segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Divergências adiam relatório final da CPI da Pandemia para que ela não acabe ‘em pizza’

Senadores opositores não concordaram com alguns termos de indiciamentos. Presidente e outras 59 pessoas eram apontadas como responsáveis por delitos no combate ao coronavírus

O presidente Bolsonaro no último dia 12, em Aparecida, SP. (Carla Carniel / Reuters)

A Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia adiará em pelo menos uma semana a leitura e votação de seu relatório final. A decisão foi comunicada neste domingo pelo presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), ao grupo de sete senadores que fazem oposição ao Governo Jair Bolsonaro e deram o rumo das principais investigações do colegiado. Da maneira como fora redigido o relatório, corria-se o risco de ele não ser aprovado, já que havia uma falta de consenso entre os sete parlamentares que até agora votavam de maneira uniforme. Ou seja, ela poderia acabar ‘em pizza’, termo usado para definir apurações políticas que não chegam a lugar algum.

A informação sobre o adiamento foi confirmada ao EL PAÍS pela assessoria de imprensa do relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL), e pelo senador Humberto Costa (PT-PE), um dos membros dela. Em princípio, o relatório seria lido na terça-feira, dia 19, e votado no dia seguinte. Parte dos senadores desse grupo, apelidado de G7, demonstrou descontentamento com trechos do relatório que estavam sendo divulgados pela imprensa nos últimos dois dias.

Havia a expectativa de que o relator discutisse detalhes do documento antes de repassar os dados à imprensa. Quando parlamentares notaram o vazamento iniciou-se uma discussão em um grupo de WhatsApp sobre alguns dos termos que estavam sendo utilizados. Houve quem demonstrasse descontentamento com indiciamentos de 60 pessoas – entre eles o do presidente Bolsonaro – e com a ausência de outros, segundo contou ao EL PAÍS o senador Humberto Costa, titular da comissão e um dos representantes do G7. O petista disse que não poderia detalhar quais foram as queixas de seus colegas, mas ressaltou que algumas das tipificações criminais dos indiciados descontentaram parte do grupo. “O que posso dizer é que tivermos algumas divergências maiores e outras menores. Agora, teremos de discutir como tudo será consertado”, disse.

Bolsonaro, por exemplo, estava sendo indiciado por 11 crimes, entre eles homicídio qualificado, epidemia, charlatanismo e incitação ao crime. O presidente postergou a compra de vacinas, fez campanha contra os imunizantes e promoveu medicamentos comprovadamente ineficazes no tratamento do coronavírus. Algo de possível rusga entre os parlamentares é o indiciamento de um de seus pares, o primogênito do presidente e membro suplente da CPI, Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), por disseminação de fake News. Os outros dois filhos políticos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro e o deputado Eduardo Bolsonaro também seriam indiciados pelo mesmo delito.

Conforme publicado neste domingo pelo jornal O Estado de S. Paulo, o relatório previa que o Governo Bolsonaro teria agido com dolo na pandemia de covid-19. “O governo federal criou uma situação de risco não permitido, reprovável por qualquer cálculo de custo-benefício, expôs vidas a perigo concreto e não tomou medidas eficazes para minimizar o resultado, podendo fazê-lo. Aos olhos do direito, legitima-se a imputação do dolo (intenção de causar dano, por ação ou omissão)”, diz trecho do documento publicado pelo periódico.

Tribunal Penal Internacional

Para ser aprovado, são necessários os votos da maioria dos 11 senadores titulares da CPI. Quatro deles são declaradamente bolsonaristas: Luiz Carlos Heinze (PP-RS), Marcos Rogério (DEM-RO), Jorginho Mello (PL-SC) e Eduardo Girão (Podemos-CE). O prazo limite para o funcionamento da CPI é 5 de novembro.

Dessa forma, a oposição seguiria com a maioria dos votos (7 entre 11). É com essa maioria que os opositores querem seguir contando para aprovar um relatório duro contra o presidente e seus aliados. Tipos penais não faltam. Alguns deles imprescritíveis e que poderiam acabar no Tribunal Penal Internacional, como o caso da acusação de genocídio. É uma espécie de cerco político-eleitoral e jurídico-criminal contra o presidente. Há desde grupos que disseminaram desinformação até ex-gestores e autoridades federais e estaduais que agiram contra as medidas de prevenção do coronavírus ou que atrapalharam a aquisição de vacinas.

No relatório preliminar de Calheiros, Bolsonaro estava sendo caracterizado como autor de genocídio de indígenas. “Fica nítido o nexo causal entre o anti-indigenismo do mandatário maior e os danos sofridos pelos povos originários, ainda que, como outros líderes acusados de genocídio, não tenha ele assassinado diretamente pessoa alguma”, diz trecho do documento, revelado pelo Estadão.

Em meados de setembro, um grupo de juristas elaborou um parecer a pedido da CPI que definiu uma lista seis possíveis crimes comuns cometidos pelo presidente: além do charlatanismo e do crime da epidemia, crime contra a humanidade, infração de medida sanitária preventiva, incitação ao crime e prevaricação. Todos esses seriam investigados pelo Ministério Público Federal. Há ainda um possível crime de responsabilidade pela violação das garantias individuais, como o direito à vida e à saúde. Neste caso, caberia ao Congresso Nacional avaliar e a punição seria o impeachment e a cassação dos direitos políticos do presidente.

“O presidente da República deixa de cumprir com o dever que lhe incumbe, de assumir a coordenação do combate à pandemia, dizendo lhe ter sido proibida qualquer ação pelo Supremo Tribunal Federal, que, como ressaltado antes, o desmente, pois há competência comum, e devem União, Estados e Municípios atuar conjuntamente segundo a estrutura do Sistema Único de Saúde”, diz o parecer coordenado pelo jurista e ex-ministro Miguel Reale Jr, um dos signatários do pedido de impeachment que resultou na destituição de Dilma Rousseff (PT) da Presidência da República.

Todos os dados que constam no relatório serão encaminhados ao Ministério Público Federal e para o equivalente de alguns Estados para que eles ajam. Uma primeira parte já chegou às mãos da força-tarefa do MP de São Paulo que apura os crimes da Prevent Senior.

O líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros, e a rede de fake news (Evaristo Sá / AFP)

Um dos capítulos do relatório abordará exatamente os grupos de bolsonaristas que espalhavam fake news e interferiram diretamente na disseminação de dados falsos sobre a pandemia. Nesse trecho do documento, serão citados os portais Terça Livre, Brasil Sem Medo e Crítica Nacional. Os responsáveis por esses sites e aliados deles também serão investigados, entre eles o blogueiro Allan dos Santos, o ex-secretário de Comunicação do Governo Fábio Wajngarten e o empresário Otávio Fakhoury.

Um outro trecho do relatório será dedicado ao líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). Várias frentes da investigação o vinculam a uma série de irregularidades. Um cruzamento de quebras de sigilos bancários, fiscais e telefônicos analisadas pelos 25 assessores parlamentares e policiais que trabalham no relatório dão conta de que todos os fios se conectam ao deputado. “Todos os caminhos levam ao Barros”, disse uma fonte da CPI.

Barros tem vínculo, por exemplo, com diretores que negociaram propina para a compra de vacinas, com a assinatura de um contrato fraudulento para a compra de outro imunizante, é apontado como um dos fatores de pressão contra os denunciantes do esquema e é investigado em outro inquérito por pagar 20 milhões de reais para a empresa Global por medicamentos que nuca foram entregues, quando era ministro da Saúde de Michel Temer. Além disso, o próprio presidente Bolsonaro teria dito em uma conversa com um dos denunciantes das irregularidades, o deputado Luís Miranda (DEM-DF), de que Barros teria “esquemas” dentro do Ministério da Saúde.

Ainda que haja, até o momento, uma barreira de contenção a favor de Bolsonaro na Câmara e na Procuradoria Geral da República, a CPI deve causar ainda mais dano à já fragilizada imagem do presidente —sua popularidade chegou ao pior índice do mandato, 53% de ruim e péssimo em setembro, conforme o Datafolha. Os opositores contam com o tempo. Apesar da inação de parte dos atores que deveriam agir contra o presidente, alguns dos crimes que serão relatados são imprescritíveis e não dependem, necessariamente, de um juízo político. Ou seja, a possibilidade de punição dos responsáveis, ainda que tardia, permanece viva.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 17.10.21

Sob eco da Lava Jato, Câmara acelera projeto para minar poder do Ministério Público

Procuradores e promotores reclamam que manobra é mais uma no sentido de dificultar combate à corrupção. Jurista vê ato ilegítimo e professora diz que há exagero nas queixas

O presidente da Câmara, Arthur Lira, durante sessão no dia 14. (Ag. Câmara)

A operação Lava Jato fez tremer a classe política e o mundo empresarial que negocia com o Governo. Levou um presidente de empresa, Marcelo Odebrecht, e um ex-presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, para a prisão, e mostrou-se firme no propósito de ‘limpar’ a política. A intenção era boa, conquistou o Brasil, mas o tempo mostrou um direcionamento político do Ministério Público e do então juiz Sergio Moro, que hoje cobra seu preço. 

A Câmara dos Deputados acelerou uma cruzada para aumentar o controle político de quem fiscaliza as autoridades públicas. Está prevista para esta terça-feira a votação da proposta de emenda constitucional número 5 de 2021, que trata da mudança na composição do Conselho Nacional do Ministério Público. Patrocinado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o texto é relatado pelo deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) e já tem apoio de parlamentares de várias legendas, do PT ao PSL, do PSB ao Cidadania. 

O tema foi debatido no plenário da Casa nas últimas duas semanas, atropelando discussões prévias em uma comissão especial e audiências públicas. O projeto tem enfrentado uma dura oposição de membros do MP, que entendem que sua aprovação deve ferir de morte a instituição.

Esta é a segunda tentativa de minar os poderes de procuradores e promotores em menos de um mês. A primeira ocorreu ainda entre setembro e outubro, quando as duas casas do Congresso Nacional aprovaram mudanças na lei da improbidade administrativa que afrouxam as regras para punir os gestores que cometerem esse crime. Nesse pacote está inclusa a permissão da prática de nepotismo.

