quinta-feira, 21 de outubro de 2021

As faces de uma tragédia

Relatório da CPI da Covid detalhou as minúcias de um complô para assegurar sustentação política de Bolsonaro à custa da dor dos brasileiros

Após seis meses de trabalho, a CPI da Covid concluiu bem sua missão de sistematizar as evidências de que o presidente Jair Bolsonaro, com seu comportamento irresponsável, ofensivo e desdenhoso, transformou o que naturalmente seria uma grave crise sanitária na pior tragédia do Brasil republicano. 

Sem desmerecer o trabalho dos senadores, à CPI não restava muito mais a fazer do que reunir as provas que foram produzidas aos borbotões diante dos olhos estupefatos do País, além de aprofundar investigações pontuais e tipificar as condutas dos agentes. As ações e omissões de Bolsonaro e de todos os que a ele se associaram nessa desdita já eram de conhecimento público, em grande medida graças ao trabalho da imprensa livre e independente.

Ontem, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI da Covid, leu o resumo do relatório final. Ao longo das mais de 1.100 páginas do relatório, cuja primeira versão o Estado havia revelado no domingo passado, o relator detalhou as minúcias do que pode ser claramente classificado como um complô para garantir subsistência político-eleitoral ao presidente da República durante a pandemia de covid-19 à custa do bem-estar, da saúde e da vida de centenas de milhares de brasileiros. No momento em que Calheiros lia seu relatório, o País contava oficialmente quase 604 mil mortes causadas pelo coronavírus. Seguramente, muitas teriam sido evitadas caso as vacinas tivessem chegado mais rápido aos brasileiros.

Segundo o relator, Bolsonaro, assessorado por um “gabinete paralelo” formado por médicos, políticos e empresários sem cargos no governo federal, decidiu expor o maior número possível de pessoas ao coronavírus a fim de produzir a chamada imunidade coletiva, negligenciando até onde foi possível a compra das vacinas. O objetivo do presidente era forçar a retomada prematura das atividades econômicas e, assim, evitar reveses políticos em sua campanha pela reeleição.

Na visão da CPI, desse cruel desígnio original derivaram todas as demais práticas criminosas que a comissão apurou. Ao todo, o relator propõe o indiciamento de 66 pessoas, incluindo Bolsonaro, seus três filhos com mandato eletivo e seis ministros e ex-ministros de Estado, além de políticos, empresários e servidores públicos que, conforme o relatório, tentaram obter ganhos pessoais à custa do sofrimento dos brasileiros. As acusações incluem crimes como epidemia, corrupção, organização criminosa, charlatanismo, incitação ao crime, prevaricação, usurpação de função pública e crimes contra a humanidade, entre outros.

As faces das 66 pessoas que o relator propõe que sejam indiciadas pela CPI da Covid são bastante conhecidas e a temeridade de suas condutas restou cabalmente demonstrada pela comissão de inquérito. Mas a CPI da Covid foi além e acertou ao dar voz a quem perdeu pais, mães, filhos, avós e amigos em decorrência da covid-19. Essa é a verdadeira face da tragédia que Bolsonaro insiste em minimizar.

A dor dos cidadãos ouvidos pela CPI da Covid dá concretude aos crimes cometidos por Bolsonaro na condução do País durante a pandemia. Os rostos do taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva, da enfermeira Mayra Pires Lima, da estudante Giovanna Gomes Mendes da Silva, entre outros que lá estiveram, são a expressão de um país enlutado e indignado com o desrespeito e o descaso com que foi tratado por quem deveria ser o primeiro a zelar por seu bem-estar neste momento dramático.

Bolsonaro aposta na impunidade. Fia-se no compadrio e na leniência das instituições, sobretudo da Procuradoria-Geral da República, para sair incólume da tragédia, a despeito do mal que causou ao País. Mas não pode ser assim. “Se ele tivesse ideia do mal que faz para a Nação, ele não faria isso”, disse à CPI a testemunha Kátia Castilho, que perdeu o pai e a mãe para a covid-19. “Não são só números, são pessoas, são vidas, são sonhos, são histórias que foram encerradas por negligências, por tantas negligências, e nós queremos justiça.” É o que o Brasil decente exige.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 21 de outubro de 2021 

Populismo à custa dos pobres

As tentativas de ‘flexibilizar’ o teto de gastos por meio de exceções tornaram-se rotineiras na impropriamente chamada ‘gestão’ Bolsonaro

 Os pobres pagarão a conta – e será pesada – se o presidente Bolsonaro levar adiante sua nova jogada populista, agravar a crise fiscal e produzir mais inflação. Bandeira de sua campanha eleitoral permanente, o programa Auxílio Brasil, versão turbinada do Bolsa Família, é mais um risco para a saúde já muito precária das finanças oficiais. Sem cuidar de como cobrir os gastos e de como conter a dívida pública, ele determinou a elevação da ajuda para R$ 400 e sua extensão a mais beneficiários. Desses R$ 400, R$ 100 deverão ficar fora das normas fiscais. O resultado será mais uma violação do teto de gastos, disfarçada, se possível, por mais uma exceção à regra constitucional.

Os gastos sociais seriam financiáveis se fossem cortadas outras despesas, como as escandalosas emendas parlamentares abençoadas pelo presidente, mas nenhuma solução desse tipo foi decidida. Numa longa reunião, a equipe econômica mostrou os efeitos do aumento improvisado e voluntarista do Bolsa Família. “Eu assumo os riscos”, disse o presidente, segundo apurou o Estado.

O presidente chegou a adiar o anúncio do novo programa diante da resistência na equipe econômica, mas afinal o programa foi anunciado ontem, com os problemas de sempre. Para o relator do Auxílio Brasil na Câmara, deputado Marcelo Aro (PP-MG), Bolsonaro “não está dando um presente, ele está emprestando até ganhar a eleição”. O ministro da Cidadania, João Roma, prometeu um programa com responsabilidade fiscal, mas faltou explicar como se ajustará o Orçamento. 

Bolsonaro sempre agiu como se a Presidência fosse apenas sinônimo de poder de mando, sem vinculação com a ideia de administração e de responsabilidade fiscal – e sempre que o mercado se dá conta disso, como quando ficou claro o espírito demagógico do novo auxílio, a Bolsa despenca e o dólar sobe.

Ações em queda, dólar em alta e custos maiores para o Tesouro têm refletido a insegurança do mercado quanto à evolução das contas oficiais e, especialmente, da dívida pública. Essa dívida, na vizinhança de 90% do PIB, é bem maior que a média, pouco superior a 60%, encontrada nas economias emergentes e de renda média.

Mas a reação do mercado é muito diferente daquela acessível à maior parte das pessoas. Investidores e outros agentes da área financeira buscam proteção alterando suas aplicações e, em muitos casos, mandando recursos ao exterior. Nada parecido pode ser feito pela maioria dos cidadãos.

Sem meios para se defender, esses brasileiros são os mais afetados pelos desarranjos da produção, pelo desemprego e pela inflação decorrentes dos erros e desmandos do poder federal. Supostamente beneficiários de medidas populistas, os pobres são os mais prejudicados, quando políticas desse tipo resultam em desastres para a economia.

No Brasil, a inflação está na casa dos 10% ao ano, e só é superada. O desajuste é especialmente doloroso por causa do encarecimento de itens como alimentação, eletricidade e gás. Somado ao desemprego, o desastre inflacionário produz miséria e fome.

A nova jogada populista – mais uma no currículo de um presidente capaz do mais ostensivo populismo e do mais descarado desprezo à vida dos concidadãos – será, se consumada, mais um golpe contra as finanças públicas. Parte das despesas com os programas sociais ficará provavelmente fora do teto de gastos, assim como parte dos pagamentos de precatórios.

O Executivo e seus aliados no Congresso tentam agora aprovar limites para esses pagamentos, embora se trate de compromissos já em atraso e com liquidação determinada pela Justiça. Na prática, os credores dos precatórios sofrerão um calote disfarçado.

Criado como norma constitucional no governo de Michel Temer, o teto de gastos, mecanismo necessário para enfrentar o descalabro da passagem de Dilma Rousseff pela Presidência, deveria reforçar a responsabilidade fiscal, limitando o aumento nominal da despesa à inflação do exercício anterior. Essa norma durou pouco e as tentativas de “flexibilizar” o teto por meio de exceções tornaram-se rotineiras na impropriamente chamada “gestão” Bolsonaro – que, a se manter assim, nada ficará a dever à de Dilma. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 21 de outubro de 2021 

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Um mundo menos seguro

Expansão militar chinesa exigirá mais agilidade das democracias liberais na concertação de suas defesas

Em agosto, um míssil supersônico chinês com capacidade nuclear, mais difícil de rastrear e destruir do que os mísseis balísticos, circulou o globo antes de atingir seu alvo. O teste ocorreu pouco após a descoberta de centenas de novos mísseis no deserto chinês e num momento em que Pequim amplia suas manobras belicosas no Pacífico. O país, cuja frota naval se tornou recentemente a maior do mundo, tem enviado recorrentemente caças sobre o espaço aéreo de Taiwan. Ao mesmo tempo, os EUA correm para tecer uma rede de alianças no Pacífico.

