domingo, 26 de setembro de 2021

Brasil teve política de infecção em massa, diz juíza que atuou no Tribunal de Haia

Para Sylvia Steiner, há provas 'abundantes' contra governo, mas abertura de processo e condenação de Bolsonaro na corte internacional dependerá de decisão do procurador.

Entrevista com

Sylvia Steiner, ex-juíza do Tribunal Penal Internacional

A jurista Sylvia Steiner, em 2016, quando integrava a corte do Tribunal de Haia Foto: ICC-CPI

O relatório final da CPI da Covid deverá ser encaminhado ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda. Única juíza brasileira que já atuou na corte (2003-2016), Sylvia Steiner acredita que há “prova abundante” contra o chefe do Executivo que justifique a abertura de impeachment. Mas avisa que a aberura de processo que leve a uma possível condenação internacional do chefe do Executivo – além de lenta – dependerá da análise do procurador do TPI. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Um grupo de juristas do qual a sra. faz parte entregou à CPI da Covid um parecer com crimes que teriam sido cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro na condução da pandemia. Qual deles a senhora considera o mais grave? 

Para começar, os crimes de responsabilidade, pois as provas são bastante robustas. O crime de causar epidemia, em que há provas, inclusive, científicas pela comparação com outros países de que se tivessem sido tomadas as medidas adequadas no momento certo nós não estaríamos chegando neste número espantoso de 600 mil mortes. O crime de causar epidemia e incitação ao desrespeito às medidas sanitárias está muito bem demonstrado. Essas são condutas que estão muito bem demonstradas. A prova é abundante, até porque as pessoas do governo nunca tiveram muito cuidado em não se expor. 

Um dos prováveis destinos do relatório da CPI será o Tribunal Penal Internacional. Desde o início do mandato, Bolsonaro já foi denunciado outras vezes nesta Corte, mas não houve nenhum encaminhamento. Por quê?

As denúncias que foram encaminhadas ao TPI, foram três ou quatro, tratavam de um problema de má gestão da covid. Falava-se de incompetência, de um problema administrativo, de pessoas incompetentes que estavam gerindo mal uma crise sem precedentes. Quando nós recebemos a documentação da CPI e examinamos — foram 10 mil páginas de documentos, relatórios, transcrições de depoimentos, etc. —, o que ficou demonstrado foi que o problema não era de má gestão. Porque má gestão e ignorância, infelizmente, não são crimes. 

Na sua avaliação, desta vez pode ser diferente?

O que nós vimos com essa documentação é que houve realmente um projeto, uma política propositada de gerar aquilo que vulgarmente se chama de imunidade de rebanho. Sendo uma política, é um elemento de contexto de crime contra a humanidade. A grande diferença é que, depois dessa análise, percebe-se que não era simplesmente ignorância, incompetência e falta de conhecimento. Foi a implementação de uma política de que uma suposta infecção da população geraria um resultado positivo. Isso é uma política, um ataque. Não se usa uma população como cobaia de um teste; isso, em tese, é um crime contra a humanidade. 

Qual sua expectativa para os outros dois prováveis destinos do relatório final da CPI, que deve ser acompanhado do parecer: PGR e Câmara?

Acredito que a CPI vai encaminhar o relatório acompanhado do parecer, mas também como qualquer parte num tema jurídico se pede um parecer e depois se utiliza ou não, pois ele pertence a quem o pediu. Eu presumo que vai ser encaminhado para o Ministério Público e à Presidência da Câmara, sem dúvida nenhuma. Agora, qual vai ser o andamento dado a partir disso, vai depender desses órgãos. O parecer está muito bem fundamentado. Fora isso, a CPI também está sendo assessorada pelo setor jurídico que vai acrescentar novas perspectivas a esses fatos apurados mais recentemente. 

A sra. defende que sejam feitas alterações na lei do impeachment?

Alio-me ao que o professor Miguel Reale Jr. falou. Me parece que tem de ser modificada urgentemente a legislação que deixa esse juízo de conveniência e oportunidade exclusivamente na mão do presidente da Câmara. Isso não pode ser. Esse juízo político preliminar de se há clima político deveria ser feito pelo colegiado da Câmara dos Deputados, por uma maioria simples que fosse. Deixar ao bel-prazer do presidente da Câmara eu acho um verdadeiro absurdo. Essa legislação tem de ser modificada imediatamente. Não se pode concentrar tanto poder assim nas mãos de uma só pessoa. 

Ao fazer a defesa do tratamento precoce na Assembleia-Geral da ONU, o presidente Jair Bolsonaro se autoincriminou?

Não é bem uma questão de autoincriminação, mas reforça aquilo que nós na comissão de juristas expusemos no sentido de analisar as provas da CPI e de que realmente ele, desde o início da pandemia, por alguma razão, botou na cabeça que cloroquina é o tratamento adequado, contrariando a tudo e a todos. Ele apenas reforçou que as nossas conclusões estavam certas. Neste sentido, o parecer fala desde crime de responsabilidade até crime de charlatanismo. Ele apenas reforça as provas que já estão na CPI e mostra isso para o mundo, o que nos deixa bastante incomodados, para não dizer envergonhados.

Em caso de condenação, quais os tipos de pena aplicadas pelo tribunal?

Se houver investigação que se transforme numa ação penal, e ela terminar com uma condenação, o tribunal pode impor pena de reclusão, de até 30 anos, e penas de multas. Mas é algo que, se for adiante, vai ocorrer daqui a seis, sete, oito anos.

A investigação do TPI é uma medida mais simbólica ou pode ter de fato algum efeito?

É difícil dizer, pois, temos um novo procurador (o britânico Karim Ahmad Khan) e ainda não sabemos como vai ser a política adotada por ele. Vai depender muito do julgamento da procuradoria, principalmente sobre a gravidade. Digo isso porque, lamentavelmente, no mundo estão acontecendo inúmeras situações de catástrofes humanitárias, de modo que o procurador é obrigado a fazer uma escolha. É muito difícil antecipar se o procurador vai entender que a conduta do presidente Bolsonaro e de outras autoridades é de gravidade suficiente para justificar a abertura de uma investigação. Atualmente já existem nove investigações em andamento no TPI.

