segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Brasil deve reduzir desmatamento a nível de 10 anos atrás para atrair investidor, diz Joaquim Levy

Para Levy, a discussão não é sobre a regra fiscal, mas sobre como se tenta fazer mudanças duras nos ramos do país sem informar e conscientizar a população de seus objetivos finais. Segundo ele, os políticos brasileiros ainda não entenderam que "o povo não gosta de populista, o povo gosta de ver os resultados".

Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda, hoje integra o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (BBC News Brasil)

O ex-ministro da Fazenda, ex-presidente do BNDES e ex-secretário do Tesouro Nacional Joaquim Levy se entusiasma ao falar da floração de ipês e das espécies da Mata Atlântica que aparecem em seu fundo de tela enquanto dá entrevista via zoom à BBC News Brasil.

Nos últimos tempos, Levy tem se dedicado a estudar um tipo específico de mercado — o de carbono — e vê no Brasil condições de "caminhar rapidamente para uma economia de emissões zero com grandes benefícios", em linha com a urgência que o tema do aquecimento global tem despertado entre os líderes ocidentais.

A menos de uma semana do início da COP-26, a Conferência do Clima da ONU que acontece em Glasgow, na Escócia, com a missão de ser mais relevante para o planeta do que as resoluções do Acordo de Paris, há seis anos, Levy afirma que o empresariado brasileiro chegará ao encontro com ambições mais verdes e maiores do que o próprio governo, tendência que ele identifica também em outros países.

Levy integra o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS, uma associação civil sem fins lucrativos fundada por grandes empresários brasileiros inspirados nas discussões da Cúpula do Rio 1992) e tem viajado o país para verificar in loco iniciativas empresarias verdes, como as da chamada agricultura de baixo carbono.

Embora tenha deixado o governo Bolsonaro em julho de 2019 em um episódio tumultuado — Levy pediu as contas da chefia do BNDES depois de declaração do presidente de que sua cabeça estava "a prêmio" — ele não demonstra rancor nas moduladas críticas à atuação da atual administração.

De modo propositivo, diz que investidores internacionais estão atentos a métricas e a fim de atrai-los, seria importante para o Brasil trazer os níveis de desmatamento na Amazônia para os valores medidos em 2012, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) aferiu cerca de 4,5 mil quilômetros quadrados de floresta desmatada.

Em 2019 e 2020, o número encostou nos 11 mil quilômetros quadrados de perdas e atraiu intensas críticas internacionais e questionamentos à política ambiental de Jair Bolsonaro, que paralisou demarcações de terras indígenas e de reservas ambientais.

"Eu acho que toda política tem um ritmo de altos e baixos, isso é natural numa democracia. Evidentemente todo mundo vai aplaudir — ou muita gente vai aplaudir — se o Governo Federal vier a tomar alguma decisão de colocar terras em proteção ambiental", diz Levy.

Defensor histórico da austeridade fiscal e egresso da mesma Escola de Chicago que formou o ministro da economia Paulo Guedes, Levy também evitou dizer se o movimento feito pelo presidente Bolsonaro — de furar o teto de gastos para vitaminar o Bolsa Família e rebatizá-lo como Auxílio Brasil há menos de um ano da eleição — poderia ser definido como "pedalada fiscal", como disseram alguns de seus colegas, entre os quais o economista Edmar Bacha. "Eu não sei te dizer até porque eu nunca consegui apreender plenamente o que é o sentido de pedalada", disse Levy. Para ele, termos como "pedalada" ou "liberalismo" e "neoliberalismo" são "rótulos" que levam à perda de foco no debate público.

Levy, no entanto, afirmou que programas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, funcionam porque "são desenhados com bases racionais, não são de curto prazo, não são para ganhar uma eleição". "Eu acho que uma lição importante no Brasil é que políticas mais personalistas ou clientelistas tipicamente são menos eficientes", disse.

Ex-ministro aponta que para atrair investidores internacionais seria importante para o Brasil trazer os níveis de desmatamento na Amazônia para os valores medidos em 2012. (GreenPeace Photo/ Daniel Beltra)

E embora defendesse que um aumento de 30% do benefício pudesse ter sido feito por decreto e sem gerar mal estar no mercado — que teve na semana passada seu pior período desde o início da pandemia — enquanto que o aumento de 100% pedido por Bolsonaro forçou ao rompimento do teto, Levy ecoou as explicações de Guedes sobre a manobra ao dizer que "a nossa situação é relativamente positiva no curto prazo fiscalmente, as receitas vão boas. Nesse sentido, dado que ainda têm populações que estão em dificuldades, a gente deve tentar atendê-las? Sim. Se é em cima do teto, fora do teto, eu não sei".

Para Levy, a discussão não é sobre a regra fiscal, mas sobre como se tenta fazer mudanças duras nos ramos do país sem informar e conscientizar a população de seus objetivos finais. Segundo ele, os políticos brasileiros ainda não entenderam que "o povo não gosta de populista, o povo gosta de ver os resultados".

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Levy à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza.

Nos últimos tempos, Levy tem se dedicado a estudar um tipo específico de mercado - o de carbono - e vê no Brasil condições de " caminhar rapidamente para uma economia de emissões zero com grandes benefícios" (BBC News)

BBC News Brasil - Parece existir uma mudança forte de mentalidade globalmente em relação à necessidade de combater as mudanças climáticas. Enquanto isso, nos últimos três anos o Brasil chegou a negar o problema e tem sido acusado de fazer pouco, especialmente em relação ao desmatamento. O Brasil está perdendo o bonde da história?

Joaquim Levy - A questão climática é existencial, as evidências disso vêm se acumulando. O que chama atenção aqui e ao redor do mundo é que nós vemos a sociedade, o setor privado e as empresas, às vezes, com uma ambição e uma atividade mais intensa do que os próprios governos (para combater o aquecimento global).

Então, por exemplo, na Europa você tem um mercado regulado de carbono. Nos Estados Unidos, não tem, mas por outro lado, você tem muitas empresas que estão procurando se posicionar no mercado voluntário, se comprometendo com metas de descarbonificação, etc.

No Brasil também é bem claro que muitas empresas têm andado mais rápido do que o governo e o ambiente político como um todo. Eu acho isso muito positivo. Inclusive, em Glasgow, a gente deve ter um contingente muito forte de empresas brasileiras comprometidas com o meio ambiente. O Brasil é um país é muito diversificado mas tem um movimento cada vez mais forte da atenção ambiental inclusive no agronegócio, onde existem algumas clivagens ainda, a gente não deve esconder as coisas como são, mas há grupos bastante fortes no agronegócio que estão bem conscientes da importância climática e também da importância da proteção de Amazônia.

BBC News Brasil - Essa movimentação do empresariado brasileiro, inclusive em Glasgow, é uma preocupação com possíveis sanções internacionais aos produtos do Brasil?

Levy - As empresas brasileiras, principalmente o setor mais exposto ao comércio internacional, entende as expectativas dos nossos parceiros e dos nossos investidores, além das demandas internas que existem para a conservação da Floresta Amazônica e de novas técnicas de agricultura de baixo carbono. O setor agropecuário tem se manifestado de uma maneira cada vez mais atenta e criando programas que talvez há quatro, cinco anos atrás ninguém pensasse que seria possível. A gente encontra parcerias com governos subnacionais para fazer rastreamento de animais, ter certeza que a carne brasileira não está maculada pelo desmatamento.

Às vezes não é fácil fazer isso, tem que ter muita persistência, mas as empresas estão fazendo isso e nós temos governos (estaduais) que estão cooperando, inclusive porque aqui no Brasil a gente tem ferramentas que permitem muita coisa. É óbvio que um animal que é exportado, ele é controlado, ele tem guias de saúde, de transporte. Então você tem que incorporar isso também para ter certeza que não tem nenhuma violação das leis de desmatamento do Brasil.

Embora tenha deixado o governo Bolsonaro em julho de 2019 em um episódio tumultuado, Levy não demonstra rancor nas moduladas críticas à atuação da atual administração. (AFP)

BBC News Brasil - Recentemente, a BBC News Brasil noticiou que o Congresso dos EUA debate um projeto de lei pra proibir importação de carne bovina que possa ter passado por área de desmatamento, o que afetaria o Brasil. A Europa trabalha com o mesmo arcabouço legal. Há uma percepção de que o risco de sanção é alto?

Levy - Todo importador gosta de transparência. Então é evidente que, às vezes, quando você não tem fluxo de informação que reflita a própria realidade, você às vezes tem essas ações. Mas o objetivo do Brasil é ter uma produção que tenha conformidade com os padrões. E aí cada país tem o direito de impor um padrão na sua importação que achar conveniente. A gente não deve esperar histerismo, acho que tem que ter um certo cuidado.

BBC News Brasil - O Itamaraty tem reconhecido que o Brasil tem um problema de imagem internacional negativa no aspecto ambiental. E parece haver uma preocupação de que isso esteja afugentando os investidores. O senhor vê desconfiança dos investidores em relação ao Brasil?

Levy - Eu acho que os investidores têm dado certas indicações do que lhes daria maior conforto (em investir no Brasil). Quem é investidor gosta de métrica, e existem algumas que são bem precisas.

Por exemplo, tem uma variável bastante conhecida que é a área desmatada por ano no Brasil. Essa área aumentou. É óbvio que isso cria um desconforto e alguns investidores dizem 'bom, olha, eu acho ótimo ter todos os esforços (anunciados de combate ao desmatamento), mas a gente precisa ver resultados'.

E eu acho que nessas coisas a gente tem que ter uma diplomacia de resultados. Será importante para o Brasil voltar a baixar os níveis de desmatamento pelo menos para o patamar que já tivemos há dez ou oito anos atrás, quando tínhamos um desmatamento de quatro mil quilômetros quadrados por ano, que já é bastante, mas dada a Amazônia, é um número mais razoável. Ou seja, (bem abaixo do) número de 10 ou 11 mil quilômetros quadrados atuais. Eu tenho o entendimento que o próprio governo está tentando reduzir, a questão é com que intensidade essa redução vai ser alcançada pra gente atender às expectativas internas e externas. Esse é o desafio que se coloca.

Há um entendimento hoje bem espalhado de que você pode aumentar a produção tanto de carne quanto de grãos sem nenhum desmatamento, meramente intensificando a produção da carne, integrando a produção da carne com a produção de grãos, fazendo a rotação de áreas, que são atividades que na verdade são lucrativas e sustentáveis, acumulam carbono no solo e evitam o desmatamento.

BBC News Brasil - Dada a percepção de que não é preciso desmatar para produzir mais e melhor, a quem interessa e como a gente pode explicar o alto nível de desmatamento atual?

Levy - Esse desmatamento é ilegal e (para combater) tem que fazer um esforço. Num certo momento, perdeu-se um pouco o ritmo desse esforço para coibir os desmatamentos ilegais e a venda de produtos de áreas desmatadas. Há mais de dez anos a gente tem aquele acordo, a moratória da soja (compromisso entre agricultores, ambientalistas e o governo que proíbe compra da soja plantada em área desmatada), que tem se mostrado muito efetiva e não tem atrapalhado o crescimento do Brasil. O Brasil tem produzido mais soja sem desmatar na Amazônia, tem dez anos que isso funciona.

BBC News Brasil - Seria a hora de uma moratória da carne?

Levy - Ela já está acontecendo. Aí também tem uma diferença entre grandes e pequenos produtores. Às vezes, o pequeno produtor faz caminhos mais informais em que esse controle é menor, mas na medida em que os Estados também já estão se aparelhando para fazer esse tipo de monitoramento, isso está começando a evoluir.

E outro ponto importante é a questão fundiária, porque às vezes a pessoa desmata nem mesmo para produzir carne. Ela ocupa a terra com a pecuária mas o objetivo final dela é eventualmente vir a se candidatar a regularizar uma terra que ela vem ocupando de uma maneira ilegal.

Aí também há uma série de mecanismos que estão começando a ser postos em prática, inclusive com a designação de algumas áreas públicas como reserva legal. Semana passada, aliás, o estado do Pará, por exemplo, designou uma nova reserva de conservação, a São Benedito (o Refúgio de Vida Silvestre dos Rios São Benedito e Azul, nos municípios de Jacareacanga e Novo Progresso) e com isso fica muito claro que aquela não é uma terra vazia, uma terra que está ali para ser ocupada, para quem chegar, pegar.

"Em relação ao desmatamento, qualquer trajetória (de redução) é bem-vinda", afirma (Fábio Rodrigues Pozzebom, Ag. Brasil).

BBC News Brasil - O senhor citou exemplos de políticas estaduais. No âmbito federal, o governo paralisou a demarcação de terras indígenas e de reservas ambientais. É uma decisão equivocada?

Levy - Eu acho que toda política tem um ritmo de altos e baixos, isso é natural numa democracia. Evidentemente todo mundo vai aplaudir se o governo federal — ou muita gente vai aplaudir — se o Governo Federal vier a tomar alguma decisão de colocar terras em proteção ambiental.