O mundo está menos seguro. Embora o imperialismo chinês seja historicamente restrito à Ásia, o país tem ambições globais e sua rápida expansão militar sinaliza interesses que vão além da defesa de sua soberania. A China não está atada por nenhum pacto de controle de armas e se mostra refratária a discutir suas políticas nucleares.

“Não estamos em uma competição com a China per se”, disse o presidente norte-americano, Joe Biden, no encontro do G-7, em junho, “mas com os governos autocráticos ao redor do mundo, sobre se as democracias podem ou não competir com eles em um século 21 em rápida transformação.”

Esse questionamento se mostrou ainda mais dramático após a saída desastrosa dos americanos e seus aliados do Afeganistão. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), após décadas concentrada na detenção da Rússia e, desde 2001, no combate ao terrorismo, precisará atualizar rapidamente seus objetivos estratégicos num momento em que os europeus questionam, com boas razões, a fidelidade dos EUA, enquanto os EUA os acusam, com boas razões, de não investirem o suficiente em sua defesa.

“A China está se aproximando de nós”, disse o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg. “Nós os vemos no Ártico; os vemos no espaço cibernético; os vemos investir pesadamente em infraestrutura crítica em nossos países.” China e Rússia “trabalham estreitamente juntas”, disse Stoltenberg, e não devem ser vistas como ameaças separadas. Corroborando esse diagnóstico, o Japão alertou que na última segunda-feira 10 navios russos e chineses navegaram através do estreito que separa a sua ilha principal das ilhas do norte.

Nada disso significa que um conflito global seja inevitável, e muito menos iminente. Mas suas características serão diferentes do que foram no passado e exigirão estratégias diferentes para enfrentar novos riscos como ataques cibernéticos, inteligência artificial e agressões híbridas, como as que vêm sendo utilizadas pela Rússia e a China. É preocupantemente sintomático que as agências de inteligência americanas tenham confessado ter sido surpreendidas pelo novo míssil.

É certo que, unidas, as democracias liberais têm condições de resistir às ameaças dos regimes autocráticos e forçá-los a negociar uma coexistência pacífica. Mas, neste momento, é incerto se elas conseguirão orquestrar essa união com a agilidade necessária. Um bom começo seria responder aos apelos de Taiwan por uma mobilização internacional contra as evidentes ameaças de Pequim.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 20 de outubro de 2021 

O “coro demoníaco” de Bolsonaro durante a pandemia se traduz em nove crimes ou 68 anos de prisão

Segundo o primogênito do presidente, Flávio Bolsonaro, o mandatário deve ter dado uma gargalhada ao saber do relatório da CPI da Pandemia. Documento será votado no dia 26

Manifestante com máscara representando Bolsonaro em ato na Praça dos Três Poderes, em Brasília, nesta quarta-feira. (Joédson Alves, EFE)

Foi com deboche que o presidente Jair Bolsonaro reagiu ao relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia que sugere o seu indiciamento por nove crimes cometidos durante a gestão da maior crise sanitária enfrentada pelo mundo. A crise de saúde resultou até o momento em mais de 603.000 mortes por covid-19 no Brasil. Segundo o seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), o presidente deve ter gargalhado ao saber do teor do documento elaborado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), e que atribui a ele nove delitos: epidemia, crimes contra a humanidade, infração de medidas sanitárias, incitação ao crime, emprego irregular de verba pública, charlatanismo, prevaricação, falsificação de documentos particulares e crime de responsabilidade. As penas para todos esses crimes somados variam de cinco anos e quatro meses de detenção a até 68 anos e dez meses. Além da perda de mandato e dos direitos políticos, caso prospere um improvável processo de impeachment contra o mandatário.

— Como o presidente recebe essa sugestão de indiciamento por tantos crimes? — pergunta uma repórter ao senador.

– Você conhece aquela gargalhada dele? Hahahaha [imita a risada]. Por que não tem o que fazer diferente disso! É uma piada de muito mau gosto o que o senador Renan Calheiros faz — responde Flávio Bolsonaro.

O tratamento insensível com os mortos durante a pandemia tem sido uma das marcas da presidência de Jair Bolsonaro. Ele já disse que não tinha de se preocupar com os falecidos porque não era coveiro, já colocou em dúvidas os números de óbitos registrados, chamou de idiota quem o cobrava para acelerar a compra de vacinas, incitou a população a criticar governadores e prefeitos que impuseram medidas de restrição de circulação e sempre tentou eximir-se de culpa por o Brasil ter um elevado índice de contaminação, apesar de seus discursos anticiência e contra a imunização da população.

Uma CPI em que se chorou de raiva, de dor e de vergonha

Bolsonaro também se manifestou sobre o relatório. Disse que não tem “culpa absolutamente de nada”. “Nada produziram [a CPI], a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Mas sabemos que não temos culpa de absolutamente nada, fizemos a coisa certa desde o primeiro momento”, declarou no interior do Ceará, durante um evento público do Governo federal.

Nesta quarta-feira, a CPI oficializou a sugestão de indiciamento de Bolsonaro, de outras 65 pessoas e de duas empresas – Precisa Medicamentos e VTCLog. O documento deverá ser analisado no próximo dia 26 pelo plenário da comissão. Para ser aprovado, são necessários os votos da maioria dos 11 senadores que compõe o colegiado. A previsão é que o placar seja de 7 votos a favor do relatório e 4 contra, levando-se em conta as composições da comissão até aqui.

Além do presidente, são indiciados quatro ministros —Marcelo Queiroga (Saúde), Walter Braga Netto (Defesa), Onyx Lorenzoni (Trabalho) e Wagner Rosário (Controladoria-Geral)—, três ex-ministros —Eduardo Pazuello (Saúde), Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Fábio Wajngarten (Secretaria de Comunicação)— além dos três filhos políticos do presidente, o senador Flávio, o deputado Eduardo e o vereador Carlos.

Na leitura do resumo de seu relatório, Calheiros disse que a Gestão Bolsonaro desprezou a vida. “Esse trabalho coletivo silenciou um coro demoníaco vindo de uma catedral da morte, sediada pelo Governo federal. Geraram uma necrópole aterradora, marcada pelo desprezo à vida, pelo escárnio com a dor de mais de 600.000 famílias, pela insensibilidade e indiferença humanitária. Categorias que resvalam na insanidade, na psicopatia que marcam comportamentos primitivos do ogro e dos bárbaros”

O senador Flávio Bolsonaro durante entrevista. (Edilson Rodrigues, AFP)

Barreiras jurídica e política

O deboche de Bolsonaro, de seus familiares e de sua base congressual, que consideraram o relatório inconstitucional uma “maluquice”, uma “peça de ficção”, talvez esteja amparado em uma Procuradoria Geral da República que pouco ou nada fez para frear os desmandos do Governo ou para cobrar ações dele no enfrentamento da doença. Assim como da classe política ilustrada na figura do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não deu andamento a nenhum dos mais de 130 pedidos de impeachment contra ele. Pela legislação brasileira, CPIs não têm o poder de denunciar ou punir. A elas cabe encaminhar as sugestões e conclusões aos órgãos de fiscalização competentes.

O alinhamento entre Aras e Bolsonaro é tamanho que o procurador já se manifestou contrário a pelo menos duas investigações que agora são citadas no relatório contra o presidente, as dos crimes de epidemia e prevaricação. Isso ocorreu ao longo de 2021, quando senadores opositores recorreram ao Supremo Tribuna Federal para acusar o presidente de ser conivente com um esquema de corrupção que estava em andamento no Ministério da Saúde e quando um grupo de ex-procuradores cobrou que Aras denunciasse Bolsonaro por epidemia.

"Bolsonaro faz de tudo para permanecer acima da lei",

Pedro Abramovay, diretor da Open Society Foundations

Para o diretor para América Latina da Open Society Foundations, Pedro Abramovay, o presidente procede como uma pessoa que sempre cometeu crimes e nunca foi punida. Ao assumir o poder, ele conseguiu se blindar ainda mais. “O presidente mostrou que é possível se tornar um presidente livre de qualquer punição se você cooptar o presidente da Câmara e o PGR. Bolsonaro faz de tudo para permanecer acima da lei”, afirmou ao EL PAÍS.