O Tribunal Penal Internacional foi criado como órgão judiciário permanente para tratar de crimes de guerra. Foto: Martijn Beekman/European Pressphoto Agency

Entenda o funcionamento do Tribunal Penal Internacional

O que é e como atua

O Tribunal Penal Internacional (TPI) é uma corte de último recurso para o julgamento de crimes internacionais graves, incluindo genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Seu tratado, o Estatuto de Roma, foi adotado a partir de julho de 1998 por mais de 100 países. O TPI começou a atuar em 2003. Na prática, o TPI, também conhecido como Tribunal de Haia, atua quando as cortes nacionais não conseguem ou não desejam realizar processos criminais. Sendo assim, a formação desse foro internacional geralmente se justifica como um último recurso e só atua se o processo não estiver sendo julgado por outro Estado.

Como é o rito de um processo?

Após a chegada de uma representação, ela passa por uma triagem para ver se estão presentes os requisitos temporais e de competência do tribunal. Se passar, ela vai para uma fase de exame preliminar, que vai discutir se a corte tem jurisdição, se tem competência sobre esse caso, se ele é admissível, e se é de gravidade suficiente para justificar a abertura de uma investigação. Ao final dessa fase, se o procurador decidir que o tribunal é competente, e que o caso é admissível e grave o suficiente, ele pedirá a uma das câmaras a autorização para iniciar uma investigação. Trata-se de um processo lento. Em caso de condenação, o tribunal pode impor pena de reclusão, de até 30 anos, e penas de multas. 

Crimes de Bolsonaro apontados pela comissão de juristas à CPI:

Crime de responsabilidade pela violação de garantias individuais;

Crime de epidemia;

Crime de infração de medida sanitária preventiva;

Charlatanismo;

Incitação ao crime;

Prevaricação; e

Crimes contra a humanidade.

Correções - 26/09/2021 | 14h46

Diferentemente do informado anteriormente, Sylvia Steiner avalia que uma possível condenação futura de Bolsonaro dependerá da análise do procurador Karim Ahmad Khan. A informação já foi corrigida.

Cássia Miranda para O Estado de S.Paulo, em 26 de setembro de 2021 | 05h00 Atualizado 26 de setembro de 2021 | 14h46

Congresso dos EUA convoca ex-assessores de Trump para deporem sobre invasão do Capitólio

Mark Meadows, que foi chefe de Gabinete do ex-presidente, e o ideólogo de ultradireita Steve Bannon estão entre os intimados a depor

Mark Meadows (à esquerda) acompanha o presidente Donald Trump ao deixar o hospital Walter Reed, em 2 de outubro de 2020. (BRENDAN SMIALOWSKI / AFP)

Comissão que investiga ataque ao Capitólio dos EUA questiona papel de Trump no episódio

Quatro dos homens mais leais a Donald Trump foram intimados a depor na CPI do Congresso norte-americano que investiga a invasão do Capitólio em 6 de janeiro. São eles: Mark Meadows, ex-chefe de Gabinete; Daniel Scavino, estrategista digital da Casa Branca no mandato republicano; Steve Bannon, influente ideólogo da ultradireita; e Kashyap Patel, chefe de assessores do ex-secretário de Defesa Christopher Miller. A comissão especial de inquérito, composta por 11 deputados democratas e 2 republicanos, exigiu uma série de documentos e pede aos ex-funcionários que se preparem para depor aos parlamentares em meados de outubro, numa data ainda a definir.

Bennie Thompson, o deputado que preside a CPI, enviou aos quatro ex-assessores presidenciais uma carta em que diz buscar “fatos, circunstâncias e causas” da revolta. O documento afirma que o depoimento deles ajudará a montar o quebra-cabeça do ocorrido naquele dia, e Thompson considera que as testemunhas podem fornecer informações fundamentais para os investigadores.

Os democratas querem remexer o papel de Bannon nos incidentes. O radical assessor participou em 5 de janeiro de uma reunião no hotel Willard, a poucos metros da Casa Branca. No encontro, planejou-se uma estratégia para atrapalhar a confirmação de Joe Biden como presidente-eleito. “Vai ser um deus-nos-acuda”, disse Bannon segundo algumas testemunhas. O fundador do site Breitbart, um meio de comunicação fundamental para o impulso de Trump, foi obrigado a deixar o Executivo em agosto de 2017, mas nunca parou de influenciar o magnata. Prova disso, consideram os democratas, foram suas comunicações com o presidente uma semana antes dos fatos de 6 de janeiro. Donald Trump, por outro lado, indultou Bannon no último dia de sua presidência por uma suposta fraude.

Meadows, que assumiu o cargo de chefe de Gabinete em março de 2020, foi convocado por ter pressionado o Departamento de Justiça e algumas autoridades locais, como as do Novo México, a investigarem acusações sem fundamento de supostas fraudes eleitorais que teriam dado o triunfo ao aspirante democrata nas eleições de novembro de 2020. Os legisladores democratas dizem ter “evidência confiável” de que ao longo do dia 6 de janeiro ele se comunicou “sem parar” com Kashyap Patel, que havia chegado ao Pentágono apenas dois meses antes.

Scavino, por sua vez, esteve com Trump em 5 de janeiro, numa reunião onde se discutiram algumas opções para impedir o reconhecimento da vitória eleitoral de Biden. O funcionário, um dos pouquíssimos sobreviventes dentro do Gabinete após quatro anos de demissões e trocas, era o encarregado de gerenciar as redes sociais e estratégia digital da Casa Branca. Em 6 de janeiro, afirmam os democratas da CPI, tuitou mensagens da sede da presidência. Parte da informação citada pelo comitê está incluída no mais recente livro dos jornalistas Bob Woodward e Robert Costas.

