar conveniente. A gente não deve esperar histerismo, acho que tem que ter um certo cuidado.

BBC News Brasil - O Itamaraty tem reconhecido que o Brasil tem um problema de imagem internacional negativa no aspecto ambiental. E parece haver uma preocupação de que isso esteja afugentando os investidores. O senhor vê desconfiança dos investidores em relação ao Brasil?

Levy - Eu acho que os investidores têm dado certas indicações do que lhes daria maior conforto (em investir no Brasil). Quem é investidor gosta de métrica, e existem algumas que são bem precisas.

Por exemplo, tem uma variável bastante conhecida que é a área desmatada por ano no Brasil. Essa área aumentou. É óbvio que isso cria um desconforto e alguns investidores dizem 'bom, olha, eu acho ótimo ter todos os esforços (anunciados de combate ao desmatamento), mas a gente precisa ver resultados'.

E eu acho que nessas coisas a gente tem que ter uma diplomacia de resultados. Será importante para o Brasil voltar a baixar os níveis de desmatamento pelo menos para o patamar que já tivemos há dez ou oito anos atrás, quando tínhamos um desmatamento de quatro mil quilômetros quadrados por ano, que já é bastante, mas dada a Amazônia, é um número mais razoável. Ou seja, (bem abaixo do) número de 10 ou 11 mil quilômetros quadrados atuais. Eu tenho o entendimento que o próprio governo está tentando reduzir, a questão é com que intensidade essa redução vai ser alcançada pra gente atender às expectativas internas e externas. Esse é o desafio que se coloca.

Há um entendimento hoje bem espalhado de que você pode aumentar a produção tanto de carne quanto de grãos sem nenhum desmatamento, meramente intensificando a produção da carne, integrando a produção da carne com a produção de grãos, fazendo a rotação de áreas, que são atividades que na verdade são lucrativas e sustentáveis, acumulam carbono no solo e evitam o desmatamento.

BBC News Brasil - Dada a percepção de que não é preciso desmatar para produzir mais e melhor, a quem interessa e como a gente pode explicar o alto nível de desmatamento atual?

Levy - Esse desmatamento é ilegal e (para combater) tem que fazer um esforço. Num certo momento, perdeu-se um pouco o ritmo desse esforço para coibir os desmatamentos ilegais e a venda de produtos de áreas desmatadas. Há mais de dez anos a gente tem aquele acordo, a moratória da soja (compromisso entre agricultores, ambientalistas e o governo que proíbe compra da soja plantada em área desmatada), que tem se mostrado muito efetiva e não tem atrapalhado o crescimento do Brasil. O Brasil tem produzido mais soja sem desmatar na Amazônia, tem dez anos que isso funciona.

BBC News Brasil - Seria a hora de uma moratória da carne?

Levy - Ela já está acontecendo. Aí também tem uma diferença entre grandes e pequenos produtores. Às vezes, o pequeno produtor faz caminhos mais informais em que esse controle é menor, mas na medida em que os Estados também já estão se aparelhando para fazer esse tipo de monitoramento, isso está começando a evoluir.

E outro ponto importante é a questão fundiária, porque às vezes a pessoa desmata nem mesmo para produzir carne. Ela ocupa a terra com a pecuária mas o objetivo final dela é eventualmente vir a se candidatar a regularizar uma terra que ela vem ocupando de uma maneira ilegal.

Aí também há uma série de mecanismos que estão começando a ser postos em prática, inclusive com a designação de algumas áreas públicas como reserva legal. Semana passada, aliás, o estado do Pará, por exemplo, designou uma nova reserva de conservação, a São Benedito (o Refúgio de Vida Silvestre dos Rios São Benedito e Azul, nos municípios de Jacareacanga e Novo Progresso) e com isso fica muito claro que aquela não é uma terra vazia, uma terra que está ali para ser ocupada, para quem chegar, pegar.

"Em relação ao desmatamento, qualquer trajetória (de redução) é bem-vinda", afirma (Fábio Rodrigues Pozzebom, Ag. Brasil).

BBC News Brasil - O senhor citou exemplos de políticas estaduais. No âmbito federal, o governo paralisou a demarcação de terras indígenas e de reservas ambientais. É uma decisão equivocada?

Levy - Eu acho que toda política tem um ritmo de altos e baixos, isso é natural numa democracia. Evidentemente todo mundo vai aplaudir se o governo federal — ou muita gente vai aplaudir — se o Governo Federal vier a tomar alguma decisão de colocar terras em proteção ambiental.

Mas eu acho que não existe uma só solução para esse problema e se tivermos sucesso nesse novo movimento de intensificação de uso e melhoria dos pastos, a gente chegará a um novo patamar. Até porque o objetivo no médio prazo tem que ser você diminuir drasticamente as emissões de metano ou compensá-las com acúmulo de carbono no solo. Então, se você tem uma intensificação das pastagens que permite liberar áreas para regeneração natural assistida, quando você faz um balanço (de impacto climático) de uma fazenda você começa a ter uma situação muito mais estável pelo menos por 20 ou 30 anos, o período mais crítico para a gente chegar a uma economia de emissões zero, o que permite à pecuária ficar muito mais sustentável. Isso é o que a Austrália e outros países vêm defendendo, o problema da pecuária não é único no Brasil.

BBC News Brasil - O que o Brasil deveria apresentar na COP em termos de métricas?

Levy - Em relação ao desmatamento, qualquer trajetória (de redução) é bem-vinda. A trajetória é o que todo mundo gosta. Quando trabalhei tanto no governo quanto no Banco Mundial ou em empresas privadas, a gente sempre queria ter trajetórias (para apresentar), que dá para os investidores um guia, um senso de localização. Então a meta às vezes a gente consegue alcançar, às vezes fica um pouquinho atrás mas é uma demonstração de que a gente está destinando os nossos esforços num dado caminho. Então acho que qualquer sinalização nesse sentido sempre é muito positiva.

BBC News Brasil - O ministro Paulo Guedes anunciou um investimento em torno de US$ 2 bilhões para impulsionar o crescimento verde. É o que outras economias desse tamanho têm feito?

Levy - Não sei exatamente o que o mundo está fazendo. Existe um problema de falta de comparabilidade de métricas. O que eu posso dizer é que no Brasil, tenho feito uns tantos estudos, a gente tem como caminhar rapidamente para uma economia de emissões zero com grandes benefícios.

No Brasil, a gente pode ser mais ambicioso em relação à eletrificação. Se você reparar já tem alguns investidores estrangeiros que querem aproveitar a nossa capacidade de geração elétrica sustentável ou renovável até para produzir hidrogênio, para exportar hidrogênio. A gente conseguiria fazer uma eletrificação da nossa frota de automóveis com bastante conforto porque o potencial de geração eólica e solar é da ordem de quatro a cinco vezes o que a gente tem hoje de capacidade instalada.

A economia brasileira hoje já é talvez a economia com a pegada de carbono mais baixa do mundo se você considerar emissões fósseis por população ou por PIB. O que a gente tem que fazer é obviamente aproveitar essa vantagem competitiva para investir, criar emprego. A mensagem de todos os empresários que estão aí é: 'vamos focar no que a gente tem que fazer e desenvolver as coisas em que a gente pode liderar'.

