quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Quatro secretários de Guedes pedem demissão após manobra para driblar teto de gastos

Secretários de Orçamento, Bruno Funchal, e do Tesouro, Jeferson Bittencourt, informaram 'razões pessoais'. ao ministro Paulo Guedes. Governo quer furar teto para bancar Auxílio Brasil

Quatro secretários do Ministério da Economia pediram demissão dos cargos nesta quinta-feira (21) alegando motivos pessoais. O anúncio foi feito pela própria pasta, e ainda não há substitutos anunciados.

Os quatro secretários comandavam a área fiscal do ministério, ou seja, os setores diretamente relacionados com os gastos públicos. Deixaram os cargos:

"Funchal e Bittencourt agradecem ao ministro pela oportunidade de terem contribuído para avanços institucionais importantes e para o processo de consolidação fiscal do país", diz o ministério.

De acordo com o Ministério da Economia, Funchal e Bittencourt seguem despachando nos cargos até que seja feita a transição para os próximos secretários.

Os pedidos de demissão acontecem após a manobra liderada pelo Centrão para abrir espaço no teto de gastos em 2022, ano de eleições gerais. O governo pretende gastar cerca de R$ 40 bilhões fora da regra de austeridade para bancar um benefício social temporário de, pelo menos, R$ 400 mensais (veja detalhes mais abaixo).

Os substitutos nos cargos ainda não foram anunciados. Também nesta quinta, o secretário de Petróleo e Gás do Ministério de Minas e Energia, José Mauro Coelho, pediu demissão do posto.

Manobra, auxílio e debandada

A nova debandada no Ministério da Economia ocorre logo após a derrota da equipe econômica para a ala política do governo na definição dos novos valores do Auxílio Brasil.

O ministro da Cidadania, João Roma, anunciou na quarta-feira (20) que o benefício do novo programa social será de, no mínimo, R$ 400 por família até o final do ano que vem. Veja mais detalhes no vídeo abaixo:

(Governo anuncia Auxílio Brasil, mas não diz de onde virão os recursos para financiar programa)

Nos últimos meses a equipe econômica havia se conformado com um aumento mais modesto, de R$ 300, que seria encaixado no Orçamento por meio da PEC dos Precatórios e custeado com o retorno da taxação sobre os lucros e os dividendos, parte da Reforma do Imposto de Renda.

Porém, a reforma do Imposto de Renda não avançou no Senado. Do outro lado, a inflação se mostrou mais persistente do que o imaginado pela equipe econômica, levando a pressão política para aumentar o benefício para além dos R$ 300 planejados.

Para viabilizar o Auxílio Brasil, o relator da PEC dos Precatórios, deputado Hugo Motta, propôs alterar a regra de correção do teto de gasto. Atualmente, a fórmula considera o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) apurado entre julho de um ano e junho do ano seguinte. A proposta é mudar para janeiro a dezembro, com valores retroativos a 2016.

A mudança parece simples mas, na avaliação de técnicos do Congresso, a alteração na fórmula e o limite de pagamento dos precatórios abrem cerca de R$ 83 bilhões para despesas em 2022, ano eleitoral. Na prática, o governo conseguiria essa margem para contornar o teto de gastos.

'Situação complicada', diz Mourão

Até o início da noite desta quinta, o ministro Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro ainda não tinham comentado as demissões.

Questionado, o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que o país vive uma situação "complicada" e que existem opções para auxiliar as famílias mais pobres sem desrespeitar a regra do teto de gastos.

"É uma situação complicada que nós temos vivido. Qual é a minha visão? Eu acho que têm boas soluções para serem buscadas no sentido de se obter os recursos necessários para um auxílio para a população mais desvalida sem que seja obrigatório você quebrar o teto de gastos ou furar o teto de gastos. Acho que se sentar todo mundo se consegue uma solução melhor", afirmou o vice-presidente.

Perfis

Doutor em Economia pela Fundação Getúlio Vargas, Funchal é especialista em Economia, com ênfase em Finanças, Direito e Macroeconomia Aplicada. Ele estava no Ministério da Economia desde janeiro de 2019

Começou como diretor de programas e, após pedido de demissão de Mansueto Almeida em junho de 2020, foi promovido ao cargo de secretário do Tesouro. Depois, em maio deste ano, assumiu o cargo de secretário especial de Fazenda - posteriormente transformado em Secretário Especial de Tesouro e Orçamento.

Funchal foi secretário de Fazenda do Espírito Santo de 2017 a 2018, quando conseguiu fazer o estado tirar nota máxima em capacidade de pagamento cortando comissionados, suspendendo concursos e não concedendo reposição salarial.

O sucesso no governo capixaba fez Funchal ser procurado no fim de 2018 para ser secretário de Fazenda do Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Mas ele acabou optando por aceitar o convite do Ministro Paulo Guedes para integrar o governo Bolsonaro

Veja abaixo a íntegra da nota divulgada nesta quinta pelo Ministério da Economia:

Nota à imprensa

O secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e o secretário do Tesouro Nacional, Jeferson Bittencourt, pediram exoneração de seus cargos ao ministro da Economia, Paulo Guedes, nesta quinta-feira (21/10).

A decisão de ambos é de ordem pessoal. Funchal e Bittencourt agradecem ao ministro pela oportunidade de terem contribuído para avanços institucionais importantes e para o processo de consolidação fiscal do país.

A secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araujo, também pediram exoneração de seus cargos, por razões pessoais.

Os pedidos foram feitos de modo a permitir que haja um processo de transição e de continuidade de todos os compromissos, tanto da Seto quanto da STN.

Jéssica Sant'Ana e Jamile Racaniccim, de Brasília para o g1 e TV Globo, em 21/10/2021

Grupo ataca sede da revista IstoÉ após edição crítica a Bolsonaro

Prédio da editoria é pichado e cartazes nos muros insultam diretor do grupo; ANJ repudia ato: ‘extremistas não sabem conviver com liberdade de imprensa’

Prédio da editoria é pichado e cartazes nos muros insultam diretor do grupo; editora afirma que acionou a polícia  Foto: Reprodução

A sede da Editora Três, responsável pela publicação da revista IstoÉ, foi alvo de ataques criminosos na noite desta quarta-feira, 20, dias após publicar edição cuja capa compara o presidente Jair Bolsonaro a Adolf Hitler. Segundo a empresa, “ativistas políticos” colaram cartazes e picharam os muros do local, causando danos ao patrimônio físico e insultando diretores do grupo de mídia.

A Associação Nacional de Jornais (ANJ), em nota assinada com a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e a Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER), prestou solidariedade à editora e disse que “repudia com veemência esse ataque e lamenta que extremistas que não sabem conviver com a liberdade de imprensa incitem intimidações contra vozes críticas.”

A edição mais recente da IstoÉ traz em sua capa uma imagem do presidente Bolsonaro com o bigode de Hitler, onde se lê “genocida”, e a manchete “as práticas abomináveis do mercador da morte”. 

Cartazes colados na sede da editora mostram o rosto de um membro da empresa com os dizeres “sou vacilão” e, no lugar do título da edição, a frase “mercador de merda”. O fato ocorreu na quarta-feira, 20, por volta das 23h, segundo funcionários da editora. A segurança do local foi reforçada e uma viatura da polícia permanecerá na sede nos próximos dias.

Capa mais recente da IstoÉ traz uma imagem do presidente Bolsonaro com o bigode de Hitler, onde se lê ‘genocida’ Foto: Reprodução

Na semana passada, o vereador Carlos Bolsonaro postou a capa da revista em suas redes sociais e afirmou que tomaria medidas judiciais contra a editora. O filho do presidente defendeu “limite” para a liberdade de expressão e escreveu que “esta mesma imprensa se vitimiza e exige respeito do presidente Jair Bolsonaro”. Já a Advocacia-Geral da União cobrou direito de resposta da publicação e pediu que ela seja relançada com uma capa alternativa.

Em nota, a empresa disse considerar que o ato representa “uma tentativa de ameaça à democracia, à liberdade de expressão e à imprensa livre, democrática e independente”. A editora afirmou ainda que acionou a polícia e tomou as medidas necessárias para denunciar e identificar os autores do ataque.

“Essas agressões acontecem em razão do jornalismo crítico e independente adotado pela editora, e vêm na esteira do extremismo político instalado no País nos últimos anos. Elas têm o objetivo de intimidar, mas não terão sucesso. A intolerância, o fanatismo e a covardia de grupos extremistas serão combatidos pelo bem da estabilidade democrática”, diz a nota.

Leia nota da ANJ, em conjunto com a Abert e ANER

A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), a Associação  Nacional de Editores de Revistas (ANER) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ)  repudiam o atentado sofrido pela Editora Três, responsável pela publicação das  revistas IstoÉ e IstoÉ Dinheiro, na noite desta quarta-feira (20).  

Os atos criminosos com pichações e colagem de cartazes no prédio da Lapa, em  São Paulo (SP), que não foram assumidos publicamente por nenhum autor,  representam ações antidemocráticas, que não podem ser toleradas em um país  em que a Constituição preza pelos direitos à liberdade de imprensa e de  expressão. 

As entidades condenam os atos de desonra aos editores e diretores da  publicação, que vieram a partir de manifestações extremistas. É essencial que as  autoridades tomem as medidas necessárias para identificar e denunciar os  autores dos ataques, de forma que a integridade dos jornalistas da Editora Três  possa ser mantida. 

Acreditamos que um país livre e civilizado se faz por meio do pensamento crítico,  de uma imprensa respeitada, de instituições firmes e do respeito às leis.  

Brasília, 21 de outubro de 2021. 

Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER)  

Associação Nacional de Jornais (ANJ).