Mas eu acho que não existe uma só solução para esse problema e se tivermos sucesso nesse novo movimento de intensificação de uso e melhoria dos pastos, a gente chegará a um novo patamar. Até porque o objetivo no médio prazo tem que ser você diminuir drasticamente as emissões de metano ou compensá-las com acúmulo de carbono no solo. Então, se você tem uma intensificação das pastagens que permite liberar áreas para regeneração natural assistida, quando você faz um balanço (de impacto climático) de uma fazenda você começa a ter uma situação muito mais estável pelo menos por 20 ou 30 anos, o período mais crítico para a gente chegar a uma economia de emissões zero, o que permite à pecuária ficar muito mais sustentável. Isso é o que a Austrália e outros países vêm defendendo, o problema da pecuária não é único no Brasil.

BBC News Brasil - O que o Brasil deveria apresentar na COP em termos de métricas?

Levy - Em relação ao desmatamento, qualquer trajetória (de redução) é bem-vinda. A trajetória é o que todo mundo gosta. Quando trabalhei tanto no governo quanto no Banco Mundial ou em empresas privadas, a gente sempre queria ter trajetórias (para apresentar), que dá para os investidores um guia, um senso de localização. Então a meta às vezes a gente consegue alcançar, às vezes fica um pouquinho atrás mas é uma demonstração de que a gente está destinando os nossos esforços num dado caminho. Então acho que qualquer sinalização nesse sentido sempre é muito positiva.

BBC News Brasil - O ministro Paulo Guedes anunciou um investimento em torno de US$ 2 bilhões para impulsionar o crescimento verde. É o que outras economias desse tamanho têm feito?

Levy - Não sei exatamente o que o mundo está fazendo. Existe um problema de falta de comparabilidade de métricas. O que eu posso dizer é que no Brasil, tenho feito uns tantos estudos, a gente tem como caminhar rapidamente para uma economia de emissões zero com grandes benefícios.

No Brasil, a gente pode ser mais ambicioso em relação à eletrificação. Se você reparar já tem alguns investidores estrangeiros que querem aproveitar a nossa capacidade de geração elétrica sustentável ou renovável até para produzir hidrogênio, para exportar hidrogênio. A gente conseguiria fazer uma eletrificação da nossa frota de automóveis com bastante conforto porque o potencial de geração eólica e solar é da ordem de quatro a cinco vezes o que a gente tem hoje de capacidade instalada.

A economia brasileira hoje já é talvez a economia com a pegada de carbono mais baixa do mundo se você considerar emissões fósseis por população ou por PIB. O que a gente tem que fazer é obviamente aproveitar essa vantagem competitiva para investir, criar emprego. A mensagem de todos os empresários que estão aí é: 'vamos focar no que a gente tem que fazer e desenvolver as coisas em que a gente pode liderar'.

Nós temos vantagens em muitos setores, alguns até não muito reconhecidos. Ao redor do mundo tem um pouco de incompreensão em relação ao etanol, mas o etanol é positivo e não vai ficar preso ao motor de combustão interna, não. Já está havendo investimento e discussão de parceiros estrangeiros para usar o etanol no motor elétrico. Você transforma etanol em hidrogênio, depois usa a célula do motor elétrico inclusive de uma maneira muito mais eficiente do que você produzir e tentar transportar hidrogênio que é muito difícil.

BBC News Brasil - O senhor foi um dos maiores defensores de redução dos gastos públicos no país e apanhou muito por causa disso. Como o senhor vê agora essa perspectiva da mudança da regra para furar o teto?

Levy - A preocupação do mercado se justifica porque muitas regras foram sendo mudadas e, às vezes, é difícil de entender quais as prioridades que estão ali.

A questão fiscal tem que ser sempre entendida no seu conjunto. Não adianta eu querer mudar uma regra depois querer mudar outra. Isso só cria incerteza, então a situação do Brasil eu acho que a gente vai ter que pensar o que a gente quer como proposta fiscal, olhando para frente. Nós temos alguns elementos que são robustos mas flexíveis como, por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal, em que você procura um equilíbrio entre receitas e despesas de tal maneira que a dívida não cresça excessivamente.

De modo mais geral, precisa de duas coisas. Primeiro, uma priorização de gastos para melhora da qualidade de gasto, maior transparência de gastos. Isso você consegue com programas bem desenhados. Eu acho que uma lição importante no Brasil é que políticas mais personalistas ou clientelistas tipicamente são menos eficientes.

Então, por exemplo, se você quer proteger uma cidadezinha num estado pobre, não é mandando dinheiro pra lá ou fazendo uma obrinha aqui, uma obra acolá que você faz isso. Nossa experiência nos últimos anos mostra que é desenvolvendo projetos que são sistemáticos, que tem governança e que acabam sendo inclusive sustentáveis. Aqui no Brasil, como que a gente enfrentou momentos de dificuldades? A gente tem o sistema do SUS, você tem o médico da família, todas essas coisas são absolutamente impessoais e é bom porque muda de um governo para o outro mas aquilo continua funcionando.

Então acho que toda a discussão fiscal tem que ser vista com quais os objetivos do governo, que tipo de mecanismo eu quero ter para garantir essa isonomia, essa impessoalidade, essa continuidade das ações. Então, talvez parte da preocupação do mercado hoje é entender se isto continua sendo a regra, essa racionalidade em que o Brasil avançou bastante nos últimos anos, se nós vamos continuar a ter isso. Porque essa é a única maneira de você, com os recursos que você dispõe, você conseguir realmente entregar as coisas e começar a melhorar a vida das pessoas.

O melhor exemplo é o Bolsa Família. O Bolsa Família custa 0,5% do PIB, afeta a vida de 50 milhões de pessoas,tem participação em todos os municípios, e quase 70% das pessoas que já passaram pelo Bolsa Família saíram do Bolsa Família, encontraram emprego, estão trabalhando. Por quê? Porque é uma política desenhada com bases sólidas, com bases racionais, não é de curto prazo, não é para ganhar uma eleição.

Levy diz que programas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, funcionam porque "são desenhados com bases racionais, não são de curto prazo, não são para ganhar uma eleição" (Jefferson Rudy / Ag. Senado)

Continuar nesse caminho é muito importante. Em última instância, é isso que também dá tranquilidade até ao próprio mercado, porque tem certeza que a gente tem programas bem estabelecidos, programas que são perenes. Isso significa que a gente vai continuar melhorando (o social) sem ter choques no orçamento. Então acho que a discussão do teto tem que ser feita dentro de quais os objetivos das políticas sociais, quanto vai requerer de dinheiro e qual é a nossa estratégia tributária de tal maneira que o que eu vou estabelecer realmente me garanta esse equilíbrio fiscal de médio prazo.

BBC News Brasil - O ministro Paulo Guedes defendeu que a mudança para acomodar esses mais de R$ 80 bilhões de gastos adicionais não altera os fundamentos fiscais da economia política brasileira. O senhor concorda com essa avaliação?

Levy - Nós estamos vivendo um bom momento de arrecadação, em parte por conta da surpresa inflacionária e em parte por causa do impulso fiscal que foi dado no ano passado, de um trilhão de reais que foi gasto. Parte desse dinheiro virou lucro das empresas, parte foi usado para as pessoas comerem, talvez algo foi poupado, mas aquilo que ajudou a retomar a economia foi essa política keynesiana. Como toda política keynesiana, se você tem espaço, a atividade produtiva cresce, se você não tem espaço, ela vira inflação. Esse dinheiro está voltando também para os cofres do governo em forma de arrecadação. E isso significa que a gente está em uma circunstância fiscal bastante favorável por uma série de coincidências.

Você tem um perigo iminente? Não, porque a economia mostra resiliência. Nós também tivemos dois anos do setor externo extremamente favoráveis, aumento do valor das exportações de dezenas de bilhões de dólares. Então a nossa situação é relativamente positiva no curto prazo fiscalmente, as receitas vão boas.

Nesse sentido, dado que ainda têm populações que estão em dificuldades, a gente deve tentar atendê-las? Sim. Se é em cima do teto, fora do teto, eu não sei. Eu tenho chamado a atenção de que o governo poderia dar um aumento de 30% no Bolsa-Família sem dificuldade nenhuma, até por decreto, e que de certo modo foi o que acabou sendo feito na primeira parte do aumento (20% de reajuste anunciados na semana passada pelo ministro João Roma). Então estaria absolutamente dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal e preservaria o poder de compra dos benefícios.

BBC News Brasil - Por decreto seria se fossem os 30% de aumento, né? Mas o benefício praticamente dobrou de valor. É justificável um aumento dessa monta?

Levy - Eu não vi nenhum estudo, então não sei te dizer e eu tenho dificuldade de fazer um achismo. Acho que sempre tudo que a gente pode dar para as pessoas que estão em dificuldade, há mérito nisso. Agora eu não vi nenhum estudo que indicasse que o valor devesse ser x ou y. Então eu não tenho como dizer se é certo, se é muito, se é pouco. As coisas têm que ser feitas lastreadas em estudos. A legislação prevê pelo menos a manutenção do poder de compra, agora se há uma situação no mercado de trabalho que suscite você fazer uma outra coisa, aí é só uma questão de demonstrar, apresentar direitinho e tomar as decisões cabíveis.

Em junho de 2019, o economista pediu demissão da presidência do BNDES após Bolsonaro declarar que sua cabeça estava 'a prêmio' (Reuters)

BBC News Brasil - Waiver "extra-teto" foi o termo usado por Guedes para classificar o estouro do teto. Waiver extra-teto pode ser classificado como "pedalada fiscal"?

Levy - Eu não sei te dizer até porque eu nunca consegui apreender plenamente o que é o sentido de pedalada. Então eu acho que fica um pouquinho naquela categoria dos rótulos que a gente não sabe muito bem o que quer dizer.

BBC News Brasil - E no entanto foi essa a justificativa para o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Levy - E eu não sei exatamente. Acho que o cumprimento das regras é muito importante mas a gente tem que ter cuidado de não usar rótulos para isso e para aquilo porque senão o debate acaba perdendo um pouquinho de foco.

BBC News Brasil - Como o senhor espera que vá reagir a economia brasileira diante do aumento dos gastos públicos, inflação em alta e aumento nos juros? Há risco de recessão no ano que vem?

Levy - Nós estamos projetando algo na faixa de 1% de crescimento para o ano que vem e um crescimento relativamente modesto, mas acho que todas as economias mundiais vão ter um pouquinho de ressaca o ano que vem. Esperamos que a gente supere as dúvidas e incertezas fiscais porque eu acho que isso é fundamental para você ter decisões de investimento e com isso acelerar a recuperação do emprego. Hoje o principal é acalmar um pouco o jogo, realmente resolver essa questão mais premente do Bolsa Família, dar garantia às famílias mais vulneráveis no tamanho que for. E com isso criar um ambiente favorável ao investimento privado para manter uma taxa de crescimento. E com maior tranquilidade, mais confiança, o próprio dólar recua, o real também se aprecia, e diminui um pouquinho a pressão sobre os preços.

BBC News Brasil - A sua experiência no governo e a trajetória do ministro Guedes, que chegou com uma postura muito liberal e agora tem feito inúmeros concessões contra essa agenda, sugerem que é muito difícil cortar gastos no Brasil. Por que afinal é tão difícil cortar gastos no Brasil?

Levy - Quando se pensa em reforma administrativa é muito importante pensar o seguinte: qualquer empresa, antes de querer demitir todo mundo, precisa explicar o que essa empresa quer fazer, qual é o serviço que eu quero entregar. E aí com todos o avanço tecnológico que tem hoje você começa a desenhar qual é o quadro de funcionários que você precisa para entregar esse serviço. A verdadeira reforma administrativa tem que estar olhando para essas coisas, tem que estar atenta para cortar excessos, abusos, mas principalmente repensar o Estado que eu quero daqui a cinco, dez ou 15 anos. Não precisa virar uma Estônia, mas você pode dar uma modernizada.

Tem um trabalho sério para ser feito em relação a isso, e portanto, acho que a questão de se consigo ou não consigo cortar o gasto tem muito a ver com onde quero chegar. A minha experiência de gestor tanto público quanto privado é que é muito mais fácil você tomar decisões duras quando as pessoas sabem porque, não só porque vai ter um terremoto, mas é dizer 'olha, este aqui é o caminho para chegar lá e outras opções estão sendo abertas'. A experiência de você diminuir os gastos fiscais e com isso abrir espaço com taxas de juro menores, a gente experimentou um pouquinho disso, e começou a ver IPOs, uma porção de coisas, e isso pode realmente redesenhar a economia brasileira, e realmente democratizar o empreendedorismo.

Mas para isso eu tenho que ter uma estratégia: a discussão fiscal tem que estar dentro desse escopo de onde eu quero ir. E aí os instrumentos para chegar lá ficam muito mais claros. O (linguista e filósofo de esquerda Noam) Chomsky e tantos outros dizem que a democracia é aquela em que você tem que persuadir as pessoas. Então, com técnica e com um pouquinho de arte, você tem que persuadir que o caminho é diminuir os gastos e isso vai te permitir baixar a taxa de juros, vai permitir que mais pessoas tomem dinheiro emprestado, que mais empresas cresçam ou contratem. E você vai ter uma economia mais saudável.

BBC News Brasil - Então o problema não é fiscal, é um problema de comunicação? O senhor diria que é um problema de informar a população?