Nós temos vantagens em muitos setores, alguns até não muito reconhecidos. Ao redor do mundo tem um pouco de incompreensão em relação ao etanol, mas o etanol é positivo e não vai ficar preso ao motor de combustão interna, não. Já está havendo investimento e discussão de parceiros estrangeiros para usar o etanol no motor elétrico. Você transforma etanol em hidrogênio, depois usa a célula do motor elétrico inclusive de uma maneira muito mais eficiente do que você produzir e tentar transportar hidrogênio que é muito difícil.

BBC News Brasil - O senhor foi um dos maiores defensores de redução dos gastos públicos no país e apanhou muito por causa disso. Como o senhor vê agora essa perspectiva da mudança da regra para furar o teto?

Levy - A preocupação do mercado se justifica porque muitas regras foram sendo mudadas e, às vezes, é difícil de entender quais as prioridades que estão ali.

A questão fiscal tem que ser sempre entendida no seu conjunto. Não adianta eu querer mudar uma regra depois querer mudar outra. Isso só cria incerteza, então a situação do Brasil eu acho que a gente vai ter que pensar o que a gente quer como proposta fiscal, olhando para frente. Nós temos alguns elementos que são robustos mas flexíveis como, por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal, em que você procura um equilíbrio entre receitas e despesas de tal maneira que a dívida não cresça excessivamente.

De modo mais geral, precisa de duas coisas. Primeiro, uma priorização de gastos para melhora da qualidade de gasto, maior transparência de gastos. Isso você consegue com programas bem desenhados. Eu acho que uma lição importante no Brasil é que políticas mais personalistas ou clientelistas tipicamente são menos eficientes.

Então, por exemplo, se você quer proteger uma cidadezinha num estado pobre, não é mandando dinheiro pra lá ou fazendo uma obrinha aqui, uma obra acolá que você faz isso. Nossa experiência nos últimos anos mostra que é desenvolvendo projetos que são sistemáticos, que tem governança e que acabam sendo inclusive sustentáveis. Aqui no Brasil, como que a gente enfrentou momentos de dificuldades? A gente tem o sistema do SUS, você tem o médico da família, todas essas coisas são absolutamente impessoais e é bom porque muda de um governo para o outro mas aquilo continua funcionando.

Então acho que toda a discussão fiscal tem que ser vista com quais os objetivos do governo, que tipo de mecanismo eu quero ter para garantir essa isonomia, essa impessoalidade, essa continuidade das ações. Então, talvez parte da preocupação do mercado hoje é entender se isto continua sendo a regra, essa racionalidade em que o Brasil avançou bastante nos últimos anos, se nós vamos continuar a ter isso. Porque essa é a única maneira de você, com os recursos que você dispõe, você conseguir realmente entregar as coisas e começar a melhorar a vida das pessoas.

O melhor exemplo é o Bolsa Família. O Bolsa Família custa 0,5% do PIB, afeta a vida de 50 milhões de pessoas,tem participação em todos os municípios, e quase 70% das pessoas que já passaram pelo Bolsa Família saíram do Bolsa Família, encontraram emprego, estão trabalhando. Por quê? Porque é uma política desenhada com bases sólidas, com bases racionais, não é de curto prazo, não é para ganhar uma eleição.

Levy diz que programas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, funcionam porque "são desenhados com bases racionais, não são de curto prazo, não são para ganhar uma eleição" (Jefferson Rudy / Ag. Senado)

Continuar nesse caminho é muito importante. Em última instância, é isso que também dá tranquilidade até ao próprio mercado, porque tem certeza que a gente tem programas bem estabelecidos, programas que são perenes. Isso significa que a gente vai continuar melhorando (o social) sem ter choques no orçamento. Então acho que a discussão do teto tem que ser feita dentro de quais os objetivos das políticas sociais, quanto vai requerer de dinheiro e qual é a nossa estratégia tributária de tal maneira que o que eu vou estabelecer realmente me garanta esse equilíbrio fiscal de médio prazo.

BBC News Brasil - O ministro Paulo Guedes defendeu que a mudança para acomodar esses mais de R$ 80 bilhões de gastos adicionais não altera os fundamentos fiscais da economia política brasileira. O senhor concorda com essa avaliação?

Levy - Nós estamos vivendo um bom momento de arrecadação, em parte por conta da surpresa inflacionária e em parte por causa do impulso fiscal que foi dado no ano passado, de um trilhão de reais que foi gasto. Parte desse dinheiro virou lucro das empresas, parte foi usado para as pessoas comerem, talvez algo foi poupado, mas aquilo que ajudou a retomar a economia foi essa política keynesiana. Como toda política keynesiana, se você tem espaço, a atividade produtiva cresce, se você não tem espaço, ela vira inflação. Esse dinheiro está voltando também para os cofres do governo em forma de arrecadação. E isso significa que a gente está em uma circunstância fiscal bastante favorável por uma série de coincidências.

Você tem um perigo iminente? Não, porque a economia mostra resiliência. Nós também tivemos dois anos do setor externo extremamente favoráveis, aumento do valor das exportações de dezenas de bilhões de dólares. Então a nossa situação é relativamente positiva no curto prazo fiscalmente, as receitas vão boas.

Nesse sentido, dado que ainda têm populações que estão em dificuldades, a gente deve tentar atendê-las? Sim. Se é em cima do teto, fora do teto, eu não sei. Eu tenho chamado a atenção de que o governo poderia dar um aumento de 30% no Bolsa-Família sem dificuldade nenhuma, até por decreto, e que de certo modo foi o que acabou sendo feito na primeira parte do aumento (20% de reajuste anunciados na semana passada pelo ministro João Roma). Então estaria absolutamente dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal e preservaria o poder de compra dos benefícios.

BBC News Brasil - Por decreto seria se fossem os 30% de aumento, né? Mas o benefício praticamente dobrou de valor. É justificável um aumento dessa monta?

Levy - Eu não vi nenhum estudo, então não sei te dizer e eu tenho dificuldade de fazer um achismo. Acho que sempre tudo que a gente pode dar para as pessoas que estão em dificuldade, há mérito nisso. Agora eu não vi nenhum estudo que indicasse que o valor devesse ser x ou y. Então eu não tenho como dizer se é certo, se é muito, se é pouco. As coisas têm que ser feitas lastreadas em estudos. A legislação prevê pelo menos a manutenção do poder de compra, agora se há uma situação no mercado de trabalho que suscite você fazer uma outra coisa, aí é só uma questão de demonstrar, apresentar direitinho e tomar as decisões cabíveis.

Em junho de 2019, o economista pediu demissão da presidência do BNDES após Bolsonaro declarar que sua cabeça estava 'a prêmio' (Reuters)

BBC News Brasil - Waiver "extra-teto" foi o termo usado por Guedes para classificar o estouro do teto. Waiver extra-teto pode ser classificado como "pedalada fiscal"?

Levy - Eu não sei te dizer até porque eu nunca consegui apreender plenamente o que é o sentido de pedalada. Então eu acho que fica um pouquinho naquela categoria dos rótulos que a gente não sabe muito bem o que quer dizer.

BBC News Brasil - E no entanto foi essa a justificativa para o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Levy - E eu não sei exatamente. Acho que o cumprimento das regras é muito importante mas a gente tem que ter cuidado de não usar rótulos para isso e para aquilo porque senão o debate acaba perdendo um pouquinho de foco.