Na visão de Abramovay, ex-secretário-nacional de Justiça, o relatório da CPI conseguiu furar uma espécie de bolha de proteção que havia até então ao presidente. “O impacto é mais do que só na imagem do presidente. Ele fez de tudo para cooptar instituições. Essa é uma resposta institucional a ele”.

Os crimes de Bolsonaro

Em quase seis meses de trabalhos, a CPI concluiu que Bolsonaro precisa ser investigado por nove crimes. Os que chamam mais atenção são os de maiores penas: o crime contra a humanidade, que deve ser analisado pelo Tribunal Penal Internacional, e o de causar epidemia com a propagação de germes patogênicos. Este está previsto no artigo 267 do Código Penal. Em caso de morte da vítima, a punição do culpado é de 20 a 30 anos de reclusão.

No parecer, Renan Calheiros destacou que comete o crime de epidemia não somente aquele que origina ou produz uma epidemia, com a propagação inicial de germes patogênicos, “mas também quem, mesmo após iniciado o quadro epidêmico, age ou se omite para dar causa a um processo epidêmico de maiores proporções”. No entendimento do relator, quando o Governo Bolsonaro atrasou a compra de vacinas, se contrapôs ao distanciamento social e ao uso de máscaras ou quando incentivou o uso de medicamentos ineficazes contra o novo coronavírus, contribuiu para o risco de propagação da doença.

Sobre o crime contra a humanidade, cuja pena pode chegar a 30 anos de prisão, o embasamento é o artigo 7º do decreto 4.388, que promulga o Estatuto de Roma. O presidente é apontado pelo relator como um dos responsáveis pelo colapso na rede de saúde de Manaus, quando faltou oxigênio para os pacientes, pela compra e incentivo do uso dos ineficientes kits covid e por ataques contra a população indígena. “O que distingue a morte de centenas de indígenas da morte de centenas de milhares de outros dos nossos concidadãos é, fundamentalmente, a intenção de submeter esse grupo específico da população ao risco de contágio”, delineou Calheiros.

O relator da CPI, senador Renan Calheiros. (Joedson Alves, EFE)

Genocídio e governador do Amazonas ficam de fora

Calheiros planejkava sugerir o indiciamento de Bolsonaro pelos crimes de genocídio dos povos indígenas e de homicídio qualificado. Mas, depois da pressão de colegas de seu grupo político quanto ao peso dos termos e de discussões técnicas, decidiu dar um passo atrás. O genocídio entrou no âmbito dos crimes contra a humanidade e o homicídio qualificado, no de epidemia. “Homicídio doloso qualificado, pela legislação, é algo cometido contra alguém identificado. São mais de 600.000 vítimas. Ou seja, é algo que não se sustentaria. Então, saiu. Mas ficou o crime de epidemia com resultado morte, que tem caráter coletivo”, explicou um técnico da CPI.

“Preferimos ter um relatório forte, contundente, que seja aprovado pela maioria para, em seguida, exigirmos a apuração dos crimes e a punição dos envolvidos”, ressaltou o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Na visão dele, apesar do aparente alinhamento do procurador-geral da República, Augusto Aras, com o presidente da República, não haverá maneira de Bolsonaro se esquivar de futuras denúncias criminais. “O PGR receberá um relatório com todos os elementos necessários para dar encaminhamento às investigações.

Acusado de crime contra a humanidade na CPI receitou dose inédita de proxalutamida a paciente com covid-19

Além da não caracterização do genocídio, outra ausência que gerou queixas entre os senadores opositores foi o não indiciamento do governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC). Dois senadores amazonenses, Eduardo Braga (MDB) e Omar Aziz (PSD) cobraram publicamente Calheiros para incluir Lima no rol dos indiciados. Trataria-se de mais do que uma questão política —ambos são de grupos políticos distintos do governador—, pois tem valor humanitária, já que Manaus sofreu uma crise de abastecimento de oxigênio em janeiro que resultou na dezena de mortes de pacientes internados com covid-19.

A inclusão de Lima no relatório final ainda pode ocorrer até a próxima terça-feira. O relator disse que está à disposição para algumas modificações. Após a possível aprovação do documento, os senadores montarão um Observatório do Senado para cobrar o andamento das apurações junto aos órgãos responsáveis. Para o dia 27 eles prometem um ato na Procuradoria-Geral da República, onde entregarão oficialmente o parecer. E ainda neste ano pretendem fazer o mesmo junto ao Tribunal Penal Internacional. A busca por punições está apenas começando.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 20.10.21.

Relatório da CPI expõe "estratégia macabra" de Bolsonaro na pandemia

Documento descreve que ações criminosas e omissões do governo federal contribuíram decisivamente para o desastre que tirou mais de 600 mil vidas, e que autoridades "assentiram com a morte de brasileiros" na pandemia.

Bolsonaro minimizou a pandemia, se opôs a medidas de distanciamento, espalhou paranoia antivacinas e estimulou infecções ao longo da crise

Após quase seis meses de trabalho, a CPI da Pandemia foi palco nesta quarta-feira (20/10) da leitura do relatório final produzido pelo senador Renan Calheiros.

O texto pinta a atuação do governo Jair Bolsonaro durante a pandemia como negligente, incompetente, anticientífica, corrupta, macabra, caótica, criminosa e decisiva para que o Brasil produzisse o desastre sanitário que já ceifou oficialmente mais de 600 mil vidas. Segundo o relatório, o governo Bolsonaro "assentiu com a morte de brasileiras e brasileiros".

O texto descreve como o negacionismo do governo incluiu a formação de redes que promoveram fake news, paranoia antivacinas e incentivo ao desrespeito às normas de distanciamento.

Também descreve como as autoridades federais optaram por expor "deliberadamente a população a risco concreto de infecção em massa" ao recusarem a adoção de medidas de distanciamento – como máscaras – e abraçarem a promoção de um ineficaz e potencialmente perigoso "tratamento precoce". Tudo para buscar uma "imunidade de rebanho" por contaminação natural, mesmo diante das evidências de que milhares de brasileiros morreriam nesse processo.

Segundo Calheiros, essa "estratégia macabra" resultou até março de 2021 em pelo menos 120 mil mortes que poderiam ter sido evitadas.

O relatório ainda afirma que o Ministério da Saúde foi palco de "um esquema de corrupção nunca visto" e que "houve deliberado atraso na aquisição de imunizantes, em evidente descaso com a vida das pessoas".

O documento com 1.180 páginas lista mais de 60 pessoas, imputando mais de 20 crimes, incluindo crimes contra a humanidade, fraude em licitação, corrupção, incitação ao crime, prevaricação, emprego irregular de verbas públicas e falsificação de documentos.

Entre os acusados estão Jair Bolsonaro, três dos filhos do presidente, sete ministros e ex-ministros, deputados e empresários bolsonaristas acusados de espalhar fake news e promoverem desrespeito às normas sanitárias, militares que ocupavam postos no Ministério da Saúde, membros do "gabinete paralelo", figuras envolvidas em suspeitas de corrupção na compra de vacinas e médicos envolvidos em fraudes e uso antiético de medicamentos ineficazes contra a covid-19.

Antes da leitura do relatório, ocorreram algumas mudanças. O senador Calheiros atendeu a pedidos do presidente da comissão, Omar Aziz, e outros senadores para retirar acusações de genocídio indígena contra Bolsonaro e outros acusados. O nome do influente empreendedor religioso Silas Malafaia, que era originalmente acusado de "incitação ao crime", também foi retirado da lista de acusados.

Apesar da retirada de alguns crimes, Aziz afirmou durante a sessão que "o presidente [Bolsonaro] cometeu muitos crimes e vai pagar por eles".

Acusações contra Bolsonaro

O relatório descreve ações do presidente que agravaram a pandemia, incluindo seu entusiasmo pelo falso tratamento precoce – que resultou na queda de dois ministros da Saúde que resistiram em adotar os medicamentos ineficazes –, seu desprezo pelas vacinas, declarações minimizando a gravidade da doença e sabotagem de medidas de distanciamento. O relatório cita, por exemplo, episódios em que o presidente incentivou pessoas a não usarem máscaras.

"Isso nos leva a concluir que o presidente tinha interesse em encorajar os brasileiros a se expor ao contágio sem proteção, para que pudessem ser infectados pelo vírus sem maiores dificuldades ou barreiras", diz o texto.

"Jair Bolsonaro colaborou fortemente para a propagação da covid-19 em território brasileiro e, assim, mostrou-se o responsável principal pelos erros cometidos pelo governo federal durante a pandemia da covid-19."