Publicado originalmente pelo O Estado de S.Paulo, em 21 de outubro de 2021 

Paulo Guedes rifa a bandeira do controle de gastos e o mercado brasileiro entra em parafuso

Bolsa cai quase 3%, no pior desempenho em 11 meses, e dólar bate 5,66 reais após o ministro da Economia sugerir romper o teto de gastos para financiar programa social. Congresso prepara proposta.

Paulo Guedes durante evento no Palácio do Planalto em 27 de setembro. (Edu Andrade / ASCOM/ME)

A Bolsa de São Paulo desabou nesta quinta-feira, fechando em queda de 2,94% —o pior desempenho em 11 meses—, com a discussão aberta pelo ministro Paulo Guedes de furar o teto de gastos, um consenso que guiou o país nos últimos anos, para financiar o programa de benefício social Auxílio Brasil. A B3 chegou a uma queda próxima a 4% em alguns momentos do dia e o dólar foi a 5,66 reais, diante da possibilidade de o Governo Bolsonaro não honrar o compromisso assumido, desde que chegou ao poder, de não tocar no sagrado teto de gastos. O limite foi criado durante o Governo de Michel Temer (2016-2018), como antídoto fiscal para colocar as contas do Brasil em ordem.

A ideia do ministro é ultrapassar o limite para bancar dívidas, como a dos precatórios que vencem no ano que vem, e o novo programa social destinado às famílias que estão em situação vulnerável, o Auxílio Brasil. Há dias o assunto estava em debate, uma vez que o noticiário especulava sobre o lançamento do programa nesta semana. O temor dos investidores se confirmou nesta quarta e o mercado entrou em alvoroço diante da ameaça que pode afetar ainda mais a instabilidade econômica que impacta no câmbio e na inflação — o último Boletim Focus elevou pela 25ª semana seguida a previsão de inflação para 2021, projetada agora em 8,45%.

Guedes falou em abrir uma licença para gastar 30 bilhões de reais fora do teto de gastos para garantir suporte às famílias que sentem especialmente na cesta básica o peso da inflação que o mesmo Governo não consegue controlar. O ministro ainda cogitou antecipar a revisão do teto de gastos, que estava marcada para 2026. Para João Leal, economista da Rio Bravo, se o ministro romper o teto de gastos, abre-se um precedente perigoso que vai piorar o que já está ruim. “Se abrir 30 bilhões de reais no teto, tem espaço e tem pressão para ser mais. Não deve parar por aí”, projeta. Leal acredita que seria, ainda, um estímulo para Governos de Estado fazerem o mesmo, e o movimento derrubaria o teto para governos futuros. “Isso só aumenta a incerteza diante de um quadro de inflação descontrolada, e retração muito forte da economia”, completa.

Há, ainda, o temor de um círculo vicioso em que o dinheiro injetado na economia aumente a demanda por bens de consumo e, por consequência, a inflação. Isso porque o Auxílio Brasil pretende pagar 400 reais, mais do que o Bolsa Família, quando o setor empresarial não está preparado para atender a esse crescimento. O dinheiro seria pago a partir de novembro às milhões de famílias hoje inscritas no Bolsa Família, que estão passando dificuldades com a carestia aberta pela pandemia e a inflação que acumula dois dígitos em 12 meses. “A média do Bolsa Família era de 192 reais, e muita gente recebia 40, 60, 80 reais por mês. Nós acertamos que o novo BF [Auxílio Brasil] será de 400 reais para todo mundo, sem exceção”, disse o presidente Jair Bolsonaro em evento no Nordeste nesta quinta.

Seria uma injeção de dinheiro muito bem-vinda para quem está passando fome, e para a economia de modo geral. Mas, sem um plano de longo prazo, e diante da escassez de diversos produtos — fruto da desorganização das cadeias de logística com a pandemia —, os preços podem subir ainda mais. “Todo mundo quer que exista um benefício social, o problema é a forma como ele está sendo colocado, sem responsabilidade”, diz Leal. Para ele, o que mais pesa hoje para que as empresas aumentem sua atividade para atender a uma potencial demanda, é a incerteza que as medidas do Governo geram.

Para alterar o teto seria preciso trabalhar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que passaria pela Câmara e o Senado. Há um risco de deputados apoiarem, mas a dúvida é o Senado. O relator da PEC dos Precatórios, deputado Hugo Motta (MDB-PB), já incluiu no projeto uma mudança na regra de correção do teto para disponibilizar 40 bilhões de reais. A PEC prevê ainda adiar o pagamento de até 44 bilhões de reais em precatórios, as dívidas que o Governo deve pagar por força judicial. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), disse nesta quinta-feira que, caso a aprovada, a medida será avaliada pelos senadores com “o máximo de pressa possível”, mas evitou se posicionar sobre essa alternativa e destacou a importância de encaixar o programa social dentro do teto de gastos.

Essa não é a alternativa considerada pela equipe econômica do Governo. Guedes propôs a autorização de um crédito extraordinário de 30 bilhões para o Auxílio Brasil —o que preveniria um buraco ainda maior no teto, algo que já se anuncia na emenda feita à PEC dos Precatórios. O ministro reconheceu, contudo, que a decisão será política. E a instabilidade gerada pela notícia dá o tom da dificuldade que se criou neste momento. Nesta quinta, quatro dos assessores do ministro pediram exoneração. Bruno Funchal deixa a Secretaria Especial do Tesouro e Orçamento e Jeferson Bittencourt sai da Secretaria do Tesouro Nacional. “A secretária especial adjunta do Tesouro e Orçamento, Gildenora Dantas, e o secretário-adjunto do Tesouro Nacional, Rafael Araujo, também pediram exoneração de seus cargos”, completa a nota do Ministério da Economia. Todos alegaram “razões pessoais” para deixar os postos.

Na prática, o ministro contraria o discurso que ele mesmo defendeu desde o início do Governo e com o qual ganhou o apoio do mercado. Desgastado pela inflação em alta e a hesitação com o pagamento de precatórios, o ministro agora amplia sua lista de manobras criticadas por investidores cada vez mais céticos de que ele seja capaz de colocar o país nos trilhos da retomada sustentável. O ministro já é alvo de chacota por guardar seu dinheiro no exterior, em offshore, como mostrou a investigação jornalística Pandora Papers, enquanto os brasileiros estão expostos à instabilidade econômica, em parte criada por decisões suas.

O anúncio do novo auxílio foi feito na tarde desta quarta pelo ministro da Cidadania, João Roma, que não entrou em detalhes sobre como seria financiado o programa que duraria até dezembro de 2022. À noite, Guedes detalhou o que tinha em mente para gastar 30 bilhões de reais fora do teto de gastos (ele falou em waiver, perdão no jargão econômico) e assim financiar o novo programa. Acusado de ser populista, Guedes argumentou que o Governo pretende ser “reformista e popular. Não populista”. A intenção do ministro será medida nos próximos meses pela situação da economia do país —e pelo resultado da eleição presidencial de 2022.

CARLA JIMÉNEZ, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 21.10.21

Como vai funcionar o Auxílio Brasil, sucessor do Bolsa Família

Com aprovação em queda, governo Bolsonaro quer que famílias contempladas pelo programa recebam no mínimo R$ 400 até o fim de 2022, ano eleitoral. Mas fonte dos recursos ainda é incerta.

    

Vista da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro

Com popularidade em queda e em desvantagem nas pesquisas eleitorais para a eleição de 2022, o presidente Jair Bolsonaro anunciou a criação do Auxílio Brasil, um programa que substituirá o Bolsa Família, que atende mais de 14 milhões de famílias.

1) Quando começa o Auxílio Brasil?

O governo federal afirma que o novo programa começa a partir de novembro – mês em que já não haverá pagamentos de novas parcelas do auxílio emergencial. O anúncio não especificou em qual dia exatamente começam os pagamentos.

2) Qual será o valor do Auxílio Brasil?

O auxílio Brasil vai substituir o Bolsa Família, que tem valores que variam de família a família, dependendo do tamanho do núcleo. Segundo o governo, há beneficiários que recebem menos de R$ 100 e alguns que recebem mais de R$ 500 por mês.

Segundo o ministro da Cidadania, João Roma, haverá um aumento de 20% no Orçamento atual destinado ao Bolsa Família, que serão usados para reajustar os valores pagos atualmente.

Além disso, o governo afirma que ainda está tentando aprovar um "benefício transitório" para que cada família inscrita no novo Auxílio Brasil receba no mínimo R$ 400 até o fim de 2022 – final do mandato de Jair Bolsonaro.

Mas o governo ainda é vago sobre as fontes dos recursos. O benefício transitório também levantou temores de que o governo planeje furar o teto de gastos e questionamentos sobre o cronograma, que coincide com um ano eleitoral. Hoje a média paga pelo Bolsa Família é de R$ 189.

3) Quem terá direito ao Auxílio Brasil?

O programa é voltado a famílias em situação de extrema pobreza. Atualmente, são consideradas nessa situação as famílias com renda de até R$ 89 por pessoa.

Já famílias em situação de pobreza – cuja renda mensal varia de R$ 89,01 a R$ 178 por pessoa – também poderão participar do programa, desde que haja entre seus membros gestantes ou pessoas com menos de 21 anos.

No entanto, esses valores de referência ainda podem mudar. A medida provisória que cria o novo programa aponta que os valores ainda serão definidos.

4) Quantas famílias serão atendidas pelo Auxílio Brasil?

No momento, o Bolsa Família atende 14,7 milhões de famílias. O governo federal afirma que pretende estender o Auxílio Brasil para 16,9 milhões de famílias.

5) Como será o cadastramento do Auxílio Brasil?

O governo não especificou como isso deve ocorrer. Mas é provável que o programa use os cadastros atuais do Bolsa Família e do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico).

A inscrição no CadÚnico é realizada de forma presencial, e o local de atendimento varia dependendo da cidade. Normalmente, o atendimento é feito em Centros de Referência de Assistência Social (Cras) ou em postos de atendimento das prefeituras.