BBC News Brasil - Como o senhor espera que vá reagir a economia brasileira diante do aumento dos gastos públicos, inflação em alta e aumento nos juros? Há risco de recessão no ano que vem?

Levy - Nós estamos projetando algo na faixa de 1% de crescimento para o ano que vem e um crescimento relativamente modesto, mas acho que todas as economias mundiais vão ter um pouquinho de ressaca o ano que vem. Esperamos que a gente supere as dúvidas e incertezas fiscais porque eu acho que isso é fundamental para você ter decisões de investimento e com isso acelerar a recuperação do emprego. Hoje o principal é acalmar um pouco o jogo, realmente resolver essa questão mais premente do Bolsa Família, dar garantia às famílias mais vulneráveis no tamanho que for. E com isso criar um ambiente favorável ao investimento privado para manter uma taxa de crescimento. E com maior tranquilidade, mais confiança, o próprio dólar recua, o real também se aprecia, e diminui um pouquinho a pressão sobre os preços.

BBC News Brasil - A sua experiência no governo e a trajetória do ministro Guedes, que chegou com uma postura muito liberal e agora tem feito inúmeros concessões contra essa agenda, sugerem que é muito difícil cortar gastos no Brasil. Por que afinal é tão difícil cortar gastos no Brasil?

Levy - Quando se pensa em reforma administrativa é muito importante pensar o seguinte: qualquer empresa, antes de querer demitir todo mundo, precisa explicar o que essa empresa quer fazer, qual é o serviço que eu quero entregar. E aí com todos o avanço tecnológico que tem hoje você começa a desenhar qual é o quadro de funcionários que você precisa para entregar esse serviço. A verdadeira reforma administrativa tem que estar olhando para essas coisas, tem que estar atenta para cortar excessos, abusos, mas principalmente repensar o Estado que eu quero daqui a cinco, dez ou 15 anos. Não precisa virar uma Estônia, mas você pode dar uma modernizada.

Tem um trabalho sério para ser feito em relação a isso, e portanto, acho que a questão de se consigo ou não consigo cortar o gasto tem muito a ver com onde quero chegar. A minha experiência de gestor tanto público quanto privado é que é muito mais fácil você tomar decisões duras quando as pessoas sabem porque, não só porque vai ter um terremoto, mas é dizer 'olha, este aqui é o caminho para chegar lá e outras opções estão sendo abertas'. A experiência de você diminuir os gastos fiscais e com isso abrir espaço com taxas de juro menores, a gente experimentou um pouquinho disso, e começou a ver IPOs, uma porção de coisas, e isso pode realmente redesenhar a economia brasileira, e realmente democratizar o empreendedorismo.

Mas para isso eu tenho que ter uma estratégia: a discussão fiscal tem que estar dentro desse escopo de onde eu quero ir. E aí os instrumentos para chegar lá ficam muito mais claros. O (linguista e filósofo de esquerda Noam) Chomsky e tantos outros dizem que a democracia é aquela em que você tem que persuadir as pessoas. Então, com técnica e com um pouquinho de arte, você tem que persuadir que o caminho é diminuir os gastos e isso vai te permitir baixar a taxa de juros, vai permitir que mais pessoas tomem dinheiro emprestado, que mais empresas cresçam ou contratem. E você vai ter uma economia mais saudável.

BBC News Brasil - Então o problema não é fiscal, é um problema de comunicação? O senhor diria que é um problema de informar a população?

Levy - Informar é a primeira etapa, a pessoa tem que incorporar, ela tem que entender, tem que acreditar. Ela tem que ver que é isso mesmo. Uma coisa que eu já vi muitas vezes acontecer é o seguinte - e isso às vezes escapa aos políticos - o povo não é bobo. Então a gente já viu o que o povo entende quando às vezes uma coisa um pouco mais dura mas se ele está vendo que aquilo é um movimento legítimo e ele entende o que resulta dali, há aceitação para isso. Mas você tem que ser absolutamente genuíno. Você tem que sim fazer um esforço de comunicação, porque às vezes as coisas são complexas, as ligações são complexas. Você tem que ter confiança que as pessoas vão entender. A ideia de que 'não a pessoa não vai entender o povo, o povo gosta de populista'. O povo não gosta de populista, o povo gosta de ver os resultados. E quanto mais quieto, melhor. Então, esse é o trabalho democrático. Não é fácil agora como era fácil na época de Abraham Lincoln. Mas essa é a graça da democracia.

BBC News Brasil - O senhor acha então que o problema está em como se faz política no Brasil, há uma incompreensão… (interrompe)

Levy - No Brasil e no mundo todo. Esse é o desafio. O povo entende sim! Dá trabalho, não vai cair do céu, desejar que tudo esteja em condições ideais não faz sentido ter que lutar a gente tem que lutar pelo que acredita, se a gente acredita em democracia, você acredita num governo que funciona por métodos e por objetivos, por ambições compartilhadas, e para isso existe eleição, então vamos trabalhar para isso.

BBC News Brasil - O senhor vê semelhanças entre o senhor e o ministro Paulo Guedes?

Levy - Há indicações fortes que ambos estiveram em Chicago (risos), certamente há algo aí.

 - Justamente por isso te pergunto, os senhores sempre foram tomados como grandes liberais. Faz sentido ainda pensar a partir dessas noções de liberalismo e neoliberalismo?

Levy - Colocar rótulo, em geral, não funciona muito bem. Eu acho que tem duas coisas que são ingredientes fundamentais para o crescimento econômico: de um lado, a gente ter esse aspecto social, porque eu preciso de todo mundo no Brasil, a gente não vai nunca conseguir ser um país (desenvolvido) se só tiver metade da população e a outra metade não tiver com capacidade, educada. Então é obrigação de cada um de nós lutar para isso.

O outro lado é o seguinte: a gente sabe que você ter liberdade de empreender, de você ter empresas, aqui no Brasil as empresas têm uma certa liberdade. É complicado, tem imposto, tem isso, tem aquilo, mas não tem controle político das empresas, cada um faz o que bem entende, eu quero para abrir um negócio, eu abro o negócio e estamos entendidos. Lógico, tem regras, mas não tem que pedir favor a ninguém, não tem que pedir autorização que não aquelas previstas por lei. Então esses dois componentes são componentes que a gente precisa para o crescimento.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washington, DC, para aBBC News Brasil, em 25.10.21.

Um Poeta

 Bonfim Tobias


 LIBERTAS QUAE SERA TAMEN


A consciência de muitos semi-morta,

Meticulosamente amortalhada,

É punhal cego, é faca que não corta,

É vontade perdida, confinada!


Em milhões e milhões a fome brota

Como praga nos campos espalhada,

Futuro que a descrença fecha a porta,

Desejo e alegria escorraçadas!


Nossa terra de opaca ilusão,

Estátua fria, inerte coração,

Perdida no caminho ladro imundo!


Mas chegará um dia que este povo

Os cegos olhos abrirá de novo,

Vendo o Brasil um esmoler no Mundo!…


sábado, 23 de outubro de 2021

‘Estamos indo pro vinagre e baixa renda é quem vai sofrer mais’, diz economista

Problema não é gasto na área social, mas mudar regras do jogo para favorecer o Centrão em ano eleitoral, diz Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado.