Levy - Informar é a primeira etapa, a pessoa tem que incorporar, ela tem que entender, tem que acreditar. Ela tem que ver que é isso mesmo. Uma coisa que eu já vi muitas vezes acontecer é o seguinte - e isso às vezes escapa aos políticos - o povo não é bobo. Então a gente já viu o que o povo entende quando às vezes uma coisa um pouco mais dura mas se ele está vendo que aquilo é um movimento legítimo e ele entende o que resulta dali, há aceitação para isso. Mas você tem que ser absolutamente genuíno. Você tem que sim fazer um esforço de comunicação, porque às vezes as coisas são complexas, as ligações são complexas. Você tem que ter confiança que as pessoas vão entender. A ideia de que 'não a pessoa não vai entender o povo, o povo gosta de populista'. O povo não gosta de populista, o povo gosta de ver os resultados. E quanto mais quieto, melhor. Então, esse é o trabalho democrático. Não é fácil agora como era fácil na época de Abraham Lincoln. Mas essa é a graça da democracia.

BBC News Brasil - O senhor acha então que o problema está em como se faz política no Brasil, há uma incompreensão… (interrompe)

Levy - No Brasil e no mundo todo. Esse é o desafio. O povo entende sim! Dá trabalho, não vai cair do céu, desejar que tudo esteja em condições ideais não faz sentido ter que lutar a gente tem que lutar pelo que acredita, se a gente acredita em democracia, você acredita num governo que funciona por métodos e por objetivos, por ambições compartilhadas, e para isso existe eleição, então vamos trabalhar para isso.

BBC News Brasil - O senhor vê semelhanças entre o senhor e o ministro Paulo Guedes?

Levy - Há indicações fortes que ambos estiveram em Chicago (risos), certamente há algo aí.

 - Justamente por isso te pergunto, os senhores sempre foram tomados como grandes liberais. Faz sentido ainda pensar a partir dessas noções de liberalismo e neoliberalismo?

Levy - Colocar rótulo, em geral, não funciona muito bem. Eu acho que tem duas coisas que são ingredientes fundamentais para o crescimento econômico: de um lado, a gente ter esse aspecto social, porque eu preciso de todo mundo no Brasil, a gente não vai nunca conseguir ser um país (desenvolvido) se só tiver metade da população e a outra metade não tiver com capacidade, educada. Então é obrigação de cada um de nós lutar para isso.

O outro lado é o seguinte: a gente sabe que você ter liberdade de empreender, de você ter empresas, aqui no Brasil as empresas têm uma certa liberdade. É complicado, tem imposto, tem isso, tem aquilo, mas não tem controle político das empresas, cada um faz o que bem entende, eu quero para abrir um negócio, eu abro o negócio e estamos entendidos. Lógico, tem regras, mas não tem que pedir favor a ninguém, não tem que pedir autorização que não aquelas previstas por lei. Então esses dois componentes são componentes que a gente precisa para o crescimento.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washington, DC, para aBBC News Brasil, em 25.10.21.

Um Poeta

 Bonfim Tobias


 LIBERTAS QUAE SERA TAMEN


A consciência de muitos semi-morta,

Meticulosamente amortalhada,

É punhal cego, é faca que não corta,

É vontade perdida, confinada!


Em milhões e milhões a fome brota

Como praga nos campos espalhada,

Futuro que a descrença fecha a porta,

Desejo e alegria escorraçadas!


Nossa terra de opaca ilusão,

Estátua fria, inerte coração,

Perdida no caminho ladro imundo!


Mas chegará um dia que este povo

Os cegos olhos abrirá de novo,

Vendo o Brasil um esmoler no Mundo!…


sábado, 23 de outubro de 2021

‘Estamos indo pro vinagre e baixa renda é quem vai sofrer mais’, diz economista

Problema não é gasto na área social, mas mudar regras do jogo para favorecer o Centrão em ano eleitoral, diz Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado.

'A verdade é que não há uma agenda liberal, há um despreparo', diz Salto sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes

"Estamos indo para o vinagre" é a expressão usada pelo economista Felipe Salto, diretor-executivo da IFI, a Instituição Fiscal Independente do Senado Federal, para avaliar o atual momento da economia do país.

A IFI tem como função ajudar os parlamentares a monitorar o Orçamento do governo. É um tipo de instituição que existe em vários países do mundo. Nas nações de língua inglesa, são chamadas de "cães de guarda" das contas públicas.

Numa semana em que o dólar bateu nos R$ 5,70, quatro secretários do alto escalão do Ministério da Economia pediram demissão, e o governo confirmou a intenção de desrespeitar o teto de gastos em mais de R$ 80 bilhões, o pessimismo não é de se estranhar.

Para Salto, o problema não é o governo querer gastar mais na área social — o que é necessário no atual momento de saída da pandemia e, segundo ele, poderia ser feito perfeitamente dentro dos atuais limites fiscais.

O problema é que o rombo bilionário que está sendo aberto no teto de gastos — que a IFI estima em R$ 94,4 bilhões, acima dos R$ 83,6 bilhões previstos pela equipe econômica — é muito maior do que a despesa planejada para as transferências do novo Auxílio Brasil, que deve substituir o Bolsa Família.

"É um espaço que é para atender o Centrão, para atender a base, para abrir o Orçamento para emendas", avalia Salto. "Isso está diretamente associado ao momento que estamos vivendo, de pré-eleições. Ano que vem tem eleições gerais e isso está perpassando todas as decisões."

Mudando a regra com o jogo andando

Para abrir esse espaço no Orçamento, o governo planeja adiar o pagamento de precatórios, dívidas da União com pessoas, empresas, Estados e municípios que a Justiça já determinou o pagamento em decisões definitivas.

Além disso, a gestão Jair Bolsonaro, em acordo com o Congresso, quer mudar a regra do teto, passando a reajustá-lo pela inflação acumulada de janeiro a dezembro do ano anterior, e não mais em 12 meses até junho, como feito atualmente. O recálculo vai ser feito desde 2016, ano de aprovação da lei do teto de gastos.

"O problema não é o gasto", diz o diretor-executivo da IFI. "O Estado tem que gastar para poder realizar suas políticas públicas de educação, saúde e também sociais, além de gastar para resolver problemas como o atual, que é o enfrentamento dessa crise pandêmica ainda presente no Brasil e suas consequências sociais e econômicas."

"O problema é mudar as regras do jogo para favorecer conjunturalmente estratégias de expansão fiscal", avalia. "Mudar, de maneira oportunista como está acontecendo agora, é que preocupa."

Para Salto, o problema da forma como tudo está sendo feito é que quem sairá prejudicado pela instabilidade causada por essa decisão são as mesmas pessoas que o governo pretende ajudar ampliando o valor da transferência de renda para R$ 400 até dezembro de 2022.

"Os agentes econômicos — o mercado, como nós chamamos — já precificam esses riscos, os juros estão aumentando e o resultado vai ser provavelmente um crescimento econômico menor lá no ano que vem", prevê, acrescentando que isso prejudica a geração de empregos.

O aumento do risco e a alta do juros afugentam os investimentos produtivos, explica Salto. E o dólar pressionado torna a inflação mais resistente a cair, já que a moeda americana pesa nos custos de tudo que é importado, como diversos componentes dos nossos bens industriais.

"Infelizmente vai ser um quadro muito difícil para aqueles que têm renda mais baixa e dependem do salário para sua sobrevivência. E mesmo para aqueles que estão dependendo do auxílio do governo", conclui.

Problema não é gasto na área social, mas mudar regras do jogo para favorecer o Centrão em ano eleitoral, diz Felipe Salto, (foto), diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado

Guedes, de ultraliberal a 'fura-teto'

Questionado sobre como avalia a trajetória de Paulo Guedes, ministro que assumiu prometendo implementar uma agenda ultraliberal de redução do Estado e agora quer furar o teto de gastos em bilhões para aumentar a despesa do governo num ano eleitoral, o diretor da IFI é taxativo.

"A verdade é que não há uma agenda liberal, há um despreparo, uma inépcia do atual governo que redunda nisso que estamos vendo nos últimos dias. Nesse desmonte das regras fiscais", avalia o especialista em contas públicas.

A IFI estima que seria possível elevar o Bolsa Família sem ferir as regras. Cortando despesas não obrigatórias e pagando integralmente os precatórios, a instituição calcula que seria possível elevar o programa de transferência de renda do valor atual médio de R$ 190, para 14,7 milhões de beneficiários, para R$ 250 e 16,3 milhões de beneficiários.

Para elevar adicionalmente esse valor, existe uma outra carta na manga, diz Salto.

Um total de cerca de R$ 16 bilhões em precatórios do antigo Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental), atual Fundeb, que poderiam ser pagos legalmente fora do teto, abrindo espaço equivalente para a despesa na área social dentro do Orçamento.

"Só que não sobraria dinheiro para fazer emendas de relator geral, outros gastos pulverizados. E é isso, na verdade, que está motivando toda essa mudança que o ministro da Economia está bancando", afirma.

"Ou seja, ele está abrindo mão da responsabilidade fiscal, claramente. Ele quer sinalizar o contrário, dizendo que as regras estão sendo cumpridas, mas ninguém compra essa tese", afirma. "A saída dessas pessoas da equipe econômica, que são quadros técnicos, é apenas a evidência mais nítida de que o governo está num caminho muito errado."

Na quinta-feira (21/01), pediram demissão Bruno Funchal e Gildenora Dantas, secretário especial e secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, respectivamente. E Jeferson Bittencourt e Rafael Araújo, secretário e secretário-adjunto do Tesouro Nacional.

'Indo para o vinagre'

A perda de credibilidade da equipe econômica é parte do motivo pelo qual Salto acredita que "vamos direto para o vinagre, sem direito a paradas", como lamentou esta semana em uma rede social.1

"É uma frase que pode parecer exagerada, mas não é. Porque, veja, a economia depende sobretudo da credibilidade dos gestores da política econômica. Esse é o passo zero", afirma.

Para crescer, é preciso mais do que isso, diz ele. "Precisa aumentar a produtividade, os acordos comerciais para exportar mais. Aproveitar a vantagem comparativa que o Brasil sempre teve na área ambiental. E nós estamos indo para a direção simetricamente oposta."

Ele cita o atual desprezo do governo pela preservação da Amazônia e o tempo perdido com uma política externa que classifica como "mequetrefe". Na infraestrutura, destaca que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) perdeu todo seu papel, embora o país ainda necessite de instrumentos e políticas de desenvolvimento.

"Nós estamos sem planejamento, o Orçamento está no piloto automático", afirma. "Quando eu digo que poderia ser diferente, é nesse sentido. Nós poderíamos estar com o câmbio mais apreciado, a inflação mais controlada e o crescimento já numa recuperação melhor, se as políticas adequadas estivessem sendo tomadas."

"Então, a minha preocupação central, quando eu digo que 'estamos indo direto pro vinagre' é essa. Estruturalmente já estávamos indo e agora, com essa lambança na área fiscal e orçamentária, a aceleração nessa direção vai ser ainda maior."

BBC News Brasil, em 23.10.21

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Bolsonaro sacrifica o Orçamento para salvar sua popularidade

Governo passa por cima das regras orçamentárias a fim de abrir comportas para gastos sociais e presentes eleitoreiros antes de 2022. Os mercados financeiros reagem com severas turbulentas. E talvez seja tudo em vão.

Benefícios sociais para eleitorado esquecer descalabros da pandemia: será que vai funcionar?

O fato de o banqueiro e economista seguidor da Escola de Chicago Paulo Guedes estar no governo de Jair Bolsonaro era para a economia algo assim como a garantia de que o presidente adotaria um curso de reforma liberal. Porém as esperanças de que, apesar de ter como chefe o capitão da reserva, Guedes conseguiria impor esse curso há muito se desfizeram.

Desde o começo desta semana, ficou evidente que Guedes tampouco impedirá  altas orçamentárias acima do limite permitido por lei. Com manobras grosseiras, agora o governo quer alterar o teto de gastos, que estava claramente fixado pelo orçamento público de 2020, corrigido pela inflação.

Por um lado, Bolsonaro propõe considerar a inflação mais alta de janeiro a dezembro de 2021 (em vez da dos 12 meses até junho último), a fim de poder gastar mais. Por outro, quer possibilitar por emenda o parcelamento de precatórios, aumentando ainda mais o campo para gastos. O teto só foi introduzido em 2017 e proporcionou ao Brasil os juros mais baixos de sua história econômica. Agora isso acabou.

Pânico nos mercados financeiros

Em protesto, nesta quinta-feira (21/10), quatro secretários do Ministério da Economia – três economistas e uma economista – anunciaram inesperadamente sua renúnica. Supõe-se que estão deixando o governo agora para no futuro não serem penalizados por terem ignorado as regras orçamentárias.

Os mercados reagiram com choque aos pedidos de exoneração: desde o início da semana – quando se acumularam os boatos de que o governo desrespeitaria o teto de gastos –, o índice da bolsa de valores de São Paulo caiu 10%; o dólar subiu quase 5%; os juros nos mercados de futuro saltaram para mais de 12%.

Em resumo: os investidores reagiram com pânico, temendo a reação em cadeia que agora, após a quebra das regras orçamentárias, se materializa. Assim, o Banco Central provavelmente terá que elevar em breve a taxa Selic para mais de 10% (dos atuais 6,25%), como única forma de manter a inflação abaixo do limite de 5%, até o fim de 2022.