6) Como será dividido o Auxílio Brasil?

O programa reúne um total de nove benefícios.

Três deles, segundo o governo, compõem o núcleo básico do Auxílio Brasil:

- Auxílio Primeira Infância: Para famílias com crianças pequenas entre 0 e 3 anos incompletos.

- Auxílio Composição Familiar: Para núcleos familiares com gestantes e/ou jovens de até 21 anos que estejam matriculados em alguma instituição de ensino. Atualmente, o Bolsa Família limita o benefício a jovens de até 17 anos.

- Auxílio Superação da Extrema Pobreza: pago em casos em que, após computados os dois benefícios anteriores, a renda mensal da família ainda estiver abaixo da linha de extrema pobreza.

Os outros benefícios são:

- Auxílio Esporte Escolar: Destinado a famílias de estudantes entre 12 e 17 anos que se destacarem nos Jogos Escolares Brasileiros e sejam membros de famílias beneficiárias do programa.

- Auxílio Bolsa de Iniciação Científica Júnior: Pagamento extra para famílias de estudantes com bom desempenho em competições acadêmicas e científicas.

- Auxílio Criança Cidadã: Pago para responsável por criança de até 4 anos que trabalhe e que não encontre vaga em creches públicas ou privadas da rede conveniada.

- Auxílio Inclusão Produtiva Rural: previsto por até 36 meses a agricultores familiares inscritos no Cadastro Único.

- Auxílio Inclusão Produtiva Urbana:  voltado a quem estiver na folha de pagamento do Auxílio Brasil e comprovar vínculo de emprego formal.

- Benefício Compensatório de Transição: voltado a famílias que constavam na folha de pagamento do Bolsa Família e acabaram perdendo parte do valor do benefício na mudança para o Auxílio Brasil.

Regras específicas para cada divisão ainda deverão ser elaboradas, segundo o governo.

7) De onde vai sair o dinheiro?

Com o país em crise e o Orçamento da União já bastante pressionado, o governo aumentou a alíquota do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro ou relativa a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF) para bancar o cronograma do programa até o fim de 2021.

Já para 2022 a forma de arrumar o dinheiro será mais complicada. Primeiro o governo vai precisar aprovar a PEC dos Precatórios para liberar espaço no Orçamento. Também será preciso aprovar a reforma na cobrança do Imposto de Renda ainda neste ano. A PEC dos Precatórios pode abrir um espaço no Orçamento de cerca de R$ 50 bilhões ao adiar o pagamento de dívidas do governo.

O orçamento do Bolsa Família em 2021 é de R$ 34,9 bilhões. O aumento de 20% no "valor permanente", como o governo anunciou, já elevaria o gasto para R$ 41,8 bilhões numa base anual. Para piorar, dos R$ 400 do pagamento mínimo transitório planejado pelo governo, R$ 100 teriam que vir de fontes extras, fora do teto de gastos. Só esse extra temporário pode causar um rombo de R$ 30 bilhões.

Ao anunciar um extra temporário, para elevar o valor até R$ 400, o governo já tenta driblar a necessidade de fixar uma fonte permanente de recursos. Por esse formato, o governo só precisa fixar qual será a fonte do reajuste global de 20% no orçamento atual do Bolsa Família.

Segundo veículos da imprensa brasileira, essas estratégias foram desenhadas pela equipe política do governo, e não pela área econômica. A criatividade contábil e a falta de indicação de onde vão sair os recursos em 2022 provocaram reação negativa no governo, diante da expectativa de que o plano resulte em um furo no teto de gastos.

Diante desse desafio, mesmo aliados do governo Bolsonaro já indicam que podem vir a apoiar a prorrogação do auxílio emergencial até o fim de 2022, como forma de compensar a falta de dinheiro no Auxílio Brasil.

Deutsche Welle Brasil, em 21.10.21

O "charlatão" Bolsonaro tem pouco a temer por enquanto

A CPI tenta imputar ao presidente de crimes contra a humanidade a charlatanismo. O relatório é devastador, mas é improvável que Bolsonaro seja efetivamente responsabilizado pelo desastre enquanto estiver no poder.

Bolsonaro promovendo uma de suas falsas "curas" contra a covid-19

Mais de 600 mil brasileiros morreram na pandemia até agora. Apenas nos EUA o número de vítimas foi maior. Em seu relatório final apresentado na quarta-feira (20/10), a CPI da Pandemia acusa o presidente Jair Bolsonaro de dez crimes durante a execução das suas políticas sanitárias fracassadas. As acusações incluem charlatanismo, Infração de medida sanitária preventiva, incitação ao crime e crimes contra a humanidade.

Graves acusações também foram apresentas contra 65 outras pessoas, incluindo três filhos do presidente, quatro ministros e duas empresas.

O presidente Bolsonaro reagiu da mesma maneira de sempre. "Nada produziram a não ser o ódio e o rancor", disse o presidente em um evento que aconteceu paralelamente à leitura do relatório. Mais uma vez, ele defendeu o uso de medicamentos antimaláricos e vermífugos comprovadamente ineficazes para combater a covid-19, usando o subterfúgio da defesa da autonomia dos médicos para administrar os remédios.

Um relatório final puramente político

O presidente sabe que juridicamente tem pouco a temer em relação ao relatório final de quase 1.200 páginas. Por um lado, o relatório ainda é um rascunho. Na próxima semana, o texto será votado pela CPI e poderá sofrer alterações. Depois disso, é certo que deve ser aprovado pela maioria dos 11 membros da comissão.

A exclusão de dois trechos controversos na noite de terça-feira mostrou que ainda há muita margem de manobra para novas alterações. As acusações contra Bolsonaro por homicídio e genocídio da população indígena foram deixadas de lado após pressão de senadores. Não havia base legal para essas imputações, argumentou-se, e foi levantado o risco de que essas acusações prejudicassem a credibilidade do relatório como um todo.

Mas mesmo que as principais acusações permaneçam na versão final e aprovada do relatório, isso em princípio não acarretará consequências jurídicas para o presidente. Em última instância, cabe ao Ministério Público verificar se existem de fato evidências ou mesmo provas sólidas sobre os crimes imputados. Os procuradores são livres para descartar acusações individuais ou adicionar novas. Não há vinculação obrigatória entre o relatório da CPI e as investigações do Ministério Público.

Bolsonaro conta com Augusto Aras

Além disso, Bolsonaro tem um grande trunfo na manga. Cabe ao procurador-geral da República, Augusto Aras, decidir se os pedidos de indiciamento contra o presidente devem avançar. Aras, nomeado por Bolsonaro em 2019, vem provando até o momento ser um protetor do presidente. O fato de que ele espera ser nomeado para uma vaga no Supremo Tribunal Federal por Bolsonaro deve aumentar ainda mais sua lealdade pretoriana.

Não se espera que Aras indicie Bolsonaro. Em vez disso, é mais provável que Aras simplesmente ignore o relatório da comissão, deixando-o "mofar na gaveta". Há discussões se o STF poderia forçar Aras a aceitar dar andamentos às acusações, mas essa é uma questão controversa entre juristas.

Comissão de Inquérito como ferramenta de política

A oposição, que conta com maioria na CPI, está ciente de tudo isso, é claro. Então ela espera pelo menos desgastar Bolsonaro politicamente. Daqui a um ano, os brasileiros elegerão um novo presidente. A CPI reuniu muito material para a campanha eleitoral da oposição. As audiências que somam 370 horas acabaram sendo usadas para expor o fracasso da política governamental de combate à pandemia.

Não foi difícil. Foram explícitas a incompetência do governo em lidar com a pandemia e a clara indisposição de Bolsonaro em agir. O presidente não se importa com quantas pessoas morrem e não tem medo de dizer isso abertamente. É ainda mais surpreendente quantos brasileiros ainda são leais a Bolsonaro. Eles acreditam na narrativa do presidente de que se trata apenas de uma campanha de vingança da oposição.

As CPIs são, em sua maioria, espetáculos públicos

E elas têm boas razões para isso. As comissões parlamentares de inquérito são uma ferramenta política utilizada pela oposição para questionar o governo. Na história do Brasil, quase sempre foram usadas ​​para pirotecnia política. Muito barulho por nada, um show puramente político-partidário sem consequências reais e investigações sérias. Nesse sentido, a CPI da Pandemia é um ponto de inflexão histórico, pois 9 terabytes - ou seja, 9.000 gigabytes - de documentos foram coletados e analisados ​​por advogados especializados. Uma conquista histórica única.

A CPI merece crédito por revelar detalhes até então desconhecidos do fracasso do governo. A rede de corrupção que se formou em torno da compra de vacinas e remédios foi exposta, revelando a atuação ilegal de políticos pró-governo, funcionários e empresários. Esses peixes pequenos são provavelmente os que mais têm a temer o Judiciário. Eles provavelmente serão usados como bois de piranha.

E os peixes grandes? O mais provável é que ele estejam temerosos com a reação dos eleitores. Porque, uma vez sem mandatos, Bolsonaro e companhia poderão ser processados ​​pelas instâncias inferiores da Justiça. É possível prever várias ações judiciais movidas por famílias de vítimas contra os responsáveis ​​pela política para a pandemia. Em seguida, serão expostos novamente os responsáveis pela falta de oxigênio nos hospitais amazônicos e pelas centenas de pacientes que morreram nessas unidades.

O alemão Thomas Milz trabalha há 15 anos no Brasil como jornalista e fotógrafo para veículos como o Bayerischer Rundfunk, a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. O texto acima reflete a opinião pessoal do autor, e não necessariamente da DW

O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW ou a do blog.

Ambev, Vivo, Pão de Açúcar: conheça os 10 maiores devedores dos Estados brasileiros

Os Estados brasileiros somavam R$ 896,2 bilhões em dívidas a receber de empresas em 2019, aponta estudo inédito realizado pela Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital), entidade sindical que representa os servidores públicos fiscais tributários.