'A verdade é que não há uma agenda liberal, há um despreparo', diz Salto sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes

"Estamos indo para o vinagre" é a expressão usada pelo economista Felipe Salto, diretor-executivo da IFI, a Instituição Fiscal Independente do Senado Federal, para avaliar o atual momento da economia do país.

A IFI tem como função ajudar os parlamentares a monitorar o Orçamento do governo. É um tipo de instituição que existe em vários países do mundo. Nas nações de língua inglesa, são chamadas de "cães de guarda" das contas públicas.

Numa semana em que o dólar bateu nos R$ 5,70, quatro secretários do alto escalão do Ministério da Economia pediram demissão, e o governo confirmou a intenção de desrespeitar o teto de gastos em mais de R$ 80 bilhões, o pessimismo não é de se estranhar.

Para Salto, o problema não é o governo querer gastar mais na área social — o que é necessário no atual momento de saída da pandemia e, segundo ele, poderia ser feito perfeitamente dentro dos atuais limites fiscais.

O problema é que o rombo bilionário que está sendo aberto no teto de gastos — que a IFI estima em R$ 94,4 bilhões, acima dos R$ 83,6 bilhões previstos pela equipe econômica — é muito maior do que a despesa planejada para as transferências do novo Auxílio Brasil, que deve substituir o Bolsa Família.

"É um espaço que é para atender o Centrão, para atender a base, para abrir o Orçamento para emendas", avalia Salto. "Isso está diretamente associado ao momento que estamos vivendo, de pré-eleições. Ano que vem tem eleições gerais e isso está perpassando todas as decisões."

Mudando a regra com o jogo andando

Para abrir esse espaço no Orçamento, o governo planeja adiar o pagamento de precatórios, dívidas da União com pessoas, empresas, Estados e municípios que a Justiça já determinou o pagamento em decisões definitivas.

Além disso, a gestão Jair Bolsonaro, em acordo com o Congresso, quer mudar a regra do teto, passando a reajustá-lo pela inflação acumulada de janeiro a dezembro do ano anterior, e não mais em 12 meses até junho, como feito atualmente. O recálculo vai ser feito desde 2016, ano de aprovação da lei do teto de gastos.

"O problema não é o gasto", diz o diretor-executivo da IFI. "O Estado tem que gastar para poder realizar suas políticas públicas de educação, saúde e também sociais, além de gastar para resolver problemas como o atual, que é o enfrentamento dessa crise pandêmica ainda presente no Brasil e suas consequências sociais e econômicas."

"O problema é mudar as regras do jogo para favorecer conjunturalmente estratégias de expansão fiscal", avalia. "Mudar, de maneira oportunista como está acontecendo agora, é que preocupa."

Para Salto, o problema da forma como tudo está sendo feito é que quem sairá prejudicado pela instabilidade causada por essa decisão são as mesmas pessoas que o governo pretende ajudar ampliando o valor da transferência de renda para R$ 400 até dezembro de 2022.

"Os agentes econômicos — o mercado, como nós chamamos — já precificam esses riscos, os juros estão aumentando e o resultado vai ser provavelmente um crescimento econômico menor lá no ano que vem", prevê, acrescentando que isso prejudica a geração de empregos.

O aumento do risco e a alta do juros afugentam os investimentos produtivos, explica Salto. E o dólar pressionado torna a inflação mais resistente a cair, já que a moeda americana pesa nos custos de tudo que é importado, como diversos componentes dos nossos bens industriais.

"Infelizmente vai ser um quadro muito difícil para aqueles que têm renda mais baixa e dependem do salário para sua sobrevivência. E mesmo para aqueles que estão dependendo do auxílio do governo", conclui.

Problema não é gasto na área social, mas mudar regras do jogo para favorecer o Centrão em ano eleitoral, diz Felipe Salto, (foto), diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado

Guedes, de ultraliberal a 'fura-teto'

Questionado sobre como avalia a trajetória de Paulo Guedes, ministro que assumiu prometendo implementar uma agenda ultraliberal de redução do Estado e agora quer furar o teto de gastos em bilhões para aumentar a despesa do governo num ano eleitoral, o diretor da IFI é taxativo.

"A verdade é que não há uma agenda liberal, há um despreparo, uma inépcia do atual governo que redunda nisso que estamos vendo nos últimos dias. Nesse desmonte das regras fiscais", avalia o especialista em contas públicas.

A IFI estima que seria possível elevar o Bolsa Família sem ferir as regras. Cortando despesas não obrigatórias e pagando integralmente os precatórios, a instituição calcula que seria possível elevar o programa de transferência de renda do valor atual médio de R$ 190, para 14,7 milhões de beneficiários, para R$ 250 e 16,3 milhões de beneficiários.

Para elevar adicionalmente esse valor, existe uma outra carta na manga, diz Salto.

Um total de cerca de R$ 16 bilhões em precatórios do antigo Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental), atual Fundeb, que poderiam ser pagos legalmente fora do teto, abrindo espaço equivalente para a despesa na área social dentro do Orçamento.

"Só que não sobraria dinheiro para fazer emendas de relator geral, outros gastos pulverizados. E é isso, na verdade, que está motivando toda essa mudança que o ministro da Economia está bancando", afirma.

"Ou seja, ele está abrindo mão da responsabilidade fiscal, claramente. Ele quer sinalizar o contrário, dizendo que as regras estão sendo cumpridas, mas ninguém compra essa tese", afirma. "A saída dessas pessoas da equipe econômica, que são quadros técnicos, é apenas a evidência mais nítida de que o governo está num caminho muito errado."

Na quinta-feira (21/01), pediram demissão Bruno Funchal e Gildenora Dantas, secretário especial e secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, respectivamente. E Jeferson Bittencourt e Rafael Araújo, secretário e secretário-adjunto do Tesouro Nacional.

'Indo para o vinagre'

A perda de credibilidade da equipe econômica é parte do motivo pelo qual Salto acredita que "vamos direto para o vinagre, sem direito a paradas", como lamentou esta semana em uma rede social.1

"É uma frase que pode parecer exagerada, mas não é. Porque, veja, a economia depende sobretudo da credibilidade dos gestores da política econômica. Esse é o passo zero", afirma.

Para crescer, é preciso mais do que isso, diz ele. "Precisa aumentar a produtividade, os acordos comerciais para exportar mais. Aproveitar a vantagem comparativa que o Brasil sempre teve na área ambiental. E nós estamos indo para a direção simetricamente oposta."

Ele cita o atual desprezo do governo pela preservação da Amazônia e o tempo perdido com uma política externa que classifica como "mequetrefe". Na infraestrutura, destaca que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) perdeu todo seu papel, embora o país ainda necessite de instrumentos e políticas de desenvolvimento.

"Nós estamos sem planejamento, o Orçamento está no piloto automático", afirma. "Quando eu digo que poderia ser diferente, é nesse sentido. Nós poderíamos estar com o câmbio mais apreciado, a inflação mais controlada e o crescimento já numa recuperação melhor, se as políticas adequadas estivessem sendo tomadas."

"Então, a minha preocupação central, quando eu digo que 'estamos indo direto pro vinagre' é essa. Estruturalmente já estávamos indo e agora, com essa lambança na área fiscal e orçamentária, a aceleração nessa direção vai ser ainda maior."