O encarecimento geral já passa de 10%, no momento; os preços da cesta básica chegaram a aumentar 16% nos últimos 12 meses. Além disso, a desvalorização do real aumenta a pressão inflacionária.

Como o Banco Central terá que manter por mais tempo ainda os juros altos, os bancos de investimentos reduziram a menos de 1% os prognósticos de crescimento para 2022 (depois de 5% no ano corrente). O desempenho econômico segue cerca de três pontos porcentuais abaixo do nível de 2014, o último ano de crescimento.

Aumento de popularidade improvável para Bolsonaro

O motivo para a alteração da fórmula do teto de gastos são os esforços de Bolsonaro contra sua queda de popularidade. No relatório final da CPI no Senado, o presidente acaba de ser incriminado por cometer nove delitos no decorrer da pandemia de covid-19.

Para desviar as atenções da situação deplorável, ele pretende aumentar o auxílio às classes de renda mais baixa já um ano antes das eleições, visando impulsionar sua pouca popularidade entre os pobres. No ano da pandemia 2020, ele conseguiu incrementar sua popularidade, justamente junto às classes de renda mais baixa, com generosos benefícios sociais.

Mas será que vai conseguir repetir a proeza? O desemprego está estagnado num nível alto, de cerca de 14%, a ocupação só cresce no setor informal, onde, porém, se paga menos. A massa salarial dos brasileiros caiu em 2021 6%, em relação ao ano interior. E, tradicionalmente, o consumo é o motor do crescimento.

Acima de tudo, entretanto, a inflação alta deverá prejudicar de forma duradoura a popularidade de Bolsonaro: os pobres são, de longe, os mais afetados pela desvalorização. Os R$ 400 do novo Auxílio Brasil não vão adiantar muito.

Deutsche Welle Brasil, em 22.10.21

Quais são os efeitos econômicos e políticos de alterar o teto de gastos

Pessoas-chave do Ministério da Economia pediram demissão após governo propor mudança, que amplia despesas durante ano de eleição com o Auxílio Brasil. Mercado reage mal, e Lula defende transferência de renda ainda maior.

Bolsonaro quer usar verba extra para pagar transferência mensal de R$ 400 a famílias mais pobres

A decisão do governo federal de alterar a fórmula do teto de gastos para ampliar os gastos públicos no próximo ano, quando o presidente Jair Bolsonaro tentará se reeleger, provocou uma debandada no Ministério da Economia, teve efeito negativo em indicadores do mercado financeiro e terá consequências para o debate eleitoral de 2022.

Quatro membros da equipe do ministro Paulo Guedes pediram exoneração na quinta-feira (22/10), entre eles o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e o secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt. A interlocutores, Funchal disse que estava deixando o cargo por não concordar com as mudanças propostas pelo governo. Também pediram exoneração a secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araújo.

A iniciativa do governo e a debandada na Economia tiveram reflexos no mercado financeiro. Na terça-feira, quando ficou claro que Bolsonaro estava decidido a mexer no teto de gastos, a Bolsa de Valores começou a acumular quedas e o dólar, a registrar altas, tendências que se mantiveram até esta sexta-feira.

No início de terça, a Bolsa estava no patamar de cerca de 114 mil pontos e, às 12h30 desta sexta, em cerca de 103 mil pontos, queda acumulada de 10,7%. O dólar comercial, que no início da terça era cotado a R$ 5,54, às 12h30 desta sexta era cotado a R$ 5,75, alta acumulada de 3,8%. A incerteza do mercado financeiro sobre o compromisso do governo com o ajuste fiscal também pode levar ao aumento da taxa de juros, que já está em trajetória de alta.

Por que o governo quer alterar o teto

Bolsonaro confirmou nesta semana que criará um novo programa de transferência de renda, chamado Auxílio Brasil, que substituirá o Bolsa Família e pagará no mínimo R$ 400 por mês às famílias beneficiadas.

O Bolsa Família hoje paga, em média, R$ 190 por mês, e o auxílio emergencial criado durante a pandemia será extinto no final de outubro, o que provocaria uma piora nas condições de vida de milhões de brasileiros, que já enfrentam crescimento da fome e da miséria e alta taxa de desemprego.

A discussão sobre a substituição ou ampliação do Bolsa Família é ativa no governo e no debate público desde o início do auxílio emergencial, em abril de 2020, que demonstrou os efeitos benéficos de uma maior transferência de renda no combate à pobreza e no desempenho da economia.

Porém, nesse período o governo e o Congresso não fizeram reformas ou cortaram despesas que permitiriam a ampliação do programa. Pelo contrário, foi ampliado o valor destinado a emendas parlamentares e não houve redução de subsídios a setores da economia e nem o enfrentamento de privilégios salariais de parte do funcionalismo público.

Como consequência, quando Bolsonaro confirmou que criaria o Auxilio Brasil, não havia espaço no Orçamento do ano que vem para financiá-lo e, ao mesmo tempo, respeitar o teto de gastos.

O teto de gastos foi criado no governo Michel Temer com a justificativa de reduzir a dívida pública, mas seu modelo desperta controvérsia entre economistas. Ele estabelece que o governo não pode gastar mais do que gastou no ano anterior, corrigido pela inflação.

Qual é a mudança proposta

A saída do governo para ampliar o seu limite de gastos em 2022, sem cortar outras despesas, é baseada em dois pilares, ambos incluídos na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, cujo texto foi aprovado nesta quinta-feira em comissão especial da Câmara.

O primeiro é permitir que o governo federal atrase o pagamento de algumas de suas dívidas judicias, os precatórios. Isso ampliaria em R$ 44 bilhões o espaço no Orçamento no ano que vem.

O segundo é alterar a forma como o teto de gastos é calculado. Hoje, considera-se a inflação dos últimos 12 meses até junho do ano anterior para definir o teto do ano seguinte. A proposta do governo é considerar a inflação de janeiro a dezembro, e fazer um cálculo retroativo desde o início do instrumento de ajuste fiscal. Isso criaria uma folga de mais R$ 39 bilhões para o ano que vem.

Essas mudanças são interpretadas por operadores do mercado financeiro – dos quais muitos apostaram na candidatura de Bolsonaro em 2018 pelo compromisso expresso por ele e por Guedes com o ajuste fiscal – como um desrespeito à regra do teto de gastos. Para eles, o teto é fundamental para que o governo indique sua disposição de reduzir o déficit e seguir capaz de honrar o pagamento de sua dívida.

As alterações ainda precisam ser aprovadas pelo plenário da Câmara e, depois, pelo Senado para entrar em vigor.

Quais são os efeitos políticos

A mudança no teto de gastos é defendida por uma ala importante do governo, que considera crucial ampliar as despesas no ano que vem para aumentar a chance de Bolsonaro se reeleger. Pesquisa PoderData realizada de 27 a 29 de setembro mostrou que o presidente tem 30% de intenção de voto, contra 40% do seu principal concorrente, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. No segundo turno, Lula tem 56% das intenções de voto, e Bolsonaro, 33%.

Lula, por sua vez, dobrou a aposta de Bolsonaro e disse, nas suas redes sociais, que defende uma transferência de renda de R$ 600 para as famílias de baixa renda para combater a miséria.

Se as mudanças na PEC dos Precatórios forem aprovadas, o governo Bolsonaro teria à sua disposição um extra de R$ 83 bilhões ao longo de 2022 e conseguiria financiar o Auxílio Brasil. Com isso, o Planalto espera ampliar a popularidade do presidente, especialmente nas regiões mais pobres do país, onde Lula tem suas maiores taxas de intenção de voto.

Com a verba extra, seria possível ainda ampliar o valor das emendas parlamentares, importantes para Bolsonaro conquistar o apoio de deputados e senadores, e ainda criar outros programas. Na quinta-feira, o presidente prometeu que daria também um auxílio a caminhoneiros para compensar pela alta do diesel.

Deutsche Welle Brasil, em 22.10.21

Como manobra do teto de gastos para viabilizar Auxílio Brasil pode deixar brasileiros mais pobres

Para garantir pagamento de R$ 400, governo pretende driblar regra que limita crescimento de gastos públicos, mas isso pode acabar 'retroalimentando' inflação

Carteira vazia  (Crédito da foto - Getty Images)

Dinheiro extra sempre vem em boa hora, sobretudo para quem mais precisa dele.

Por isso, faz sentido que milhões de brasileiros em condição de vulnerabilidade vejam de forma positiva os esforços do governo de Jair Bolsonaro para viabilizar o pagamento de R$ 400 aos beneficiários de seu novo programa social, o Auxílio Brasil, valor superior ao do Bolsa Família, que deixa de existir.

E, de fato, dizem economistas, "a curtíssimo prazo", esse incremento poderia até dar um empurrão na economia, em meio a circunstâncias atuais nada animadoras. Afinal, tende a elevar o consumo e a amenizar os efeitos da inflação que corroem o poder de compra.

O problema é que esse gasto adicional, na forma como está sendo proposto pelo governo, tende a "retroalimentar" a inflação no futuro, anulando seus efeitos inicialmente positivos — e são os mais vulneráveis os primeiros a sentir o impacto disso.

Houve debandada de integrantes do alto escalão do Ministério da Economia, todos subordinados ao titular da pasta, Paulo Guedes

Mas por quê?

A realidade é que o governo não tem de onde tirar essa despesa excedente.

Para viabilizar o pagamento de R$ 400 do Auxílio Brasil, ele pretende driblar o chamado "teto de gastos", uma regra de 2016 que limita o crescimento dos gastos públicos à inflação do ano anterior.

Ela foi criada naquele ano pelo temor de um desastre fiscal — o governo vinha gastando mais do que podia e isso colocava em xeque a capacidade de o país arcar com suas dívidas.

É mais ou menos como um cidadão comum: quem não paga suas contas, fica com o nome "sujo" na praça.

Se o mercado percebe que a capacidade de pagamento do Brasil está comprometida, reage negativamente, levantando dúvidas sobre o que e como o governo vai fazer para honrar seus compromissos.

Um exemplo prático é de um investidor que tenha ações de empresas no Brasil. Diante de um futuro nada promissor para seus investimentos, ele tende a querer buscar outros países onde se sente mais seguro para ver seu dinheiro se multiplicar.

Agora, imagine vários investidores pensando o mesmo e, possivelmente, retirando seus recursos em massa — é o que economistas chamam de "fuga de capitais".

Para piorar, houve uma debandada de integrantes do alto escalão do Ministério da Economia, todos subordinados ao titular da pasta, Paulo Guedes. Foram quatro, ao todo, incluindo o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal.

Segundo comunicado divulgado pelo órgão, eles citaram razões pessoais para deixarem seus cargos, mas nos bastidores se sabe que a decisão foi motivada pela proposta formalizada do governo de furar o teto de gastos.

Tudo isso fez com que o dólar subisse e a bolsa brasileira fechasse em queda na quinta-feira (21/10).

Só as empresas brasileiras listadas na Bovespa perderam R$ 284 bilhões em valor de mercado em três dias, segundo a desenvolvedora de sistemas de análise financeira Economatica.

Nesta sexta-feira (22/10), até a conclusão desta reportagem, a situação não estava muito diferente — o dólar continua em forte alta e a bolsa, em queda.

Mas o agravamento da situação fiscal não só acarreta o aumento da inflação. Também provoca efeitos em cascata para o restante da economia.

Inflação mais alta força subida dos juros pelo Banco Central (BC), o que freia a atividade econômica e tem impacto no PIB (Produto Interno Bruto, a soma de riquezas produzidas por um país).

E economia mais enfraquecida gera queda de renda e desemprego.

Já a fuga de capitais gerada pela crise de confiança dos mercados tem impacto direto no dólar — quanto mais dólares saem do país, "mais cara" a moeda americana fica.

Não é só o bolso do brasileiro, especialmente aquele de menor renda, que sofre. Os cofres do governo, também (Getty Images)

E o dólar mais valorizado afeta consideravelmente o preço de uma série de produtos, como gasolina, gás de cozinha e alimentos.

O que, em última instância, contribui para elevar ainda mais a inflação.

E não é só o bolso do brasileiro, especialmente aquele de menor renda, que sofre. Os cofres do governo, também.

Segundo um estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI), cada ponto percentual de aumento da inflação gera um impacto estimado de R$ 12,4 bilhões no gasto primário.

Isso significa que a capacidade de o governo de gerir suas contas fica ainda mais engessada, o que pode afetar, em última análise, a continuidade do pagamento do benefício no futuro.

"O mercado parece de fato ter abandonado o auto engano que haveria espaço para mais ajustes fiscais e respeito ao teto dos gastos", diz André Perfeito, economista-chefe da Necton Investimentos, em seu comentário diário a investidores.

"A realidade econômica e social se impôs sobre o Planalto e na ausência de um plano de ação claro se acumulam evidências que irão tampar um buraco por vez com uma fita crepe de R$ 400 por vez", acrescenta.

Auxílio Brasil

O Auxílio Brasil, o programa social do governo Bolsonaro para substituir o Bolsa Família, foi anunciado na quarta-feira (20/10) pelo ministro da Cidadania, João Roma, com início previsto para novembro deste ano.