Ao todo, o relatório pede o indiciamento de Bolsonaro por dez crimes:

- Epidemia com resultado morte

- Infração de medida sanitária preventiva

- Charlatanismo

- Incitação ao crime

- Falsificação de documento particular

- Emprego irregular de verbas públicas

- Prevaricação

- Crimes contra a humanidade, nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos

- Violação de direito social

- Incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo.

Jair Bolsonaro, durante uma das inúmeras aglomerações que o presidente promoveu durante a pandemia

Titulares da Saúde na mira

O relatório também pede o indiciamento do general Eduardo Pazuello, que ocupou a chefia do Ministério da Saúde entre maio de 2020 e março de 2021, e o atual titular da pasta, Marcelo Queiroga.

Durante o período em que exerceu o cargo, Pazuello se notabilizou por obedecer ordens de Bolsonaro para expandir o uso da ineficaz cloroquina, ignorou ofertas de vacinas de grandes laboratórios, não fez esforços para aumentar a testagem, tentou esconder os números de mortes e casos de covid-19 e foi acusado de não agir durante a crise do oxigênio em Manaus.

O relatório o acusa de epidemia com resultado morte, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação e comunicação falsa de crime.

Já Queiroga é acusado no relatório de prevaricação e epidemia com resultado morte.

Titulares da Saúde, Marcelo Queiroga e Eduardo Pazuello executaram estratégia anticientífica de Bolsonaro

Veja a lista completa de pessoas acusadas no relatório final

Fake news

Parte do relatório se debruça sobre a rede de fake news bolsonarista que atuou durante a pandemia, minimizando a doença, promovendo tratamento ineficazes e paranoia antivacinas, além de mentir sobre as ações do governo federal e direcionar ataques contra Poderes e instituições, incluindo o Senado e o Supremo Tribunal Federal (STF).

O texto aponta que essa rede de fake news era dividida em cinco núcleos: o núcleo de comando (1), núcleo formulador (2), núcleo político (3), núcleo de produção e disseminação das fake news (4), e núcleo de financiamento (5).

Segundo o relatório, o núcleo de comando de fake news é formado por Jair Bolsonaro e três de seus filhos: o senador Flávio Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro.

No núcleo formulador aparecem dois assessores presidenciais: o seguidor do ideólogo Olavo de Carvalho e ultradireitista Filipe Martins (Assuntos Internacionais) e Tercio Arnaud (assessor do Planalto).

Jair Bolsonaro e seu filho Flávio, acusado de fazer parte de núcleo de propagação de fake news

No núcleo político são citados aliados do governo que rotineiramente espalham fake news sobre a pandemia: os deputados Ricardo Barros, Osmar Terra, Carlos Jordy, Carla Zambelli e Bia Kicis, além do ex-ministro Ernesto Araújo e o diplomata Roberto Goidanich, o empresário Carlos "Wizard" Martins, o ministro Onyx Lorenzoni e o ex-deputado extremista Roberto Jefferson.

"Eles incentivaram as pessoas ao descumprimento das normas sanitárias impostas para conter a pandemia e adotaram condutas de incitação ao crime", diz o relatório.

Já o núcleo de produção e disseminação de fake news inclui veículos bolsonaristas, como os sites Terça Livre, Brasil Paralelo, Brasil Sem Medo (ligado a Olavo de Carvalho), entre outros. Os ativistas que fazem parte desse núcleo são figuras conhecidas de outros inquéritos por fake news, como Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio.

Por fim, no núcleo de financiamento aparecem os nomes dos empresários bolsonaristas Otávio Fakhoury e Luciano Hang.

"Na prática, ao estimular a população a se aglomerar, a não se vacinar, a desobedecer às regras de uso de máscara e de lockdown, pessoas influentes e agentes políticos contribuíram para o agravamento da pandemia", conclui o texto, que também aponta que o discurso antivacinas propagado por Jair Bolsonaro e outros propagadores de fake news "certamente causou a perda de inumeráveis e valiosas vidas durante a pandemia".

O empresário bolsonarista Luciano Hang, acusado de financiar rede de fake news e propagar mentiras sobre a cloroquina

Imunidade de rebanho, falso tratamento precoce e gabinete paralelo

O relatório também aborda o funcionamento de um "gabinete paralelo", uma estrutura obscura de aconselhamento para temas da pandemia à parte do Ministério da Saúde. O grupo, formado por entusiastas de tratamentos ineficazes, céticos das vacinas e leigos em saúde, é suspeito de assessorar Bolsonaro de maneira extraoficial na tomada de decisões sobre a pandemia, longe dos olhos do público e controle institucional.

Entre os membros desse gabinete, segundo o texto, atuaram figuras como o ex-assessor da Presidência Arthur Weintraub, a médica Nise Yamaguchi, o empresário bolsonarista Carlos "Wizard" Martins, o biólogo Paolo Zanotto, o deputado Osmar Terra e o médico Luciano Dias Azevedo.

De acordo com o relatório, o grupo fez "aconselhamento para que fosse atingida a imunidade de rebanho pela contaminação natural no Brasil". "Essa estratégia, atrelada à ideia de que o contágio natural induziria imunidade coletiva, visava exclusivamente à retomada das atividades econômicas", disse o senador Calheiros durante a leitura do relatório.

"A ideia era permitir que o novo coronavírus se propagasse livremente entre a nossa população", prossegue o texto. "[A] busca da imunidade de rebanho por infecção levou o presidente a resistir fortemente à implementação de medidas não farmacológicas, tais como o uso de máscara e o distanciamento social, bem como a não promover a celeridade necessária na aquisição de vacinas."

Dentro dessa estratégia, de acordo com o relatório, também estava o "tratamento precoce", o coquetel de drogas ineficazes, cujo principal ingrediente incluía a hidroxicloroquina, que começou a ser propagandeada por Bolsonaro como uma "cura" contra a covid-19 ainda em março de 2020.

O presidente continuou a defender o uso da cloroquina mesmo após estudos científicos demonstrarem sua ineficácia contra a doença. Seu governo chegou a lançar um aplicativo chamado TrateCov que recomendava altas doses de cloroquina até mesmo para bebês.

"As consequências dessa estratégia macabra foram mensuradas pela ciência. Se as medidas não farmacológicas tivessem sido aplicadas de forma sistemática no país, poderiam ter reduzido os níveis de transmissão da covid-19 em cerca de 40%, o que significa que 120 mil vidas poderiam ter sido salvas até o final de março de 2021", defendeu o senador.

Osmar Terra, um dos principais ideólogos do negacionismo da pandemia no governo Bolsonaro

Atrasos na compra de vacinas

No relatório, o senador Calheiros descreve como o governo Bolsonaro, com o auxílio de Pazuello e participação do ex-ministro Ernesto Araújo, tratou com descaso a aquisição de vacinas.

No início de 2021, ficou evidente que o governo não tinha vacinas suficientes após ignorar seguidas ofertas da Pfizer/BioNTech, que poderiam ter resultado no início da vacinação no país semanas antes. Além disso, o governo chegou a boicotar a Coronavac, a vacina promovida pelo governo de São Paulo, chefiado por João Doria, um desafeto do presidente. O governo ainda optou por apenas aderir à cobertura mínima de vacinas do consórcio internacional Covax Facility, quando poderia ter pedido cinco vezes mais vacinas.

"Os trabalhos da comissão revelaram que a aquisição de imunizantes não foi uma prioridade", diz o relatório, que conclui que "essa atuação negligente apenas reforça que se priorizou a cura via medicamentos, e não a prevenção pela imunização, e optou-se pela exposição da população ao vírus, para que fosse atingida mais rapidamente a imunidade de rebanho".

Corrupção

Enquanto ignorava ofertas de grandes laboratórios, o Ministério da Saúde abria as portas para empresas de fachada que faziam ofertas irreais de imunizantes. Segundo Calheiros, formou-se um "mercado interno de corrupção no Ministério da Saúde".

A maior parte das irregularidades ocorreu durante a gestão Pazuello. As denúncias envolvem empresas como a pequena Davati, que mesmo não possuindo vacinas, iniciou negociações para a venda de dezenas de milhões de imunizantes. Segundo um depoente, um membro do ministério exigiu propina para fechar o negócio.

Outra empresa envolvida em denúncias é a Precisa Medicamentos, que chegou a fechar um contrato envolvendo vacinas do laboratório indiano Covaxin. O negócio levantou suspeitas por envolver uma atravessadora e vacinas compradas por um preço bem superior a de outros imunizantes de laboratórios mais conceituados. Segundo um denunciante, houve pressão de altos membros da pasta para que o contrato fosse aprovado. Esse caso arrastou o deputado e líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, que foi acusado de agir como lobista para a Precisa.