As principais mudanças que preocuparam os especialistas foram o aumento dos conselheiros do CNMP que seriam indicados pelo Congresso Nacional — de dois para cinco entre 17 membros — e a obrigação de que o Legislativo indique o corregedor da instituição, que também exerceria o papel de vice-presidente. Ao corregedor cabe analisar todas as denúncias administrativas contra membros do Ministério Público que pudessem gerar qualquer punição. Um exemplo: a corregedoria do CNMP analisaria a conduta de qualquer procurador da Lava Jato que tivesse usado do cargo para punir irregularmente um político.

Representantes de cinco entidades de procuradores e promotores coordenados pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) têm feito pressão para que a Câmara rejeite a PEC 5/2021. Mas sem sucesso, por enquanto. Em notas técnicas e comunicados à imprensa, os procuradores dizem que as propostas “interfere em garantias fundamentais para a independência da instituição”. Eles temem que, se o corregedor for indicado por políticos que podem ser alvos de investigações possa haver uma atuação direcionada contra os fiscais da lei.

Na mesma linha, segue a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Para ela, há a necessidade de melhorar o funcionamento do CNP, “o que inclui a necessária escuta do Poder Legislativo e grupos sociais”, com a revisão de “mecanismos de transparência e accountability”. Contudo, o texto em análise não aponta condições para a correção de erros cometidos pelos membros do Ministério Público, avalia a associação. “Ao contrário, politiza o conselho e subordina a agenda correcional a interesses ocasionais contra atuações do MP em temas de relevância nacional”.

Por essa razão, em Brasília, a proposta tem sido chamada de PEC da Vingança. Ainda assim, há a sensação de que mudanças precisariam ser feitas para que o MP fosse mais rígido com seus membros. “Hoje, nenhum membro do MP responde contra improbidade. É importante um conselho forte, com presença, para que tenhamos transparência”, ressaltou o padrinho da proposta, Arthur Lira em entrevista à rádio CNN.

O ex-chefe da Lava Jato Deltan Dallagnol, por exemplo, foi denunciado em 2016 pela defesa de Lula ao Conselho Nacional do Ministério Público pelo uso do famoso powerpoint para acusar o ex-presidente Lula de corrupção. A projeção, apresentada numa coletiva de imprensa, colocava o nome do petista para colocá-lo como chefe de quadrilha de inúmeros crimes. O julgamento de Dallagnol foi adiado 42 vezes pelo Conselho até que a queixa prescreveu. O instrumento rudimentar já foi proibido no exterior, alega a defesa de Lula, por promover a induções genéricas.

Dallagnol, assim como o time de procuradores que integraram a Lava Jato, tiveram conversas vazadas pela série de reportagens da Vaza Jato, liderada pelo jornal The Intercept, e também na operação Spoofing, da Polícia Federal, que localizou os hackers que vazaram o conteúdo das conversas entre procuradores e o ex-juiz Sergio Moro no aplicativo Telegram. As comunicações revelaram como os procuradores agiram diversas vezes sob a orientação de Moro na busca de provas contra o ex-presidente Lula. A ida de Moro para o Governo Bolsonaro em 2019 só consolidou a leitura da atuação política de procuradores.

Há uma desinstitucionalização da democracia”,

Joaquim Falcão, jurista.

O Conselho Nacional do Ministério Público foi criado em 2004. Tem como função fazer a fiscalização administrativa, financeira e disciplinar do MP e de seus membros. Um dos que trabalharam para sua criação foi o jurista Joaquim Falcão, professor de direito da Fundação Getulio Vargas. Hoje, ao analisar a atual PEC ele diz que há uma tentativa da classe política de se blindar.

“É uma clara estratégia do populismo de direita de neutralizar e paralisar as instituições de controle”, disse Falcão ao EL PAÍS. O professor foi um árduo defensor a atuação da Lava Jato. Lira é um aliado de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Para Falcão, a mudança tem “uma aparência de legalidade, mas é ilegítima”. “Na ditadura militar tínhamos o Congresso funcionando, o Executivo funcionando e o Judiciário funcionando. Tudo parecia ser legal, mas não era. É o mesmo que estão tentando fazer agora com o Ministério Público. Há uma desinstitucionalização da democracia”.

Professora na Escola Brasileira de Direito e doutora em Direito de Estado, a advogada Telma Rocha Lisowski avalia que as mudanças são uma aparente reação à Lava Jato e aos seus desdobramentos. Em um primeiro momento, a Lava Jato – encerrada oficialmente em fevereiro deste ano após quase seis anos de apurações – cercou políticos de diversos espectros, mas especialmente do PT. A operação é tida como decisiva para a derrubada da presidente Dilma Rousseff e para tirar o ex-presidente Lula da disputa eleitoral contra Jair Bolsonaro em 2018.

Contudo, Lisowski diz não ter uma visão catastrófica, como apresentaram as associações de procuradores e promotores. “Há um certo exagero sobre essa influência política”. Hoje, os procuradores gerais da República e dos Estados já são indicados pelo presidente e pelos governadores. Em alguns casos, como no do presidente Bolsonaro, o governante nem respeita uma lista tríplice votada pelos procuradores e acaba escolhendo alguém que seja mais alinhado com o seu Governo.

Na mesma linha, seguiu a doutoranda em direito pela Universidade de Salamanca e professora na Faculdade de Direito de Franca, Ana Cristina Gomes. “O que temos hoje é uma pseudo independência do Ministério Público”. Segundo ela, há um temor exacerbado por parte dos procuradores. “Por que no Brasil há um órgão que só ele tem o direito de se auto-avaliar e se autofiscalizar? Por que um cidadão com notório saber jurídico não pode fiscalizá-lo?”.

Na análise de Lisowski, a maior preocupação deveria ser, caso fosse mantida, a previsão que constava do relatório inicial e permitia que o CNMP revisasse medidas tomadas pelos seus membros, funcionando como uma segunda ou terceira instância judicial. “Seria como se o Conselho Nacional de Justiça pudesse cassar acórdãos, decisões, sentenças de juízes do Brasil inteiro”. Essa alteração foi retirada do relatório do deputado Paulo Magalhães, que cedeu à pressão dos procuradores.

Desde que chegou à Câmara, o texto já teve três versões distintas. Nesta terça-feira, será a sua prova de fogo. Seus apoiadores calculavam que ele tinha menos de 250 votos. Para uma PEC ser aprovada são necessários os votos de 308 dos 513 deputados federais.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 17.10.21

sábado, 16 de outubro de 2021

Ciro x Lula, a guerra prematura

Imaginem se o quadro seria o mesmo se no palanque da Avenida Paulista Gleisi e Haddad tivessem dado as mãos a Ciro. Tema do comentário de Ascânio Seleme, n'O Globo hoje.

Todo mundo no PT sabia que seria difícil evitar um confronto com Ciro Gomes, mas também não se esperava que partissem do próprio PT as pedradas que desencadeariam a tormenta. O ideal era que o confronto ocorresse apenas na campanha, talvez nos debates, na propaganda de TV, nas entrevistas dos candidatos. Mas, não, os ataques que ajudam a desmontar a história alternativa que o partido pretendia contar sobre os seus quatro mandatos no governo do Brasil foram iniciados depois das agressões da militância petista a Ciro na manifestação do dia 2 de outubro. Era tudo o que ele precisava e queria. Imaginem se o quadro seria o mesmo se no palanque da Avenida Paulista Gleisi e Haddad tivessem dado as mãos a Ciro.

A estratégia agora no PT, com o leite derramado prematuramente, é evitar danos maiores. A primeira ordem do comando, de não responder a eventuais ataques, caiu antes mesmo de ser implementada. A afirmação de que Lula contribuiu de maneira decisiva para o impeachment de Dilma, que passou anos falando mal dela e de seu governo, foi prontamente respondida por Dilma. E, mais grave, pelo próprio Lula, que mordeu a isca. Falou, de maneira inapropriada para um momento grave como este, que Ciro deve ter sequelas no cérebro em razão da Covid, mas não fez referência direta à acusação de que falava mal de Dilma. Talvez para não ser pego na mentira, vai que alguém gravou.

Os ataques de Ciro são de quem conhece muito bem Lula e o PT. Quando partem de Bolsonaro ou de seus aliados, as investidas têm muito menor eficiência do que quando disparadas por gente que já foi de dentro. Ciro foi da casa, sabe muito bem com quem está lidando, conhece concretamente os métodos petistas e percebe cada dissimulação, todas as tergiversações. Mais grave, Ciro sabe se expressar. Bolsonaro, não. E Ciro tem agora João Santana, outra fonte inesgotável de informações que podem complicar muito a candidatura petista até a eleição do longínquo outubro de 2022.

Aliás, o tempo é outro problema para o PT. Se serve para Lula viajar e negociar alianças ao centro e à direita, serve também para aos poucos ir manchando sua aura de político perseguido, desmanchando a imagem de um homem indefeso que foi fustigado, condenado e preso por um juiz politicamente comprometido e um Ministério Público corrupto e interesseiro. O manto de santo com que se vestiu Lula pode virar farrapos numa campanha tão longa.

Teoricamente, esta ainda era a hora para se pressionar com todas as forças democráticas pelo impeachment do presidente, denunciado por mais de 30 crimes de responsabilidade. Foi o PT que minou a causa ao abandoná-la. Logo o PT que pediu o impeachment de todos os presidentes não petistas desde a redemocratização. Ninguém escapou da saga petista, nem mesmo o acima de qualquer suspeita Itamar Franco. Contra todos se empenhou e mostrou seus dentes. Já com o Bolsonaro, apesar do discurso inicial, aquietou-se porque, por seus cálculos corretos, com ele no páreo fica mais fácil a eleição de Lula.

Lula foi chamado de corrupto, arrogante e egocêntrico. Dilma de incompetente. Sobre o PT, Ciro disse ver um grupo de fanfarrões e hipócritas neoliberais. Difícil dizer o que dói mais na alma petista, ser chamado de corrupto ou de neoliberal. Deixando à parte todos os conhecidos exageros retóricos de Ciro Gomes, o fato é que o PT ao longo dos anos foi se transformando de um partido socialista-marxista em um agrupamento de esquerda social democrática, o que não é ruim, absolutamente, até ser hoje de centro-esquerda, como ensinou o professor Fernando Haddad.