As convocações, enviadas nesta quinta-feira, são parte de uma estratégia mais agressiva da comissão de inquérito para explicar atos tão violentos em um dos lugares mais sagrados de Washington. Os deputados democratas já pediram informação à Casa Branca e inclusive solicitaram a quebra do sigilo telefônico e das redes sociais dos integrantes da turba que deixou cinco mortos. Os republicanos recriminaram essa intrusão.

O ex-presidente Trump disse que lutará contra essas solicitações argumentando um privilégio do chefe do Executivo de manter em sigilo as comunicações e discussões que teve como mandatário com alguns de seus assessores próximos.

LUIS PABLO BEAUREGARD, de Los Angeles para o EL PAÍS, em  24 SET 2021 - 09:54 BRT

O machismo que ainda deseja acender fogueiras para as mulheres que ousam fazer política

As mulheres ocupam apenas 15% das cadeiras do Congresso Nacional, e as poucas representantes nesse espaço ainda lidam com violência machista verbal e simbólica entre seus pares

A senadora Simone Tebet confronta o ministro da CGU Wagner Rosário durante sessão da CPI da Pandemia, no dia 21 de setembro.(LEOPOLDO SILVA / LEOPOLDO SILVA/AGÊNCIA SENADO)

Histérica. Louca. Descontrolada. Bruxa. Os insultos historicamente usados para desqualificar uma mulher aludem a sua sanidade mental, a uma suposta superioridade cromossômica e hormonal dos machos, sempre em controle de si mesmos —e do mundo. Essas ofensas que persistem em pleno 2021 ecoam com maior gravidade quando repetidas a plenos pulmões em espaços políticos, como aconteceu na quarta-feira com a senadora Simone Tebet (MDB), que foi chamada de descontrolada por Wagner Rosário, ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), durante sessão da CPI da Pandemia. “Quando a mulher começou a buscar espaços de poder, ela passou a ser taxada de uma pessoa histérica, uma pessoa louca, uma pessoa descontrolada. Essa palavra não vem à toa, ela está no inconsciente daqueles que ainda acham que mulheres são menores, inferiores”, afirmou Tebet depois do ocorrido.

Por coincidência histórica —ou não—, Tebet foi a primeira mulher a se candidatar à presidência do Senado, em 130 anos de história da Casa do Povo no Brasil, e isso só aconteceu neste ano. Não foi eleita. O Brasil ocupa o 152º lugar no ranking internacional da Inter-Parliamentary Union sobre a presença feminina nos parlamentos, ficando atrás não só dos vizinhos México e Argentina, como também de países como a Somália e até o Afeganistão, antes da volta dos talibãs ao poder. Elas ocupam apenas 15% das cadeiras do Congresso Nacional.

“É por isso que os homens se sentem muito à vontade para tentar diminuir a voz de mulheres. Tanto na plateia, ali, quanto entre seus pares, a imensa maioria ainda é de homens. Isso cria uma ilusória percepção de que há uma hierarquia, porque, afinal, é visual, é numérico”, analisa Giulliana Bianconi, codiretora da revista Gênero e Número e especialista no estudo de mulheres na política.

Um dia antes do ataque a Tebet na CPI, a deputada socialista espanhola Laura Berja foi chamada de bruxa pelo colega ultradireitista José María Sánchex, do partido VOX, enquanto defendia no plenário o direito de mulheres abortarem sem serem acossadas nas portas dos hospitais —o aborto é legalizado na Espanha. Como escreve a colunista do EL PAÍS Luz Sánchez-Mellado, o deputado não apenas desumanizou a colega, mas ressuscitou o fantasma da fogueira, o maior castigo imposto àquelas que, séculos atrás, ousaram desafiar a lógica e o poder dos homens.

“Violências recorrentes nesses espaços de poder estão ficando mais visíveis. No caso da Tebet, houve uma tentativa de desestabilizá-la, de diminuir sua função e limitar o exercício de poder de seu cargo com linguajar de violência que são seculares”, diz Amanda Kamanchek, gerente da Think Olga e diretora do documentário Chega de Fiu Fiu.

Tanto Kamanchek quanto Bianconi ressaltam, no entanto, a importância da reação no caso da agressão à senadora brasileira: imediatamente, Tebet foi apoiada por muitos dos colegas da CPI, inclusive homens, que acusaram o ministro da CGU de “machista” e censuraram sua tentativa de “agredir” a senadora. “Já há uma compreensão de que essa violência não é aceitável. Mas, nos espaços corporativos, por exemplo, essas mulheres continuam sendo chamadas de descontroladas sem ter nenhum respaldo”, lembra a gerente da Think Olga. Trata-se, segundo ela, de uma agressão social e cultural, “um duplo ataque”, que vem não apenas do indivíduo que agride diretamente, mas também do ambiente social, que, muitas vezes, respalda essa violência.

No caso dos espaços da política brasileira, onde a presença de mulheres é uma realidade de menos de três décadas, evocar o estereótipo da mulher que não tem equilíbrio significa reforçar a ideia de que elas não têm vocação ou o dom de ocupar um lugar tão hostil. A deputada federal Tabata Amaral, que esta semana trocou o PDT pelo PSB, tem sido um dos alvos preferidos do machismo político, uma violência suprapartidária e que atravessa todos os espectros ideológicos. No início da semana, o ator José de Abreu compartilhou nas redes sociais uma publicação na qual um homem dizia que “socaria” a deputada “até ser preso” e foi apoiado por tuiteiros de esquerda. Ela própria havia se solidarizado com Simone Tebet, desejando “força” à senadora, e recebeu uma nota de apoio da Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados contra as agressões que sofreu nas redes. “Só teremos uma democracia plena quando as mulheres puderem atuar politicamente de forma segura”, afirmou Amaral.

Só teremos uma democracia plena quando as mulheres puderem atuar politicamente de forma segura. Agradeço as palavras de apoio e solidariedade da
@secmulher, que foi tão importante na construção e aprovação da lei que combate a violência política de gênero!