Um terceiro núcleo inclui suspeitas sobre a empresa VTCLog, responsável pelo armazenamento e distribuição de insumos de saúde. A empresa recebeu um aditivo em um contrato num valor 1.800% superior ao recomendado em parecer técnico da pasta. A CPI mostrou indícios de que um funcionário da empresa pagou boletos do ex-diretor do Ministério da Saúde Roberto Dias, justamente o responsável pela assinatura do aditivo.

Crimes contra a humanidade

O relatório ainda cita uma série de "crimes contra a humanidade" cometidos pelo governo Bolsonaro e figuras e empresas próximas ao governo.

Em janeiro de 2021, enquanto os hospitais de Manaus enfrentavam mais um colapso, o então ministro Pazuello viajou à capital do Amazonas para lançar um aplicativo que estimulava o consumo de cloroquina. Paralelamente, a pasta ignorou sinais de que a cidade estava sofrendo com desabastecimento de oxigênio nos hospitais. A omissão resultaria na morte de dezenas de pacientes por asfixia.

"O ponto mais crítico de toda essa situação é que, pelo que foi apurado, as autoridades federais poderiam ter agido para evitar essa tragédia, mas permaneceram inertes", aponta o relatório, que afirma que o governo Bolsonaro usou a cidade "como um laboratório humano" para testar a cloroquina, classificando a ação de crime contra a humanidade.

Outro caso de crime contra a humanidade envolve o estudo dos efeitos da substância proxalutamida conduzido no Amazonas pelo médico Flávio Adsuara Cadegiani, durante o qual 200 pessoas morreram. Segundo o senador Calheiros, o uso da proxalutamida também foi estimulado por Bolsonaro.

Um terceiro caso envolve as ações da empresa de planos de saúde Prevent Senior, que usou em larga escala em seus pacientes o "kit covid" promovido por Bolsonaro. Depoentes acusaram a empresa de até mesmo produzir estudos que eram manipulados para se adequar às falas de Bolsonaro sobre a suposta eficácia do fármaco e de ter realizado um "pacto" com o governo para usar os medicamentos ineficazes.

Cemitério em Manaus. Enquanto pacientes sofriam com falta de oxigênio, governo transformou cidade em "laboratório humano" para testar cloroquina

Próximo passos

A votação do relatório pela CPI está prevista para o dia 26 de outubro.

Uma CPI não tem poder para denunciar formalmente e nem punir. Após a votação, o relatório será encaminhado aos órgãos de investigação.

Dependendo da pessoa e seu cargo, o pedido será dirigido a diferentes órgãos. No caso de detentores de foro privilegiado, a Procuradoria-Geral da República (PGR) será encarregada de analisar os pedidos e decidir se há base para a abertura de inquéritos.

Não há muitas ilusões de que o procurador-geral, Augusto Aras, dará um prosseguimento efetivo aos pedidos. Aras já demonstrou seguidas vezes que não tem intenção de incomodar Bolsonaro juridicamente e já deixou de agir em episódios graves, como as ofensivas do presidente contra outros Poderes.

O procurador-geral da República, Augusto Aras. Há poucas ilusões de que ele vá agir contra Bolsonaro

Aras terá 30 dias para dar um encaminhamento ao relatório da CPI. Se o procurador-geral decidir arquivar o texto ou não enviar as denúncias ao Supremo, membros da CPI cogitam acionar os ministros do tribunal com o auxílio de entidades de direito privado, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

No caso dos crimes contra a humanidade, a CPI também pode remeter as denúncias ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia.

Ao final da leitura do relatório, o senador Calheiros afirmou que os trabalhos da comissão silenciaram "um coro demoníaco, vindo de uma catedral da morte sediada pelo governo federal, que gerou uma necrópole aterradora, marcada pelo desprezo à vida, o escárnio com a dor das mais de 600 mil famílias, a insensibilidade e a indiferença".

Deutsche Welle Brasil, em 20.10.21

As 9 acusações contra Bolsonaro no relatório da CPI - e a manobra governista para tentar blindá-lo

Após o relatório da CPI da Covid no Senado acusar o presidente Jair Bolsonaro de nove crimes durante a pandemia, um senador da bancada governista tentou uma manobra para "blindar" o chefe do Executivo e impedir que o documento sugerisse o indiciamento de Bolsonaro.

O relatório final da CPI da covid foi lido no Senado nesta quarta-feira (Ag. Senado)

A manobra, porém, foi rechaçada pelo presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM). "O presidente cometeu muitos crimes e vai pagar por eles", disse Aziz.

A manobra foi tentada pelo senador Marcos Rogério (DEM-RO) na sessão desta quarta-feira (20/10), na sessão da CPI em que o relator, Renan Calheiros (MDB-AL), leu o relatório que acusa o presidente de ter cometido nove crimes.

Em evento no Ceará, após a leitura, Bolsonaro negou ter cometido qualquer irregularidade: "Como seria bom se aquela CPI tivesse fazendo algo de produtivo para o nosso Brasil. Tomaram tempo de nosso ministro da Saúde, de servidores, de pessoas humildes e de empresários. Nada produziram, a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Mas nós sabemos que não temos culpa de absolutamente nada. Sabemos que fizemos a coisa certa desde o primeiro momento".

Marcos Rogério fez um pedido a Aziz para que o relatório não pudesse propor o indiciamento de Bolsonaro. Ele argumentou que, na medida em que a Constituição Federal isentaria presidentes da República de prestar depoimentos à comissões do Congresso Nacional, a CPI não teria competência para propor o indiciamento de Bolsonaro.

"Se este colegiado não tem competência sequer para ouvir o presidente da República e investigá-lo por infração penal, obviamente não pode indiciá-lo. Não pode imputar a ele a prática de infração", afirmou o senador.

Omar Aziz, porém, negou o pedido de Marcos Rogério.

"Nenhum cidadão está acima da lei e isso vale inclusive para o presidente Jair Messias Bolsonaro […] O presidente vai ser investigado, sim, porque tem provas muito grandes da conduta dele", afirmou o presidente da CPI.

CPI investigou atos e omissões do governo Bolsonaro durante a pandemia (Reuters / Adriano Machado)

Crimes contra humanidade e epidemia

O relatório final da CPI da Covid no Senado sugere o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro por nove tipos de crimes diferentes entre eles: crimes contra a humanidade, charlatanismo e epidemia. O documento foi divulgado nesta quarta-feira (20/10).

Além de Bolsonaro, o relatório sugere o indiciamento de outras 65 pessoas e duas empresas. Entre os citados estão ministros, ex-ministros, políticos como os filhos de Bolsonaro e empresários.

Ao todo, Jair Bolsonaro é acusado de nove crimes: epidemia, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documentos, uso irregular de verbas públicas, prevaricação (quando um servidor pública deixa de agir diante de uma irregularidade), crimes contra a humanidade, violação de direito social e crime de responsabilidade.

O documento final traz significativas diferenças em relação à versão entregue aos senadores do chamado G7 (grupo majoritário da CPI) na terça-feira. Nele, Renan Calheiros sugeria o indiciamento de Bolsonaro por mais dois crimes: genocídio e homicídio qualificado.

A CPI teve momentos tensos durante questionamento de testemunhas (Ag. Senado)

A imputação desses dois crimes ao presidente causou um racha no grupo e fez com que o grupo se reunisse na noite de terça-feira com Renan. Parlamentares como Alessandro Vieira (Cidadania-SE) afirmavam que haveria problemas técnicos em classificar os atos de Bolsonaro como genocídio contra povos indígenas pois não haveria indícios de que ele tomou ações direcionadas ao extermínio de povos originários.

Ele também questionava a possibilidade de enquadrar Bolsonaro no crime de homicídio qualificado uma vez que o crime requer a identificação específica das vítimas.

Ao final da reunião, Renan cedeu à pressão do grupo e retirou do seu relatório as imputações de genocídio e homicídio qualificado contra o presidente.

Na manhã desta quarta-feira, Renan Calheiros explicou que fez a troca atendendo ao pedido dos parlamentares.

"O genocídio não foi retirado, foi trocado por mais um indiciamento de crimes contra a humanidade [...] Nós nos rendemos aos argumentos técnicos do senador Alessandro Vieira", afirmou.

Ele será indiciado por crimes contra a humanidade na questão da Prevent Senior, de Manaus e dos povos indígenas. O que foi retirado foi o crime de homicídio.

Ainda segundo o relator, ele pede o indiciamento de Bolsonaro por crimes contra a humanidade em três episódios: os estudos e tratamentos à base de medicamentos sem eficiência comprovada pela operadora de saúde Prevent Senior, na condução da crise de saúde em Manaus e nas ações voltadas aos povos indígenas.