Falta um ano para eleição, tempo demais nos cálculos petistas para ficar vendo seu telhado ser ameaçado pela chuva de pedras que já começou a pingar. A ordem de não reagir a Ciro Gomes terá de ser atendida, sob pena de Lula perder a polarização que pretende exclusiva com Bolsonaro. De sua parte, Ciro sabe que é improvável tirar Lula do segundo turno. Seu objetivo é dividir a esquerda até onde conseguir e caminhar sobre os votos do centro para alijar Bolsonaro da disputa final. Também aí terá de ralar muito. De qualquer forma, a guerra prematura à esquerda está aberta e pode ser útil aos demais.

Comprando polêmica 1

A decisão do senador Davi Alcolumbre de não pautar a indicação de André Mendonça para a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado faz parte do jogo político. A prerrogativa do presidente de indicar nomes para o Supremo Tribunal Federal não significa que automaticamente sua indicação passará. Primeiro, tem que ser pautada pelo presidente da CCJ, depois aprovada pela Comissão e depois pelo plenário. Todas estas etapas são políticas e devem ser negociadas. Se a nomeação fosse automática, não precisava da avaliação do Senado. Alcolumbre tem razão e direito legal de sentar sobre a indicação da mesma forma que Arthur Lira senta sobre mais de cem pedidos de impeachment do presidente Bolsonaro. E, já que estamos tratando do terrivelmente evangélico Mendonça, Alcolumbre tem razão de sobra.

Comprando polêmica 2

Está bem que a pauta do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, é um horror. Seus métodos de ação são ainda mais escabrosos e obscuros. O homem inventa uma pauta de manhã e à tarde a coloca em votação. Essa prática vai acabar, junto com o fim do mandato de Bolsonaro. Mesmo assim, não dá para dizer que jogar um pouco mais de luz e mais controle sobre o Ministério Público é ruim. O que faltou foi oportunidade. E debate.

Comprando polêmica 3

A possibilidade de se criar federações de partidos pode ser útil à democracia brasileira. Reduzir o número de agremiações políticas ajuda a combater o partidarismo de aluguel. E, como força que a federação perdure quatro anos, permite ajustes, entendimentos e acordos para além das eleições. O que é muito bom.

Tolinho

O governo está soprando por aí que, pelos seus cálculos, a candidatura de André Mendonça ao STF será derrotada se chegar ao plenário do Senado. Tolinho. Fosse verdade, já teria trocado o nome para não passar vexame. Seu alvo é Alcolumbre, a quem a turma palaciana deve considerar um poço de ingenuidade.

Sem estratégia

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes provaram esta semana que, além da falta de apreço, não têm qualquer estratégia em relação à Petrobras. O presidente, reclamando que sobre ele caem todas as responsabilidades dos males do Brasil, disse que até quando a gasolina sobe a culpa é dele. E falou que isso cansa e já está até pensando em privatizar a companhia para se livrar do abacaxi. O ministro, por sua vez, propôs vender ações da Petrobras toda vez que o preço dos combustíveis subir e distribuir o dinheiro obtido entre os mais pobres. Vai ver que é isso mesmo o que ele quer. Até o fim do governo, diante das sucessivas desvalorizações do Real e dos consequentes aumentos da gasolina, Guedes privatizaria a estatal. Mas claro que não é assim que se toca assunto tão importante. Falar o que dá na telha, sem estudo, sem análise, com argumentos paupérrimos, apenas confirma o que já se sabe de ambos. São dois irresponsáveis contumazes.

Coreia bem piorada

Quantos brasileiros se inscreveriam no jogo proposto na série coreana “Round 6”? Para quem não sabe, trata-se do maior fenômeno de audiência da Netflix da temporada, onde 456 homens e mulheres desesperados, pobres e endividados, sem perspectivas, topam participar de um jogo de vida e morte para ganhar um mega prêmio em dinheiro. Na Coreia, 95% têm pelo menos o equivalente ao segundo grau completo. No Brasil, bom, por aqui, num jogo semelhante, as filas de inscrição dobrariam esquinas.

Pobre e velho

O motorista fechou o apressadinho que havia buzinado para ele, forçando que parasse o carro. Abriu então a janela e disparou: “Está com pressa? Da próxima vez passa por cima, seu velho”. “Você devia ter vergonha deste carro. Aposto que ganha 15 mil por mês, seu velho, pobre!”. O outro, incrédulo com o que ouvira, até em razão do conceito de pobreza do ofensor, respondeu: “Vai se vacinar, Bolsonaro”. Bastou para o “jovem” persegui-lo por três quadras, ameaçando bater, fechando o seu carro em manobras arriscadas e chamando-o seguidamente de velho e pobre. Mais bozo, impossível.

Ascânio Seleme é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 16.10.21

CPI entra na reta final, com 11 crimes atribuídos a Bolsonaro e 30 pessoas na mira

Relatório final deve ser lido no próximo dia 19 e votado no dia seguinte. Possível penalização do presidente, no entanto, dependerá da PGR e do Supremo para que casos sejam julgados.

Tela exibe imagens de protesto na Praia de Copacabana em homenagem aos mortos por covid-19, durante a CPI da Pandemia do último dia 7. (Edilson Rodriguess / Ag. Senado

A CPI da Pandemia se encaminha para a reta final na próxima semana e, como resultado, deve propor o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), do deputado e líder do Governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), e de ao menos mais três dezenas de pessoas. É o que promete o relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL). Sob a mira da CPI ainda estão o deputado federal e ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB-RS), o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e os médicos Nise Yamaguchi e Paolo Zanotto, suspeitos de integrarem o chamado gabinete paralelo. Todos os nomes que terão o indiciamento proposto pela comissão deverão ser conhecidos oficialmente no próximo dia 19, quando Renan Calheiros fará a leitura do relatório final.

Ao menos 11 crimes deverão ser atribuídos a Bolsonaro, segundo afirmou Calheiros à Globo News. “Vão de crimes de responsabilidade, passando por crimes comuns, crimes contra a saúde pública e crimes contra a humanidade também”, afirmou o senador. O relatório final, que deve ser votado no dia seguinte, 20, não tem poder de denunciar ninguém, apenas de propor os indiciamentos. Cabe então ao Ministério Público —ou à Procuradoria-Geral da República (PGR), no caso do presidente— decidir se apresenta uma denúncia formal à Justiça.

Apesar da lista de crimes atribuídos pela CPI ao presidente, seu indiciamento pode ser rapidamente engavetado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que tem demonstrado pouca energia quando o assunto envolve Bolsonaro. Aras não deu seguimento a ações como a que pretendia responsabilizar o presidente por não usar máscara, ou a que tentou vetar a campanha O Brasil não pode parar, contra o isolamento social.

Aras terá até 30 dias a contar a partir do recebimento do relatório —previsto para ser entregue no próximo dia 21—, para encaminhar as denúncias ao Supremo Tribunal Federal (STF), instância responsável por julgar os possíveis crimes cometidos pelo presidente. De acordo com o blog da jornalista Malu Gaspar, caso Aras engavete as denúncias, entidades do direito privado já se articulam para entrar com ações diretamente no Supremo. Membros da CPI já estão, inclusive, discutindo essa alternativa com advogados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que podem assumir a causa

Nesta semana, as atividades da CPI estão suspensas. Retornarão na semana que vem, quando estava prevista a presença do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, no dia 18. Mas nesta segunda, os membros da CPI desistiram de convocá-lo e escutarão, no lugar, Carlos Carvalho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que afirma que pediu o adiamento da análise na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) de um relatório que recomenda o não uso do chamado “kit covid”. Será o último depoimento desta CPI, que iniciou seus trabalhos no final de abril e foi prorrogada por mais três meses, em julho.

Observatório da CPI

Para que as denúncias levantadas pela CPI da Pandemia não morram na praia será criado um “observatório parlamentar”. Formado por senadores que fizeram parte da comissão, o observatório deve desmembrar as acusações para apresentá-las nas diferentes instâncias do Legislativo, do Ministério Público e do Judiciário.

Assim, depois que os parlamentares entregarem o relatório a Augusto Aras, eles devem bater na porta da Procuradoria da República do Distrito Federal, no dia 26, que receberá os indiciamentos daqueles que não têm foro privilegiado. Nessa lista devem estar incluídos o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e seu secretário-executivo Élcio Franco, por exemplo. Depois, será a vez do Ministério Público de São Paulo (MPSP) e da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo receberem as denúncias referentes à Prevent Senior, que já é investigada por uma força-tarefa criada pelo MPSP. A data prevista para o compartilhamento das informações com a procuradoria paulista são os dias 27 e 28 de outubro

O presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL), também deverá receber os senadores, já que é o responsável por colocar em pauta a abertura do processo de impeachment. Um grupo de juristas, coordenado pelo ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Junior, apontou à comissão crimes de responsabilidade que, de acordo com a Constituição, podem levar ao impeachment. Reale Junior foi um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT).

Os senadores também planejam o envio de uma cópia do relatório ao Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda. Integrantes da CPI pretendem atribuir a Bolsonaro certas condutas que, de acordo com eles, configuram crime contra a humanidade, algo que entra no escopo dos julgamentos desta corte. O presidente já responde a outras ações na Corte internacional —a terceira delas, ingressada nesta segunda por uma ONG internacional por conta do desmatamento da Amazônia.

MARINA ROSSI, de São Paulo para o EL PAÍS, em 13.10.21

Tchecos provam que oposição unida pode vencer autocratas

Uma coalizão indo da esquerda aos conservadores conseguiu tirar o bilionário Andrej Babis do poder. Eleições na República Tcheca são modelo para outros países em que a democracia está em perigo, opina Barbara Wesel.

Político tcheco Andrej Babis fala em campanha eleitoral

Para sorte da democracia, Andrej Babis ainda não concluíra a conversão da República Tcheca numa oligarquia privada.