O programa, pelo qual beneficiários receberiam R$ 400, R$ 100 a mais do que o proposto inicialmente e mais do que o dobro do pagamento médio do Bolsa Família, coincidiria com o fim do pagamento do chamado Auxílio Emergencial, benefício pago aos mais vulneráveis durante a pandemia de covid-19. O número de beneficiários também aumentaria dos atuais 14,6 milhões para 17 milhões.

A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que flexibiliza o teto dos gastos cria um espaço orçamentário de R$ 83 bilhões no ano eleitoral de 2022, segundo seu relator, o deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB).

Esse valor não deve só ser usado para viabilizar o pagamento do Auxílio Brasil, mas também gastos de interesse de aliados do governo, como emendas parlamentares, por meio das quais eles mandam dinheiro para obras e projetos em suas bases eleitorais.

BBC News Brasil, em 22.10.21

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Populismo de Bolsonaro e Guedes deflagra crise e debandada na Economia

A exigência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de turbinar gastos em ano eleitoral e a manobra para driblar a regra constitucional do teto de gastos derrubaram a Bolsa, fizeram dispararem dólar e juros e causaram uma debandada no time do ministro Paulo Guedes (Economia).

Quatro secretários da equipe econômica pediram demissão nesta quinta-feira (21) por discordarem das decisões. Pediram para deixar o governo dois dos principais nomes do núcleo da pasta, o que comanda as contas públicas.

O maior representante da área, abaixo de Guedes, é o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal. Ele, assim como o secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt —subordinado a Funchal—, pediram exoneração dos cargos.

Em nota, o Ministério da Economia afirmou que também deixarão os cargos técnicos-chave do ministério. São eles a secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araujo.​

A debandada ocorreu após semanas de escalada da pressão do Palácio do Planalto sobre a equipe econômica por mais recursos, e horas após a formalização de uma proposta do governo para driblar o teto de gastos, regra que limita o crescimento das despesas públicas federais.

A medida abre margem de ao menos R$ 83 bilhões no Orçamento em ano eleitoral, inclusive para turbinar emendas parlamentares, recursos direcionados pelos deputados e senadores para suas bases eleitorais.

Alinhado à ala política do Palácio do Planalto e ao centrão, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) anunciou uma série de gastos às vésperas de ano eleitoral. Em 2022, ele buscará a reeleição.

O imbróglio está em torno de garantir R$ 400 para o Auxílio Brasil. O programa substituirá o Bolsa Família, uma marca do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que hoje lidera a corrida presidencial.

O Ministério da Economia atribuiu os pedidos de demissão dos quatro secretários a "razões de ordem pessoal". Segundo o órgão, as solicitações foram feitas de modo a permitir que haja um processo de transição e de continuidade. Eles continuarão no cargo até a nomeação dos substitutos (cujos nomes não foram informados).

A Folha, no entanto, apurou que Funchal afirmou à sua equipe que deixa o governo por questões de princípio. O secretário demissionário já havia dito que não chancelaria medidas que subvertessem a ordem fiscal.

"Funchal e Bittencourt agradecem ao ministro pela oportunidade de terem contribuído para avanços institucionais importantes e para o processo de consolidação fiscal do país", disse o ministério.

A debandada é reflexo de uma crise aberta no governo entre a equipe econômica e a ala política. Cobrado pelo centrão e interessado em medidas com apelo eleitoral, Bolsonaro exigiu o pagamento de R$ 400 a beneficiários de programas sociais até o fim de 2022, ano de eleições.

Integrante do centrão, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), minimizou os pedidos de demissão. Ele elogiou o time de Guedes e disse que novos nomes continuarão o serviço do governo.

"A equipe econômica, que vem bem conduzindo esta crise provocada pela pandemia, terá substituições por técnicos igualmente qualificados que continuarão prestando bons serviços. Guedes firme e forte como sempre na condução da economia", disse o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR).

O contorno às regras fiscais foi a saída encontrada pelo governo para viabilizar a medida. Guedes era contra e tentou negociar uma solução sem alterações no teto, mas foi vencido na discussão com a ala política.

Segundo relataram membros do governo à Folha, quando Guedes apresentou a ideia à própria equipe, houve uma forte reação dos subordinados e ameaças de demissão. Pela falta de consenso e pela necessidade de mais tempo para a elaboração da proposta, o anúncio dos R$ 400 foi suspenso. O plano passou a ser adaptado com ajuda da própria equipe econômica e desencadeou a proposta alternativa, que expande o teto de gastos.

Nesta quinta, o governo e aliados no Congresso inseriram na PEC (proposta de emenda à Constituição) que adia o pagamento de precatórios —dívidas reconhecidas pela Justiça— uma mudança na regra de correção do teto de gastos, para expandir o limite para as despesas.

O conjunto das alterações previstas cria um espaço orçamentário de R$ 83 bilhões no ano eleitoral de 2022, de acordo com o relator da proposta, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB).

Antes mesmo do anúncio da saída dos secretários, o mercado encerrou o dia com reação negativa forte à proposta do governo.

A Bolsa de Valores brasileira fechou em queda de 2,75%. O dólar subiu 1,88%, a R$ 5,6670, e os juros futuros aumentaram os prêmios, com o DI para janeiro de 2025 em alta de quase 60 pontos-base, a 11,48% ao ano.

A demissão dos secretários foi usada como argumento pela oposição, que tentou barrar o avanço da PEC na Câmara. Segundo partidos de oposição, a debandada mostrou que a proposta não é consenso nem sequer no governo.

Funchal e Bittencourt eram responsáveis pelo comando dos cofres do governo federal e tinham confiança de Guedes. O ministro os nomeou para os cargos há cerca de seis meses em uma dança das cadeiras deflagrada com a saída do então secretário especial de Fazenda Waldery Rodrigues.

Os dois estavam entre os maiores defensores do teto de gastos dentro do ministério e apontavam a regra como a âncora para a manutenção da confiança no governo e a estabilidade de indicadores como juros e inflação.

No início da semana, quando a ideia de driblar o teto foi aventada, interlocutores do governo já haviam alertado que a concretização de uma medida desse tipo poderia provocar uma debandada na equipe econômica.

Mesmo assim, logo após a proposta ter sido apresentada, os dois secretários anunciaram a saída.

No Ministério da Economia, Funchal foi diretor de programa e se encarregava sobretudo de medidas voltadas aos estados. Ele foi promovido a secretário do Tesouro no lugar de Mansueto Almeida.

Depois, ele subiu mais um degrau na hierarquia da pasta, assumindo o comando da Secretaria Especial de Fazenda (hoje denominada secretaria especial do Tesouro e Orçamento).

"Parabéns ao secretário do Tesouro e ao secretário especial de Fazenda por não aceitarem participar da maior lambança fiscal da história das contas públicas no Brasil", afirmou no Twitter Felipe Salto, diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado).

Servidor de carreira do Tesouro, Bittencourt ​​foi assessor especial de Guedes antes de ocupar o comando da secretaria. Ele foi alçado ao posto após a saída de Waldery Rodrigues, ex-secretário especial de Fazenda.

Bittencourt havia sido também secretário especial adjunto de Fazenda e passou por outros cargos no ministério, como o de diretor de programa. Tem passagens também pelo governo do Rio Grande do Sul.

Em agosto de 2020, Guedes teve que lidar com outro movimento classificado por ele próprio como debandada. Na ocasião, os então secretários especiais Salim Mattar (Desestatização) e Paulo Uebel (Desburocratização) decidiram deixar os cargos. A razão das saídas foi a demora do governo em implementar reformas.

Do primeiro escalão montado originalmente por Guedes ao assumir o posto, em 2019, restam apenas o secretário-executivo, Marcelo Guaranys, e o secretário especial de Produtividade, Carlos da Costa.

ENTENDA A MUDANÇA NO TETO DE GASTOS

Pelo plano apresentado para mudar a regra fiscal, a Constituição será alterada para que o teto seja corrigido anualmente pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) acumulado em 12 meses de janeiro a dezembro.

Atualmente, o período usado como base para o limite anual considera o IPCA acumulado em 12 meses até junho do ano anterior. Isso cria um descompasso nas contas, porque despesas previdenciárias e de programas sociais são corrigidas com base na inflação calculada no encerramento do ano.

Com a alteração, seriam sincronizados os períodos de correção do teto e das despesas indexadas do governo.

Só com a mudança na correção do teto, Motta afirma que seria aberto um espaço de mais de R$ 39 bilhões em relação ao previsto hoje na proposta de Orçamento de 2022.

Segundo ele, a folga no Orçamento subiria para R$ 83 bilhões com a flexibilização para o pagamento dos precatórios —dívidas do governo reconhecidas pela Justiça, que serão em parte jogadas para anos seguintes.

Motta afirmou que os reflexos da crise da Covid-19 justificam as mudanças no teto de gastos. "Estamos antecipando a reavaliação do teto, que poderia ser feita em 2026, para 2021, porque tivemos uma pandemia que mais do que justifica a antecipação dessa reanálise", disse o relator.

Segundo ele, a nova versão da PEC, que agora prevê a mudança no teto de gastos, também deverá permitir elevar de R$ 4 bilhões para R$ 11 bilhões a verba para compra de vacinas contra a Covid-19.

A conta do espaço a ser aberto no teto de gastos com as mudanças pode ser mais alta do que a apresentada pelo relator.

Pelos cálculos do economista Felipe Salto, diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente, órgão do Senado que monitora as contas públicas), a correção do teto deve expandir o teto em 2022 em R$ 47 bilhões, em relação ao previsto sob a regra atual.

Segundo ele, somado ao impacto provocado pela limitação de precatórios, o espaço aberto nas contas de 2022 deve chegar a R$ 94,4 bilhões, valor maior do que o estimado pelo relator.

"Parabéns ao secretário do Tesouro e ao secretário especial de Fazenda [hoje do Tesouro e Orçamento] por não aceitarem participar da maior lambança fiscal da história das contas públicas no Brasil", disse.

Para Juliana Damasceno, economista e pesquisadora de finanças públicas do Ibre FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas), as mudanças das regras mostram que não há preocupação em manter a norma como uma âncora fiscal do país.

"Antecipar essa revisão responde apenas a um interesse temporário, conjuntural, que é o cenário das eleições do ano que vem", disse.

Em Sertânia (PE), onde esteve na inauguração de um braço da transposição do rio São Francisco, Bolsonaro disse que o aumento no auxílio será feito com responsabilidade.

"Temos aproximadamente 16 milhões de pessoas no Bolsa Família, e o valor médio [do benefício] está em R$ 192. Se o médio é R$ 192, tem muita gente ganhando R$ 40, R$ 50, R$ 60. O que nós decidimos é que vamos passar todos para no mínimo R$ 400. Isso tudo com responsabilidade, ninguém está furando o teto, não", afirmou.

A mudança na regra do teto de gastos começaria a valer já neste ano, de acordo com a nova versão da PEC apresentada nesta quinta. Um dispositivo determina que a correção em 2021 poderá liberar um limite de até R$ 15 bilhões em despesas ligadas à vacinação contra a Covid-19, além de "ações emergenciais e temporárias de caráter socioeconômico".

Bernardo Caram, Fábio Pupo e Thiago Resende, de Brasília para a Folha de S. Paulo, em 21.10.21

Secretário de Petróleo e Gás do Ministério de Minas e Energia pede demissão

José Mauro Coelho estava no cargo desde abril de 2020. Informação foi divulgada no mesmo dia em que Bolsonaro anunciou que pagará um auxílio a 750 mil caminhoneiros para compensar aumento do diesel.

O secretário de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia, José Mauro Coelho, pediu demissão do cargo. A informação foi divulgada nesta quinta-feira (21) pela assessoria de imprensa da pasta.

Nesta quinta-feira (21), o presidente Jair Bolsonaro anunciou que vai pagar um auxílio a 750 mil caminhoneiros autônomos para compensar o aumento do diesel.

"Após cerca de 14 anos no serviço público, dos quais quatro como Diretor de Petróleo, Gás e Biocombustíveis da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e um ano e meio como Secretário de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia (MME), José Mauro Ferreira Coelho deixa o serviço público", diz o ministério em nota.

Mauro Coelho estava no cargo desde abril de 2020. Antes, trabalhou por 12 anos na Empresa de Pesquisa Energética (EPE), estatal do governo responsável pelo planejamento do setor elétrico.

Segundo o ministério, José Mauro cumprirá o período de quarentena e, depois, assume "novos desafios na iniciativa privada brasileira". A pasta não informou o motivo do pedido de demissão nem o substituto para o cargo.

Outros pedidos

Os secretários do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt, também pediram demissão dos cargos nesta quinta-feira (21). O anúncio foi feito pelo próprio Ministério da Economia.

De acordo com a pasta, ambos pediram exoneração ao ministro da Economia, Paulo Guedes, e informaram motivos pessoais.

Também pediram demissão nesta quinta (21), a secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araujo.

Os pedidos foram feitos em meio a discussão do governo sobre uma possível manobra para abrir espaço no teto de gastos. De acordo com informações do blog da Ana Flor, contas públicas e instituições financeiras calculam que o rombo na regra do teto de gastos pode chegar a R$ 100 bilhões.

Os substitutos nos cargos ainda não foram anunciados.