BBC News Brasil, em 23.10.21

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Bolsonaro sacrifica o Orçamento para salvar sua popularidade

Governo passa por cima das regras orçamentárias a fim de abrir comportas para gastos sociais e presentes eleitoreiros antes de 2022. Os mercados financeiros reagem com severas turbulentas. E talvez seja tudo em vão.

Benefícios sociais para eleitorado esquecer descalabros da pandemia: será que vai funcionar?

O fato de o banqueiro e economista seguidor da Escola de Chicago Paulo Guedes estar no governo de Jair Bolsonaro era para a economia algo assim como a garantia de que o presidente adotaria um curso de reforma liberal. Porém as esperanças de que, apesar de ter como chefe o capitão da reserva, Guedes conseguiria impor esse curso há muito se desfizeram.

Desde o começo desta semana, ficou evidente que Guedes tampouco impedirá  altas orçamentárias acima do limite permitido por lei. Com manobras grosseiras, agora o governo quer alterar o teto de gastos, que estava claramente fixado pelo orçamento público de 2020, corrigido pela inflação.

Por um lado, Bolsonaro propõe considerar a inflação mais alta de janeiro a dezembro de 2021 (em vez da dos 12 meses até junho último), a fim de poder gastar mais. Por outro, quer possibilitar por emenda o parcelamento de precatórios, aumentando ainda mais o campo para gastos. O teto só foi introduzido em 2017 e proporcionou ao Brasil os juros mais baixos de sua história econômica. Agora isso acabou.

Pânico nos mercados financeiros

Em protesto, nesta quinta-feira (21/10), quatro secretários do Ministério da Economia – três economistas e uma economista – anunciaram inesperadamente sua renúnica. Supõe-se que estão deixando o governo agora para no futuro não serem penalizados por terem ignorado as regras orçamentárias.

Os mercados reagiram com choque aos pedidos de exoneração: desde o início da semana – quando se acumularam os boatos de que o governo desrespeitaria o teto de gastos –, o índice da bolsa de valores de São Paulo caiu 10%; o dólar subiu quase 5%; os juros nos mercados de futuro saltaram para mais de 12%.

Em resumo: os investidores reagiram com pânico, temendo a reação em cadeia que agora, após a quebra das regras orçamentárias, se materializa. Assim, o Banco Central provavelmente terá que elevar em breve a taxa Selic para mais de 10% (dos atuais 6,25%), como única forma de manter a inflação abaixo do limite de 5%, até o fim de 2022.

O encarecimento geral já passa de 10%, no momento; os preços da cesta básica chegaram a aumentar 16% nos últimos 12 meses. Além disso, a desvalorização do real aumenta a pressão inflacionária.

Como o Banco Central terá que manter por mais tempo ainda os juros altos, os bancos de investimentos reduziram a menos de 1% os prognósticos de crescimento para 2022 (depois de 5% no ano corrente). O desempenho econômico segue cerca de três pontos porcentuais abaixo do nível de 2014, o último ano de crescimento.

Aumento de popularidade improvável para Bolsonaro

O motivo para a alteração da fórmula do teto de gastos são os esforços de Bolsonaro contra sua queda de popularidade. No relatório final da CPI no Senado, o presidente acaba de ser incriminado por cometer nove delitos no decorrer da pandemia de covid-19.

Para desviar as atenções da situação deplorável, ele pretende aumentar o auxílio às classes de renda mais baixa já um ano antes das eleições, visando impulsionar sua pouca popularidade entre os pobres. No ano da pandemia 2020, ele conseguiu incrementar sua popularidade, justamente junto às classes de renda mais baixa, com generosos benefícios sociais.

Mas será que vai conseguir repetir a proeza? O desemprego está estagnado num nível alto, de cerca de 14%, a ocupação só cresce no setor informal, onde, porém, se paga menos. A massa salarial dos brasileiros caiu em 2021 6%, em relação ao ano interior. E, tradicionalmente, o consumo é o motor do crescimento.

Acima de tudo, entretanto, a inflação alta deverá prejudicar de forma duradoura a popularidade de Bolsonaro: os pobres são, de longe, os mais afetados pela desvalorização. Os R$ 400 do novo Auxílio Brasil não vão adiantar muito.

Deutsche Welle Brasil, em 22.10.21

Quais são os efeitos econômicos e políticos de alterar o teto de gastos

Pessoas-chave do Ministério da Economia pediram demissão após governo propor mudança, que amplia despesas durante ano de eleição com o Auxílio Brasil. Mercado reage mal, e Lula defende transferência de renda ainda maior.

Bolsonaro quer usar verba extra para pagar transferência mensal de R$ 400 a famílias mais pobres

A decisão do governo federal de alterar a fórmula do teto de gastos para ampliar os gastos públicos no próximo ano, quando o presidente Jair Bolsonaro tentará se reeleger, provocou uma debandada no Ministério da Economia, teve efeito negativo em indicadores do mercado financeiro e terá consequências para o debate eleitoral de 2022.

Quatro membros da equipe do ministro Paulo Guedes pediram exoneração na quinta-feira (22/10), entre eles o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e o secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt. A interlocutores, Funchal disse que estava deixando o cargo por não concordar com as mudanças propostas pelo governo. Também pediram exoneração a secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araújo.

A iniciativa do governo e a debandada na Economia tiveram reflexos no mercado financeiro. Na terça-feira, quando ficou claro que Bolsonaro estava decidido a mexer no teto de gastos, a Bolsa de Valores começou a acumular quedas e o dólar, a registrar altas, tendências que se mantiveram até esta sexta-feira.

No início de terça, a Bolsa estava no patamar de cerca de 114 mil pontos e, às 12h30 desta sexta, em cerca de 103 mil pontos, queda acumulada de 10,7%. O dólar comercial, que no início da terça era cotado a R$ 5,54, às 12h30 desta sexta era cotado a R$ 5,75, alta acumulada de 3,8%. A incerteza do mercado financeiro sobre o compromisso do governo com o ajuste fiscal também pode levar ao aumento da taxa de juros, que já está em trajetória de alta.

Por que o governo quer alterar o teto

Bolsonaro confirmou nesta semana que criará um novo programa de transferência de renda, chamado Auxílio Brasil, que substituirá o Bolsa Família e pagará no mínimo R$ 400 por mês às famílias beneficiadas.

O Bolsa Família hoje paga, em média, R$ 190 por mês, e o auxílio emergencial criado durante a pandemia será extinto no final de outubro, o que provocaria uma piora nas condições de vida de milhões de brasileiros, que já enfrentam crescimento da fome e da miséria e alta taxa de desemprego.

A discussão sobre a substituição ou ampliação do Bolsa Família é ativa no governo e no debate público desde o início do auxílio emergencial, em abril de 2020, que demonstrou os efeitos benéficos de uma maior transferência de renda no combate à pobreza e no desempenho da economia.

Porém, nesse período o governo e o Congresso não fizeram reformas ou cortaram despesas que permitiriam a ampliação do programa. Pelo contrário, foi ampliado o valor destinado a emendas parlamentares e não houve redução de subsídios a setores da economia e nem o enfrentamento de privilégios salariais de parte do funcionalismo público.

Como consequência, quando Bolsonaro confirmou que criaria o Auxilio Brasil, não havia espaço no Orçamento do ano que vem para financiá-lo e, ao mesmo tempo, respeitar o teto de gastos.