Dívida das empresas com Estados somava R$ 896 bilhões em 2019. Companhias negam irregularidades e dizem que valores são fruto de 'divergências na interpretação da lei tributária'

Entre 2015 e 2019, esse montante de dívida cresceu 31,4%. E o valor devido pelas empresas aos Estados equivale a 13,2% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro, diz o levantamento.

São impostos, contribuições e multas que deixaram de ser pagos pelo setor privado, registrados como dívida ativa após o fim do prazo legal para pagamento ou após decisão final em processo administrativo regular.

As empresas negam irregularidades e dizem que os valores são fruto de "divergências na interpretação da lei tributária" e que ainda contestam as obrigações na Justiça.

O Atlas da Dívida Ativa dos Estados Brasileiros foi feito a partir de dados de 17 Estados que divulgaram seus números publicamente na internet ou mediante requisição da Fenafisco. Não há sigilo sobre a dívida ativa, os dados são públicos, mas alguns Estados ainda falham na transparência desses dados, conforme revelou a dificuldade na obtenção dos números.

Segundo o economista Juliano Goularti, autor do estudo encomendado pela entidade, o levantamento revela como bilhões de reais em recursos públicos estão indevidamente em poder da iniciativa privada, quando poderiam estar sendo destinados para políticas públicas de saúde, educação e segurança pública, por exemplo.

"No Brasil, não tem crime tributário", diz Goularti. "Se você rouba uma caixa de leite ou um pacote de bolachas, está sujeito ao Código Penal. Mas, na tributação, você faz planejamento tributário e elisão fiscal e não é criminalizado."

O planejamento tributário e a elisão fiscal são manobras feitas para evitar o pagamento de taxas, impostos e outros tributos dentro da legalidade — diferentemente da evasão fiscal, que tem o mesmo objetivo, mas por meios ilícitos.

"Nesse momento no Brasil, estamos passando por um período longo de ajuste fiscal, de corte de despesas e de teto de gastos, para ajustar a despesa pública. Mas não vemos uma política ativa, tanto por parte da União, como dos Estados, para recuperar essa dívida ativa", observa.

"Essa dívida vai crescendo ao longo do tempo, enquanto crescem em paralelo os problemas sociais: a desigualdade, a fome", observa Charles Alcantara, auditor Fiscal de Receitas do Estado do Pará e presidente da Fenafisco. Segundo ele, caso a dívida fosse recuperada, seria possível pagar 11 anos de Bolsa Família aos mais vulneráveis com valor de R$ 400.

A média nacional de recuperação da dívida ativa estadual gira em torno de 0,6%. "Isso chega a ser vexatório, o Estado que é tão preocupado em honrar a dívida pública, diminuindo recursos da saúde e educação e não combatendo a fome e a miséria para pagar seus credores, deixa os privados que devem ao Estado sem ser incomodados", critica Alcantara.

Goularti avalia que um dos fatores que estimula as empresas a não pagarem devidamente suas obrigações tributárias é a realização recorrente de programas do tipo Refis (Programa de Recuperação Fiscal), em que as dívidas são renegociadas a valores muito mais baixos e com prazos longos. Como as empresas sabem que sempre vai haver uma nova edição desse tipo de negociação, elas já fazem seu planejamento tributário contando com isso.

Para Goularti a solução para o problema da dívida ativa crescente é apertar o cerco na fiscalização e na cobrança e criar regras que inibam a elisão e o planejamento tributário, como a criminalização dessas práticas.

Ele reconhece, no entanto, que isso é desafiador, como mostrou a tramitação da reforma do imposto de renda, que incluía um pacote antielisão bastante ousado, cujas principais medidas — como a tributação do patrimônio de brasileiros em offshore e alíquotas diferenciadas sobre dividendos para paraísos fiscais — foram derrubadas pelo Congresso.

"A dívida ativa se dá a partir de relações de poder políticas e econômicas. São lobbies muito fortes e essas relações de poder contribuem para a formação dos estoques da dívida ativa", diz o economista. "Por trás dessa dívida ativa existe um conjunto de lobbies."


Confira os dez maiores devedores dos Estados brasileiros, segundo a Fenafisco:

1) Refinaria de Petróleo de Manguinhos (R$ 7,7 bilhões) — refinaria de petróleo brasileira localizada no Estado do Rio de Janeiro. Entrou com pedido de recuperação judicial (mecanismo usado para tentar evitar a falência de empresas através de negociações com seus credores) em 2013. O processo foi encerrado em 2020 e a empresa mudou de nome para Refit.

2) Ambev (R$ 6,3 bilhões) — cervejaria que domina cerca de 55% do mercado brasileiro e 26% do mercado mundial, dona de marcas como Brahma, Skol, Antarctica Stella Artois e Budweiser, além dos refrigerantes Guaraná Antarctica e Pepsi. Tem como controladores os bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira. Lemann é o segundo brasileiro mais rico do mundo, segundo ranking da revista Forbes.

3) Telefônica - Vivo (R$ 4,9 bilhões) — empresa de telecomunicação controlada pela espanhola Telefónica, atua em telefonia fixa móvel, banda larga e TV por assinatura. Formada pela fusão de antigas empresas de telefonias estatais brasileira.

4) Sagra Produtos Farmacêuticos (R$ 4,1 bilhões) — distribuidora de medicamentos.

5) Drogavida Comercial de Drogas (R$ 3,9 bilhões) — rede varejista de medicamentos com sede em Ribeirão Preto (SP).

6) Tim Celular (R$ 3,5 bilhões) — empresa de telefonia celular, subsidiária no Brasil da Telecom Italia.

7) Cerpa Cervejaria Paraense (R$ 3,3 bilhões) — fabricante tradicional de cerveja controlada pela família Seibel. Dona das marcas Cerpa Export, Cerpa Prime, Tijuca, Draft Sound, Gold e Nevada, além de refrigerantes e do energético Amazon Power.

8) Companhia Brasileira de Distribuição (R$ 3,1 bilhões) — mais conhecida como Grupo Pão de Açúcar (GPA) e controlada pelo grupo francês Casino, atua no ramo de supermercados com as bandeiras Pão de Açúcar, Extra e Compre Bem.

9) Athos Farma Sudeste (R$ 2,9 bilhões) — distribuidora de medicamentos em recuperação judicial.

10) Vale (R$ 2,8 bilhões) — mineradora brasileira que é uma das maiores produtoras e exportadoras de minério de ferro do mundo. Fundada em 1942 como Companhia Vale do Rio Doce, foi privatizada em 1997.

O que dizem as empresas

A BBC News Brasil procurou as empresas para se posicionarem sobre o estudo.

A Vale informou que "cumpre rotineiramente todas as suas obrigações fiscais", que "mantém discussões tributárias na esfera estadual em decorrência de divergências de interpretação da legislação tributária desses entes", e que todas as discussões estão garantidas ou com a exigibilidade suspensa, o que lhe confere o certificado de regularidade fiscal nessas jurisdições.

O GPA afirmou que não tem dívida em aberto, e que todos os débitos estão em discussão judicial e devidamente garantidos.

A Ambev afirmou que "os valores indicados são fruto de discussões em que discordamos da cobrança e que ainda estão em andamento nos tribunais. Considerando o porte da empresa e, ainda, por sermos uma das maiores pagadoras de impostos do país é natural que, na soma, o valor em discussão seja expressivo."

A TIM e a Vivo optaram por não se pronunciar. A Refit, antiga Refinaria Manguinhos, não retornou ao pedido de posicionamento e a BBC News Brasil tentou contato com a Sagra Produtos Farmacêuticos, Drogavida Comercial de Drogas, Cerpa Cervejaria Paraense e Athos Farma Sudeste, mas não obteve resposta.

Caso as empresas se manifestem, os posicionamentos serão publicados em versão atualizada desta reportagem.

Thais Carrança, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 21.10.21

O prisioneiro da crise fiscal

Bolsonaro e o Centrão estão brincando de tornar o País ingovernável

Grandes sacudidas políticas no Brasil vieram quase sempre de crises fiscais, e Jair Bolsonaro está se empenhando em aprofundar a atual. As causas dessas crises são amplas e profundas, e no sentido mais geral resultam da apropriação de pedaços do Estado por grupos privados e corporações, que acomodam os mais variados interesses às custas dos cofres públicos.

No caso da atual crise, seu agravamento não vem só do fato de Bolsonaro arriscar as contas públicas apostando na reeleição. Fator relevante foi a entrega de fatias essenciais de poder, como o controle do Orçamento, aos grupos políticos amorfos e até antagônicos apelidados de Centrão. É o que explica em boa parte que os agentes econômicos tenham perdido a confiança na capacidade do Executivo de formular e articular políticas públicas abrangentes, começando pela economia.

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia Paulo Guedes. Foto: Dida Sampaio/Estadão

A única agenda do Centrão é a defesa de seus interesses regionais ou corporativos (ou tudo junto). Por definição, trata-se de um conjunto de correntes políticas e interesses segmentados incapaz de articular uma pauta ampla. Como Bolsonaro não tem qualquer senso estratégico e se dedica fundamentalmente a agradar a plateias amestradas, não percebeu que o Centrão não é garantia alguma de que ele possa governar (basta lembrar as reformas que nunca andam).

Ao contrário, o poder entregue ao Centrão é a garantia de que o atual ocupante do Planalto não conseguirá governar nem mesmo na hipótese, hoje bastante remota, de que consiga a reeleição. O debate político brasileiro tornou-se completamente subordinado às questões fiscais mais urgentes. Portanto, não existe espaço, energia ou foco em plataformas para fugir da armadilha da renda média na qual o Brasil está preso há décadas. 