Jéssica Sant'Ana, de Brasília para o g1, em 21.1021


Quatro secretários de Guedes pedem demissão após manobra para driblar teto de gastos

Secretários de Orçamento, Bruno Funchal, e do Tesouro, Jeferson Bittencourt, informaram 'razões pessoais'. ao ministro Paulo Guedes. Governo quer furar teto para bancar Auxílio Brasil

Quatro secretários do Ministério da Economia pediram demissão dos cargos nesta quinta-feira (21) alegando motivos pessoais. O anúncio foi feito pela própria pasta, e ainda não há substitutos anunciados.

Os quatro secretários comandavam a área fiscal do ministério, ou seja, os setores diretamente relacionados com os gastos públicos. Deixaram os cargos:

"Funchal e Bittencourt agradecem ao ministro pela oportunidade de terem contribuído para avanços institucionais importantes e para o processo de consolidação fiscal do país", diz o ministério.

De acordo com o Ministério da Economia, Funchal e Bittencourt seguem despachando nos cargos até que seja feita a transição para os próximos secretários.

Os pedidos de demissão acontecem após a manobra liderada pelo Centrão para abrir espaço no teto de gastos em 2022, ano de eleições gerais. O governo pretende gastar cerca de R$ 40 bilhões fora da regra de austeridade para bancar um benefício social temporário de, pelo menos, R$ 400 mensais (veja detalhes mais abaixo).

Os substitutos nos cargos ainda não foram anunciados. Também nesta quinta, o secretário de Petróleo e Gás do Ministério de Minas e Energia, José Mauro Coelho, pediu demissão do posto.

Manobra, auxílio e debandada

A nova debandada no Ministério da Economia ocorre logo após a derrota da equipe econômica para a ala política do governo na definição dos novos valores do Auxílio Brasil.

O ministro da Cidadania, João Roma, anunciou na quarta-feira (20) que o benefício do novo programa social será de, no mínimo, R$ 400 por família até o final do ano que vem. Veja mais detalhes no vídeo abaixo:

(Governo anuncia Auxílio Brasil, mas não diz de onde virão os recursos para financiar programa)

Nos últimos meses a equipe econômica havia se conformado com um aumento mais modesto, de R$ 300, que seria encaixado no Orçamento por meio da PEC dos Precatórios e custeado com o retorno da taxação sobre os lucros e os dividendos, parte da Reforma do Imposto de Renda.

Porém, a reforma do Imposto de Renda não avançou no Senado. Do outro lado, a inflação se mostrou mais persistente do que o imaginado pela equipe econômica, levando a pressão política para aumentar o benefício para além dos R$ 300 planejados.

Para viabilizar o Auxílio Brasil, o relator da PEC dos Precatórios, deputado Hugo Motta, propôs alterar a regra de correção do teto de gasto. Atualmente, a fórmula considera o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) apurado entre julho de um ano e junho do ano seguinte. A proposta é mudar para janeiro a dezembro, com valores retroativos a 2016.

A mudança parece simples mas, na avaliação de técnicos do Congresso, a alteração na fórmula e o limite de pagamento dos precatórios abrem cerca de R$ 83 bilhões para despesas em 2022, ano eleitoral. Na prática, o governo conseguiria essa margem para contornar o teto de gastos.

'Situação complicada', diz Mourão

Até o início da noite desta quinta, o ministro Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro ainda não tinham comentado as demissões.

Questionado, o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que o país vive uma situação "complicada" e que existem opções para auxiliar as famílias mais pobres sem desrespeitar a regra do teto de gastos.

"É uma situação complicada que nós temos vivido. Qual é a minha visão? Eu acho que têm boas soluções para serem buscadas no sentido de se obter os recursos necessários para um auxílio para a população mais desvalida sem que seja obrigatório você quebrar o teto de gastos ou furar o teto de gastos. Acho que se sentar todo mundo se consegue uma solução melhor", afirmou o vice-presidente.

Perfis

Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas, Funchal é especialista em Economia, com ênfase em Finanças, Direito e Macroeconomia Aplicada. Ele estava no Ministério da Economia desde janeiro de 2019

Começou como diretor de programas e, após pedido de demissão de Mansueto Almeida em junho de 2020, foi promovido ao cargo de secretário do Tesouro. Depois, em maio deste ano, assumiu o cargo de secretário especial de Fazenda - posteriormente transformado em Secretário Especial de Tesouro e Orçamento.

Funchal foi secretário de Fazenda do Espírito Santo de 2017 a 2018, quando conseguiu fazer o estado tirar nota máxima em capacidade de pagamento cortando comissionados, suspendendo concursos e não concedendo reposição salarial.

O sucesso no governo capixaba fez Funchal ser procurado no fim de 2018 para ser secretário de Fazenda do Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Mas ele acabou optando por aceitar o convite do Ministro Paulo Guedes para integrar o governo Bolsonaro

Veja abaixo a íntegra da nota divulgada nesta quinta pelo Ministério da Economia:

Nota à imprensa

O secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e o secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt, pediram exoneração de seus cargos ao ministro da Economia, Paulo Guedes, nesta quinta-feira (21/10).

A decisão de ambos é de ordem pessoal. Funchal e Bittencourt agradecem ao ministro pela oportunidade de terem contribuído para avanços institucionais importantes e para o processo de consolidação fiscal do país.

A secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araujo, também pediram exoneração de seus cargos, por razões pessoais.

Os pedidos foram feitos de modo a permitir que haja um processo de transição e de continuidade de todos os compromissos, tanto da Seto quanto da STN.

Jéssica Sant'Ana e Jamile Racaniccim, de Brasília para o g1 e TV Globo, em 21/10/2021

Grupo ataca sede da revista IstoÉ após edição crítica a Bolsonaro

Prédio da editoria é pichado e cartazes nos muros insultam diretor do grupo; ANJ repudia ato: ‘extremistas não sabem conviver com liberdade de imprensa’

Prédio da editoria é pichado e cartazes nos muros insultam diretor do grupo; editora afirma que acionou a polícia  Foto: Reprodução

A sede da Editora Três, responsável pela publicação da revista IstoÉ, foi alvo de ataques criminosos na noite desta quarta-feira, 20, dias após publicar edição cuja capa compara o presidente Jair Bolsonaro a Adolf Hitler. Segundo a empresa, “ativistas políticos” colaram cartazes e picharam os muros do local, causando danos ao patrimônio físico e insultando diretores do grupo de mídia.

A Associação Nacional de Jornais (ANJ), em nota assinada com a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER), prestou solidariedade à editora e disse que “repudia com veemência esse ataque e lamenta que extremistas que não sabem conviver com a liberdade de imprensa incitem intimidações contra vozes críticas.”

A edição mais recente da IstoÉ traz em sua capa uma imagem do presidente Bolsonaro com o bigode de Hitler, onde se lê “genocida”, e a manchete “as práticas abomináveis do mercador da morte”. 

Cartazes colados na sede da editora mostram o rosto de um membro da empresa com os dizeres “sou vacilão” e, no lugar do título da edição, a frase “mercador de merda”. O fato ocorreu na quarta-feira, 20, por volta das 23h, segundo funcionários da editora. A segurança do local foi reforçada e uma viatura da polícia permanecerá na sede nos próximos dias.

Capa mais recente da IstoÉ traz uma imagem do presidente Bolsonaro com o bigode de Hitler, onde se lê ‘genocida’ Foto: Reprodução

Na semana passada, o vereador Carlos Bolsonaro postou a capa da revista em suas redes sociais e afirmou que tomaria medidas judiciais contra a editora. O filho do presidente defendeu “limite” para a liberdade de expressão e escreveu que “esta mesma imprensa se vitimiza e exige respeito do presidente Jair Bolsonaro”. Já a Advocacia-Geral da União cobrou direito de resposta da publicação e pediu que ela seja relançada com uma capa alternativa.

Em nota, a empresa disse considerar que o ato representa “uma tentativa de ameaça à democracia, à liberdade de expressão e à imprensa livre, democrática e independente”. A editora afirmou ainda que acionou a polícia e tomou as medidas necessárias para denunciar e identificar os autores do ataque.

“Essas agressões acontecem em razão do jornalismo crítico e independente adotado pela editora, e vêm na esteira do extremismo político instalado no País nos últimos anos. Elas têm o objetivo de intimidar, mas não terão sucesso. A intolerância, o fanatismo e a covardia de grupos extremistas serão combatidos pelo bem da estabilidade democrática”, diz a nota.

Leia nota da ANJ, em conjunto com a Abert e ANER

A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), a Associação  Nacional de Editores de Revistas (ANER) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ)  repudiam o atentado sofrido pela Editora Três, responsável pela publicação das  revistas IstoÉ e IstoÉ Dinheiro, na noite desta quarta-feira (20).  

Os atos criminosos com pichações e colagem de cartazes no prédio da Lapa, em  São Paulo (SP), que não foram assumidos publicamente por nenhum autor,  representam ações antidemocráticas, que não podem ser toleradas em um país  em que a Constituição preza pelos direitos à liberdade de imprensa e de  expressão. 

As entidades condenam os atos de desonra aos editores e diretores da  publicação, que vieram a partir de manifestações extremistas. É essencial que as  autoridades tomem as medidas necessárias para identificar e denunciar os  autores dos ataques, de forma que a integridade dos jornalistas da Editora Três  possa ser mantida. 

Acreditamos que um país livre e civilizado se faz por meio do pensamento crítico,  de uma imprensa respeitada, de instituições firmes e do respeito às leis.  

Brasília, 21 de outubro de 2021. 

Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER)  

Associação Nacional de Jornais (ANJ).

Publicado originalmente pelo O Estado de S.Paulo, em 21 de outubro de 2021 

Paulo Guedes rifa a bandeira do controle de gastos e o mercado brasileiro entra em parafuso

Bolsa cai quase 3%, no pior desempenho em 11 meses, e dólar bate 5,66 reais após o ministro da Economia sugerir romper o teto de gastos para financiar programa social. Congresso prepara proposta.

Paulo Guedes durante evento no Palácio do Planalto em 27 de setembro. (Edu Andrade / ASCOM/ME)

A Bolsa de São Paulo desabou nesta quinta-feira, fechando em queda de 2,94% —o pior desempenho em 11 meses—, com a discussão aberta pelo ministro Paulo Guedes de furar o teto de gastos, um consenso que guiou o país nos últimos anos, para financiar o programa de benefício social Auxílio Brasil. A B3 chegou a uma queda próxima a 4% em alguns momentos do dia e o dólar foi a 5,66 reais, diante da possibilidade de o Governo Bolsonaro não honrar o compromisso assumido, desde que chegou ao poder, de não tocar no sagrado teto de gastos. O limite foi criado durante o Governo de Michel Temer (2016-2018), como antídoto fiscal para colocar as contas do Brasil em ordem.

A ideia do ministro é ultrapassar o limite para bancar dívidas, como a dos precatórios que vencem no ano que vem, e o novo programa social destinado às famílias que estão em situação vulnerável, o Auxílio Brasil. Há dias o assunto estava em debate, uma vez que o noticiário especulava sobre o lançamento do programa nesta semana. O temor dos investidores se confirmou nesta quarta e o mercado entrou em alvoroço diante da ameaça que pode afetar ainda mais a instabilidade econômica que impacta no câmbio e na inflação — o último Boletim Focus elevou pela 25ª semana seguida a previsão de inflação para 2021, projetada agora em 8,45%.

Guedes falou em abrir uma licença para gastar 30 bilhões de reais fora do teto de gastos para garantir suporte às famílias que sentem especialmente na cesta básica o peso da inflação que o mesmo Governo não consegue controlar. O ministro ainda cogitou antecipar a revisão do teto de gastos, que estava marcada para 2026. Para João Leal, economista da Rio Bravo, se o ministro romper o teto de gastos, abre-se um precedente perigoso que vai piorar o que já está ruim. “Se abrir 30 bilhões de reais no teto, tem espaço e tem pressão para ser mais. Não deve parar por aí”, projeta. Leal acredita que seria, ainda, um estímulo para Governos de Estado fazerem o mesmo, e o movimento derrubaria o teto para governos futuros. “Isso só aumenta a incerteza diante de um quadro de inflação descontrolada, e retração muito forte da economia”, completa.

Há, ainda, o temor de um círculo vicioso em que o dinheiro injetado na economia aumente a demanda por bens de consumo e, por consequência, a inflação. Isso porque o Auxílio Brasil pretende pagar 400 reais, mais do que o Bolsa Família, quando o setor empresarial não está preparado para atender a esse crescimento. O dinheiro seria pago a partir de novembro às milhões de famílias hoje inscritas no Bolsa Família, que estão passando dificuldades com a carestia aberta pela pandemia e a inflação que acumula dois dígitos em 12 meses. “A média do Bolsa Família era de 192 reais, e muita gente recebia 40, 60, 80 reais por mês. Nós acertamos que o novo BF [Auxílio Brasil] será de 400 reais para todo mundo, sem exceção”, disse o presidente Jair Bolsonaro em evento no Nordeste nesta quinta.