O teto de gastos foi criado no governo Michel Temer com a justificativa de reduzir a dívida pública, mas seu modelo desperta controvérsia entre economistas. Ele estabelece que o governo não pode gastar mais do que gastou no ano anterior, corrigido pela inflação.

Qual é a mudança proposta

A saída do governo para ampliar o seu limite de gastos em 2022, sem cortar outras despesas, é baseada em dois pilares, ambos incluídos na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, cujo texto foi aprovado nesta quinta-feira em comissão especial da Câmara.

O primeiro é permitir que o governo federal atrase o pagamento de algumas de suas dívidas judicias, os precatórios. Isso ampliaria em R$ 44 bilhões o espaço no Orçamento no ano que vem.

O segundo é alterar a forma como o teto de gastos é calculado. Hoje, considera-se a inflação dos últimos 12 meses até junho do ano anterior para definir o teto do ano seguinte. A proposta do governo é considerar a inflação de janeiro a dezembro, e fazer um cálculo retroativo desde o início do instrumento de ajuste fiscal. Isso criaria uma folga de mais R$ 39 bilhões para o ano que vem.

Essas mudanças são interpretadas por operadores do mercado financeiro – dos quais muitos apostaram na candidatura de Bolsonaro em 2018 pelo compromisso expresso por ele e por Guedes com o ajuste fiscal – como um desrespeito à regra do teto de gastos. Para eles, o teto é fundamental para que o governo indique sua disposição de reduzir o déficit e seguir capaz de honrar o pagamento de sua dívida.

As alterações ainda precisam ser aprovadas pelo plenário da Câmara e, depois, pelo Senado para entrar em vigor.

Quais são os efeitos políticos

A mudança no teto de gastos é defendida por uma ala importante do governo, que considera crucial ampliar as despesas no ano que vem para aumentar a chance de Bolsonaro se reeleger. Pesquisa PoderData realizada de 27 a 29 de setembro mostrou que o presidente tem 30% de intenção de voto, contra 40% do seu principal concorrente, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. No segundo turno, Lula tem 56% das intenções de voto, e Bolsonaro, 33%.

Lula, por sua vez, dobrou a aposta de Bolsonaro e disse, nas suas redes sociais, que defende uma transferência de renda de R$ 600 para as famílias de baixa renda para combater a miséria.

Se as mudanças na PEC dos Precatórios forem aprovadas, o governo Bolsonaro teria à sua disposição um extra de R$ 83 bilhões ao longo de 2022 e conseguiria financiar o Auxílio Brasil. Com isso, o Planalto espera ampliar a popularidade do presidente, especialmente nas regiões mais pobres do país, onde Lula tem suas maiores taxas de intenção de voto.

Com a verba extra, seria possível ainda ampliar o valor das emendas parlamentares, importantes para Bolsonaro conquistar o apoio de deputados e senadores, e ainda criar outros programas. Na quinta-feira, o presidente prometeu que daria também um auxílio a caminhoneiros para compensar pela alta do diesel.

Deutsche Welle Brasil, em 22.10.21

Como manobra do teto de gastos para viabilizar Auxílio Brasil pode deixar brasileiros mais pobres

Para garantir pagamento de R$ 400, governo pretende driblar regra que limita crescimento de gastos públicos, mas isso pode acabar 'retroalimentando' inflação

Carteira vazia  (Crédito da foto - Getty Images)

Dinheiro extra sempre vem em boa hora, sobretudo para quem mais precisa dele.

Por isso, faz sentido que milhões de brasileiros em condição de vulnerabilidade vejam de forma positiva os esforços do governo de Jair Bolsonaro para viabilizar o pagamento de R$ 400 aos beneficiários de seu novo programa social, o Auxílio Brasil, valor superior ao do Bolsa Família, que deixa de existir.

E, de fato, dizem economistas, "a curtíssimo prazo", esse incremento poderia até dar um empurrão na economia, em meio a circunstâncias atuais nada animadoras. Afinal, tende a elevar o consumo e a amenizar os efeitos da inflação que corroem o poder de compra.

O problema é que esse gasto adicional, na forma como está sendo proposto pelo governo, tende a "retroalimentar" a inflação no futuro, anulando seus efeitos inicialmente positivos — e são os mais vulneráveis os primeiros a sentir o impacto disso.

Houve debandada de integrantes do alto escalão do Ministério da Economia, todos subordinados ao titular da pasta, Paulo Guedes

Mas por quê?

A realidade é que o governo não tem de onde tirar essa despesa excedente.

Para viabilizar o pagamento de R$ 400 do Auxílio Brasil, ele pretende driblar o chamado "teto de gastos", uma regra de 2016 que limita o crescimento dos gastos públicos à inflação do ano anterior.

Ela foi criada naquele ano pelo temor de um desastre fiscal — o governo vinha gastando mais do que podia e isso colocava em xeque a capacidade de o país arcar com suas dívidas.

É mais ou menos como um cidadão comum: quem não paga suas contas, fica com o nome "sujo" na praça.

Se o mercado percebe que a capacidade de pagamento do Brasil está comprometida, reage negativamente, levantando dúvidas sobre o que e como o governo vai fazer para honrar seus compromissos.

Um exemplo prático é de um investidor que tenha ações de empresas no Brasil. Diante de um futuro nada promissor para seus investimentos, ele tende a querer buscar outros países onde se sente mais seguro para ver seu dinheiro se multiplicar.

Agora, imagine vários investidores pensando o mesmo e, possivelmente, retirando seus recursos em massa — é o que economistas chamam de "fuga de capitais".

Para piorar, houve uma debandada de integrantes do alto escalão do Ministério da Economia, todos subordinados ao titular da pasta, Paulo Guedes. Foram quatro, ao todo, incluindo o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal.

Segundo comunicado divulgado pelo órgão, eles citaram razões pessoais para deixarem seus cargos, mas nos bastidores se sabe que a decisão foi motivada pela proposta formalizada do governo de furar o teto de gastos.

Tudo isso fez com que o dólar subisse e a bolsa brasileira fechasse em queda na quinta-feira (21/10).

Só as empresas brasileiras listadas na Bovespa perderam R$ 284 bilhões em valor de mercado em três dias, segundo a desenvolvedora de sistemas de análise financeira Economatica.

Nesta sexta-feira (22/10), até a conclusão desta reportagem, a situação não estava muito diferente — o dólar continua em forte alta e a bolsa, em queda.

Mas o agravamento da situação fiscal não só acarreta o aumento da inflação. Também provoca efeitos em cascata para o restante da economia.

Inflação mais alta força subida dos juros pelo Banco Central (BC), o que freia a atividade econômica e tem impacto no PIB (Produto Interno Bruto, a soma de riquezas produzidas por um país).

E economia mais enfraquecida gera queda de renda e desemprego.

Já a fuga de capitais gerada pela crise de confiança dos mercados tem impacto direto no dólar — quanto mais dólares saem do país, "mais cara" a moeda americana fica.

Não é só o bolso do brasileiro, especialmente aquele de menor renda, que sofre. Os cofres do governo, também (Getty Images)

E o dólar mais valorizado afeta consideravelmente o preço de uma série de produtos, como gasolina, gás de cozinha e alimentos.

O que, em última instância, contribui para elevar ainda mais a inflação.