O retorno à democracia liberal é possível. O exemplo das eleições parlamentares na República Tcheca mostrou que uma oposição unida é capaz de derrubar do trono um chefe de governo que ela acusa de tendências autocráticas e práticas corruptas – se permanecer coesa.

A palavra-chave aqui é "unida", e é preciso muito bom senso, fantasia política e altruísmo para obter tal vitória. A oposição tcheca que expulsou do poder o bilionário Andrej Babis ia desde esquerdista até bastante conservadora. Mas é preciso registrar que essas forças contaram com algumas vantagens nacionais.

Por um lado, existe no país uma tradição histórica de resistência democrática: seu primeiro presidente após a guinada para a democracia, Václav Havel, é um ídolo até hoje. Além disso, os oposicionistas alardearam bem alto em sua campanha eleitoral o desejo de seguir ancorando a República Tcheca na União Europeia e na comunidade ocidental – e com isso tocaram um ponto nevrálgico.

Por fim, deve-se admitir que Babis ainda não concluíra sua conversão do país numa oligarquia privada. Alguns grandes veículos de imprensa estão em seu poder, mas não todos. Ele colocou seus adeptos na Justiça e outras instituições, mas eles ainda não estavam por toda parte. Ainda eram relativamente propícias as condições para o retorno a uma democracia liberal funcional.

No entanto a chave da vitória foi todos os partidos anti-Babis terem colaborado entre si. Eles intitularam sua aliança "coalizão das coalizões", e é preciso uma boa dose de renúncia e de superação de grandes egos para concretizar uma unidade dessas.

Trabalho árduo à frente na Hungria e Polônia

Na Hungria, onde as eleições se realizam em 2022, no momento a oposição está se empenhando por uma cooperação desse gênero. Lá, porém, as condições básicas são bem mais árduas: Viktor Orbán aniquilou a livre imprensa, subverteu inteiramente a Justiça e encurralou a sociedade civil.

O premiê lançou mão de todos os recursos do poder para transformar o país numa "cleptocratura", uma mistura de ditadura e loja autosserviço, a partir da qual ele serve à própria panelinha.

A última campanha eleitoral húngara já foi uma briga de lama impiedosa. Dá nojo lembrar a campanha antissemita que Orbán perpetrou contra seu antigo mecenas George Soros, o qual investiu muito dinheiro para o fomento à democracia no Leste Europeu.

Para o primeiro-ministro húngaro, nenhum abismo moral é profundo demais. Portanto a oposição terá que agir de forma destemida e coesa, se pretende ter uma chance contra tal adversário. Talvez o exemplo da República Tcheca lhe instile coragem.

O mesmo vale para as forças anti-PiS (o partido populista de direita Liberdade e Justiça) da Polônia, onde as eleições só transcorrem em 2023. Lá, a oposição ainda tem um pouco de tempo para aprender com os exemplos e os erros nos países vizinhos. Um grande tema já está estabelecido para ela: na verdade a tendência da Polônia em direção à Europa deveria ser um bilhete para a vitória.

Barbara Wesel é jornalista da DW / Deutsche Welle. O texto reflete a opinião pessoal da autora, não necessariamente da DW / Deutsche Welle. Publicado originalmente em 16.10.21.

Dezenas de milhares protestam contra o fascismo na Itália

Italianos saem às ruas de Roma a favor da democracia e pedem proibição de grupos neofascistas. Protesto ocorre uma semana após ataque violento de extremistas de direita contra sede de sindicato durante ato antivacina.

Dezenas de milhares de italianos saíram às ruas de Roma em protesto contra o fascismo neste sábado (16/10), uma semana depois de extremistas de direita invadirem a sede da maior associação sindical da Itália, durante atos contrários às medidas anticoronavírus no país.

A manifestação antifascista foi liderada pelo chefe da federação sindical CGIL, Maurizio Landini, ao lado de outros líderes sindicais, sob o slogan "Fascismo nunca mais". Organizadores estimaram que até 100 mil manifestantes estiveram reunidos na praça de San Giovanni in Laterano – historicamente associada à esquerda.

"Esta não é apenas uma réplica ao 'esquadrismo' fascista", disse Landini à multidão, citando uma palavra usada para se referir às milícias fascistas que começaram a operar após a Primeira Guerra Mundial. "Esta praça também representa todos aqueles na Itália que querem mudar o país, que querem fechar as portas à violência política."

Alguns dos presentes agitavam cartazes onde se lia "Si vax" (vacina sim), uma resposta direta aos manifestantes armados com pedaços de pau e barras de metal que destruíram a sede da CGIL na capital italiana em 9 de outubro, sob o símbolo "No vax".

"Si vax": manifestantes defendem a vacinação contra a covid-19, em resposta a negacionistas

Na ocasião, a polícia deteve 12 pessoas, incluindo líderes do partido de extrema direita Forza Nuova (Força Nova), após milhares saírem às ruas contra os chamados "passes verdes", recém-impostos aos trabalhadores italianos.

Desde esta sexta-feira, só podem comparecer ao local de trabalho na Itália os funcionários que estiverem vacinados, tiverem se recuperado de covid-19 ou apresentarem um teste negativo.

Em Roma, os protestos do fim de semana passado descambaram para a violência. Várias centenas de pessoas se separaram da manifestação na capital italiana e tentaram marchar até o Parlamento e, aparentemente, também invadir o escritório do primeiro-ministro, Mario Draghi, que fica nas proximidades. Houve confrontos com a polícia. Outros invadiram a sede da CGIL, atacaram guardas e destruíram escritórios. Alguns policiais ficaram feridos.

Protestos antifascismo na Itália


Organizadores falaram em até 100 mil manifestantes neste sábado

"Um país sem memória não pode ter um futuro"

Landini, secretário-geral da CGIL, comparou a invasão de sábado passado com os ataques às uniões sindicais por parte do recém-fundado Partido Nacional Fascista em 1921. O líder fascista Benito Mussolini assumiu o poder no ano seguinte e depois levou a Itália à Segunda Guerra como aliada da Alemanha nazista.

A CGIL e outros dos principais sindicatos italianos, também presentes na manifestação deste sábado, pediram ao governo que dissolva e proíba grupos neofascistas e neonazistas, bem como o partido de extrema direita Forza Nuova.

"Pedimos atos concretos, não apenas conversa fiada. É hora de o Estado demonstrar sua força democrática na aplicação da lei e da Constituição", afirmou Landini. "Um país que perde sua memória não pode ter um futuro."

O chefe da Confederação Geral do Trabalho Italiana (CISL), Luigi Sbarra, por sua vez, afirmou que o ataque contra sindicatos liderado pelo Forza Nuova fez com que "estar ali fosse a única escolha, unidos contra todos os tipos de fascismo". Ele também clamou pela rápida dissolução da legenda por parte das autoridades italianas.

Deutsche Welle Brasil, em 16.10.21, (Com AFP, DPA, Reuters e AP)

Um Poeta

 Bonfim Tobias

 Inconsciência Coletiva

        ( A um ex-Presidente)


Culpou-me pela vida que propus,

Culpou-me pelo raio que matou,

Culpou-me até pela invenção da cruz,

Culpou-me p’la esperança que falhou!


Culpou-me p’la tristeza que ficou,

Culpou-me pela mágoa que induz,

Culpou-me pela luz que apagou,

Culpou-me pela paz a que me impus!


Culpou-me pelos passos que não dou,

Culpou-me pela inércia que gerou,

Culpou-me, assim, a que isso conduz!


Culpou-me pela ânsia que parou,

Culpou-me pela fé que acabou,

Culpou-me até pela morte de Jesus!…

'Todos subestimam Bolsonaro: assim ele virou presidente e pode ser reeleito', diz cientista político

A ideia de dar um segundo mandato ao presidente Jair Bolsonaro hoje é rejeitada pela maioria da população, segundo diferentes pesquisas eleitorais. Esses mesmos levantamentos mostram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como favorito para vencer a disputa presidencial do próximo ano.


Apesar disso, o cientista político Creomar de Souza, professor da Fundação Dom Cabral e fundador da consultoria política Dharma, avalia que Bolsonaro se mantém um candidato competitivo, com chances de permanecer no Palácio do Planalto em 2023.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele lembra que o presidente mantém nas mãos a "chave do cofre", ou seja, recursos para tentar reverter sua impopularidade com políticas de governo, como o aumento de transferências de renda, seja com a prorrogação do auxílio emergencial ou a ampliação do Bolsa Família.

Além disso, acredita que "o canal paralelo de comunicação" construído por Bolsonaro e seus apoiadores por meio de grupos de WhatsApp e Telegram terão novamente papel importante na eleição, como forma de divulgar mensagens favoráveis ao presidente e "destruir reputações" de adversários. Para Souza, mesmo narrativas que pareçam pouco convincentes para parte da população podem cativar eleitores.

"O desemprego, o retorno da fome, a inflação: tudo isso gera uma enorme dificuldade para Bolsonaro. O que o presidente tem feito é jogar a conta da inflação no (discurso do) 'fique em casa durante a pandemia'. Me parece ser uma manobra muito difícil, mas não é uma manobra que não possa colar", afirma.

"Não podemos trabalhar com a ideia de que o eleitor é invulnerável a percepções que nós não consideremos objetivas da realidade. Temos que lembrar que, no fim das contas, muita gente tomou cloroquina e outros medicamentos que não tinham comprovação científica alguma. Isso acontece", reforça.

Para o professor, o cenário de 2018 está se repetindo agora, com uma ampla subestimação do potencial do presidente.

"Todo mundo subestima o Bolsonaro. O Lula subestima o Bolsonaro. Quem está com o Bolsonaro subestima o Bolsonaro. Quem quer fazer terceira via subestima o Bolsonaro. E uma característica bem importante do Bolsonaro como persona política é o fato de que ele chegou onde está com todo mundo o subestimando", lembra.

"Assim ele chegou à Presidência da República. Assim ele vai finalizar provavelmente o mandato sem impeachment, e assim ele pode inclusive ser reeleito", acrescenta.

Na sua visão, ao subestimar Bolsonaro, a oposição tende a se fragmentar, gerando um cenário mais favorável para o presidente estar no segundo turno, com chances de se reeleger.