Relatório da CPI pede indiciamento do presidente Jair Bolsonaro (Reuters)

Entre os demais nomes, estão os três filhos mais velhos de Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). Eles são acusados de incitação ao crime por terem incentivado o descumprimento de medidas sanitárias.

O relatório também sugere o indiciamento de ministros como Walter Souza Braga Netto (Defesa), Marcelo Queiroga (Saúde) e Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral da Presidência da República). Ex-ministros como Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores) também estão no documento.

O relatório foi elaborado por Renan Calheiros ao longo dos seis meses de trabalho da comissão. Depois de lido, o documento precisa ser votado pelos integrantes da CPI. Se aprovado, o relatório, depois, será encaminhado à Procuradoria Geral da República (PGR) e outras instâncias do Ministério Público, que ficará responsável por instaurar ou não processos baseados no relatório.

Em entrevista à BBC News Brasil, Renan confirmou que irá apresentar uma denúncia contra Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda.

Leandro Prazeres, de Brasília para a BBC News Brasil, em 20.10.21

A estratégica rede de portos que a China controla no mundo e avança até no Brasil

O porto de Pireus, na Grécia, considerado a grande porta de entrada dos produtos asiáticos na Europa, é um dos exemplos da expansão das empresas chinesas na rede portuária global.

Depois da Grande Crise de 2008-2009, a Grécia teve de implementar reformas e privatizações para pagar suas dívidas depois de receber um resgate financeiro, promovido pela União Europeia. (Getty Images)

Foi assim que uma gigante estatal chinesa viu uma oportunidade de entrar na indústria portuária de um país em crise.

A empresa Cosco adquiriu 51% de Pireus, num acordo que a autorizava a aumentar sua participação para 67% cinco anos depois. E foi exatamente isso que aconteceu, no início de outubro.

Com essa operação, Pequim agora administra um dos portos mais importantes do mundo, localizado na junção de Europa, Ásia e África.

A mesma empresa está em negociações para adquirir uma participação no porto de Hamburgo (Alemanha). Se for concretizada, será o oitavo grande investimento portuário da Cosco na Europa.

Outro gigante chinês do setor, o Shanghai International Port Group, acaba de assumir o controle do porto israelense de Haifa.

Esses são alguns dos capítulos mais recentes de uma longa história de expansão portuária, que nos últimos anos tem ocorrido no contexto da chamada Rota Marítima da Seda, iniciativa que faz parte de um plano mais amplo de investimento de capital chinês em obras de infraestrutura ao redor do mundo.

Para conseguir esse objetivo, controlar as concessões portuárias em pontos geoestratégicos é fundamental, apontam analistas consultados pela BBC Mundo.

Diferentes estimativas mostram que empresas do gigante asiático controlam atualmente cerca de cem portos em mais de 60 países.

"Os portos de contêineres com investimento chinês tiveram um aumento em sua conexão de transporte marítimo acima da média", diz Jan Hoffmann, chefe da Unidade de Logística Comercial da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad, na sigla em inglês).

Isso representa uma vantagem sobre seus concorrentes que lhes permite avançar passo a passo na indústria portuária

Esse aumento de conexão, explicou Hoffmann à BBC Mundo, ocorreu porque tratam-se geralmente de investimentos de grandes proporções ou porque as empresas chinesas levam seus próprios serviços a esse terminais.

Exibição de força

A partir de um ponto de vista histórico, Sam Beatson, professor do Departamento de Finanças, Risco e Bancos e em programas de mestrado em Administração de Empresas da Escola de Negócios da Universidade de Nottingham (NUBS), no Reino Unido, diz que as elites políticas e empresariais chinesas compreenderam que no passado perderam uma oportunidade de explorar e se desenvolver em outras partes do mundo.

Até que reagiram, alguns anos atrás.

"Por um lado, a China quer se expandir, influenciar e compensar esse tempo perdido. Por outro, claro, existe um desejo de exibir força, mas na minha opinião não existe nenhum desejo de fazer isso de uma maneira ameaçadora", afirmou à BBC Mundo.

O presidente chinês, Xi Jinping, e o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, no porto de Pireu (Getty Images)

"O elemento chave que impulsiona a estratégia portuária das empresas chinesas é um maior controle e eficiência em seus negócios marítimos globais e a busca de oportunidades para participar de projetos de desenvolvimento perto da China."

Outros estudiosos, como James R. Holmes, professor de Estratégia Marítima na Escola de Guerra Naval dos Estados Unidos, têm uma perspectiva mais cuidadosa sobre o avanço chinês na rede portuária.

"O objetivo é criar um ciclo autossustentável entre o comércio, o poder militar e a influência diplomática", disse ele.

O acesso a portos no exterior permite que a China desenvolva mais suas redes comerciais e aumente sua riqueza. Com isso, explica Holmes, o país reinveste parte desses fundos em suas forças navais, terrestres, aéreas e de mísseis de apoio.

Ao ter um maior poder econômico, Pequim consegue "uma alavanca diplomática para influenciar nas nações anfitriãs", onde funcionam os portos com capitais chineses, diz o especialista.

A base naval chinesa em Djibouti, na entrada do Mar Vermelho e do Canal de Suez, causou polêmica (Getty Images)

Esse é, por exemplo, o caso de Djibouti, país do leste africano localizado estrategicamente na entrada do Mar Vermelho, que leva ao Canal do Suez. Nessa pequena nação, que recebeu grandes investimentos de Pequim, um porto marítimo foi transformado na primeira base militar da China no exterior.

A militarização desse porto havia sido vista por alguns analistas como uma advertência diante dos interesses portuárias que a China possa ter em outros países, como Tanzânia, Emirados Árabes Unidos, Paquistão ou Mianmar.

Pedras no caminho

Décadas de crescimento económico e um forte impulso governamental permitiram à China posicionar-se no centro do comércio marítimo mundial, segundo uma análise do China Power Project, pertencente ao Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês), com sede em Washington D.C. (EUA), intitulado Como a China influi na conectividade marítima global?.

Sob o governo de Xi Jinping, as empresas estatais chinesas têm participado de projetos de investimento e construção de dezenas de portos em todo o mundo. Entretanto, muitos projetos apoiados pela China não têm decolado como se esperava, diz o estudo.

CK Hutchison, Cosco e China Merchants são algumas das maiores empresas chinesas com portos no exterior (Getty Images)

É o que acontece no porto de Gwadar, um componente chave do Corredor Econômico China-Paquistão, que tem sido subutilizado.

"O governo paquistanês teve de tomar medidas desesperadas no início de 2021 para reativar o porto", afirma a análise do CSIS.

O documento também afirma que alguns projetos importantes ainda não se materializaram por completo, como o porto de Bagamoyo, na Tanzânia.

Outro aspecto das operações chinesas na indústria portuária, acrescenta a análise, está relacionado com os termos das negociações feitas com países endividados com Pequim.

O Sri Lanka estava tão endividado com a China que em 2017 arrendou o porto de Hambantota por 99 anos em troca de uma redução da dívida (Getty Images)

Nesse contexto está o porto de Hambantota, no Sri Lanka. O país asiático estava tão endividado com a China que em 2017 arrendou o porto aos chineses por 99 anos, em troca de uma redução da dívida.

A medida gerou preocupações sobre a influência econômica chinesa, diz o CSIS, e os potenciais riscos para países menores de firmar acordos custosos de desenvolvimento de infraestrutura com o gigante asiático.

América Latina e Brasil

Eleanor Hadland, analista sênior de terminais portuários da consultora internacional Drewry diz que, apesar de as operações chinesas na América Latina terem aumentado, elas ainda estão muito abaixo do que tem sido um fenômeno em outras partes do mundo.

"Os terminais de contêineres estiveram na primeira onda de privatizações de portos nos finais da década de 1990 e no início da de 2000", disse a especialista à BBC Mundo.

Nesses anos, entrou com força na região a Hutchilson Ports (subsidiária da CK Hutchison Ports), empresa chinesa que atualmente tem a maior presença na América Latina. É a gigante chinesa nos portos latino-americanos.

Anos depois entraram no mercado a Cosco e a China Merchants, mas o ritmo de expansão das empresas chinesas foi muito menor que no passado se deu em outros lugares.

A América Latina tornou-se um mercado secundário para os chineses, já que a Rota Marítima da Seda está mais concentrada em conectar a Europa e a Ásia e em projetos de desenvolvimento portuários na África.

Além disso, diz a analista, "a oportunidade de os chineses ingressarem no mercado latino-americano vê-se limitada pelas taxas de crescimento mais baixas" na região, algo que vem ocorrendo desde antes da pandemia de Covid-19.