E não é só o bolso do brasileiro, especialmente aquele de menor renda, que sofre. Os cofres do governo, também.

Segundo um estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI), cada ponto percentual de aumento da inflação gera um impacto estimado de R$ 12,4 bilhões no gasto primário.

Isso significa que a capacidade de o governo de gerir suas contas fica ainda mais engessada, o que pode afetar, em última análise, a continuidade do pagamento do benefício no futuro.

"O mercado parece de fato ter abandonado o auto engano que haveria espaço para mais ajustes fiscais e respeito ao teto dos gastos", diz André Perfeito, economista-chefe da Necton Investimentos, em seu comentário diário a investidores.

"A realidade econômica e social se impôs sobre o Planalto e na ausência de um plano de ação claro se acumulam evidências que irão tampar um buraco por vez com uma fita crepe de R$ 400 por vez", acrescenta.

Auxílio Brasil

O Auxílio Brasil, o programa social do governo Bolsonaro para substituir o Bolsa Família, foi anunciado na quarta-feira (20/10) pelo ministro da Cidadania, João Roma, com início previsto para novembro deste ano.

O programa, pelo qual beneficiários receberiam R$ 400, R$ 100 a mais do que o proposto inicialmente e mais do que o dobro do pagamento médio do Bolsa Família, coincidiria com o fim do pagamento do chamado Auxílio Emergencial, benefício pago aos mais vulneráveis durante a pandemia de covid-19. O número de beneficiários também aumentaria dos atuais 14,6 milhões para 17 milhões.

A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que flexibiliza o teto dos gastos cria um espaço orçamentário de R$ 83 bilhões no ano eleitoral de 2022, segundo seu relator, o deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB).

Esse valor não deve só ser usado para viabilizar o pagamento do Auxílio Brasil, mas também gastos de interesse de aliados do governo, como emendas parlamentares, por meio das quais eles mandam dinheiro para obras e projetos em suas bases eleitorais.

BBC News Brasil, em 22.10.21

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Populismo de Bolsonaro e Guedes deflagra crise e debandada na Economia

A exigência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de turbinar gastos em ano eleitoral e a manobra para driblar a regra constitucional do teto de gastos derrubaram a Bolsa, fizeram dispararem dólar e juros e causaram uma debandada no time do ministro Paulo Guedes (Economia).

Quatro secretários da equipe econômica pediram demissão nesta quinta-feira (21) por discordarem das decisões. Pediram para deixar o governo dois dos principais nomes do núcleo da pasta, o que comanda as contas públicas.

O maior representante da área, abaixo de Guedes, é o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal. Ele, assim como o secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt —subordinado a Funchal—, pediram exoneração dos cargos.

Em nota, o Ministério da Economia afirmou que também deixarão os cargos técnicos-chave do ministério. São eles a secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araujo.​

A debandada ocorreu após semanas de escalada da pressão do Palácio do Planalto sobre a equipe econômica por mais recursos, e horas após a formalização de uma proposta do governo para driblar o teto de gastos, regra que limita o crescimento das despesas públicas federais.

A medida abre margem de ao menos R$ 83 bilhões no Orçamento em ano eleitoral, inclusive para turbinar emendas parlamentares, recursos direcionados pelos deputados e senadores para suas bases eleitorais.

Alinhado à ala política do Palácio do Planalto e ao centrão, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou uma série de gastos às vésperas de ano eleitoral. Em 2022, ele buscará a reeleição.

O imbróglio está em torno de garantir R$ 400 para o Auxílio Brasil. O programa substituirá o Bolsa Família, uma marca do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que hoje lidera a corrida presidencial.

O Ministério da Economia atribuiu os pedidos de demissão dos quatro secretários a "razões de ordem pessoal". Segundo o órgão, as solicitações foram feitas de modo a permitir que haja um processo de transição e de continuidade. Eles continuarão no cargo até a nomeação dos substitutos (cujos nomes não foram informados).

A Folha, no entanto, apurou que Funchal afirmou à sua equipe que deixa o governo por questões de princípio. O secretário demissionário já havia dito que não chancelaria medidas que subvertessem a ordem fiscal.

"Funchal e Bittencourt agradecem ao ministro pela oportunidade de terem contribuído para avanços institucionais importantes e para o processo de consolidação fiscal do país", disse o ministério.

A debandada é reflexo de uma crise aberta no governo entre a equipe econômica e a ala política. Cobrado pelo centrão e interessado em medidas com apelo eleitoral, Bolsonaro exigiu o pagamento de R$ 400 a beneficiários de programas sociais até o fim de 2022, ano de eleições.

Integrante do centrão, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), minimizou os pedidos de demissão. Ele elogiou o time de Guedes e disse que novos nomes continuarão o serviço do governo.

"A equipe econômica, que vem bem conduzindo esta crise provocada pela pandemia, terá substituições por técnicos igualmente qualificados que continuarão prestando bons serviços. Guedes firme e forte como sempre na condução da economia", disse o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR).

O contorno às regras fiscais foi a saída encontrada pelo governo para viabilizar a medida. Guedes era contra e tentou negociar uma solução sem alterações no teto, mas foi vencido na discussão com a ala política.

Segundo relataram membros do governo à Folha, quando Guedes apresentou a ideia à própria equipe, houve uma forte reação dos subordinados e ameaças de demissão. Pela falta de consenso e pela necessidade de mais tempo para a elaboração da proposta, o anúncio dos R$ 400 foi suspenso. O plano passou a ser adaptado com ajuda da própria equipe econômica e desencadeou a proposta alternativa, que expande o teto de gastos.

Nesta quinta, o governo e aliados no Congresso inseriram na PEC (proposta de emenda à Constituição) que adia o pagamento de precatórios —dívidas reconhecidas pela Justiça— uma mudança na regra de correção do teto de gastos, para expandir o limite para as despesas.

O conjunto das alterações previstas cria um espaço orçamentário de R$ 83 bilhões no ano eleitoral de 2022, de acordo com o relator da proposta, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB).

Antes mesmo do anúncio da saída dos secretários, o mercado encerrou o dia com reação negativa forte à proposta do governo.

A Bolsa de Valores brasileira fechou em queda de 2,75%. O dólar subiu 1,88%, a R$ 5,6670, e os juros futuros aumentaram os prêmios, com o DI para janeiro de 2025 em alta de quase 60 pontos-base, a 11,48% ao ano.

A demissão dos secretários foi usada como argumento pela oposição, que tentou barrar o avanço da PEC na Câmara. Segundo partidos de oposição, a debandada mostrou que a proposta não é consenso nem sequer no governo.

Funchal e Bittencourt eram responsáveis pelo comando dos cofres do governo federal e tinham confiança de Guedes. O ministro os nomeou para os cargos há cerca de seis meses em uma dança das cadeiras deflagrada com a saída do então secretário especial de Fazenda Waldery Rodrigues.

Os dois estavam entre os maiores defensores do teto de gastos dentro do ministério e apontavam a regra como a âncora para a manutenção da confiança no governo e a estabilidade de indicadores como juros e inflação.

No início da semana, quando a ideia de driblar o teto foi aventada, interlocutores do governo já haviam alertado que a concretização de uma medida desse tipo poderia provocar uma debandada na equipe econômica.