'Quanto mais fragmentada for essa oposição, quanto mais candidatos existirem, melhor pro Bolsonaro', analisa Creomar de Souza. (Foto - Divulgação)

"Em algum sentido, essa fraqueza aparente do Bolsonaro dá a impressão de que qualquer outro candidato pode derrotá-lo, e esse é o principal vetor que impede a construção de qualquer tipo de coalizão", ressalta.

"Essa é a melhor chance do Bolsonaro. Quanto mais fragmentada for essa oposição, quanto mais candidatos existirem, melhor pro Bolsonaro, porque o Bolsonaro tem uma base concentrada de votantes. Se os (demais) votos estiverem muito diluídos em outros nomes, ele está no segundo turno", diz ainda.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil - A alta rejeição de Bolsonaro medida nas pesquisas eleitorais tem indicado um caminho difícil para o presidente em 2022. Ele continua sendo um candidato competitivo com chances de se reeleger?

Creomar de Souza - O presidente ainda é competitivo por duas razões. A primeira delas está no campo bem tradicional da política: tem a chave do cofre. E quem tem a chave do cofre pode criar mecanismos, instrumentos, pra reverter percepções negativas sobre si mesmo. Isso não significa dizer que presidente é favorito ou ganharia a eleição com a fotografia que temos hoje. Mas o fato é: hoje o presidente conseguiria estar muito provavelmente no segundo turno. E isso não pode ser menosprezado.

A segunda razão que acho muito importante vem de um elemento mais novo da política, que tem muito impacto a partir de 2018 e acredito que terá muito impacto também em 2022: o presidente foi muito bem-sucedido em construir um canal paralelo de comunicação, se utilizando de WhatsApp e de Telegram de forma que, até onde eu sei, não há outra liderança política utilizando isso de maneira tão eficaz.

E a gente precisa lembrar de alguns dados. Por exemplo, uma pesquisa da consultoria Mckinsey mostra que o Brasil é o quarto país mais plugado à internet. Todo mundo usa WhatsApp, a ponto de quando tem algum problema no WhatsApp as pessoas confundem com queda de internet. Então, isso gera um impacto em termos de jogo político e eleitoral que não é desprezível.

O presidente da República e seus apoiadores têm um canal muito bem construído de construção de informações e de percepções e de destruição de reputação de inimigos. Então, em uma eleição que tem tudo pra ser altamente tumultuada, que caminha pra ter dois protagonistas (Bolsonaro e Lula) que são antagonistas e que despertam muitas paixões positivas e negativas, essa conjuntura gera um caldeirão que acaba diminuindo o componente de uma eleição que seria normal ou racionalizada.

Isso acaba sendo muito bom pro Bolsonaro em específico. Quanto mais raivosa for a eleição, melhor para ele. Porque a gente tem certeza de que os apoiadores do Bolsonaro vão às urnas. A gente não tem certeza se os eleitores nem-nem, que não sejam nem Bolsonaro nem Lula, vão comparecer à cabine de votação.

E tem outras variáveis como por exemplo o voto envergonhado. Aquelas pessoas que não dizem nas pesquisas que votam em Bolsonaro (mas na urna votam). Então, é importante levar todos esses elementos em consideração quando tentamos estabelecer uma compreensão responsável do processo eleitoral e não meramente aquilo que se deseja que seja o processo eleitoral.

BBC News Brasil - Os grupos de WhatsApp e Telegram são canais em que Bolsonaro se comunica com uma base mais fiel e radicalizada. A princípio, esse público não é suficiente para elegê-lo. Qual a importância de ter essa base radicalizada e o que ele precisa fazer pra conquistar apoio fora dela?

Souza - Creio que tem dois elementos importantíssimos nessa construção da persona política do Bolsonaro. A gente vai ter um Bolsonaro do WhatsApp, do Telegram, o Bolsonaro do YouTube, que fala para a base. E essa base é muito importante porque é o ponto de partida dele, a base que pode empurrá-lo ao segundo turno.

De outro lado, teremos um outro Bolsonaro que vai tentar ser mais palatável pra determinados pedaços da sociedade. E aqui tem um elemento que não se pode esquecer: a sociedade brasileira é em grande parte composta por pessoas conservadoras.

E onde essas duas linhas se encontram? Na junção entre a capacidade que os grupos de WhatsApp e Telegram tenham de produzir conteúdo e de manter essa base de apoio agregada, e o fato de que alguns desses conteúdos sejam palatáveis o suficiente pra atingir os concorrentes de Bolsonaro do ponto de vista eleitoral, como requentar as denúncias do Lula acerca de corrupção, falar de alguma característica de caráter do Ciro Gomes, ou fazer algum tipo de ataque a um outro candidato, como Eduardo Leite (governador do Rio Grande do Sul pelo PSDB), João Dória (governador de São Paulo pelo PSDB), (ex-ministro da Saúde, do DEM, Luís Henrique) Mandetta, quem quer que seja.

O entroncamento desses dois elementos me parece criar uma lógica e uma ação que o grupo do presidente hoje acredita que seja o suficiente pra requentar alguns elementos da narrativa de 2018, sobretudo a ideia de que Bolsonaro é um mártir diante de um sistema que é muito corrupto, que é muito pouco engajado na transformação do país, e ele pode usar isso com um mix de "olha, mesmo diante de todas essas dificuldades, nós entregamos algumas reformas".

Para o governo, hoje mais importante do que uma reforma (econômica) que seja boa, é ter reformas. Porque o governo precisa dizer para atores de mercado, para determinados atores da sociedade, que as reformas foram entregues. Se elas vão precisar ser refeitas em 2023 ou não, isso acaba se tornando uma questão menor.

Nesse aspecto, ele tem tido grande apoio do (presidente da Câmara dos Deputados) Arthur Lira (PP-AL), mas de outro lado tem-se uma dificuldade pra que se avance no Senado. Por exemplo, o senador Ângelo Coronel (PSD-BA) deixou muito claro que a reforma do Imposto de Renda não vai avançar e que o governo tem outras alternativas pra prorrogar o auxílio emergencial que não envolvam necessariamente rebatizar o Bolsa Família.

BBC News Brasil - O governo não conseguiu até o momento criar um programa para substituir o Bolsa Família, ao mesmo tempo que desemprego e inflação seguem altos. A economia e a atuação do governo na pandemia são fatores que dificultam a reeleição?

Souza - Sendo bem pragmático, eu creio que a pandemia não será o principal tema da eleição. A vacinação vai avançar, devagar os casos tendem a se reduzir e talvez a gente não tenha (em 2022) uma grande reflexão sobre o que foi a pandemia, sobre o papel do governo. Talvez o timing nesse aspecto da pandemia vai ser mais gentil com Bolsonaro do que foi com (o ex-presidente americano Donald) Trump por exemplo. O Trump entrou no processo eleitoral no meio da tempestade da pandemia. O Bolsonaro vai conseguir se distanciar disso.

Agora, o desemprego, o retorno da fome, a inflação: tudo isso gera uma enorme dificuldade para Bolsonaro. O que o presidente tem feito é jogar a conta da inflação no "fique em casa durante a pandemia". Me parece ser uma manobra muito difícil, mas não é uma manobra que não possa colar. Não podemos trabalhar com a ideia de que o eleitor é invulnerável a percepções que nós não consideremos objetivas da realidade. Temos que lembrar que, no fim das contas, muita gente tomou cloroquina e outros medicamentos que não tinham comprovação científica alguma. Isso acontece.

É uma estratégia que existe desde o primeiro dia de governo: tudo aquilo que é bom é sempre responsabilidade do Bolsonaro, e tudo que está errado ele sempre transfere o ônus. O presidente vai tentar terceirizar o ônus para os governadores e pros concorrentes políticos que foram favoráveis a medidas mais restritivas durante a pandemia.

A questão é: vai colar? Isso depende da capacidade que o governo tem de por dinheiro na mão das pessoas, principalmente dos mais pobres, que são os que decidem a eleição. Vai depender de conseguir reativar o auxílio emergencial (previsto para acabar em outubro) ou ampliar o Bolsa Família.

BBC News Brasil - A vitória do presidente em 2018 é em boa parte atribuída ao antipetismo, que teria levado pessoas moderadas a votar em Bolsonaro. Esse fator perdeu força agora, dificultando a reeleição?

Souza - Me parece que o antipetismo é uma força de longa duração, assim como o petismo. O sistema político brasileiro da redemocratização é povoado por partidos fisiológicos, os partidos não são orgânicos. Você não vê uma pessoa na rua entusiasmada com uma bandeira do MDB ou do DEM, por exemplo. Já os partidos que são mais orgânicos em sua maioria são nada competitivos. E você tem uma exceção: o PT conseguiu se construir como um partido orgânico e competitivo.

Isso gerou dois elementos muito importantes. O primeiro é dentro do DNA do PT uma lógica de hegemonia. O PT quer ser um partido hegemônico. E os militantes do partido acreditam piamente que tenham direito a essa conquista hegemônica porque são o partido mais orgânico da República.

O segundo elemento é que, como não há uma cultura de vida partidária na sociedade civil como um todo, você desperta encantamento e estranhamento. Esse estranhamento se cristalizou numa lógica de antipestismo que vem mesclada com reminiscências de conservadorismo da sociedade, da ideia de que o PT é um partido comunista e coisas do gênero, que são anteriores até ao próprio partido.

Então eu creio que, assim como o petismo conseguiu sobreviver, saiu ferido mais saiu vivo de toda essa crise que vem de 2013 até 2016, o antipetismo é uma força de permanência.

Durante muito tempo se criou a ideia de que o PSDB era o partido orgânico do antipetismo, e o Bolsonaro veio pra destruir isso. O Bolsonaro elevou o antipetismo a um novo patamar. Ele conseguiu dizer: "o problema é que falta alguém que tenha coragem de dizer o que deve ser dito acerca desses caras. Eu vou dizer". Ele disse e foi bem-sucedido.