A deputada publicou um artigo no jornal Folha de  S.Paulo neste sábado em que alude no título ao episódio com o ator (‘Se encontro na rua, soco até ser preso’, retuitou José de Abreu) e reúne algumas das ofensas que recebeu nos últimos anos: “Quem você quer provocar com esse batom vermelho? Linda, não precisava nem abrir a boca. Mocinha, se inscreve no Big Brother, põe um silicone e tenta algo na TV ou na indústria pornô! Foi para Harvard, mas com certeza foi uma aluna medíocre lá. Adiantou pouco ter estudado em Harvard, informou-se até em astronomia, mas não se educou nem aprendeu a pensar. Você é muito burra, meu Deus, como pode. Meu anjo, cala a boca”. “Jamais seremos um país realmente democrático enquanto a política não for um espaço seguro, física e psicologicamente, para as mulheres”, conclui Amaral no artigo.

“Temos que combater essa desqualificação, porque se só mulheres saem em defesa de mulheres, parece que é uma questão meramente feminina, quando, na verdade, trata-se de uma questão de equidade social”, afirma Giulliana Bianconi. A especialista lembra que, desde o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) —que sofreu diversos ataques machistas tanto nas ruas quanto no Congresso antes, durante e depois de seu processo de destituição— o não reconhecimento da importância das mulheres na política se intensificou. “Há uma validação do discurso de ódio contra a mulher no Governo atual, ainda que não seja de forma explícita, mas com uma política que não dialoga com a reivindicação dos nossos direitos”, diz.

Bianconi destaca, por exemplo, que todos os sete Projetos de Lei relacionados aos direitos reprodutivos das mulheres que tramitam na Câmara dos Deputados buscam impedir ou criar barreiras para o acesso ao aborto mesmo nos casos previstos por lei. “Isso mostra que a política brasileira é tão avessa aos nossos direitos que mesmo os partidos e grupos que poderiam trabalhar para ampliá-los se recolhem numa espiral de silêncio, porque é uma pauta que gera muito desgaste. O momento é zero amigável para se caminhar com essas pautas de avanço”, lamenta. Ela lembra que a pesquisadora Debora Diniz, colunista do EL PAÍS, precisou deixar o Brasil justamente por sofrer constantes ameaças ao se destacar como uma voz em defesa dos direitos das mulheres.

Bianconi diz também que, ainda que a representatividade seja sempre importante, a violência política não é diretamente proporcional ao número de mulheres presentes nesses espaços. “Óbvio que quanto mais mulheres na Câmara, no Senado, no Governo, em geral, a reação contra esse machismo vai ser maior, mas essa violência política é um fenômeno por si só e temos que enfrentar seus mecanismos.” O primeiro deles, segundo ela, é a forma como os partidos lidam com as mulheres que ingressam nessas siglas. “É aqui que está o grande funil, é onde vemos muitos casos de desistência de uma carreira nessa esfera, porque elas não têm acesso aos espaços decisórios dentro dos partidos, muito menos acesso aos recursos quando se candidatam. Muitas siglas sequer têm secretarias de mulheres”, conta. Quando se trata de violência machista na política, os pequenos golpes já começam na origem.

JOANA OLIVEIRA, de São Paulo para o EL PAÍS, em  26 SET 2021 - 18:08 BRT.

Eleição alemã deixa sucessão de Merkel em aberto

Disputa acirrada tem leve vantagem social-democrata frente a conservadores, mas nenhum vencedor inconteste. Escolha do novo chanceler federal deve depender de costura de coalizões, que pode se arrastar por meses.

Scholz, social-democrata, e Laschet, conservador, têm chances de governar a Alemanha

Na eleição federal mais pulverizada da Alemanha do pós-guerra, os tradicionais Partido Social-Democrata (SPD) e  União Democrata Cristã (CDU) terminaram o pleito deste domingo (26/09) numa disputa acirrada, com leve vantagem para a centro-esquerda, mas sem um vencedor inconteste. O cenário, com menos de dois pontos percentuais separando ambos os partidos (cerca de 26% a 24%), deixa a sucessão da chanceler federal Angela Merkel em aberto e dependendo de um processo de costura de alianças que pode se arrastar por meses.

O SPD tem como candidato o atual vice-chanceler e ministro das Finanças Olaf Scholz. Já a CDU, o partido de Merkel, é representada por Armin Laschet, atual presidente da legenda e governador do estado da Renânia do Norte-Vestfália. A depender de como vão ser as negociações para a formação de coalizões, um dos dois vai comandar a Alemanha.

O processo deve adiar a aposentadoria de Merkel, que pretende deixar o poder após 16 anos de governo. No pós-eleição de 2017, o processo para a costura de coalizões se estendeu por quatro meses e foi marcado por reviravoltas, resultando em mais uma aliança entre a CDU e o SPD, que não estava nas previsões iniciais de analistas e observadores políticos, que apostavam num governo com conservadores, verdes e liberais.

Para conseguir liderar um governo estável, um pretendente a chanceler precisa garantir mais de 50% dos votos no Parlamento Federal (Bundestag). Como nenhum partido obteve essa marca sozinho, são necessárias a costura de alianças. Nesse pleito pulverizado, tais coalizões muito provavelmente vão ter que incluir três partidos, algo que não ocorre na Alemanha desde o final dos anos 1950.

Na Alemanha, os eleitores não votam diretamente nos candidatos a chanceler, mas em seus partidos. Normalmente, cabe a legenda que conquistar mais cadeiras no Parlamento Federal (Bundestag) e/ou que tem mais chances de liderar a costura de uma coalizão com mais de 50% das cadeiras liderar um governo - e consequentemente escolher o chanceler federal.

Mas também não é inédito que um candidato conquiste a chancelaria sem que seu partido tenha terminado em primeiro lugar nas eleições e que isso aconteça graças a uma costura de alianças. Isso já ocorreu nos pleitos de 1969, 1972, 1976 e 1980. Por isso, Laschet, mesmo em desvantagem em relação a Scholz ainda está no páreo.