Mesmo assim, logo após a proposta ter sido apresentada, os dois secretários anunciaram a saída.

No Ministério da Economia, Funchal foi diretor de programa e se encarregava sobretudo de medidas voltadas aos estados. Ele foi promovido a secretário do Tesouro no lugar de Mansueto Almeida.

Depois, ele subiu mais um degrau na hierarquia da pasta, assumindo o comando da Secretaria Especial de Fazenda (hoje denominada secretaria especial do Tesouro e Orçamento).

"Parabéns ao secretário do Tesouro e ao secretário especial de Fazenda por não aceitarem participar da maior lambança fiscal da história das contas públicas no Brasil", afirmou no Twitter Felipe Salto, diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado).

Servidor de carreira do Tesouro, Bittencourt ​​foi assessor especial de Guedes antes de ocupar o comando da secretaria. Ele foi alçado ao posto após a saída de Waldery Rodrigues, ex-secretário especial de Fazenda.

Bittencourt havia sido também secretário especial adjunto de Fazenda e passou por outros cargos no ministério, como o de diretor de programa. Tem passagens também pelo governo do Rio Grande do Sul.

Em agosto de 2020, Guedes teve que lidar com outro movimento classificado por ele próprio como debandada. Na ocasião, os então secretários especiais Salim Mattar (Desestatização) e Paulo Uebel (Desburocratização) decidiram deixar os cargos. A razão das saídas foi a demora do governo em implementar reformas.

Do primeiro escalão montado originalmente por Guedes ao assumir o posto, em 2019, restam apenas o secretário-executivo, Marcelo Guaranys, e o secretário especial de Produtividade, Carlos da Costa.

ENTENDA A MUDANÇA NO TETO DE GASTOS

Pelo plano apresentado para mudar a regra fiscal, a Constituição será alterada para que o teto seja corrigido anualmente pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) acumulado em 12 meses de janeiro a dezembro.

Atualmente, o período usado como base para o limite anual considera o IPCA acumulado em 12 meses até junho do ano anterior. Isso cria um descompasso nas contas, porque despesas previdenciárias e de programas sociais são corrigidas com base na inflação calculada no encerramento do ano.

Com a alteração, seriam sincronizados os períodos de correção do teto e das despesas indexadas do governo.

Só com a mudança na correção do teto, Motta afirma que seria aberto um espaço de mais de R$ 39 bilhões em relação ao previsto hoje na proposta de Orçamento de 2022.

Segundo ele, a folga no Orçamento subiria para R$ 83 bilhões com a flexibilização para o pagamento dos precatórios —dívidas do governo reconhecidas pela Justiça, que serão em parte jogadas para anos seguintes.

Motta afirmou que os reflexos da crise da Covid-19 justificam as mudanças no teto de gastos. "Estamos antecipando a reavaliação do teto, que poderia ser feita em 2026, para 2021, porque tivemos uma pandemia que mais do que justifica a antecipação dessa reanálise", disse o relator.

Segundo ele, a nova versão da PEC, que agora prevê a mudança no teto de gastos, também deverá permitir elevar de R$ 4 bilhões para R$ 11 bilhões a verba para compra de vacinas contra a Covid-19.

A conta do espaço a ser aberto no teto de gastos com as mudanças pode ser mais alta do que a apresentada pelo relator.

Pelos cálculos do economista Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente, órgão do Senado que monitora as contas públicas), a correção do teto deve expandir o teto em 2022 em R$ 47 bilhões, em relação ao previsto sob a regra atual.

Segundo ele, somado ao impacto provocado pela limitação de precatórios, o espaço aberto nas contas de 2022 deve chegar a R$ 94,4 bilhões, valor maior do que o estimado pelo relator.

"Parabéns ao secretário do Tesouro e ao secretário especial de Fazenda [hoje do Tesouro e Orçamento] por não aceitarem participar da maior lambança fiscal da história das contas públicas no Brasil", disse.

Para Juliana Damasceno, economista e pesquisadora de finanças públicas do Ibre FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas), as mudanças das regras mostram que não há preocupação em manter a norma como uma âncora fiscal do país.

"Antecipar essa revisão responde apenas a um interesse temporário, conjuntural, que é o cenário das eleições do ano que vem", disse.

Em Sertânia (PE), onde esteve na inauguração de um braço da transposição do rio São Francisco, Bolsonaro disse que o aumento no auxílio será feito com responsabilidade.

"Temos aproximadamente 16 milhões de pessoas no Bolsa Família, e o valor médio [do benefício] está em R$ 192. Se o médio é R$ 192, tem muita gente ganhando R$ 40, R$ 50, R$ 60. O que nós decidimos é que vamos passar todos para no mínimo R$ 400. Isso tudo com responsabilidade, ninguém está furando o teto, não", afirmou.

A mudança na regra do teto de gastos começaria a valer já neste ano, de acordo com a nova versão da PEC apresentada nesta quinta. Um dispositivo determina que a correção em 2021 poderá liberar um limite de até R$ 15 bilhões em despesas ligadas à vacinação contra a Covid-19, além de "ações emergenciais e temporárias de caráter socioeconômico".

Bernardo Caram, Fábio Pupo e Thiago Resende, de Brasília para a Folha de S. Paulo, em 21.10.21

Secretário de Petróleo e Gás do Ministério de Minas e Energia pede demissão

José Mauro Coelho estava no cargo desde abril de 2020. Informação foi divulgada no mesmo dia em que Bolsonaro anunciou que pagará um auxílio a 750 mil caminhoneiros para compensar aumento do diesel.

O secretário de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia, José Mauro Coelho, pediu demissão do cargo. A informação foi divulgada nesta quinta-feira (21) pela assessoria de imprensa da pasta.

Nesta quinta-feira (21), o presidente Jair Bolsonaro anunciou que vai pagar um auxílio a 750 mil caminhoneiros autônomos para compensar o aumento do diesel.

"Após cerca de 14 anos no serviço público, dos quais quatro como Diretor de Petróleo, Gás e Biocombustíveis da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e um ano e meio como Secretário de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia (MME), José Mauro Ferreira Coelho deixa o serviço público", diz o ministério em nota.

Mauro Coelho estava no cargo desde abril de 2020. Antes, trabalhou por 12 anos na Empresa de Pesquisa Energética (EPE), estatal do governo responsável pelo planejamento do setor elétrico.

Segundo o ministério, José Mauro cumprirá o período de quarentena e, depois, assume "novos desafios na iniciativa privada brasileira". A pasta não informou o motivo do pedido de demissão nem o substituto para o cargo.

Outros pedidos

Os secretários do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt, também pediram demissão dos cargos nesta quinta-feira (21). O anúncio foi feito pelo próprio Ministério da Economia.

De acordo com a pasta, ambos pediram exoneração ao ministro da Economia, Paulo Guedes, e informaram motivos pessoais.

Também pediram demissão nesta quinta (21), a secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araujo.

Os pedidos foram feitos em meio a discussão do governo sobre uma possível manobra para abrir espaço no teto de gastos. De acordo com informações do blog da Ana Flor, contas públicas e instituições financeiras calculam que o rombo na regra do teto de gastos pode chegar a R$ 100 bilhões.

Os substitutos nos cargos ainda não foram anunciados.

Jéssica Sant'Ana, de Brasília para o g1, em 21.1021