É sério o risco de o Centrão (com Bolsonaro a tiracolo), sem rédeas, retroceder ao estágio pré-Plano Real, o da irresponsabilidade declarada com as contas públicas. A necessidade de ajudar quase 30 milhões que caíram abaixo da linha da pobreza virou um Cavalo de Troia para a gastança que será paga mais adiante (em inflação e estagnação) por esses mesmos milhões de necessitados. Não há qualquer visão de futuro nas figuras de proa do Centrão além de garantir seus interesses políticos imediatos, aos quais no momento Bolsonaro serve perfeitamente.

Ficamos assim: uma geração e meia após a redemocratização continuamos tentando, sem grande sucesso, resolver pobreza, miséria e desigualdade, e procurando um jeito de ganhar eleições com votos garantidos por programas assistenciais. Quem sabe a crise fiscal (como aconteceu próximo ao Real) traga as mudanças que os salvadores da Pátria de plantão não têm.

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista. Apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 21.10.21.

As faces de uma tragédia

Relatório da CPI da Covid detalhou as minúcias de um complô para assegurar sustentação política de Bolsonaro à custa da dor dos brasileiros

Após seis meses de trabalho, a CPI da Covid concluiu bem sua missão de sistematizar as evidências de que o presidente Jair Bolsonaro, com seu comportamento irresponsável, ofensivo e desdenhoso, transformou o que naturalmente seria uma grave crise sanitária na pior tragédia do Brasil republicano. 

Sem desmerecer o trabalho dos senadores, à CPI não restava muito mais a fazer do que reunir as provas que foram produzidas aos borbotões diante dos olhos estupefatos do País, além de aprofundar investigações pontuais e tipificar as condutas dos agentes. As ações e omissões de Bolsonaro e de todos os que a ele se associaram nessa desdita já eram de conhecimento público, em grande medida graças ao trabalho da imprensa livre e independente.

Ontem, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI da Covid, leu o resumo do relatório final. Ao longo das mais de 1.100 páginas do relatório, cuja primeira versão o Estado havia revelado no domingo passado, o relator detalhou as minúcias do que pode ser claramente classificado como um complô para garantir subsistência político-eleitoral ao presidente da República durante a pandemia de covid-19 à custa do bem-estar, da saúde e da vida de centenas de milhares de brasileiros. No momento em que Calheiros lia seu relatório, o País contava oficialmente quase 604 mil mortes causadas pelo coronavírus. Seguramente, muitas teriam sido evitadas caso as vacinas tivessem chegado mais rápido aos brasileiros.

Segundo o relator, Bolsonaro, assessorado por um “gabinete paralelo” formado por médicos, políticos e empresários sem cargos no governo federal, decidiu expor o maior número possível de pessoas ao coronavírus a fim de produzir a chamada imunidade coletiva, negligenciando até onde foi possível a compra das vacinas. O objetivo do presidente era forçar a retomada prematura das atividades econômicas e, assim, evitar reveses políticos em sua campanha pela reeleição.

Na visão da CPI, desse cruel desígnio original derivaram todas as demais práticas criminosas que a comissão apurou. Ao todo, o relator propõe o indiciamento de 66 pessoas, incluindo Bolsonaro, seus três filhos com mandato eletivo e seis ministros e ex-ministros de Estado, além de políticos, empresários e servidores públicos que, conforme o relatório, tentaram obter ganhos pessoais à custa do sofrimento dos brasileiros. As acusações incluem crimes como epidemia, corrupção, organização criminosa, charlatanismo, incitação ao crime, prevaricação, usurpação de função pública e crimes contra a humanidade, entre outros.

As faces das 66 pessoas que o relator propõe que sejam indiciadas pela CPI da Covid são bastante conhecidas e a temeridade de suas condutas restou cabalmente demonstrada pela comissão de inquérito. Mas a CPI da Covid foi além e acertou ao dar voz a quem perdeu pais, mães, filhos, avós e amigos em decorrência da covid-19. Essa é a verdadeira face da tragédia que Bolsonaro insiste em minimizar.

A dor dos cidadãos ouvidos pela CPI da Covid dá concretude aos crimes cometidos por Bolsonaro na condução do País durante a pandemia. Os rostos do taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva, da enfermeira Mayra Pires Lima, da estudante Giovanna Gomes Mendes da Silva, entre outros que lá estiveram, são a expressão de um país enlutado e indignado com o desrespeito e o descaso com que foi tratado por quem deveria ser o primeiro a zelar por seu bem-estar neste momento dramático.

Bolsonaro aposta na impunidade. Fia-se no compadrio e na leniência das instituições, sobretudo da Procuradoria-Geral da República, para sair incólume da tragédia, a despeito do mal que causou ao País. Mas não pode ser assim. “Se ele tivesse ideia do mal que faz para a Nação, ele não faria isso”, disse à CPI a testemunha Kátia Castilho, que perdeu o pai e a mãe para a covid-19. “Não são só números, são pessoas, são vidas, são sonhos, são histórias que foram encerradas por negligências, por tantas negligências, e nós queremos justiça.” É o que o Brasil decente exige.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 21 de outubro de 2021 

Populismo à custa dos pobres

As tentativas de ‘flexibilizar’ o teto de gastos por meio de exceções tornaram-se rotineiras na impropriamente chamada ‘gestão’ Bolsonaro

 Os pobres pagarão a conta – e será pesada – se o presidente Bolsonaro levar adiante sua nova jogada populista, agravar a crise fiscal e produzir mais inflação. Bandeira de sua campanha eleitoral permanente, o programa Auxílio Brasil, versão turbinada do Bolsa Família, é mais um risco para a saúde já muito precária das finanças oficiais. Sem cuidar de como cobrir os gastos e de como conter a dívida pública, ele determinou a elevação da ajuda para R$ 400 e sua extensão a mais beneficiários. Desses R$ 400, R$ 100 deverão ficar fora das normas fiscais. O resultado será mais uma violação do teto de gastos, disfarçada, se possível, por mais uma exceção à regra constitucional.

Os gastos sociais seriam financiáveis se fossem cortadas outras despesas, como as escandalosas emendas parlamentares abençoadas pelo presidente, mas nenhuma solução desse tipo foi decidida. Numa longa reunião, a equipe econômica mostrou os efeitos do aumento improvisado e voluntarista do Bolsa Família. “Eu assumo os riscos”, disse o presidente, segundo apurou o Estado.

O presidente chegou a adiar o anúncio do novo programa diante da resistência na equipe econômica, mas afinal o programa foi anunciado ontem, com os problemas de sempre. Para o relator do Auxílio Brasil na Câmara, deputado Marcelo Aro (PP-MG), Bolsonaro “não está dando um presente, ele está emprestando até ganhar a eleição”. O ministro da Cidadania, João Roma, prometeu um programa com responsabilidade fiscal, mas faltou explicar como se ajustará o Orçamento. 

Bolsonaro sempre agiu como se a Presidência fosse apenas sinônimo de poder de mando, sem vinculação com a ideia de administração e de responsabilidade fiscal – e sempre que o mercado se dá conta disso, como quando ficou claro o espírito demagógico do novo auxílio, a Bolsa despenca e o dólar sobe.

Ações em queda, dólar em alta e custos maiores para o Tesouro têm refletido a insegurança do mercado quanto à evolução das contas oficiais e, especialmente, da dívida pública. Essa dívida, na vizinhança de 90% do PIB, é bem maior que a média, pouco superior a 60%, encontrada nas economias emergentes e de renda média.

Mas a reação do mercado é muito diferente daquela acessível à maior parte das pessoas. Investidores e outros agentes da área financeira buscam proteção alterando suas aplicações e, em muitos casos, mandando recursos ao exterior. Nada parecido pode ser feito pela maioria dos cidadãos.

Sem meios para se defender, esses brasileiros são os mais afetados pelos desarranjos da produção, pelo desemprego e pela inflação decorrentes dos erros e desmandos do poder federal. Supostamente beneficiários de medidas populistas, os pobres são os mais prejudicados, quando políticas desse tipo resultam em desastres para a economia.

No Brasil, a inflação está na casa dos 10% ao ano, e só é superada. O desajuste é especialmente doloroso por causa do encarecimento de itens como alimentação, eletricidade e gás. Somado ao desemprego, o desastre inflacionário produz miséria e fome.

A nova jogada populista – mais uma no currículo de um presidente capaz do mais ostensivo populismo e do mais descarado desprezo à vida dos concidadãos – será, se consumada, mais um golpe contra as finanças públicas. Parte das despesas com os programas sociais ficará provavelmente fora do teto de gastos, assim como parte dos pagamentos de precatórios.

O Executivo e seus aliados no Congresso tentam agora aprovar limites para esses pagamentos, embora se trate de compromissos já em atraso e com liquidação determinada pela Justiça. Na prática, os credores dos precatórios sofrerão um calote disfarçado.

Criado como norma constitucional no governo de Michel Temer, o teto de gastos, mecanismo necessário para enfrentar o descalabro da passagem de Dilma Rousseff pela Presidência, deveria reforçar a responsabilidade fiscal, limitando o aumento nominal da despesa à inflação do exercício anterior. Essa norma durou pouco e as tentativas de “flexibilizar” o teto por meio de exceções tornaram-se rotineiras na impropriamente chamada “gestão” Bolsonaro – que, a se manter assim, nada ficará a dever à de Dilma. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 21 de outubro de 2021 

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Um mundo menos seguro

Expansão militar chinesa exigirá mais agilidade das democracias liberais na concertação de suas defesas

Em agosto, um míssil supersônico chinês com capacidade nuclear, mais difícil de rastrear e destruir do que os mísseis balísticos, circulou o globo antes de atingir seu alvo. O teste ocorreu pouco após a descoberta de centenas de novos mísseis no deserto chinês e num momento em que Pequim amplia suas manobras belicosas no Pacífico. O país, cuja frota naval se tornou recentemente a maior do mundo, tem enviado recorrentemente caças sobre o espaço aéreo de Taiwan. Ao mesmo tempo, os EUA correm para tecer uma rede de alianças no Pacífico.