Agora, com a fase de negociações, partidos que aparecem na terceira e quarta posições, como os Verdes e Liberais, devem ser cortejados pelos conservadores e social-democratas. É certo que qualquer que seja o próximo chanceler, o novo governo alemão deve ser plural, sem qualquer costura completamente à esquerda ou à direita.

Os ultradireitistas da Alternativa para a Alemanha (AfD), que obtiveram 11% dos votos, são irrelevantes nesse processo de costura de coalizões, já que tanto a CDU e o SPD descartaram qualquer aliança com a legenda radical.

Nem Laschet nem Scholz demonstraram que estão dispostos a desistir de conquistar a chancelaria após o anúncio dos primeiros resultados.

"Faremos de tudo para formar um grupo conservador governo, porque a Alemanha precisa de uma coalizão voltada para o futuro que modernize nosso país", reagiu Laschet.

"É certo que muitos marcaram o SPD nas cédulas porque querem que o próximo chanceler da Alemanha seja Olaf Scholz", afirmou seu rival social-democrata.

Essa foi a eleição alemã mais acirrada desde 2002, quando a CDU e SPD ficaram tecnicamente empatados. 

Os primeiros resultados deste domingo também mostram uma mudança no panorama partidário eleitoral, com nenhuma legenda conquistando uma posição de dominância inconteste. É a primeira vez desde 1949 que nenhum partido conquistou mais de 30% dos votos.  Esse cenário de pulverização também deve resultar num inchaço no número de deputados no Parlamento por causa de peculiaridades do sistema eleitoral alemão.

Esta também foi a primeira eleição desde 1949 que não contou com um chanceler no poder em busca da reeleição. Merkel é a primeira chanceler alemã do pós-guerra que vai deixar o poder por vontade própria.

A campanha ainda foi marcada por um sobe e desce, com três candidatos se alternando na liderança nos últimos meses.

Declínio conservador, mas ainda com chance de virada

Para a União Democrata Cristã de Angela Merkel esse foi o pior resultado da história. Nunca o partido e seu braço bábaro, a CSU, haviam registrado no plano federal uma votação tão baixa desde a sua fundação logo após a Segunda Guerra Mundial. O resultado é ainda mais desolador porque Merkel registra índices de aprovação pessoal que beiram os 80% na Alemanha. Mas essa popularidade não se traduziu em uma enxurrada de votos para seu candidato à sucessão.

Para alguns, a culpa foi do próprio candidato. Armin Laschet, o atual líder da CDU, chegou a largar na frente das pesquisas, registrando índices confortáveis acima dos 30%. Mas uma série de gafes e declarações que geraram controvérsia acabaram minando sua campanha.

Governador do estado da Renânia-Vestfália, o mais populoso da Alemanha, ele perdeu a oportunidade de se projetar como líder após as enchentes que atingiram sua região, em contraste com antigos chanceleres como Helmut Schmidt e Gerhard Schröder, que souberam tirar proveito eleitoral de desastres naturais. No final, sua gestão do desastre foi mais lembrada por gafes e declarações controversas.

Sua campanha ainda sofreu com críticas de que não tinha propostas práticas para o futuro da Alemanha. Laschet foi seguidamente acusado de não saber deixar claro qual seria a marca do seu governo. Já a CDU havia sofrido no início do ano com o desgaste de escândalos envolvendo alguns deputados da sigla que lucraram com negócios envolvendo a gestão da pandemia.

Em declínio, Laschet e Merkel ainda tentaram apostar num discurso de "medo" contra o SPD e os "riscos" de uma eventual coalizão 100% de esquerda no comando da Alemanha, com membros da CDU/CSU fazendo também críticas às propostas dos verdes e afirmando que elas eram prejudiciais à economia.

A tática teve pelo menos o efeito de frear a queda livre de Laschet e ajudá-lo a recuperar terreno na fase final, diminuindo a desvantagem em relação a Scholz.

A depender da costura de coalizões, Laschet ainda pode liderar uma virada para manter a CDU/CSU no poder, mas sua campanha vai carregar a marca de ter obtido o pior resultado da história dos conservadores alemães no pós-guerra.

Merkel e Laschet. Chanceler não conseguiu transferir popularidade para seu colega de partido. Conservadores registraram pior resultado de sua história.

Sobrevida social-democrata

Atual vice-chanceler e ministro das Finanças, o social-democrata Olaf Scholz, de 63 anos, era considerado um "azarão" na campanha eleitoral. Sua campanha chegou a amargar menos de 15% das intenções de voto no primeiro semestre, mas se recuperou conforme a aproximação do pleito.

O crescimento ocorreu em grande parte por causa da própria figura de Scholz, considerado um político pragmático que compensa a falta de carisma como gestor de crises. Com base eleitoral em Hamburgo, Scholz é membro do SPD desde 1975 ele acumula um longo currículo em cargos estratégicos do partido e mandatos de vereador, deputado, prefeito além de ter comandado dois ministérios.

O SPD ainda se beneficiou com erros da campanha dos conservadores.

O social-democrata Olaf Scholz. Sua candidatura freou o declínio de seu partido, mas conquista da chancelaria ainda vai depender de negociações

No final, foi o social-democrata Olaf Scholz, e não Armin Laschet, o candidato apoiado pela atual chanceler, que teve mais sucesso durante a campanha em emplacar entre os eleitores uma imagem de "nova Merkel", ou seja, uma figura de continuidade tranquilizadora. Em agosto, o ministro das Finanças chegou a posar para uma revista imitando o "Merkel-Raute", o gesto com as mãos em formato de losango que é a marca registrada da chanceler.

No entanto, na reta final a campanha de Scholz voltou a perder fôlego e ficou estagnada em 25% das intenções de voto.

Na Alemanha, os eleitores não votam diretamente nos candidatos a chanceler, mas em seus partidos. Normalmente, cabe a legenda que conquistar mais cadeiras no Parlamento Federal (Bundestag) liderar um governo - e consequentemente escolher o chanceler federal.