Seria uma injeção de dinheiro muito bem-vinda para quem está passando fome, e para a economia de modo geral. Mas, sem um plano de longo prazo, e diante da escassez de diversos produtos — fruto da desorganização das cadeias de logística com a pandemia —, os preços podem subir ainda mais. “Todo mundo quer que exista um benefício social, o problema é a forma como ele está sendo colocado, sem responsabilidade”, diz Leal. Para ele, o que mais pesa hoje para que as empresas aumentem sua atividade para atender a uma potencial demanda, é a incerteza que as medidas do Governo geram.

Para alterar o teto seria preciso trabalhar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que passaria pela Câmara e o Senado. Há um risco de deputados apoiarem, mas a dúvida é o Senado. O relator da PEC dos Precatórios, deputado Hugo Motta (MDB-PB), já incluiu no projeto uma mudança na regra de correção do teto para disponibilizar 40 bilhões de reais. A PEC prevê ainda adiar o pagamento de até 44 bilhões de reais em precatórios, as dívidas que o Governo deve pagar por força judicial. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), disse nesta quinta-feira que, caso a aprovada, a medida será avaliada pelos senadores com “o máximo de pressa possível”, mas evitou se posicionar sobre essa alternativa e destacou a importância de encaixar o programa social dentro do teto de gastos.

Essa não é a alternativa considerada pela equipe econômica do Governo. Guedes propôs a autorização de um crédito extraordinário de 30 bilhões para o Auxílio Brasil —o que preveniria um buraco ainda maior no teto, algo que já se anuncia na emenda feita à PEC dos Precatórios. O ministro reconheceu, contudo, que a decisão será política. E a instabilidade gerada pela notícia dá o tom da dificuldade que se criou neste momento. Nesta quinta, quatro dos assessores do ministro pediram exoneração. Bruno Funchal deixa a Secretaria Especial do Tesouro e Orçamento e Jeferson Bittencourt sai da Secretaria do Tesouro Nacional. “A secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araujo, também pediram exoneração de seus cargos”, completa a nota do Ministério da Economia. Todos alegaram “razões pessoais” para deixar os postos.

Na prática, o ministro contraria o discurso que ele mesmo defendeu desde o início do Governo e com o qual ganhou o apoio do mercado. Desgastado pela inflação em alta e a hesitação com o pagamento de precatórios, o ministro agora amplia sua lista de manobras criticadas por investidores cada vez mais céticos de que ele seja capaz de colocar o país nos trilhos da retomada sustentável. O ministro já é alvo de chacota por guardar seu dinheiro no exterior, em offshore, como mostrou a investigação jornalística Pandora Papers, enquanto os brasileiros estão expostos à instabilidade econômica, em parte criada por decisões suas.

O anúncio do novo auxílio foi feito na tarde desta quarta pelo ministro da Cidadania, João Roma, que não entrou em detalhes sobre como seria financiado o programa que duraria até dezembro de 2022. À noite, Guedes detalhou o que tinha em mente para gastar 30 bilhões de reais fora do teto de gastos (ele falou em waiver, perdão no jargão econômico) e assim financiar o novo programa. Acusado de ser populista, Guedes argumentou que o Governo pretende ser “reformista e popular. Não populista”. A intenção do ministro será medida nos próximos meses pela situação da economia do país —e pelo resultado da eleição presidencial de 2022.

CARLA JIMÉNEZ, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 21.10.21

Como vai funcionar o Auxílio Brasil, sucessor do Bolsa Família

Com aprovação em queda, governo Bolsonaro quer que famílias contempladas pelo programa recebam no mínimo R$ 400 até o fim de 2022, ano eleitoral. Mas fonte dos recursos ainda é incerta.

    

Vista da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro

Com popularidade em queda e em desvantagem nas pesquisas eleitorais para a eleição de 2022, o presidente Jair Bolsonaro anunciou a criação do Auxílio Brasil, um programa que substituirá o Bolsa Família, que atende mais de 14 milhões de famílias.

1) Quando começa o Auxílio Brasil?

O governo federal afirma que o novo programa começa a partir de novembro – mês em que já não haverá pagamentos de novas parcelas do auxílio emergencial. O anúncio não especificou em qual dia exatamente começam os pagamentos.

2) Qual será o valor do Auxílio Brasil?

O auxílio Brasil vai substituir o Bolsa Família, que tem valores que variam de família a família, dependendo do tamanho do núcleo. Segundo o governo, há beneficiários que recebem menos de R$ 100 e alguns que recebem mais de R$ 500 por mês.

Segundo o ministro da Cidadania, João Roma, haverá um aumento de 20% no Orçamento atual destinado ao Bolsa Família, que serão usados para reajustar os valores pagos atualmente.

Além disso, o governo afirma que ainda está tentando aprovar um "benefício transitório" para que cada família inscrita no novo Auxílio Brasil receba no mínimo R$ 400 até o fim de 2022 – final do mandato de Jair Bolsonaro.

Mas o governo ainda é vago sobre as fontes dos recursos. O benefício transitório também levantou temores de que o governo planeje furar o teto de gastos e questionamentos sobre o cronograma, que coincide com um ano eleitoral. Hoje a média paga pelo Bolsa Família é de R$ 189.

3) Quem terá direito ao Auxílio Brasil?

O programa é voltado a famílias em situação de extrema pobreza. Atualmente, são consideradas nessa situação as famílias com renda de até R$ 89 por pessoa.

Já famílias em situação de pobreza – cuja renda mensal varia de R$ 89,01 a R$ 178 por pessoa – também poderão participar do programa, desde que haja entre seus membros gestantes ou pessoas com menos de 21 anos.

No entanto, esses valores de referência ainda podem mudar. A medida provisória que cria o novo programa aponta que os valores ainda serão definidos.

4) Quantas famílias serão atendidas pelo Auxílio Brasil?

No momento, o Bolsa Família atende 14,7 milhões de famílias. O governo federal afirma que pretende estender o Auxílio Brasil para 16,9 milhões de famílias.

5) Como será o cadastramento do Auxílio Brasil?

O governo não especificou como isso deve ocorrer. Mas é provável que o programa use os cadastros atuais do Bolsa Família e do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico).

A inscrição no CadÚnico é realizada de forma presencial, e o local de atendimento varia dependendo da cidade. Normalmente, o atendimento é feito em Centros de Referência de Assistência Social (Cras) ou em postos de atendimento das prefeituras.

6) Como será dividido o Auxílio Brasil?

O programa reúne um total de nove benefícios.

Três deles, segundo o governo, compõem o núcleo básico do Auxílio Brasil:

- Auxílio Primeira Infância: Para famílias com crianças pequenas entre 0 e 3 anos incompletos.

- Auxílio Composição Familiar: Para núcleos familiares com gestantes e/ou jovens de até 21 anos que estejam matriculados em alguma instituição de ensino. Atualmente, o Bolsa Família limita o benefício a jovens de até 17 anos.

- Auxílio Superação da Extrema Pobreza: pago em casos em que, após computados os dois benefícios anteriores, a renda mensal da família ainda estiver abaixo da linha de extrema pobreza.

Os outros benefícios são:

- Auxílio Esporte Escolar: Destinado a famílias de estudantes entre 12 e 17 anos que se destacarem nos Jogos Escolares Brasileiros e sejam membros de famílias beneficiárias do programa.

- Auxílio Bolsa de Iniciação Científica Júnior: Pagamento extra para famílias de estudantes com bom desempenho em competições acadêmicas e científicas.

- Auxílio Criança Cidadã: Pago para responsável por criança de até 4 anos que trabalhe e que não encontre vaga em creches públicas ou privadas da rede conveniada.

- Auxílio Inclusão Produtiva Rural: previsto por até 36 meses a agricultores familiares inscritos no Cadastro Único.

- Auxílio Inclusão Produtiva Urbana:  voltado a quem estiver na folha de pagamento do Auxílio Brasil e comprovar vínculo de emprego formal.

- Benefício Compensatório de Transição: voltado a famílias que constavam na folha de pagamento do Bolsa Família e acabaram perdendo parte do valor do benefício na mudança para o Auxílio Brasil.

Regras específicas para cada divisão ainda deverão ser elaboradas, segundo o governo.

7) De onde vai sair o dinheiro?

Com o país em crise e o Orçamento da União já bastante pressionado, o governo aumentou a alíquota do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro ou relativa a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF) para bancar o cronograma do programa até o fim de 2021.

Já para 2022 a forma de arrumar o dinheiro será mais complicada. Primeiro o governo vai precisar aprovar a PEC dos Precatórios para liberar espaço no Orçamento. Também será preciso aprovar a reforma na cobrança do Imposto de Renda ainda neste ano. A PEC dos Precatórios pode abrir um espaço no Orçamento de cerca de R$ 50 bilhões ao adiar o pagamento de dívidas do governo.

O orçamento do Bolsa Família em 2021 é de R$ 34,9 bilhões. O aumento de 20% no "valor permanente", como o governo anunciou, já elevaria o gasto para R$ 41,8 bilhões numa base anual. Para piorar, dos R$ 400 do pagamento mínimo transitório planejado pelo governo, R$ 100 teriam que vir de fontes extras, fora do teto de gastos. Só esse extra temporário pode causar um rombo de R$ 30 bilhões.

Ao anunciar um extra temporário, para elevar o valor até R$ 400, o governo já tenta driblar a necessidade de fixar uma fonte permanente de recursos. Por esse formato, o governo só precisa fixar qual será a fonte do reajuste global de 20% no orçamento atual do Bolsa Família.

Segundo veículos da imprensa brasileira, essas estratégias foram desenhadas pela equipe política do governo, e não pela área econômica. A criatividade contábil e a falta de indicação de onde vão sair os recursos em 2022 provocaram reação negativa no governo, diante da expectativa de que o plano resulte em um furo no teto de gastos.

Diante desse desafio, mesmo aliados do governo Bolsonaro já indicam que podem vir a apoiar a prorrogação do auxílio emergencial até o fim de 2022, como forma de compensar a falta de dinheiro no Auxílio Brasil.

Deutsche Welle Brasil, em 21.10.21

O "charlatão" Bolsonaro tem pouco a temer por enquanto

A CPI tenta imputar ao presidente de crimes contra a humanidade a charlatanismo. O relatório é devastador, mas é improvável que Bolsonaro seja efetivamente responsabilizado pelo desastre enquanto estiver no poder.

Bolsonaro promovendo uma de suas falsas "curas" contra a covid-19

Mais de 600 mil brasileiros morreram na pandemia até agora. Apenas nos EUA o número de vítimas foi maior. Em seu relatório final apresentado na quarta-feira (20/10), a CPI da Pandemia acusa o presidente Jair Bolsonaro de dez crimes durante a execução das suas políticas sanitárias fracassadas. As acusações incluem charlatanismo, Infração de medida sanitária preventiva, incitação ao crime e crimes contra a humanidade.

Graves acusações também foram apresentas contra 65 outras pessoas, incluindo três filhos do presidente, quatro ministros e duas empresas.

O presidente Bolsonaro reagiu da mesma maneira de sempre. "Nada produziram a não ser o ódio e o rancor", disse o presidente em um evento que aconteceu paralelamente à leitura do relatório. Mais uma vez, ele defendeu o uso de medicamentos antimaláricos e vermífugos comprovadamente ineficazes para combater a covid-19, usando o subterfúgio da defesa da autonomia dos médicos para administrar os remédios.

Um relatório final puramente político

O presidente sabe que juridicamente tem pouco a temer em relação ao relatório final de quase 1.200 páginas. Por um lado, o relatório ainda é um rascunho. Na próxima semana, o texto será votado pela CPI e poderá sofrer alterações. Depois disso, é certo que deve ser aprovado pela maioria dos 11 membros da comissão.

A exclusão de dois trechos controversos na noite de terça-feira mostrou que ainda há muita margem de manobra para novas alterações. As acusações contra Bolsonaro por homicídio e genocídio da população indígena foram deixadas de lado após pressão de senadores. Não havia base legal para essas imputações, argumentou-se, e foi levantado o risco de que essas acusações prejudicassem a credibilidade do relatório como um todo.

Mas mesmo que as principais acusações permaneçam na versão final e aprovada do relatório, isso em princípio não acarretará consequências jurídicas para o presidente. Em última instância, cabe ao Ministério Público verificar se existem de fato evidências ou mesmo provas sólidas sobre os crimes imputados. Os procuradores são livres para descartar acusações individuais ou adicionar novas. Não há vinculação obrigatória entre o relatório da CPI e as investigações do Ministério Público.

Bolsonaro conta com Augusto Aras

Além disso, Bolsonaro tem um grande trunfo na manga. Cabe ao procurador-geral da República, Augusto Aras, decidir se os pedidos de indiciamento contra o presidente devem avançar. Aras, nomeado por Bolsonaro em 2019, vem provando até o momento ser um protetor do presidente. O fato de que ele espera ser nomeado para uma vaga no Supremo Tribunal Federal por Bolsonaro deve aumentar ainda mais sua lealdade pretoriana.

Não se espera que Aras indicie Bolsonaro. Em vez disso, é mais provável que Aras simplesmente ignore o relatório da comissão, deixando-o "mofar na gaveta". Há discussões se o STF poderia forçar Aras a aceitar dar andamentos às acusações, mas essa é uma questão controversa entre juristas.