O mundo está menos seguro. Embora o imperialismo chinês seja historicamente restrito à Ásia, o país tem ambições globais e sua rápida expansão militar sinaliza interesses que vão além da defesa de sua soberania. A China não está atada por nenhum pacto de controle de armas e se mostra refratária a discutir suas políticas nucleares.

“Não estamos em uma competição com a China per se”, disse o presidente norte-americano, Joe Biden, no encontro do G-7, em junho, “mas com os governos autocráticos ao redor do mundo, sobre se as democracias podem ou não competir com eles em um século 21 em rápida transformação.”

Esse questionamento se mostrou ainda mais dramático após a saída desastrosa dos americanos e seus aliados do Afeganistão. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), após décadas concentrada na detenção da Rússia e, desde 2001, no combate ao terrorismo, precisará atualizar rapidamente seus objetivos estratégicos num momento em que os europeus questionam, com boas razões, a fidelidade dos EUA, enquanto os EUA os acusam, com boas razões, de não investirem o suficiente em sua defesa.

“A China está se aproximando de nós”, disse o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg. “Nós os vemos no Ártico; os vemos no espaço cibernético; os vemos investir pesadamente em infraestrutura crítica em nossos países.” China e Rússia “trabalham estreitamente juntas”, disse Stoltenberg, e não devem ser vistas como ameaças separadas. Corroborando esse diagnóstico, o Japão alertou que na última segunda-feira 10 navios russos e chineses navegaram através do estreito que separa a sua ilha principal das ilhas do norte.

Nada disso significa que um conflito global seja inevitável, e muito menos iminente. Mas suas características serão diferentes do que foram no passado e exigirão estratégias diferentes para enfrentar novos riscos como ataques cibernéticos, inteligência artificial e agressões híbridas, como as que vêm sendo utilizadas pela Rússia e a China. É preocupantemente sintomático que as agências de inteligência americanas tenham confessado ter sido surpreendidas pelo novo míssil.

É certo que, unidas, as democracias liberais têm condições de resistir às ameaças dos regimes autocráticos e forçá-los a negociar uma coexistência pacífica. Mas, neste momento, é incerto se elas conseguirão orquestrar essa união com a agilidade necessária. Um bom começo seria responder aos apelos de Taiwan por uma mobilização internacional contra as evidentes ameaças de Pequim.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 20 de outubro de 2021 

O “coro demoníaco” de Bolsonaro durante a pandemia se traduz em nove crimes ou 68 anos de prisão

Segundo o primogênito do presidente, Flávio Bolsonaro, o mandatário deve ter dado uma gargalhada ao saber do relatório da CPI da Pandemia. Documento será votado no dia 26

Manifestante com máscara representando Bolsonaro em ato na Praça dos Três Poderes, em Brasília, nesta quarta-feira. (Joédson Alves, EFE)

Foi com deboche que o presidente Jair Bolsonaro reagiu ao relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia que sugere o seu indiciamento por nove crimes cometidos durante a gestão da maior crise sanitária enfrentada pelo mundo. A crise de saúde resultou até o momento em mais de 603.000 mortes por covid-19 no Brasil. Segundo o seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), o presidente deve ter gargalhado ao saber do teor do documento elaborado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), e que atribui a ele nove delitos: epidemia, crimes contra a humanidade, infração de medidas sanitárias, incitação ao crime, emprego irregular de verba pública, charlatanismo, prevaricação, falsificação de documentos particulares e crime de responsabilidade. As penas para todos esses crimes somados variam de cinco anos e quatro meses de detenção a até 68 anos e dez meses. Além da perda de mandato e dos direitos políticos, caso prospere um improvável processo de impeachment contra o mandatário.

— Como o presidente recebe essa sugestão de indiciamento por tantos crimes? — pergunta uma repórter ao senador.

– Você conhece aquela gargalhada dele? Hahahaha [imita a risada]. Por que não tem o que fazer diferente disso! É uma piada de muito mau gosto o que o senador Renan Calheiros faz — responde Flávio Bolsonaro.

O tratamento insensível com os mortos durante a pandemia tem sido uma das marcas da presidência de Jair Bolsonaro. Ele já disse que não tinha de se preocupar com os falecidos porque não era coveiro, já colocou em dúvidas os números de óbitos registrados, chamou de idiota quem o cobrava para acelerar a compra de vacinas, incitou a população a criticar governadores e prefeitos que impuseram medidas de restrição de circulação e sempre tentou eximir-se de culpa por o Brasil ter um elevado índice de contaminação, apesar de seus discursos anticiência e contra a imunização da população.

Uma CPI em que se chorou de raiva, de dor e de vergonha

Bolsonaro também se manifestou sobre o relatório. Disse que não tem “culpa absolutamente de nada”. “Nada produziram [a CPI], a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Mas sabemos que não temos culpa de absolutamente nada, fizemos a coisa certa desde o primeiro momento”, declarou no interior do Ceará, durante um evento público do Governo federal.

Nesta quarta-feira, a CPI oficializou a sugestão de indiciamento de Bolsonaro, de outras 65 pessoas e de duas empresas – Precisa Medicamentos e VTCLog. O documento deverá ser analisado no próximo dia 26 pelo plenário da comissão. Para ser aprovado, são necessários os votos da maioria dos 11 senadores que compõe o colegiado. A previsão é que o placar seja de 7 votos a favor do relatório e 4 contra, levando-se em conta as composições da comissão até aqui.

Além do presidente, são indiciados quatro ministros —Marcelo Queiroga (Saúde), Walter Braga Netto (Defesa), Onyx Lorenzoni (Trabalho) e Wagner Rosário (Controladoria-Geral)—, três ex-ministros —Eduardo Pazuello (Saúde), Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Fábio Wajngarten (Secretaria de Comunicação)— além dos três filhos políticos do presidente, o senador Flávio, o deputado Eduardo e o vereador Carlos.

Na leitura do resumo de seu relatório, Calheiros disse que a Gestão Bolsonaro desprezou a vida. “Esse trabalho coletivo silenciou um coro demoníaco vindo de uma catedral da morte, sediada pelo Governo federal. Geraram uma necrópole aterradora, marcada pelo desprezo à vida, pelo escárnio com a dor de mais de 600.000 famílias, pela insensibilidade e indiferença humanitária. Categorias que resvalam na insanidade, na psicopatia que marcam comportamentos primitivos do ogro e dos bárbaros”

O senador Flávio Bolsonaro durante entrevista. (Edilson Rodrigues, AFP)

Barreiras jurídica e política

O deboche de Bolsonaro, de seus familiares e de sua base congressual, que consideraram o relatório inconstitucional uma “maluquice”, uma “peça de ficção”, talvez esteja amparado em uma Procuradoria Geral da República que pouco ou nada fez para frear os desmandos do Governo ou para cobrar ações dele no enfrentamento da doença. Assim como da classe política ilustrada na figura do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não deu andamento a nenhum dos mais de 130 pedidos de impeachment contra ele. Pela legislação brasileira, CPIs não têm o poder de denunciar ou punir. A elas cabe encaminhar as sugestões e conclusões aos órgãos de fiscalização competentes.

O alinhamento entre Aras e Bolsonaro é tamanho que o procurador já se manifestou contrário a pelo menos duas investigações que agora são citadas no relatório contra o presidente, as dos crimes de epidemia e prevaricação. Isso ocorreu ao longo de 2021, quando senadores opositores recorreram ao Supremo Tribuna Federal para acusar o presidente de ser conivente com um esquema de corrupção que estava em andamento no Ministério da Saúde e quando um grupo de ex-procuradores cobrou que Aras denunciasse Bolsonaro por epidemia.

"Bolsonaro faz de tudo para permanecer acima da lei",

Pedro Abramovay, diretor da Open Society Foundations

Para o diretor para América Latina da Open Society Foundations, Pedro Abramovay, o presidente procede como uma pessoa que sempre cometeu crimes e nunca foi punida. Ao assumir o poder, ele conseguiu se blindar ainda mais. “O presidente mostrou que é possível se tornar um presidente livre de qualquer punição se você cooptar o presidente da Câmara e o PGR. Bolsonaro faz de tudo para permanecer acima da lei”, afirmou ao EL PAÍS.

Na visão de Abramovay, ex-secretário-nacional de Justiça, o relatório da CPI conseguiu furar uma espécie de bolha de proteção que havia até então ao presidente. “O impacto é mais do que só na imagem do presidente. Ele fez de tudo para cooptar instituições. Essa é uma resposta institucional a ele”.

Os crimes de Bolsonaro

Em quase seis meses de trabalhos, a CPI concluiu que Bolsonaro precisa ser investigado por nove crimes. Os que chamam mais atenção são os de maiores penas: o crime contra a humanidade, que deve ser analisado pelo Tribunal Penal Internacional, e o de causar epidemia com a propagação de germes patogênicos. Este está previsto no artigo 267 do Código Penal. Em caso de morte da vítima, a punição do culpado é de 20 a 30 anos de reclusão.

No parecer, Renan Calheiros destacou que comete o crime de epidemia não somente aquele que origina ou produz uma epidemia, com a propagação inicial de germes patogênicos, “mas também quem, mesmo após iniciado o quadro epidêmico, age ou se omite para dar causa a um processo epidêmico de maiores proporções”. No entendimento do relator, quando o Governo Bolsonaro atrasou a compra de vacinas, se contrapôs ao distanciamento social e ao uso de máscaras ou quando incentivou o uso de medicamentos ineficazes contra o novo coronavírus, contribuiu para o risco de propagação da doença.