Porto de Balboa, no Panamá, operado por capital chinês (Getty Images)

O Brasil, entretanto, pode acabar sendo um caso diferente na região. "Há uma nova série de privatizações de portos programadas no Brasil", das quais eventualmente os chineses podem participar.

Entretanto, outros interessados podem acabar assumindo esses projetos. "Nós imaginamos que as considerações geopolíticas serão fundamentais para o governo brasileiro", afirma Hadland.

"Com mais concorrência, ganhamos todos"

"O melhor que pode acontecer à indústria e aos usuários é que haja operadores portuários de porte mundial competindo nos portos da região", diz José Antonio Pejovés, professor de Direito Marítimo na Faculdade de Direito da Universidade de Lima e fundador do Estudio Pejovés Marítimo, empresa de assessoria jurídica.

"Se existe mais concorrência, ganhamos todos." A partir dessa perspectiva, o especialista afirmou, em conversa com a BBC Mundo, que a iniciativa da Rota da Seda "é um projeto fabuloso".

Pejovés explica que os capitais chineses operam sob um esquema de concessões por um período de tempo determinado. São concessões de uso público, ou seja, eles estão obrigados a prestar serviços a todos os navios de carga que queiram utilizar sua infraestrutura.

"Não são terminais portuários dedicados somente aos interesses chineses."

Estratégia "comercial e política"

Evan Ellis, professor pesquisador de estudos latino-americanos do Instituto de Estudos Estratégicos da Escola de Guerra do Exército dos Estados Unidos, diz que para a China é fundamental ter um papel importante na conectividade global.

Sua estratégia mais ampla, disse Ellis à BBC Mundo, é tratar de assegurar seu acesso a mercados estratégicos para conseguir matérias-primas e vender seus produtos.

"As empresas chinesas querem os portos com a ideia de dominar toda a cadeia de suprimentos" e assim não depender logisticamente de outras empresas.

Na América Latina, as empresas chinesas controlam mais de 10 megaportos em 7 países (Getty Images)

Mas, mesmo com objetivos principalmente econômicos, eles não deixam de ser estratégicos, diz o pesquisador.

"A influência econômica lhe dá poder para ter mais influência política e depois você usa essa influência política para conseguir mais vantagens econômicas. É um ciclo."

A partir dessa perspectiva, acrescenta Ellis, "o controle dos portos é parte de uma guerra econômica e estratégica em que a China usa seu poder para conseguir mais mercados e impor pressão sobre a concorrência.

Grande projetos na região

Um dos grandes portos cuja construção avança a passo firme é e Chancay, no Peru.

Operado pela chinesa Cosco, espera-se que o investimento total chegue aos US$ 3 bilhões quando as obras forem concluídas, em 2024.

Entre os grandes portos com investimentos chineses na América Latina e no Caribe estão ainda os de Enseada, Manzanillo, Lázaro Cárdennas e Veracruz, no México.

Lázaro Cárdenas é um dos quatro portos administrados por empresas chinesas no México (Getty Images)

Nas Bahamas, o de Freeport; na Jamaica, o de Kingston; no Panamá, Balboa e Colón; na Argentina, o de Buenos Aires. E, no Brasil, o porto de Paranaguá, no Paraná - em que a China Merchants Port Holding Company (CMPort) adquiriu 90% dos Terminal de Contêineres de Paranaguá, em 2018. Paranaguá é o principal porto de exportação da soja brasileira, cuja maioria segue rumo à China.

Além deles, existe capital chinês em portos menores, alguns privados, ou em diferentes tipos de infraestrutura portuária.

Nem todas as iniciativas chinesas na região, porém, prosperaram. É o caso do megaprojeto impulsionado pela empresa Asia Pacific Xuanhao, que busca a criação de uma zona de livre comércio no sudeste de El Salvador, com acesso a Honduras e Nicarágua.

O desenvolvimento inclui a reconstrução do porto de La Unión, a criação de um parque industrial, um aeroporto e zonas de desenvolvimento turístico, entre outros.

"É basicamente converter El Salvador em uma zona para a expansão comercial da China na América Central", afirma Ellis.

Xi Jinping promoveu a construção de infraestrutura chinesa no exterior, no âmbito de sua iniciativa da nova Rota da Seda (Getty Images)

Embora a América Latina não esteja no centro da estratégia chinesa de investir em portos a nível global, de toda maneira trata-se de um mercado atraente, dizem os especialistas.

Mesmo estando a região mais na zona de influência dos Estados Unidos, por sua proximidade geográfica, não é um dado de pouca importância que o principal parceiro comercial da América do Sul seja a China.

Por enquanto, existem vários projetos portuários com capital chinês que estão sendo planejados pela região, mas as negociações costumam levar anos, considerando os gigantescos montantes envolvidos e as considerações políticas que cada governo faz quando deve firmar um acordo.

Ainda que se tratem de acordos comerciais, a questão estratégica dificilmente fica fora da balança.

Cecilia Barría para a BBC News Mundo, em 20.10.21

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Bolsonaro fica entre o crime contra a humanidade e o charlatanismo no relatório da CPI da Pandemia

Vazamento do parecer do relator Renan Calheiros antecipa discussão que os senadores travarão até o dia 26 para definir o grau de gravidade da conduta do presidente durante a crise de saúde da covid-19

Painel eletrônico exibe vídeo do presidente Jair Bolsonaro diante do relator da CPI da Pandemia, Renan Calheiros, durante sessão em 8 de junho. (Edilson Rodrigues, Ag. Senado).

O presidente Jair Bolsonaro cometeu crime contra a humanidade durante a pandemia da covid-19. Essa é a leitura do relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, que vai chegando ao fim após uma maratona de quase 70 reuniões percorridas para descobrir os responsáveis pelas 600.000 mortes provocadas pelo coronavírus no Brasil. O relatório produzido pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) e vazado antes de sua leitura oficial, que será feita nesta quarta-feira, desvela uma rede de falsas informações capitaneada pelo presidente com a conivência da classe médica, que levou o país ao sétimo lugar do mundo na relação de morte por habitantes —o Brasil é responsável por 12,4% dos óbitos do planeta na pandemia, apesar de ter apenas 2,7% da população mundial.

O relator pede 72 indiciamentos —de 70 pessoas e duas empresas— por 24 crimes, e seu principal alvo é Bolsonaro. O presidente teria cometido 11 crimes, que vão desde charlatanismo —”inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”— até homicídio qualificado por omissão no combate ao coronavírus e genocídio de indígenas, pela “intenção de submeter esse grupo específico da população ao risco de contágio”. Essas duas acusações mais graves não são consenso entre os parlamentares que participaram da investigação, e o caminho para que os crimes venham a ser de fato investigados pela justiça brasileira é incerto: o procurador-geral, Augusto Aras, responsável por acusar formalmente o presidente da República, já demonstrou mais de uma vez que não pretende incomodar Bolsonaro.

Para tentar diminuir a resistência de colegas em relação à acusação de genocídio, Calheiros ressaltou a prudência ao tratar do tema. “Nem todo massacre, morticínio ou assassinato em massa pode ser descrito como genocídio. Devemos preservar o discernimento para não desqualificar a gravidade dos fatos e chamar cada um à devida responsabilidade”, escreveu. No documento, o relator diz que Bolsonaro atuou para “favorecer a contaminação e consequentemente a morte dos brasileiros que ele tinha a obrigação de proteger”. “As manifestações do Presidente da República fizeram parte de uma estratégia que, embora equivocada, foi cuidadosamente organizada de forma a alcançar o objetivo de acelerar a disseminação do vírus, para atingir a imunidade de rebanho ao menor custo possível”, descreve o relator.

Os senadores se reúnem nesta quarta-feira para ouvir a leitura do relatório e terão mais seis dias até decidir se endossam tudo o que Calheiros escreveu. Além dos pedidos de investigação do presidente por homicídio e genocídio, os parlamentares também se questionam sobre o indiciamento dos três filhos políticos de Bolsonaro —um senador, um deputado e um vereador— por terem participado da rede de desinformação liderada pelo presidente durante a pandemia. “Temos de fazer um relatório devastador, mas não podemos nos perder nas questões jurídicas pra não darmos brechas para questionamentos”, explica o senador Humberto Costa (PT-PE), membro da CPI e opositor do Governo.

Outro ponto de discórdia é o indiciamento do ministro da Defesa, Walter Braga Netto. General do Exército, ele foi o chefe da Casa Civil e responsável pela coordenação das primeiras ações no enfrentamento da doença. Calheiros entende que o general seja indiciado pelo crime de epidemia, mas parte dos parlamentares teme que o Exército veja a acusação como uma provocação. O não indiciamento do governador do Amazonas, o bolsonarista Wilson Lima (PSC), também resultou em queixas entre os parlamentares. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), reclamou que Lima teria responsabilidade sobre as mortes de dezenas de amazonenses durante a crise da falta de cilindros de oxigênio em Manaus. Dos membros da CPI, Aziz é o que mais se irritou com o vazamento do relatório.