Comissão de Inquérito como ferramenta de política

A oposição, que conta com maioria na CPI, está ciente de tudo isso, é claro. Então ela espera pelo menos desgastar Bolsonaro politicamente. Daqui a um ano, os brasileiros elegerão um novo presidente. A CPI reuniu muito material para a campanha eleitoral da oposição. As audiências que somam 370 horas acabaram sendo usadas para expor o fracasso da política governamental de combate à pandemia.

Não foi difícil. Foram explícitas a incompetência do governo em lidar com a pandemia e a clara indisposição de Bolsonaro em agir. O presidente não se importa com quantas pessoas morrem e não tem medo de dizer isso abertamente. É ainda mais surpreendente quantos brasileiros ainda são leais a Bolsonaro. Eles acreditam na narrativa do presidente de que se trata apenas de uma campanha de vingança da oposição.

As CPIs são, em sua maioria, espetáculos públicos

E elas têm boas razões para isso. As comissões parlamentares de inquérito são uma ferramenta política utilizada pela oposição para questionar o governo. Na história do Brasil, quase sempre foram usadas ​​para pirotecnia política. Muito barulho por nada, um show puramente político-partidário sem consequências reais e investigações sérias. Nesse sentido, a CPI da Pandemia é um ponto de inflexão histórico, pois 9 terabytes - ou seja, 9.000 gigabytes - de documentos foram coletados e analisados ​​por advogados especializados. Uma conquista histórica única.

A CPI merece crédito por revelar detalhes até então desconhecidos do fracasso do governo. A rede de corrupção que se formou em torno da compra de vacinas e remédios foi exposta, revelando a atuação ilegal de políticos pró-governo, funcionários e empresários. Esses peixes pequenos são provavelmente os que mais têm a temer o Judiciário. Eles provavelmente serão usados como bois de piranha.

E os peixes grandes? O mais provável é que ele estejam temerosos com a reação dos eleitores. Porque, uma vez sem mandatos, Bolsonaro e companhia poderão ser processados ​​pelas instâncias inferiores da Justiça. É possível prever várias ações judiciais movidas por famílias de vítimas contra os responsáveis ​​pela política para a pandemia. Em seguida, serão expostos novamente os responsáveis pela falta de oxigênio nos hospitais amazônicos e pelas centenas de pacientes que morreram nessas unidades.

O alemão Thomas Milz trabalha há 15 anos no Brasil como jornalista e fotógrafo para veículos como o Bayerischer Rundfunk, a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. O texto acima reflete a opinião pessoal do autor, e não necessariamente da DW

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW ou a do blog.

Ambev, Vivo, Pão de Açúcar: conheça os 10 maiores devedores dos Estados brasileiros

Os Estados brasileiros somavam R$ 896,2 bilhões em dívidas a receber de empresas em 2019, aponta estudo inédito realizado pela Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital), entidade sindical que representa os servidores públicos fiscais tributários.


Dívida das empresas com Estados somava R$ 896 bilhões em 2019. Companhias negam irregularidades e dizem que valores são fruto de 'divergências na interpretação da lei tributária'

Entre 2015 e 2019, esse montante de dívida cresceu 31,4%. E o valor devido pelas empresas aos Estados equivale a 13,2% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro, diz o levantamento.

São impostos, contribuições e multas que deixaram de ser pagos pelo setor privado, registrados como dívida ativa após o fim do prazo legal para pagamento ou após decisão final em processo administrativo regular.

As empresas negam irregularidades e dizem que os valores são fruto de "divergências na interpretação da lei tributária" e que ainda contestam as obrigações na Justiça.

O Atlas da Dívida Ativa dos Estados Brasileiros foi feito a partir de dados de 17 Estados que divulgaram seus números publicamente na internet ou mediante requisição da Fenafisco. Não há sigilo sobre a dívida ativa, os dados são públicos, mas alguns Estados ainda falham na transparência desses dados, conforme revelou a dificuldade na obtenção dos números.

Segundo o economista Juliano Goularti, autor do estudo encomendado pela entidade, o levantamento revela como bilhões de reais em recursos públicos estão indevidamente em poder da iniciativa privada, quando poderiam estar sendo destinados para políticas públicas de saúde, educação e segurança pública, por exemplo.

"No Brasil, não tem crime tributário", diz Goularti. "Se você rouba uma caixa de leite ou um pacote de bolachas, está sujeito ao Código Penal. Mas, na tributação, você faz planejamento tributário e elisão fiscal e não é criminalizado."

O planejamento tributário e a elisão fiscal são manobras feitas para evitar o pagamento de taxas, impostos e outros tributos dentro da legalidade — diferentemente da evasão fiscal, que tem o mesmo objetivo, mas por meios ilícitos.

"Nesse momento no Brasil, estamos passando por um período longo de ajuste fiscal, de corte de despesas e de teto de gastos, para ajustar a despesa pública. Mas não vemos uma política ativa, tanto por parte da União, como dos Estados, para recuperar essa dívida ativa", observa.

"Essa dívida vai crescendo ao longo do tempo, enquanto crescem em paralelo os problemas sociais: a desigualdade, a fome", observa Charles Alcantara, auditor Fiscal de Receitas do Estado do Pará e presidente da Fenafisco. Segundo ele, caso a dívida fosse recuperada, seria possível pagar 11 anos de Bolsa Família aos mais vulneráveis com valor de R$ 400.

A média nacional de recuperação da dívida ativa estadual gira em torno de 0,6%. "Isso chega a ser vexatório, o Estado que é tão preocupado em honrar a dívida pública, diminuindo recursos da saúde e educação e não combatendo a fome e a miséria para pagar seus credores, deixa os privados que devem ao Estado sem ser incomodados", critica Alcantara.

Goularti avalia que um dos fatores que estimula as empresas a não pagarem devidamente suas obrigações tributárias é a realização recorrente de programas do tipo Refis (Programa de Recuperação Fiscal), em que as dívidas são renegociadas a valores muito mais baixos e com prazos longos. Como as empresas sabem que sempre vai haver uma nova edição desse tipo de negociação, elas já fazem seu planejamento tributário contando com isso.

Para Goularti a solução para o problema da dívida ativa crescente é apertar o cerco na fiscalização e na cobrança e criar regras que inibam a elisão e o planejamento tributário, como a criminalização dessas práticas.

Ele reconhece, no entanto, que isso é desafiador, como mostrou a tramitação da reforma do imposto de renda, que incluía um pacote antielisão bastante ousado, cujas principais medidas — como a tributação do patrimônio de brasileiros em offshore e alíquotas diferenciadas sobre dividendos para paraísos fiscais — foram derrubadas pelo Congresso.

"A dívida ativa se dá a partir de relações de poder políticas e econômicas. São lobbies muito fortes e essas relações de poder contribuem para a formação dos estoques da dívida ativa", diz o economista. "Por trás dessa dívida ativa existe um conjunto de lobbies."


Confira os dez maiores devedores dos Estados brasileiros, segundo a Fenafisco:

1) Refinaria de Petróleo de Manguinhos (R$ 7,7 bilhões) — refinaria de petróleo brasileira localizada no Estado do Rio de Janeiro. Entrou com pedido de recuperação judicial (mecanismo usado para tentar evitar a falência de empresas através de negociações com seus credores) em 2013. O processo foi encerrado em 2020 e a empresa mudou de nome para Refit.

2) Ambev (R$ 6,3 bilhões) — cervejaria que domina cerca de 55% do mercado brasileiro e 26% do mercado mundial, dona de marcas como Brahma, Skol, Antarctica Stella Artois e Budweiser, além dos refrigerantes Guaraná Antarctica e Pepsi. Tem como controladores os bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira. Lemann é o segundo brasileiro mais rico do mundo, segundo ranking da revista Forbes.

3) Telefônica - Vivo (R$ 4,9 bilhões) — empresa de telecomunicação controlada pela espanhola Telefónica, atua em telefonia fixa móvel, banda larga e TV por assinatura. Formada pela fusão de antigas empresas de telefonias estatais brasileira.

4) Sagra Produtos Farmacêuticos (R$ 4,1 bilhões) — distribuidora de medicamentos.

5) Drogavida Comercial de Drogas (R$ 3,9 bilhões) — rede varejista de medicamentos com sede em Ribeirão Preto (SP).

6) Tim Celular (R$ 3,5 bilhões) — empresa de telefonia celular, subsidiária no Brasil da Telecom Italia.

7) Cerpa Cervejaria Paraense (R$ 3,3 bilhões) — fabricante tradicional de cerveja controlada pela família Seibel. Dona das marcas Cerpa Export, Cerpa Prime, Tijuca, Draft Sound, Gold e Nevada, além de refrigerantes e do energético Amazon Power.

8) Companhia Brasileira de Distribuição (R$ 3,1 bilhões) — mais conhecida como Grupo Pão de Açúcar (GPA) e controlada pelo grupo francês Casino, atua no ramo de supermercados com as bandeiras Pão de Açúcar, Extra e Compre Bem.

9) Athos Farma Sudeste (R$ 2,9 bilhões) — distribuidora de medicamentos em recuperação judicial.

10) Vale (R$ 2,8 bilhões) — mineradora brasileira que é uma das maiores produtoras e exportadoras de minério de ferro do mundo. Fundada em 1942 como Companhia Vale do Rio Doce, foi privatizada em 1997.

O que dizem as empresas

A BBC News Brasil procurou as empresas para se posicionarem sobre o estudo.

A Vale informou que "cumpre rotineiramente todas as suas obrigações fiscais", que "mantém discussões tributárias na esfera estadual em decorrência de divergências de interpretação da legislação tributária desses entes", e que todas as discussões estão garantidas ou com a exigibilidade suspensa, o que lhe confere o certificado de regularidade fiscal nessas jurisdições.

O GPA afirmou que não tem dívida em aberto, e que todos os débitos estão em discussão judicial e devidamente garantidos.

A Ambev afirmou que "os valores indicados são fruto de discussões em que discordamos da cobrança e que ainda estão em andamento nos tribunais. Considerando o porte da empresa e, ainda, por sermos uma das maiores pagadoras de impostos do país é natural que, na soma, o valor em discussão seja expressivo."

A TIM e a Vivo optaram por não se pronunciar. A Refit, antiga Refinaria Manguinhos, não retornou ao pedido de posicionamento e a BBC News Brasil tentou contato com a Sagra Produtos Farmacêuticos, Drogavida Comercial de Drogas, Cerpa Cervejaria Paraense e Athos Farma Sudeste, mas não obteve resposta.

Caso as empresas se manifestem, os posicionamentos serão publicados em versão atualizada desta reportagem.

Thais Carrança, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 21.10.21

O prisioneiro da crise fiscal

Bolsonaro e o Centrão estão brincando de tornar o País ingovernável

Grandes sacudidas políticas no Brasil vieram quase sempre de crises fiscais, e Jair Bolsonaro está se empenhando em aprofundar a atual. As causas dessas crises são amplas e profundas, e no sentido mais geral resultam da apropriação de pedaços do Estado por grupos privados e corporações, que acomodam os mais variados interesses às custas dos cofres públicos.

No caso da atual crise, seu agravamento não vem só do fato de Bolsonaro arriscar as contas públicas apostando na reeleição. Fator relevante foi a entrega de fatias essenciais de poder, como o controle do Orçamento, aos grupos políticos amorfos e até antagônicos apelidados de Centrão. É o que explica em boa parte que os agentes econômicos tenham perdido a confiança na capacidade do Executivo de formular e articular políticas públicas abrangentes, começando pela economia.

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia Paulo Guedes. Foto: Dida Sampaio/Estadão

A única agenda do Centrão é a defesa de seus interesses regionais ou corporativos (ou tudo junto). Por definição, trata-se de um conjunto de correntes políticas e interesses segmentados incapaz de articular uma pauta ampla. Como Bolsonaro não tem qualquer senso estratégico e se dedica fundamentalmente a agradar a plateias amestradas, não percebeu que o Centrão não é garantia alguma de que ele possa governar (basta lembrar as reformas que nunca andam).

Ao contrário, o poder entregue ao Centrão é a garantia de que o atual ocupante do Planalto não conseguirá governar nem mesmo na hipótese, hoje bastante remota, de que consiga a reeleição. O debate político brasileiro tornou-se completamente subordinado às questões fiscais mais urgentes. Portanto, não existe espaço, energia ou foco em plataformas para fugir da armadilha da renda média na qual o Brasil está preso há décadas. 

É sério o risco de o Centrão (com Bolsonaro a tiracolo), sem rédeas, retroceder ao estágio pré-Plano Real, o da irresponsabilidade declarada com as contas públicas. A necessidade de ajudar quase 30 milhões que caíram abaixo da linha da pobreza virou um Cavalo de Troia para a gastança que será paga mais adiante (em inflação e estagnação) por esses mesmos milhões de necessitados. Não há qualquer visão de futuro nas figuras de proa do Centrão além de garantir seus interesses políticos imediatos, aos quais no momento Bolsonaro serve perfeitamente.

Ficamos assim: uma geração e meia após a redemocratização continuamos tentando, sem grande sucesso, resolver pobreza, miséria e desigualdade, e procurando um jeito de ganhar eleições com votos garantidos por programas assistenciais. Quem sabe a crise fiscal (como aconteceu próximo ao Real) traga as mudanças que os salvadores da Pátria de plantão não têm.

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista. Apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 21.10.21.