Sobre o crime contra a humanidade, cuja pena pode chegar a 30 anos de prisão, o embasamento é o artigo 7º do decreto 4.388, que promulga o Estatuto de Roma. O presidente é apontado pelo relator como um dos responsáveis pelo colapso na rede de saúde de Manaus, quando faltou oxigênio para os pacientes, pela compra e incentivo do uso dos ineficientes kits covid e por ataques contra a população indígena. “O que distingue a morte de centenas de indígenas da morte de centenas de milhares de outros dos nossos concidadãos é, fundamentalmente, a intenção de submeter esse grupo específico da população ao risco de contágio”, delineou Calheiros.

O relator da CPI, senador Renan Calheiros. (Joedson Alves, EFE)

Genocídio e governador do Amazonas ficam de fora

Calheiros planejkava sugerir o indiciamento de Bolsonaro pelos crimes de genocídio dos povos indígenas e de homicídio qualificado. Mas, depois da pressão de colegas de seu grupo político quanto ao peso dos termos e de discussões técnicas, decidiu dar um passo atrás. O genocídio entrou no âmbito dos crimes contra a humanidade e o homicídio qualificado, no de epidemia. “Homicídio doloso qualificado, pela legislação, é algo cometido contra alguém identificado. São mais de 600.000 vítimas. Ou seja, é algo que não se sustentaria. Então, saiu. Mas ficou o crime de epidemia com resultado morte, que tem caráter coletivo”, explicou um técnico da CPI.

“Preferimos ter um relatório forte, contundente, que seja aprovado pela maioria para, em seguida, exigirmos a apuração dos crimes e a punição dos envolvidos”, ressaltou o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Na visão dele, apesar do aparente alinhamento do procurador-geral da República, Augusto Aras, com o presidente da República, não haverá maneira de Bolsonaro se esquivar de futuras denúncias criminais. “O PGR receberá um relatório com todos os elementos necessários para dar encaminhamento às investigações.

Acusado de crime contra a humanidade na CPI receitou dose inédita de proxalutamida a paciente com covid-19

Além da não caracterização do genocídio, outra ausência que gerou queixas entre os senadores opositores foi o não indiciamento do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC). Dois senadores amazonenses, Eduardo Braga (MDB) e Omar Aziz (PSD) cobraram publicamente Calheiros para incluir Lima no rol dos indiciados. Trataria-se de mais do que uma questão política —ambos são de grupos políticos distintos do governador—, pois tem valor humanitária, já que Manaus sofreu uma crise de abastecimento de oxigênio em janeiro que resultou na dezena de mortes de pacientes internados com covid-19.

A inclusão de Lima no relatório final ainda pode ocorrer até a próxima terça-feira. O relator disse que está à disposição para algumas modificações. Após a possível aprovação do documento, os senadores montarão um Observatório do Senado para cobrar o andamento das apurações junto aos órgãos responsáveis. Para o dia 27 eles prometem um ato na Procuradoria-Geral da República, onde entregarão oficialmente o parecer. E ainda neste ano pretendem fazer o mesmo junto ao Tribunal Penal Internacional. A busca por punições está apenas começando.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 20.10.21.

Relatório da CPI expõe "estratégia macabra" de Bolsonaro na pandemia

Documento descreve que ações criminosas e omissões do governo federal contribuíram decisivamente para o desastre que tirou mais de 600 mil vidas, e que autoridades "assentiram com a morte de brasileiros" na pandemia.

Bolsonaro minimizou a pandemia, se opôs a medidas de distanciamento, espalhou paranoia antivacinas e estimulou infecções ao longo da crise

Após quase seis meses de trabalho, a CPI da Pandemia foi palco nesta quarta-feira (20/10) da leitura do relatório final produzido pelo senador Renan Calheiros.

O texto pinta a atuação do governo Jair Bolsonaro durante a pandemia como negligente, incompetente, anticientífica, corrupta, macabra, caótica, criminosa e decisiva para que o Brasil produzisse o desastre sanitário que já ceifou oficialmente mais de 600 mil vidas. Segundo o relatório, o governo Bolsonaro "assentiu com a morte de brasileiras e brasileiros".

O texto descreve como o negacionismo do governo incluiu a formação de redes que promoveram fake news, paranoia antivacinas e incentivo ao desrespeito às normas de distanciamento.

Também descreve como as autoridades federais optaram por expor "deliberadamente a população a risco concreto de infecção em massa" ao recusarem a adoção de medidas de distanciamento – como máscaras – e abraçarem a promoção de um ineficaz e potencialmente perigoso "tratamento precoce". Tudo para buscar uma "imunidade de rebanho" por contaminação natural, mesmo diante das evidências de que milhares de brasileiros morreriam nesse processo.

Segundo Calheiros, essa "estratégia macabra" resultou até março de 2021 em pelo menos 120 mil mortes que poderiam ter sido evitadas.

O relatório ainda afirma que o Ministério da Saúde foi palco de "um esquema de corrupção nunca visto" e que "houve deliberado atraso na aquisição de imunizantes, em evidente descaso com a vida das pessoas".

O documento com 1.180 páginas lista mais de 60 pessoas, imputando mais de 20 crimes, incluindo crimes contra a humanidade, fraude em licitação, corrupção, incitação ao crime, prevaricação, emprego irregular de verbas públicas e falsificação de documentos.

Entre os acusados estão Jair Bolsonaro, três dos filhos do presidente, sete ministros e ex-ministros, deputados e empresários bolsonaristas acusados de espalhar fake news e promoverem desrespeito às normas sanitárias, militares que ocupavam postos no Ministério da Saúde, membros do "gabinete paralelo", figuras envolvidas em suspeitas de corrupção na compra de vacinas e médicos envolvidos em fraudes e uso antiético de medicamentos ineficazes contra a covid-19.

Antes da leitura do relatório, ocorreram algumas mudanças. O senador Calheiros atendeu a pedidos do presidente da comissão, Omar Aziz, e outros senadores para retirar acusações de genocídio indígena contra Bolsonaro e outros acusados. O nome do influente empreendedor religioso Silas Malafaia, que era originalmente acusado de "incitação ao crime", também foi retirado da lista de acusados.

Apesar da retirada de alguns crimes, Aziz afirmou durante a sessão que "o presidente [Bolsonaro] cometeu muitos crimes e vai pagar por eles".

Acusações contra Bolsonaro

O relatório descreve ações do presidente que agravaram a pandemia, incluindo seu entusiasmo pelo falso tratamento precoce – que resultou na queda de dois ministros da Saúde que resistiram em adotar os medicamentos ineficazes –, seu desprezo pelas vacinas, declarações minimizando a gravidade da doença e sabotagem de medidas de distanciamento. O relatório cita, por exemplo, episódios em que o presidente incentivou pessoas a não usarem máscaras.

"Isso nos leva a concluir que o presidente tinha interesse em encorajar os brasileiros a se expor ao contágio sem proteção, para que pudessem ser infectados pelo vírus sem maiores dificuldades ou barreiras", diz o texto.

"Jair Bolsonaro colaborou fortemente para a propagação da covid-19 em território brasileiro e, assim, mostrou-se o responsável principal pelos erros cometidos pelo governo federal durante a pandemia da covid-19."


Ao todo, o relatório pede o indiciamento de Bolsonaro por dez crimes:

- Epidemia com resultado morte

- Infração de medida sanitária preventiva

- Charlatanismo

- Incitação ao crime

- Falsificação de documento particular

- Emprego irregular de verbas públicas

- Prevaricação

- Crimes contra a humanidade, nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos

- Violação de direito social

- Incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo.

Jair Bolsonaro, durante uma das inúmeras aglomerações que o presidente promoveu durante a pandemia

Titulares da Saúde na mira

O relatório também pede o indiciamento do general Eduardo Pazuello, que ocupou a chefia do Ministério da Saúde entre maio de 2020 e março de 2021, e o atual titular da pasta, Marcelo Queiroga.

Durante o período em que exerceu o cargo, Pazuello se notabilizou por obedecer ordens de Bolsonaro para expandir o uso da ineficaz cloroquina, ignorou ofertas de vacinas de grandes laboratórios, não fez esforços para aumentar a testagem, tentou esconder os números de mortes e casos de covid-19 e foi acusado de não agir durante a crise do oxigênio em Manaus.

O relatório o acusa de epidemia com resultado morte, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação e comunicação falsa de crime.

Já Queiroga é acusado no relatório de prevaricação e epidemia com resultado morte.

Titulares da Saúde, Marcelo Queiroga e Eduardo Pazuello executaram estratégia anticientífica de Bolsonaro

Veja a lista completa de pessoas acusadas no relatório final

Fake news

Parte do relatório se debruça sobre a rede de fake news bolsonarista que atuou durante a pandemia, minimizando a doença, promovendo tratamento ineficazes e paranoia antivacinas, além de mentir sobre as ações do governo federal e direcionar ataques contra Poderes e instituições, incluindo o Senado e o Supremo Tribunal Federal (STF).

O texto aponta que essa rede de fake news era dividida em cinco núcleos: o núcleo de comando (1), núcleo formulador (2), núcleo político (3), núcleo de produção e disseminação das fake news (4), e núcleo de financiamento (5).

Segundo o relatório, o núcleo de comando de fake news é formado por Jair Bolsonaro e três de seus filhos: o senador Flávio Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro.

No núcleo formulador aparecem dois assessores presidenciais: o seguidor do ideólogo Olavo de Carvalho e ultradireitista Filipe Martins (Assuntos Internacionais) e Tercio Arnaud (assessor do Planalto).

Jair Bolsonaro e seu filho Flávio, acusado de fazer parte de núcleo de propagação de fake news

No núcleo político são citados aliados do governo que rotineiramente espalham fake news sobre a pandemia: os deputados Ricardo Barros, Osmar Terra, Carlos Jordy, Carla Zambelli e Bia Kicis, além do ex-ministro Ernesto Araújo e o diplomata Roberto Goidanich, o empresário Carlos "Wizard" Martins, o ministro Onyx Lorenzoni e o ex-deputado extremista Roberto Jefferson.