1178 páginas

Afora os pontos de divergência, não parece restar dúvidas quanto ao papel de liderança do presidente na costura de uma cortina de fake news para esconder as falhas gritantes de seu Governo no enfrentamento da pandemia. Falhas como a incapacidade do Executivo federal de se articular com Estados e municípios no “planejamento das ações para aquisição de insumos estratégicos e para a elaboração dos planos tático-operacionais”. O relatório de 1178 páginas disseca em 16 capítulos como Bolsonaro se cercou informalmente de um gabinete paralelo composto por médicos, políticos e empresários para defender tratamentos sem comprovação científica quase que como uma política de Governo, “ao arrepio das orientações técnicas do Ministério da Saúde, sem ter investidura formal nos cargos públicos responsáveis por essa função”.

A política negacionista de Bolsonaro teve o suporte de um órgão considerado técnico, o Conselho Federal de Medicina (CFM), que não se opôs ao uso da cloroquina mesmo depois de ficar mais claro que ela não serve para tratar a covid-19. O presidente do órgão, Mauro Luiz de Brito Ribeiro, teve seu indiciamento sugerido pelo delito de epidemia culposa com resultado morte. Foi escorado no gabinete informal composto por órgãos como esse que Bolsonaro advogou pela imunidade de rebanho —a ideia de que o melhor caminho para encerrar a pandemia seria permitir que a maior parte de brasileiros possível se contaminasse— e que, até hoje, semeia dúvidas sobre as vacinas que seu próprio Governo comprou, e com as quais mais de 100 milhões de brasileiros já foram imunizados com o ciclo completo.

Ao longo de todo o relatório, Renan Calheiros ressalta que o Governo demorou para contratar vacinas contra o coronavírus —um assunto que tomou diversas sessões televisionadas da investigação, primeiro por causa da demora de meses do Governo para se entender com a Pfizer e, depois, pelas suspeitas de corrupção na negociação para a compra de vacinas como Covaxin e Sputnik V, que não chegaram a ser adquiridas pelo Governo brasileiro. “O atraso na aquisição de vacinas impôs escassez à população e redução do ritmo de vacinação, o que aumentou a mortalidade pelo vírus”, destaca o texto, que guarda uma sessão para a crise de falta de oxigênio no Amazonas, o ápice da tragédia pandêmica no Brasil.

Entre senadores que lideraram a investigação, há uma preocupação de que o relatório seja rejeitado no próximo dia 26, como consequência do desentendimento quanto aos crimes mais graves atribuídos ao presidente e a alguns de seus ministros —entre os pedidos de indiciamento estão Marcelo Queiroga (Saúde), por epidemia e prevaricação; Onyx Lorenzoni (Trabalho), por incitação ao crime e genocídio de indígenas, e Wagner Rosário (Controladoria), por prevaricação. Mesmo divergências políticas regionais entre os membros da comissão ameaçam retirar votos que garantiriam a aprovação do texto final. O histórico de Calheiros, um político desgastado há décadas por inúmeras acusações de corrupção, também não advoga a favor de seu parecer sobre quem e por que deveria ser punido pelo desempenho do Governo no combate à pandemia.

Os parlamentares também discutem se considerarão ou não as informações referentes à disseminação de fake news. Calheiros usou em seu relatório trechos da investigação sobre desinformação conduzida por militantes bolsonaristas que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Os demais senadores não tiveram acesso a esse documento e se queixam da falta de embasamento para acusar os bolsonaristas, entre eles o primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), de incitação ao crime, ao espalhar informações sobre a efetividade do kit covid ou dúvidas sobre as vacinas.

Ainda que o relatório seja aprovado como proposto, caberá a outros órgãos uma punição formal a Bolsonaro e a seus aliados. O texto ainda será analisado pelo Ministério Público Federal, que tem à sua frente um procurador apontado como apoiador de Bolsonaro. No comando da Câmara, por onde se inicia a tramitação de qualquer processo de destituição, está outro bolsonarista, o deputado Arthur Lira (PP-AL). De qualquer forma, o fim da CPI da Pandemia marca mais um capítulo de intenso desgaste para um presidente que vive seu pior nível de aprovação popular e que se encaminha para o ano eleitoral extremamente enfraquecido.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 19 OCT 2021.

Relatório final da CPI acusa Bolsonaro de homicídio; leia trechos inéditos

Documento obtido com exclusividade pelo 'Estadão' conclui que o governo federal agiu de forma dolosa, ou seja, intencional, na condução da pandemia, tornando-se responsável pelas milhares de vidas perdidas.

       Integrantes da CPI da Covid. Foto: Pedro França/Agência Senado

O relatório final da CPI da Covid, ao qual o Estadão teve acesso, afirma que o governo do presidente Jair Bolsonaro agiu de forma dolosa, ou seja, intencional, na condução da pandemia, tornando-se responsável pelas milhares de vidas perdidas ao longo dos últimos meses. Composto por 1.052 páginas, o documento analisa os possíveis crimes cometidos pelo presidente e por aliados, além de sugerir a continuidade das investigações.

O parecer seria apresentado nesta terça-feira, 19, mas a leitura foi adiada na tarde de ontem. Um dos pontos que levaram ao adiamento, de acordo com fontes ouvidas pela reportagem, é a decisão do relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), de indiciar Bolsonaro por homicídio qualificado.

Também há divergências entre integrantes do grupo majoritário sobre a acusação de "genocídio indígena" na pandemia, crime que pode levar o governo a ser julgado em tribunais internacionais. O relatório final acusa, além do presidente, o secretário especial de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-BA), disse ao Estadão que indígenas foram vacinados e não vê motivo para indiciar o secretário, que nem sequer foi ouvido pela comissão.

Em função das divergências, a leitura do relatório está prevista para ocorrer na quarta-feira, 20, e a votação na terça-feira, 26.

Leia abaixo os principais trechos:

Supostos crimes de Bolsonaro

O relatório deve listar uma série de crimes supostamente cometidos pelo presidente Bolsonaro na pandemia, como homicídio qualificado, infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, genocídio de indígenas e prevaricação.  

Imputação de dolo

Também segundo o documento obtido pelo Estadão, o texto afirma que o governo federal criou uma situação de risco e deixou de tomar medidas para minimizar o resultado da pandemia, caracterizando dolo. O texto diz que pretende encaminhar o relatório ao Conselho Federal de Medicina (CFM) para que se analise a responsabilidade do presidente e do conselheiro Mauro Luiz de Brito Ribeiro na publicação do parecer que avaliza o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com covid.

Crime de epidemia

Em outro trecho, o documento avalia que Bolsonaro, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o ex-secretário executivo do Ministério da Saúde Élcio Franco cometeram o crime de epidemia. O relatório ainda indica o “nítido nexo causal” entre o anti-indigenismo do presidente e os danos sofridos pelos povos originários, indicando o crime de genocídio. Este ponto, espeficicamente, pode levar o governo a ser julgado em tribunais internacionais.


Gabinete paralelo

Há também menções às descobertas de irregularidades dentro do Ministério da Saúde e a atuação de um grupo de conselheiros que ficou conhecido como “gabinete paralelo”

Crime de responsabilidade

O documento final elaborado pelo relator sugere que o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade ao longo da pandemia e que, por isso, deve ser punido de forma político-administrativa.

Irregularidades na aquisição de vacinas

Ao longo da CPI foram colhidos vários depoimentos relacionados à aquisição de vacinas que comprovam, segundo o relatório, que houve irregularidades. crimes e corrupção.


Tese da imunidade de rebanho

O documento também menciona e trata como irregular a suposta tentativa do governo de impor a chamada tese da imunidade de rebanho à população em vez de investir na oferta de vacinas contra a covid-19. Pela imunidade de rebanho, as pessoas ficariam protegidas depois de contraírem a doença, já que passariam a produzir anticorpos contra ela.

Caso Prevent Senior

Na reta final da CPI, os senadores ainda ouviram denúncias sobre a conduta da operadora de saúde Prevent Senior, que teria agido em comum acordo com o governo federal para ocultar mortes por covid e incentivar o uso de medicamentos comprovadamente sem eficácia, o chamado kit-covid. O caso é relatado no documento final. 

André Shalders, Julia Affonso e Vinicius Valfré, O Estado de S.Paulo, em 18 de outubro de 2021. /COLABOROU BRENDA ZACHARIAS