O resultado é visto com alívio para o Partido Social-Democrata, que assim como outras legendas de centro-esquerda europeias registrou um declínio nas duas primeiras décadas do século. O SDP, que foi fundado em 1853 e ao longo da sua história exerceu influência decisiva na história alemã, desta vez não ampliou sua base de eleitores em relação a eleição de 2017, mas parece ter finalmente estancado as perdas.

A depender da costura de coalizões, com Scholz o partido tem agora a chance de voltar a comandar a chancelaria após 16 anos.

Verdes obtêm seu melhor resultado

Enquanto outros partidos encolheram ou apenas mantiveram seus resultados de 2017, o Partido Verde alemão ampliou significativamente sua votação em relação ao último pleito. De 8,9% há quatro anos, o partido saltou para mais de 14% neste domingo, segundo projeções. Com as mudanças climáticas aparecendo no topo das principais preocupações dos eleitores alemães e uma campanha que foi marcada pelas enchentes devastadoras no oeste do país, os verdes receberam um aumento expressivo de votos.

Tal ganho ocorreu mesmo com os problemas registrados pela candidata do partido a chanceler federal, Annalena Baerbock, que chegou a aparecer brevemente no topo das pesquisas em maio, mas logo perdeu pontos por causa de controvérsias envolvendo acusações de plágio e imprecisões no seu currículo. Os verdes também tiveram que aprender a se diferenciar dos outros partidos.

Com a preocupação ambiental aumentando na Alemanha, todos as legendas - com exceção da ultradireitista AfD - incluíram em seus programas em maior ou menor escala medidas para conter as mudanças climáticas. A resposta dos verdes foi adotar propostas ainda mais incisivas, como a adoção de um cronograma para banir carros com motores de combustão e uma antecipação das metas de abandono de carvão no país. As propostas geraram críticas dos conservadores da CDU/CSU e dos liberais do FDP, que acusaram os verdes de tentar prejudicar a economia. Uma parte considerável do eleitorado, porém, abraçou a agenda ambiciosa do Partido Verde.

Oficialmente chamado de Aliança 90/Os Verdes, o partido foi fundado na Alemanha Ocidental em 1980 por movimentos pacifistas que defendiam a desnuclearização da Europa. Em 1990, eles realizaram uma fusão com seus equivalentes na antiga Alemanha Oriental. O partido era inicialmente conhecido por abordagens consideradas radicais, mas com o tempo passou a focar num programa mais pragmático. Analistas apontam que é praticamente certo que os verdes venham a incluir o futuro governo alemão numa aliança tripartite. A legenda não é estranha ao governo. Entre 1998 e 2005, os verdes foram parceiros de coalizão dos social-democratas sob a liderança do chanceler federal Gerhard Schröder.

A consolidação liberal

O resultado deste domingo também marcou a consolidação do processo de recuperação do Partido Liberal Democrático (FDP). O partido ampliou levemente sua votação nacional, de 10,7% em 2017 para 11,2%, segundo as primeiras sondagens. Nas eleições de 2013, a legenda pró-mercado havia atingido o fundo do poço, não conseguindo ultrapassar a cláusula de barreira de 5% e ficando fora do Parlamento.

Desde então, o partido passou por um intenso processo de renovação, tentando desfazer de afastar da pecha de apenas favorecer os ricos e apostando em um discurso que buscou reforçar sua mensagem liberal, tanto no campo da economia quanto na sociedade. Essa mudança de discurso parece ter gerado efeito entre os mais jovens, 21% dos eleitores entre 18 e 29 anos manifestaram preferência pela FDP numa pesquisa divulgada em agosto. Nesse grupo, os liberais só ficam abaixo dos verdes.

O liberal Christian Lindner (no centro da imagem), que comandou o renascimento do seu partido após uma derrota estrondosa em 2013.

Desde o fim da guerra, os liberal-democratas quase sempre ocuparam um papel tradicional e influente na formação dos governos, atuando como os responsáveis por "coroar" um chanceler de outro partido ao forjarem alianças decisivas. Nos 72 anos da moderna democracia alemã, os liberais passaram 49 deles no papel de parceiros de coalizão de governos federais. O candidato do partido neste pleito foi Christian Lindner, que chefia a legenda desde o debacle de 2013 e é creditado como o principal responsável pela recuperação da legenda.

Após os resultados deste domingo, espera-se que os liberais negociem sua volta como parceiros de um governo. A incógnita ainda é com quais parceiros. Em 2017, Lindner foi amplamente criticado por abandonar abruptamente negociações para uma coalizão com a CDU/CSU de Merkel e os verdes, o que resultou em mais quatro anos de uma coalizão conservadora e social-democrata na chefia do governo.

Após o desgaste provocado pelo episódio, espera-se que Lindner evite tais surpresas desta vez. No entanto, ele deve negociar agressivamente a entrada numa aliança, provavelmente exigindo postos-chaves na condução da economia, o que deve gerar resistências de potenciais parceiros como os verdes e social-democratas. Após o anúncio dos primeiros resultados, ele afirmou que prefere uma coalizão liderada pelos conservadores e com a participação dos verdes, mas não descartou negociar com o SPD. 

A estagnação da ultradireita

Novidade desagradável para o establishment político alemão no pleito de 2017, quando conquistaram pela primeira vez cadeiras no Parlamento, os ultradireitistas da Alternativa para a Alemanha (AfD) não ampliaram seus ganhos nas eleições federais. O partido deve conquistar 12% dos votos, segundo projeções deste domingo, praticamente o mesmo resultado conquistado há quatro anos. Com isso, o partido deve cair de terceira maior força no parlamento para quarta ou quinta posição.

A AfD foi fundada em 2013 inicialmente como um partido eurocético light, na esteira da crise financeira da Grécia, que levantava a bandeira da rejeição de qualquer ajuda dos cofres alemães ao país mediterrâneo.