A questão é que hoje tem um antipetismo que está cristalizado no Bolsonaro, mas esse anti bolsonarismo está cristalizado no PT? Talvez essa seja a pergunta de um milhão de dólares pra eleição do ano que vem. Um cenário que no segundo turno teremos Lula contra Bolsonaro não será uma eleição de escolha positiva, será uma eleição em que a rejeição vai dizer mais que a aceitação. Com o retrato que nós temos hoje, provavelmente o Bolsonaro tem um problema, que é o fato de que ele tem mais rejeição que o Lula (segundo as pesquisas atuais).

O antipetismo é uma força de longa duração e o PT trabalha muito pouco com a ideia de reduzir essas arestas. Acaba, em algum sentido, sendo cômodo também para o partido trabalhar com a ideia de que eleitores que não gostam dele são moralmente não comprometidos com uma transformação social. Assim, os coloca em um ponto de vilania. Isso é parte do processo também.

BBC News Brasil - A principal aposta dos potenciais candidatos da terceira via hoje parece ser o derretimento de Bolsonaro e a possibilidade de uma dessas alternativas disputar o segundo turno com Lula. É um cenário provável ou estão subestimando o presidente?

Souza - Eu creio que todo mundo subestima o Bolsonaro. O Lula subestima o Bolsonaro. Quem está com o Bolsonaro subestima o Bolsonaro. Quem quer fazer terceira via subestima o Bolsonaro. E uma característica bem importante do Bolsonaro como persona política é o fato de que ele chegou onde está com todo mundo o subestimando.

Todo mundo acha que não vai dar em nada, que o Bolsonaro de fato não é uma ameaça ou que ele vai estar sob controle de alguém. E ele vai galgando as posições e assim ele chegou à Presidência da República. Assim ele vai finalizar provavelmente o mandato sem impeachment, assim ele pode inclusive ser reeleito presidente da República.

Para além disso, eu creio que para a terceira via está faltando mensagem. Sem uma mensagem você não tem voto.

E aí, por exemplo, caso o (apresentador José Luiz) Datena saia candidato pelo União Brasil (partido que será criado com a fusão de DEM e PSL) ou que a gente imagine um cenário de uma chapa do Eduardo Leite com Datena, com um monte de dinheiro, tempo de TV (para propaganda eleitoral), possibilidade de fazer um monte de coisa, mas isso não necessariamente significa que você consegue entregar algo, porque no fim você precisa de uma mensagem.

E nós aqui (na consultoria política Dharma) acreditamos que essa mensagem vai estar num tripé que envolva melhoria econômica, qualidade de política pública e, em específico, o tema saúde. A covid vai ter um elemento nisso, mas a reflexão sobre o SUS vai ser um elemento importante também.

Nesse aspecto, me parece que Bolsonaro, numa manobra muito arriscada, vai se negar a discutir vários desses temas e vai insistir na ideia do anticorrupção, de "não tem escândalo no meu governo". Ele ganhou uma eleição negando os debates, então isso pode funcionar de novo, não se pode descartar isso.

O Lula vai trabalhar muito com a memória (do seu governo), e essa terceira via, os candidatos que queiram esse voto nem-nem, vão ter que entregar alguma coisa, trazer uma mensagem bem construída.

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BBC News Brasil - Esse cenário de predominância da preocupação econômica na eleição, do aumento da miséria, parece ser um cenário que favorece Lula a trabalhar com a memória do seu governo. Qual seria a fraqueza dele, algo que pode atrapalhar esse caminho?

Souza - Eu creio que o grande inimigo na candidatura do ex-presidente Lula será certamente todo o imbróglio que envolve a Lava Jato. Por mais que o ex-presidente e o partido hoje tenham uma narrativa de dizer que Lula foi inocente, para um número considerável de eleitores isso é uma história muito confusa, muito mal explicada. Muito provavelmente todos os inimigos de Lula farão uso disso de forma muito forte porque o líder da corrida eleitoral sempre é o alvo preferencial.

O Bolsonaro vai tentar tirar uma casquinha, o Ciro vai tirar uma casquinha, o candidato do PSDB vai tirar uma casquinha. É isso, o Lula vai virar a grande vidraça, cada outro candidato vai dar sua tijolada. E talvez por isso o Lula esteja sendo até aqui, muito inteligentemente, bastante parcimonioso em termos de exposição. O Lula não tem ido pra manifestações de rua, ele tem tentado manter uma variável de controle em que ele só dialogue em espaços em que sabe que mesmo quando vier alguma crítica, essa crítica vai ser muito tranquila.

Então, o grande obstáculo pra ele será como lidar com esse passivo. Pra uma parte da sociedade, o Sérgio Moro ainda é um herói nacional. E você precisa de todos os votos possíveis. Não é uma eleição em que as pesquisas estão dizendo que o Lula leva no primeiro turno. Muito provavelmente vai ser uma eleição muito acirrada, com muito tumulto e alguma instabilidade.

BBC News Brasil - Então, embora exista um discurso de que Bolsonaro é autoritário e de que tem que haver uma união das forças democráticas contra ele, na prática Lula, por ser o líder das pesquisas, pode virar o alvo preferencial?

Souza - E esse me parece ser um ponto bem interessante. Em algum sentido, essa fraqueza aparente do Bolsonaro dá a impressão de que qualquer outro candidato pode derrotá-lo, e esse é o principal vetor que impede a construção de qualquer tipo de coalizão. E essa é a melhor chance do Bolsonaro.

Quanto mais fragmentada for essa oposição, quanto mais candidatos existirem, melhor pro Bolsonaro, porque o Bolsonaro tem uma base concentrada de votantes. Se os (demais) votos estiverem muito diluídos em outros nomes, ele está no segundo turno. E segundo turno é aquele negócio que a gente não sabe como termina, é muito difícil pra um candidato em reeleição perder em segundo turno. Esse é um ponto muito crítico e muito importante da conjuntura do ano que vem.

Mariana Schreiber - @marischreiber, de Brasília para a BBC News Brasil, em 16.10.21.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Um Poeta

 Bonfim Tobias                     


                                                                 Apelo Inicial

Por que todos choramos ao nascer,

Se toda esperança nos acolhe?

É a antevisão de ser ou de não ser,

Pois é o destino cego que escolhe?


Como explicar o choro ao nascer?

Será a primícias de um deus que tolhe?

Talvez seja a descrença no querer

Uma vida que surge e não se escolhe?


Por que será o triste nascimento

Em meio a tantos risos e alegrias?

Ou a evidência de um pressentimento


De que a vida será só nostalgia?!

Ou quem sabe é o precoce apelo

De um dia ser feliz sem nunca sê-lo!…

Nos trilhos do crescimento

Marco Legal das Ferrovias será um divisor de águas para a nossa infraestrutura.

Após três anos e meio de tramitação, o Senado Federal aprovou por unanimidade o Marco Legal das Ferrovias. Projeto de minha autoria (PL 261/2018), o texto regulamenta o dispositivo constitucional que prevê a exploração de ferrovias por autorização da União. A matéria ainda vai à Câmara dos Deputados, mas, diante do elevado consenso construído no Senado, deverá ser aprovada ainda neste ano.

O PL resultou de uma preocupação com o baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) dos anos anteriores à sua apresentação (2018). Em 2015, a soma de todas as nossas riquezas havia recuado 3,5%, com nova queda (-3,3%) em 2016. No ano seguinte, um avanço de apenas 1,3%. O contexto não deixava dúvidas: passava da hora de apresentarmos uma alternativa aos gargalos logísticos do País.

Ainda no recesso de janeiro de 2018, nos debruçamos numa agenda fundada na revisão periódica de gastos e limite da dívida como âncora fiscal, além de medidas para aumentar a produtividade da economia. Nesse contexto, apresentei projetos para melhorar a regulação de setores estratégicos para atrair investimentos em petróleo, gás, saneamento básico e ferrovias.

Preocupou-me a excessiva dependência brasileira em relação ao modal rodoviário e seus custos associados. Por isso, focamos a pesquisa num entendimento mais amplo dos gargalos do nosso setor ferroviário e em modelos internacionais bem-sucedidos. Às vésperas da finalização do texto, o Brasil foi surpreendido com a greve dos caminhoneiros, e se viu paralisado de 21 a 30 de maio daquele ano, enfrentando desabastecimento de insumos básicos, inflação e queda do PIB de abril.

Enquanto o governo da época se debruçava em estudos para reduzir a tributação dos combustíveis, responsáveis por 45% do preço do produto, para debelar a greve, o projeto começou a tramitar. Curioso notar que, passados mais de três anos, o atual governo também luta para baixar o preço dos combustíveis com medidas insustentáveis e tenta jogar a culpa pela alta nos impostos estaduais.

O novo Marco Legal das Ferrovias é estruturante, cria um arcabouço regulatório atrativo para o investimento privado em ferrovias e fomentar a competição entres os modais, como forma de controlar os preços de transporte no Brasil. Pus atenção na legislação dos Estados Unidos adotada nos anos 80, que reduziu o preço do frete ferroviário pela metade, além de proporcionar o aumento do volume de cargas e da produtividade, que cresceram, respectivamente, 100% e 150%.

Atualmente, as nossas ferrovias são exploradas nos regimes de concessão e permissão. Processos burocráticos, que não conseguem atender a demanda do mercado, principalmente em linhas de curta distância. Nestes modelos, a regulamentação impõe restrições à atividade econômica da concessionária e, em contrapartida, reduz as incertezas de seu investimento.

No regime de autorizações os riscos são maiores para o investidor, mas este sofre menos controle estatal sobre suas atividades, o que implica mais oportunidades de retorno sobre o capital investido. A nova legislação desburocratizará o acesso ao mercado ferroviário e criará incentivos para a interconexão da malha ferroviária nacional.

Outro aspecto fundamental será a inserção do setor privado na coordenação de ações e na normatização técnico-operacional por intermédio da autorregulação, dando maior celeridade à modernização da indústria ferroviária.

Além disso, as empresas poderão explorar economicamente o entorno das estações, experiência exitosa do Japão. A ideia é criar sinergia entre a exploração ferroviária e imobiliária, por meio da criação de estacionamentos, quiosques, restaurantes, lojas, entre outras áreas comerciais, para aproveitar o grande fluxo de passageiros. Será um poderoso instrumento dos prefeitos para revitalização de áreas urbanas e criação de mais bairros.