"Eles incentivaram as pessoas ao descumprimento das normas sanitárias impostas para conter a pandemia e adotaram condutas de incitação ao crime", diz o relatório.

Já o núcleo de produção e disseminação de fake news inclui veículos bolsonaristas, como os sites Terça Livre, Brasil Paralelo, Brasil Sem Medo (ligado a Olavo de Carvalho), entre outros. Os ativistas que fazem parte desse núcleo são figuras conhecidas de outros inquéritos por fake news, como Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio.

Por fim, no núcleo de financiamento aparecem os nomes dos empresários bolsonaristas Otávio Fakhoury e Luciano Hang.

"Na prática, ao estimular a população a se aglomerar, a não se vacinar, a desobedecer às regras de uso de máscara e de lockdown, pessoas influentes e agentes políticos contribuíram para o agravamento da pandemia", conclui o texto, que também aponta que o discurso antivacinas propagado por Jair Bolsonaro e outros propagadores de fake news "certamente causou a perda de inumeráveis e valiosas vidas durante a pandemia".

O empresário bolsonarista Luciano Hang, acusado de financiar rede de fake news e propagar mentiras sobre a cloroquina

Imunidade de rebanho, falso tratamento precoce e gabinete paralelo

O relatório também aborda o funcionamento de um "gabinete paralelo", uma estrutura obscura de aconselhamento para temas da pandemia à parte do Ministério da Saúde. O grupo, formado por entusiastas de tratamentos ineficazes, céticos das vacinas e leigos em saúde, é suspeito de assessorar Bolsonaro de maneira extraoficial na tomada de decisões sobre a pandemia, longe dos olhos do público e controle institucional.

Entre os membros desse gabinete, segundo o texto, atuaram figuras como o ex-assessor da Presidência Arthur Weintraub, a médica Nise Yamaguchi, o empresário bolsonarista Carlos "Wizard" Martins, o biólogo Paolo Zanotto, o deputado Osmar Terra e o médico Luciano Dias Azevedo.

De acordo com o relatório, o grupo fez "aconselhamento para que fosse atingida a imunidade de rebanho pela contaminação natural no Brasil". "Essa estratégia, atrelada à ideia de que o contágio natural induziria imunidade coletiva, visava exclusivamente à retomada das atividades econômicas", disse o senador Calheiros durante a leitura do relatório.

"A ideia era permitir que o novo coronavírus se propagasse livremente entre a nossa população", prossegue o texto. "[A] busca da imunidade de rebanho por infecção levou o presidente a resistir fortemente à implementação de medidas não farmacológicas, tais como o uso de máscara e o distanciamento social, bem como a não promover a celeridade necessária na aquisição de vacinas."

Dentro dessa estratégia, de acordo com o relatório, também estava o "tratamento precoce", o coquetel de drogas ineficazes, cujo principal ingrediente incluía a hidroxicloroquina, que começou a ser propagandeada por Bolsonaro como uma "cura" contra a covid-19 ainda em março de 2020.

O presidente continuou a defender o uso da cloroquina mesmo após estudos científicos demonstrarem sua ineficácia contra a doença. Seu governo chegou a lançar um aplicativo chamado TrateCov que recomendava altas doses de cloroquina até mesmo para bebês.

"As consequências dessa estratégia macabra foram mensuradas pela ciência. Se as medidas não farmacológicas tivessem sido aplicadas de forma sistemática no país, poderiam ter reduzido os níveis de transmissão da covid-19 em cerca de 40%, o que significa que 120 mil vidas poderiam ter sido salvas até o final de março de 2021", defendeu o senador.

Osmar Terra, um dos principais ideólogos do negacionismo da pandemia no governo Bolsonaro

Atrasos na compra de vacinas

No relatório, o senador Calheiros descreve como o governo Bolsonaro, com o auxílio de Pazuello e participação do ex-ministro Ernesto Araújo, tratou com descaso a aquisição de vacinas.

No início de 2021, ficou evidente que o governo não tinha vacinas suficientes após ignorar seguidas ofertas da Pfizer/BioNTech, que poderiam ter resultado no início da vacinação no país semanas antes. Além disso, o governo chegou a boicotar a Coronavac, a vacina promovida pelo governo de São Paulo, chefiado por João Doria, um desafeto do presidente. O governo ainda optou por apenas aderir à cobertura mínima de vacinas do consórcio internacional Covax Facility, quando poderia ter pedido cinco vezes mais vacinas.

"Os trabalhos da comissão revelaram que a aquisição de imunizantes não foi uma prioridade", diz o relatório, que conclui que "essa atuação negligente apenas reforça que se priorizou a cura via medicamentos, e não a prevenção pela imunização, e optou-se pela exposição da população ao vírus, para que fosse atingida mais rapidamente a imunidade de rebanho".

Corrupção

Enquanto ignorava ofertas de grandes laboratórios, o Ministério da Saúde abria as portas para empresas de fachada que faziam ofertas irreais de imunizantes. Segundo Calheiros, formou-se um "mercado interno de corrupção no Ministério da Saúde".

A maior parte das irregularidades ocorreu durante a gestão Pazuello. As denúncias envolvem empresas como a pequena Davati, que mesmo não possuindo vacinas, iniciou negociações para a venda de dezenas de milhões de imunizantes. Segundo um depoente, um membro do ministério exigiu propina para fechar o negócio.

Outra empresa envolvida em denúncias é a Precisa Medicamentos, que chegou a fechar um contrato envolvendo vacinas do laboratório indiano Covaxin. O negócio levantou suspeitas por envolver uma atravessadora e vacinas compradas por um preço bem superior a de outros imunizantes de laboratórios mais conceituados. Segundo um denunciante, houve pressão de altos membros da pasta para que o contrato fosse aprovado. Esse caso arrastou o deputado e líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, que foi acusado de agir como lobista para a Precisa.

Um terceiro núcleo inclui suspeitas sobre a empresa VTCLog, responsável pelo armazenamento e distribuição de insumos de saúde. A empresa recebeu um aditivo em um contrato num valor 1.800% superior ao recomendado em parecer técnico da pasta. A CPI mostrou indícios de que um funcionário da empresa pagou boletos do ex-diretor do Ministério da Saúde Roberto Dias, justamente o responsável pela assinatura do aditivo.

Crimes contra a humanidade

O relatório ainda cita uma série de "crimes contra a humanidade" cometidos pelo governo Bolsonaro e figuras e empresas próximas ao governo.

Em janeiro de 2021, enquanto os hospitais de Manaus enfrentavam mais um colapso, o então ministro Pazuello viajou à capital do Amazonas para lançar um aplicativo que estimulava o consumo de cloroquina. Paralelamente, a pasta ignorou sinais de que a cidade estava sofrendo com desabastecimento de oxigênio nos hospitais. A omissão resultaria na morte de dezenas de pacientes por asfixia.

"O ponto mais crítico de toda essa situação é que, pelo que foi apurado, as autoridades federais poderiam ter agido para evitar essa tragédia, mas permaneceram inertes", aponta o relatório, que afirma que o governo Bolsonaro usou a cidade "como um laboratório humano" para testar a cloroquina, classificando a ação de crime contra a humanidade.

Outro caso de crime contra a humanidade envolve o estudo dos efeitos da substância proxalutamida conduzido no Amazonas pelo médico Flávio Adsuara Cadegiani, durante o qual 200 pessoas morreram. Segundo o senador Calheiros, o uso da proxalutamida também foi estimulado por Bolsonaro.

Um terceiro caso envolve as ações da empresa de planos de saúde Prevent Senior, que usou em larga escala em seus pacientes o "kit covid" promovido por Bolsonaro. Depoentes acusaram a empresa de até mesmo produzir estudos que eram manipulados para se adequar às falas de Bolsonaro sobre a suposta eficácia do fármaco e de ter realizado um "pacto" com o governo para usar os medicamentos ineficazes.

Cemitério em Manaus. Enquanto pacientes sofriam com falta de oxigênio, governo transformou cidade em "laboratório humano" para testar cloroquina

Próximo passos

A votação do relatório pela CPI está prevista para o dia 26 de outubro.

Uma CPI não tem poder para denunciar formalmente e nem punir. Após a votação, o relatório será encaminhado aos órgãos de investigação.

Dependendo da pessoa e seu cargo, o pedido será dirigido a diferentes órgãos. No caso de detentores de foro privilegiado, a Procuradoria-Geral da República (PGR) será encarregada de analisar os pedidos e decidir se há base para a abertura de inquéritos.

Não há muitas ilusões de que o procurador-geral, Augusto Aras, dará um prosseguimento efetivo aos pedidos. Aras já demonstrou seguidas vezes que não tem intenção de incomodar Bolsonaro juridicamente e já deixou de agir em episódios graves, como as ofensivas do presidente contra outros Poderes.

O procurador-geral da República, Augusto Aras. Há poucas ilusões de que ele vá agir contra Bolsonaro

Aras terá 30 dias para dar um encaminhamento ao relatório da CPI. Se o procurador-geral decidir arquivar o texto ou não enviar as denúncias ao Supremo, membros da CPI cogitam acionar os ministros do tribunal com o auxílio de entidades de direito privado, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

No caso dos crimes contra a humanidade, a CPI também pode remeter as denúncias ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia.

Ao final da leitura do relatório, o senador Calheiros afirmou que os trabalhos da comissão silenciaram "um coro demoníaco, vindo de uma catedral da morte sediada pelo governo federal, que gerou uma necrópole aterradora, marcada pelo desprezo à vida, o escárnio com a dor das mais de 600 mil famílias, a insensibilidade e a indiferença".

Deutsche Welle Brasil, em 20.10.21