No entanto, rapidamente o partido passou por um processo de radicalização e adotou posições abertamente nacionalistas e bandeiras anti-imigração. Diversos setores do partido são acusados de ligações com neonazistas e extremistas de direita. Em março deste ano, o partido chegou a ser colocado sob vigilância pelo Departamento de Proteção à Constituição da Alemanha (BfV), mas a medida foi posteriormente derrubada pela Justiça. Mas uma ala extremista do partido,  chamada "Der Flügel", continuou sob vigilância.

Boicotada no Parlamento por outros partidos e sem força suficiente para aprovar ou barrar projetos, a AfD se destacou mais nos últimos quatro anos pelas declarações racistas, xenófobas e incendiárias de seus membros. Brigas internas entre seus membros - muitos deles novatos na política - também dominaram o noticiário sobre o partido.

Considerados párias na Alemanha, parlamentares da sigla também ganharam destaque negativo ao viajar para países que têm governos tão isolados no cenário internacional quanto o partido. Uma deputada da legenda visitou o presidente brasileiro Jair Bolsonaro em julho. Outros parlamentares foram recebidos pela ditadura síria e pelo autoritário governo de Belarus.

Membros da AfD após o anúncio dos primeiros resultados. Agenda radical não atraiu mais eleitores, mas partido conseguiu se fixar na paisagem política.

Nesta campanha, a AfD continuou a apostar no discurso anti-imigração, mas o programa do partido também abraçou o negacionismo da pandemia. Os dois principais candidatos do partido foram Tino Chrupalla, atual copresidente da legenda, e Alice Weidel, líder da bancada do partido no Parlamento. Chrupalla e Weidel fazem parte da ala mais à direita da AfD, leal a Björn Höcke, justamente o líder da "Der Flügel". Oficialmente, a ala foi dissolvida no primeiro semestre pela AfD, mas seus membros continuam a exercer influência decisiva na legenda.

Os resultados de 2021 mostram que esse novo passo na radicalização no partido não se traduziu em crescimento. Ainda assim, a votação deste domingo não deixa de mostrar que um partido radical como a AfD consolidou seu espaço no espectro político alemão e que os resultados de 2017 não foram um acidente pontual.

Ao manter parte do seu terreno conquistado em 2017, a AfD evitou a sina de outros partidos de protesto da história política alemã, como o Partido Pirata, que foi uma sensação eleitoral no país entre 2011 e 2012, entrando em diversos parlamentos estaduais. Pouco anos depois, o Partido Pirata se tornou uma sigla irrelevante da política alemã.

O partido continuou a demonstrar força no leste, em estados que faziam parte da antiga Alemanha Oriental. Na Saxônia, por exemplo, projeções indicam que o partido obteve 25% dos votos locais - mais que o dobro do percentual nacional.

O partido, porém, deve continuar isolado no Parlamento. Conservadores, verdes, social-democratas, liberais e esquerdistas descartam qualquer tipo de coalizão que possa incluir os ultradireitistas da AfD, que são encarados como párias pelo establishment político alemão por suas posições radicais e ligações com extremistas.

Fundada em 1945, a CDU se considera "popular de centro". Seus governos predominaram na política alemã do pós-guerra. O partido soma em sua história cinco chanceleres federais, entre eles Helmut Kohl, que governou por 16 anos e conduziu o país à reunificação em 1990, e Angela Merkel, a primeira mulher a assumir o cargo, em 2005.

Deutsche Welle Brasil, em 26.09.21

Supremo ignora pedidos de investigação contra Bolsonaro por atos do 7 de Setembro

Os pedidos para que o presidente Jair Bolsonaro seja investigado pelo discursos golpistas do 7 de Setembro estão parados no STF.                

Mais de duas semanas se passaram desde as manifestações em Brasília e São Paulo sem que a corte responda aos requerimentos enviados por adversários do Palácio do Planalto.

Situação que ocorre na esteira da chamada Declaração à Nação, nota com a qual Bolsonaro afirmou, dois dias depois dos atos, não ter tido "nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes".

Também de interesse do presidente, vem sendo adiado pelo Supremo nas últimas semanas o julgamento de um processo que discute se o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) tem direito a foro especial no caso das rachadinhas.

Os pedidos de investigação referentes às manifestações do Dia da Independência foram distribuídos à ministra Cármen Lúcia. É da liturgia processual que o Supremo colha a opinião da PGR (Procuradoria-Geral da República) sobre tais requerimentos.

Até a sexta-feira (24), segundo o sistema de acompanhamento processual do STF, a Procuradoria não havia sido acionada.

A Folha enviou um email ao gabinete da ministra e perguntou sobre o assunto, mas não houve resposta até a publicação deste texto.

Após os atos do dia 7 de Setembro, foram apresentadas ao Supremo cinco petições (tipo processual em que os pedidos tramitam) para que Bolsonaro seja investigado.

Em um deles, o vice-presidente da CPI da Covid, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), pediu a abertura de inquérito pela "grave ameaça ao livre funcionamento do Judiciário e pelo uso de recursos públicos para financiar os atos antidemocráticos".

O congressista defendeu ainda que seja apurada a utilização indevida da máquina pública em favor dos atos, por exemplo o uso de helicópteros.

"As ameaças contra o Poder Judiciário, notadamente ao TSE [Tribunal Superior Eleitoral] e ao STF, nas pessoas dos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, são inaceitáveis e apenas confirmam, mais uma vez, que o senhor Jair Bolsonaro não pretende pacificar a relação com os demais", disse Randolfe.

Na avenida Paulista, em São Paulo, o presidente chegou a chamar Moraes, relator de investigações que miram o chefe do Executivo e apoiadores, de canalha e pregou desobediência às decisões do magistrado.

O PDT também bateu às portas do Supremo para defender uma apuração sobre a conduta de Bolsonaro. Afirmou que ele, ao conclamar sua militância a ir às ruas em meio à pandemia da Covid-19, deve ser enquadrado criminalmente. O partido citou o trecho do Código Penal que define como delito o ato de "expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente". Acusou também o presidente de "incitar a desordem nos seus apoiadores, especialmente a instaurar um clima bélico contra o Supremo Tribunal Federal", passível de punição segundo a mesma lei.