Outras importantes inovações foram acrescidas pelo relator do meu projeto no Senado, o senador Jean Paul Prates. Destaco a inclusão de mecanismos para resgate e viabilização de ferrovias abandonadas. A medida permitirá a recuperação de 8 mil km abandonados na malha brasileira. A reutilização da faixa de domínio dessas ferrovias pode representar a economia de 33% no custo total dos novos projetos.

A votação unânime do projeto foi alcançada com a inclusão de dispositivos importantes, como a adaptação dos contratos para permitir a migração das concessionárias de regime público para regime privado, em condições específicas; o investimento cruzado, que garantirá a aplicação de ao menos 50% dos recursos nos Estados em projetos ferroviários; e o compartilhamento da infraestrutura ferroviária, motivo de acalorados debates, que ficou assegurado para as ferrovias concedidas em regime público e restrito para as autorizações em regime privado.

Tenho certeza de que este Marco Legal das Ferrovias trará um novo vigor para indústria ferroviária nacional e será um divisor de águas para a nossa infraestrutura. Agora, caberá à Câmara dos Deputados dar celeridade à sua aprovação, a fim de colocar o Brasil nos trilhos do crescimento.

José Serra, o autor deste artigo, é Senador da República pelo Estado de São Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 14.10.21

Dessalinização da água do mar, a solução para falta de água?

O Relatório Mundial das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos Recursos hídricos 2019 não deixa dúvidas. O uso da água tem aumentado em todo o mundo a uma taxa de cerca de 1% por ano desde a década de 1980, o que se deve a uma combinação de crescimento populacional, desenvolvimento socioeconômico e mudanças nos padrões de consumo. 

A demanda mundial por água deve continuar aumentando a uma taxa semelhante até 2050, o que representará um aumento de 20% a 30% em relação ao nível atual de uso, principalmente devido à demanda crescente nos setores industrial e doméstico’.  Seria a dessalinização uma das soluções? O Mar Sem Fim foi atrás das respostas.

O problema da falta de água tende a se agravar com as mudanças climáticas e, como quase sempre acontece, quanto mais pobres os países, maior a dificuldade ao acesso de água. Não por outro motivo o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável Nº 6 é Água potável e saneamento – garantir a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos.

Mas, seria a dessalinização da água do mar uma das possibilidades? Descobrimos que o País mais adiantado na dessalinização é a Arábia Saudita, país com 33 milhões de habitantes, onde metade do abastecimento de água potável vem da água dessalinizada. Mas, a que custos?

Segundo o New York Times, de outubro de 2019, ‘a Arábia Saudita e outros países do Oriente Médio e do Norte da África estão no centro desse crescimento, com novos grandes projetos de dessalinização planejados ou em construção’.

Mas o jornal confirma o problema dos custos ainda muito altos. ‘Atualmente, a dessalinização é amplamente limitada aos países mais ricos, especialmente aqueles com muitos combustíveis fósseis e acesso à água do mar’.

‘Além do Oriente Médio e do Norte da África, a dessalinização fez incursões em partes dos Estados Unidos com escassez de água, principalmente na Califórnia e em outros países, incluindo Espanha, Austrália e China’.

Dessalinização representa 1% da água doce do mundo

Segundo o New York Times, ‘apesar de um suprimento praticamente ilimitado de água do mar, a água dessalinizada ainda representa cerca de 1% da água doce do mundo’.

E acrescenta: ‘Mesmo na Arábia Saudita, onde vastas reservas de petróleo (e a riqueza que vem delas) tornaram o país o líder mundial da dessalinização, responsável por cerca de um quinto da produção global, há uma percepção de que o processo deve ser mais acessível e sustentável’.

Os custos ambientais da dessalinização

O New York Times também aborda esta questão que é essencial no momento em que o mundo se dispõe a trabalhar para mitigar suas emissões.

‘Também há custos ambientais na dessalinização: nas emissões de gases de efeito estufa pela grande quantidade de energia utilizada, e no descarte da salmoura, que além de ser extremamente salgada, é misturada a produtos químicos tóxicos usados no tratamento’.

Em seguida o jornal explica o método usado na dessalinização até agora, a tecnologia conhecida como…

Osmose Reversa, a tecnologia em uso até agora

O NYT mostra que a principal usina de dessalinização, Kaust, usa a osmose reversa’. E explica como funciona: Primeiro a água é passada por um filtro de areia para separar impurezas.

Em seguida a água passa por um processo de alta pressão, até ’70 vezes a pressão atmosférica, em tubos de aço recheados com membranas em espiral’.

‘Os poros microscópicos nas membranas permitem a passagem das moléculas de água, mas deixam o sal e a maioria das outras impurezas para trás. A água doce sai de tubos de plástico no final de cada tubo de aço’.

O jornal explica que em todo o mundo, quase todas as novas usinas de dessalinização usam osmose reversa, introduzida meio século atrás, apesar de ter sido melhorada desde que surgiu.

Mas, ainda assim, os esforços para combinar energia renovável e dessalinização ainda estão em estágio inicial. Além da osmose reversa, os sistemas mais antigos das usinas de dessalinização térmicas dependem totalmente de combustíveis fósseis.

Usinas de dessalinização térmicas, as mais antigas

As usinas térmicas geralmente estão localizadas próximas a usinas de energia que queimam combustíveis fósseis e usam o excesso de calor da geração de eletricidade para transformar a água do mar em vapor.

Eles usam uma quantidade enorme de energia – em 2009, o ministro saudita de água e eletricidade estimou que um quarto de todo o petróleo e gás produzido no país foi usado para gerar eletricidade e produzir água potável.

As usinas térmicas são atualmente muito mais caras para operar do que as  de membrana. Mas como as  térmicas ainda têm pelo menos um quarto de século de vida, os pesquisadores estão trabalhando em maneiras de torná-las mais eficientes.

Os rejeitos da dessalinização

O New York Times mostra que, independente do método usado, todas as fábricas produzem salmoura concentrada. E os volumes são maiores que a estimativa da indústria, em média um galão e meio para cada galão de água doce produzido.

A maneira do descarte tem sido bombear a salmoura de volta ao mar. Mas a água extremamente salgada pode prejudicar as gramas marinhas e as larvas de peixes, e ainda criar camadas sem oxigênio na água que podem prejudicar ou matar outras criaturas marinhas.

Seja pelos rejeitos, seja pela energia fóssil que ainda toca a maioria das usinas de dessalinização, o caminho até encontrarmos uma solução não será fácil, nem barato.

Usina de domo solar, a novidade

A novidade agora é que a Arábia Saudita anunciou em 2020 a construção da primeira usina de “domo solar” capaz de dessalinizar água. A iniciativa é uma parceria entre o governo do país e a empresa privada Solar Water – com sede em Londres – e tem como objetivo desenvolver uma nova técnica neutra em carbono, livre de produtos químicos poluentes e sem grandes quantidades de eletricidade para transformar água do mar em água potável.

O acordo foi firmado no final de janeiro de 2020 e a criação da fábrica  já está em sua fase final, com previsão de conclusão ainda este ano.

A usina está sendo instalada em Neom, uma megacidade da costa norte do Mar Vermelho. Trata-se de uma cidade planejada para incorporar tecnologias inteligentes e também ser um chamariz para o turismo. O projeto  tem um custo estimado em US$ 500 bilhões, e tudo nela deve ser movido por fontes renováveis.

A nova usina de dessalinização

Segundo o site somagnews, ‘a planta é essencialmente uma panela de aço enterrada no subsolo, coberta por um domo [de vidro], fazendo com que pareça uma bola”, disse David Reavley, presidente da Solar Water . Esta instalação é baseada em uma tecnologia experimental de energia solar concentrada, composta por refletores heliostáticos (com aspecto semelhante a painéis), que focalizam a radiação para o interior da base’.

A nova planta em breve será testada pela Arábia Saudita. Ilustração, https://www.somagnews.com/.

‘O calor armazenado é então direcionado para a água do mar dentro da cúpula, fazendo com que o líquido evapore e se condense para se tornar água potável. O executivo afirma que a construção ecológica também traz como vantagem um valor relativamente baixo e de fácil aplicação, o que pode favorecer seu aproveitamento econômico em várias partes do mundo onde há escassez de água potável, principalmente no Oriente Médio’.

Infelizmente, a matéria do site somagnews não menciona custos, nem rejeitos. Pesquisamos mais e encontramos outra, do site da Arábia Saudita, www.spa.gov.sa.

O site diz que a tecnologia é ‘totalmente sustentável’ e ‘100% neutra em carbono’.  Diz ainda que o sistema ‘reduz significativamente o impacto ambiental, produzindo menor quantidade de solução salina’.

Como se trata de um site do governo da Arábia Saudita, e até agora desconhecido para nós, não sabemos até que ponto podemos confiar em suas informações. De qualquer modo, em breve a nova usina deve entrar em funcionamento, chamando a atenção da mídia. Então voltaremos ao tema.

Imagem de abertura: https://www.somagnews.com/.

Fontes: https://www.unwater.org/publications/world-water-development-report-2019/; https://www.nytimes.com/2019/10/22/climate/desalination-water-climate-change.html; https://www.somagnews.com/saudi-arabia-builds-solar-plant-to-extract-salt-from-sea-water/,https://www.spa.gov.sa/viewfullstory.php?lang=en&newsid=2028374.

João Lara Mesquita para o Estado de São Paulo, em 09 de setembro de 2021.

‘Cobaias’ da proxalutamida: como o Brasil entrou no que pode ser uma das infrações éticas mais graves da história

Estudo com a droga testada no combate ao câncer pode ter levado a 200 óbitos de pacientes internados com covid-19 em três Estados, diz Comissão Nacional de Ética em Pesquisa

Alessandra e Conceição Mota, sobrinha e irmã de Zenite Gonzaga, exibem prontuário médico que comprova tratamento irregular da parente. (Michael Dantas)

Zenite Gonzaga Mota, de 71 anos, começou a sentir os sintomas da infecção por covid-19 no início de fevereiro último. Após uma semana tratando o quadro leve de casa, foi levada pela filha, Alzenira, para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Itacoatiara, no Amazonas, a 270 quilômetros da capital Manaus. Dias depois, acabaria virando ‘cobaia’ de um estudo denunciado como ilegal, financiado por uma rede privada para testar a proxalutamida, uma droga experimental estudada para aplicação em pacientes com alguns tipos de câncer, como o de próstata, pois bloqueia a ação de hormônios masculinos. A promessa é que iria curar a covid-19 de Zenite. O mais grave: nem ela e nem sua família chegou a saber que faziam parte de um experimento mal sucedido, e que coloca o Brasil no centro do que pode ser um dos maiores escândalos da ciência.

Zenite tinha arritmia, apresentava uma queda na saturação de oxigênio e foi diagnosticada com uma infecção no pulmão. Por isso, o médico recomendou a internação por cinco dias no Hospital Regional José Mendes, na mesma cidade, para acompanhamento e tratamento com antibióticos. Ela entrou no hospital andando, e, 30 dias depois, sua família estava lidando com sua morte. O uso de proxalutamida pode ter acelerado sua morte. O experimento foi patrocinado pelo grupo Samel, uma rede de hospitais e planos de saúde da região. No início desta semana, o episódio que culminou no óbito de ao menos outros 200 pacientes, segundo dados da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), foi descrito pela UNESCO como o que poderia ser um dos “mais graves e sérios episódios de infração ética” e “violação dos direitos humanos” de pacientes na história da América Latina.

Quem relata a história de Zenite é Alessandra Mota, 40 anos, sobrinha que a acompanhou durante o mês de internação em Itacoatiara. “Minha tia chegou bem ao hospital, onde deu entrada no dia 6 de fevereiro. Ela estava se alimentando sozinha e indo ao banheiro sem precisar de ajuda. Às vezes inalava um pouco de oxigênio no balão, mas nada anormal naquele contexto”, conta.

Dois dias após a entrada, o Grupo Samel chegou a Itacoatiara. A empresa manauara de assistência médica e hospitalar anunciou, por meio do presidente Luiz Alberto Nicolau, que a cidade amazonense seria a primeira a receber os “benefícios de um medicamento americano de tratamento de câncer que tem um resultado excepcional contra a covid-19″. O remédio é a proxalutamida, que não tem registro no Brasil e não é usada em nenhum tratamento no país. Segundo Nicolau, a pedido do prefeito Mário Abrahim (PSC), a Samel iria aplicar o tratamento em todos os pacientes de covid-19 internados nos hospitais municipais de Itacoatiara com base em um estudo coordenado pelo médico Flávio Cadegiani, com “a expectativa de que faça uma diferença muito grande para a cidade”, segundo divulgado em vídeos nas redes sociais da empresa.

Zenite começou a tomar três cápsulas de proxalutamida por dia em 11 de fevereiro, de acordo com prontuário mostrado por sua sobrinha. No mesmo tratamento, também inalava doses diárias de hidroxicloroquina e tomava ivermectina, medicamentos comprovadamente ineficazes no combate ao novo coronavírus. Alessandra conta que recebia o medicamento em envelopes e que os familiares eram responsáveis por dar a droga aos pacientes. Durante o tratamento, segundo ela, não havia acompanhamento nenhum da equipe médica, nem para averiguar a quantidade e a forma como o paciente recebia o remédio, e muito menos para anotar algum resultado.

“Assim que ela começou a medicação, passou a sentir muita falta de ar”, atesta a sobrinha. Ela conta que também viu Zenite chegar a 170 batimentos cardíacos por minuto, além de passar a apresentar sangramento na urina, hematomas no pé e diarreia por semanas. “Não nos foi explicado o que era o remédio e nem que era um estudo. Só nos passaram um termo que assinamos, porque confiamos nos médicos. As pessoas aqui do interior são humildes, não têm conhecimento e estavam desesperadas”, diz Alessandra.

A família conta que tentou durante 30 dias a transferência da paciente para um hospital de Manaus, mas que o pedido foi negado por diversas vezes pela direção do hospital de Itacoatiara. Quando finalmente conseguiram, Zenite foi levada em “estado debilitado” ao Hospital Delphina Aziz, em Manaus, onde faleceu no dia 13 de março. “Foi em Manaus que começamos a desconfiar. Porque, quando falamos para a médica de lá sobre o tratamento com proxalutamida, ela teve uma reação corporal muito desconfortável”, relata a sobrinha.

Zenite Gonzaga Mota (Arquivo Pessoal)

Zenite não foi a única cobaia do que parece uma pesquisa clandestina com a proxalutamida. A CONEP, órgão do Ministério da Saúde que avalia protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos, concluiu uma investigação onde aponta as irregularidades do estudo coordenado pelo médico Flávio Cadegiani. O órgão chegou a autorizar o estudo com a proxalutamida no começo do ano, mas ressalta que o conduzido no Amazonas envolveu mais pessoas do que havia sido originalmente aprovado (645 participantes, quando o número permitido era 294) e foi realizado com “pacientes em terapia intensiva gravemente enfermos”, o que tampouco havia sido aprovado.

“Pelos fatos e fundamentos apresentados, verificou-se que há diversas contradições nos documentos apresentados à CONEP, o que caracteriza indícios de irregularidade na condução da pesquisa, bem como transgressões das normas vigentes sobre ética em pesquisa envolvendo seres humanos, além da inobservância das boas práticas clínicas na condução do ensaio clínico”, diz o documento assinado pelo coordenador da Comissão, Jorge Venâncio, no dia 3 de setembro. A Agência Nacional de Segurança Sanitária (Anvisa) suspendeu a autorização de importação e uso de proxalutamida no Brasil em 2 de setembro.

Prontuário de Zenite, no dia 11 de fevereiro, com azitromicina e proxalutamida, entre outros medicamentos.

Além de Itacoatiara, a CONEP recebeu denúncias do mesmo estudo em Manaus, Maués e Parintins, em Amazonas, Porto Alegre e Gramado, no Rio Grande do Sul, e Chapecó, em Santa Catarina. Nenhum deles foi autorizado pela Comissão. O caso se une ao de operadoras de saúde como a Prevent Senior e Hapvida, cujos procedimentos questionáveis durante a pandemia chamaram a atenção da CPI da Pandemia e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

No documento de alerta dos Pesquisadores da Rede Latino-americana e Caribenha de Bioética (Redbioética-UNESCO), foi cobrada urgência para apurar o episódio. “É urgente que, se comprovadas as irregularidades, sejam investigados e responsabilizados ética e legalmente todos os envolvidos, incluindo equipes de pesquisa, bem como instituições responsáveis e patrocinadores, nacionais e estrangeiros”, diz o texto.

O registro do tratamento de Zenite com inalação de hidroxicloroquina. (Michael Dantas)

Outro lado

O médico responsável pelo estudo publicou uma nota em sua defesa, onde alega que as declarações dos pesquisadores da Unesco estão “baseadas em premissas falsas”. Flávio Cadegiani diz que “nenhum evento adverso sério decorreu da medicação em teste” e que a CONEP tentou invalidar a pesquisa “após a demonstração de interesse do presidente Jair Bolsonaro pela proxalutamida”, portanto, que a denúncia do órgão de saúde teria motivações políticas. Bolsonaro citou o fármaco como possível novo medicamento eficaz contra a covid-19 no dia 18 de julho, quando recebeu alta após tratamento de obstrução intestinal em São Paulo. “Tem uma coisa que eu acompanho há algum tempo, e nós temos que estudar aqui no Brasil. Chama-se proxalutamida. Já tem uns três meses que isso aí... Não tá no mercado, é uma droga ainda em estudo”, disse na época. No entanto, mesmo o presidente, acostumado a dar declarações negacionistas, ressaltou que “isso existe no Brasil de forma não ainda comprovada cientificamente”.

Cadegiani também ressalta que a CONEP aprovou outros 25 estudos com o uso do mesmo medicamento. “Afinal, se houvesse qualquer mínima suspeita de que a proxalutamida provocou a morte de alguém, a CONEP jamais teria aprovado absolutamente qualquer outro estudo com a droga”, argumenta. Por fim, o médico afirma que foram feitas representações junto ao Ministério da Saúde, Conselho Nacional da Saúde, Controladoria Geral da União e Procuradoria-Geral da República “para as devidas apurações visando resguardar os direitos do pesquisador”. Nesta quarta-feira, o médico destacava em suas redes sociais que a nota da UNESCO sobre o assunto não estava mais acessível. “Nota da Unesco contra nossa pesquisa (baseada em falácias da CONEP) que deu o maior auê na mídia brasileira: retirada do ar. É tudo o que vocês precisam saber para hoje”, escreveu, acrescentando que está “à base de remédio”.


No mesmo sentido vai a defesa de Luiz Alberto Nicolau, presidente do Grupo Samel, que afirma que os óbitos são ligados às pessoas do estudo que receberam placebo, ainda que a CONEP diga que isso não foi provado pela empresa. “Nós servimos, com muito orgulho, de local de uso para provar a eficácia (como foi provada), da proxalutamida. Inclusive, o vazamento de informações sigilosas já são motivo de processo da nossa parte”, comentou Nicolau, além de dizer que as denúncias feitas são questão de “politicagem”.

A CONEP pediu à Procuradoria Geral da República que investigue as condições em que a pesquisa clandestina foi aplicada em vários locais do país. Já existe também uma investigação em curso da Procuradoria do Rio Grande do Sul. A família de Zenite ingressou com uma ação judicial contra o Grupo Samel e a Prefeitura de Itacoatiara pela morte da idosa devido ao “tratamento irregular”, e cobra esclarecimentos. “Eu vi minha tia chegando no hospital com a esperança de que melhoraria em cinco dias. Só na enfermaria em que ela ficou internada, acompanhei muitas pessoas morrendo depois de receberem esse tratamento. Foi um campo de terror, e tenho para mim que não só pela covid-19. O que queremos é que seja investigado”, diz a sobrinha.

DIOGO MAGRI, de São Paulo para o EL PAÍS, em 13.10.21