A legenda pediu o envio dos autos à PGR "para fins de adoção de todas as medidas necessárias à elucidação dos crimes narrados".

O procurador-geral da República, Augusto Aras, é a autoridade com poderes para investigar o presidente da República. Após os atos do 7 de Setembro, ele não fez qualquer comentário sobre as declarações do mandatário.

Na semana passada, ao ser empossado para seu segundo mandato no cargo, Aras afirmou que "a caneta do procurador-geral da República não será instrumento de peleja política, menos ainda de perseguição".

Aras estava presente na sessão do plenário quando o presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, reagiu às declarações de Bolsonaro. Na ocasião, Fux disse que a ameaça de descumprimento a decisões judiciais, se confirmada, configura "crime de responsabilidade".

Em meio ao agravamento e ao posterior arrefecimento da tensão institucional, com articulações que incluíram o ex-presidente Michel Temer (MDB) e o ministro Gilmar Mendes, o Supremo adiou, mais uma vez, a análise da reclamação do MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) contra a decisão do Tribunal de Justiça do Rio que concedeu foro ao senador Flávio Bolsonaro.

Inicialmente, o julgamento estava marcado para 31 de agosto, mas o relator da matéria, Gilmar Mendes, decidiu adiá-lo a pedido do advogado do senador, Rodrigo Roca. O defensor afirmou que não poderia comparecer à sessão.

Presidente da Segunda Turma, colegiado encarregado de julgar o recurso, o ministro Kassio Nunes Marques indicou o dia 14 deste mês para o julgamento, que não ocorreu. E não há, segundo o tribunal, data marcada para análise.

Os atos de 7 de setembro são alvo de uma apuração do corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Luis Felipe Salomão. O magistrado avalia se houve propaganda antecipada e abuso de poder.

A investigação decorre de indícios de que a mobilização em apoio a Bolsonaro pode ter sido financiada por empresários ou políticos.

O TSE reuniu informações que incluem um vídeo no interior de um ônibus fretado por apoiadores do presidente que participaram da manifestação, além de notícias veiculadas pela imprensa.

Na gravação, segundo informou a corte eleitoral, aparece um homem trajando camiseta com dizeres de apoio ao voto impresso e que distribui dinheiro para os ocupantes do veículo.

Será apurado também se houve pagamento de transporte e diárias a quem participou dos atos e se houve conteúdo de campanha eleitoral antecipada, informou a corte eleitoral.

O material foi enviado à Polícia Federal, para que seja providenciada a transcrição do vídeo e o aprofundamento da investigação.

Marcelo Rocha para a Folha de São Paulo, em 26.09.21

No STF corre um inquérito, instaurado antes do feriado da Independência e sob a relatoria de Moraes, com a finalidade de apurar a mobilização, a organização e o financiamento das manifestações do dia 7.


Bolsonaro não aparece como investigado nele. São alvos, entre outros, o presidente nacional do PTB e ex-deputado Roberto Jefferson, o cantor Sérgio Reis e o caminhoneiro Marco Antonio Pereira Gomes, conhecido como Zé Trovão, este foragido do país e contra quem há uma ordem de prisão a ser cumprida.

Casas de aposta esportiva tomam o Brasil, mas movimentam seus bilhões de reais fora do país

Atividade é legalizada há três anos, mas uma legislação precária faz que empresas operem com sede no exterior. Popularização levanta debate sobre consequências psicológicas como a dependência

São Paulo e Fluminense se enfrentam pelo Brasileirão, ambos os times patrocinados por casas de aposta. (LUCAS MERÇON / FLUMINENSE FC)

Se você fosse apostar, diria que atuam no Brasil quantas casas de aposta esportiva? E quanto dinheiro fazem circular? Permitidos há apenas três anos, os cerca de 450 sites ativos no país já movimentam em torno de 12 bilhões de reais anualmente —e patrocinam 19 dos 20 clubes mais importantes do futebol nacional. Os números sintetizam o espantoso crescimento do mercado, que convence fãs de esporte a investirem seu dinheiro com a promessa do lucro sem esforço. Apesar do sucesso, a atividade ainda não tem a devida proteção da legislação brasileira. Por receio, as empresas que operam no Brasil estão sediadas no exterior. Assim, não pagam impostos e podem oferecer também jogos de azar —ilegais no país—, por não responderem à legislação brasileira. Além disso, trazem junto grandes riscos de dependência psicológica.

Do ponto de vista jurídico, estar legalizado é diferente de estar regulamentado. As apostas esportivas são permitidas no Brasil desde dezembro de 2018, quando se estabeleceu um prazo de até quatro anos para que a atividade fosse regulamentada. Desde então, contudo, a única mudança na legislação, em julho último, foi uma alteração na forma de tributação das empresas que realizam apostas esportivas. O advogado André Fehér explica que falta esclarecer “questões de tributação e limitações da operacionalização das apostas esportivas, entre outros fatores”.

Até que isso seja resolvido, as empresas seguirão fora do país, para não se exporem à Lei de Contravenções Penais, que veda a exploração e estabelecimento de jogos de azar. Esse conceito ainda permeia debates sobre apostas esportivas, apesar da legalização recente, diz Fehér. A Sportingbet, uma das casas mais famosas, é sediada em Londres. Outras preferem os populares paraísos fiscais, onde o sistema tributário oferece vantagens. A Betano, por exemplo, se estabeleceu em Malta, enquanto a Dafabet fica nas Filipinas.

Os obstáculos da lei brasileira não impediram o crescimento do mercado. Levantamento da H2 Gambling Capital, consultora de jogos e apostas, indica que a atividade faturou cerca de 12,5 bilhões de reais no Brasil em 2020. Globalmente, o valor chegou a 59,6 bilhões de dólares (mais de 300 bilhões de reais). Essas casas de apostas patrocinam 19 dos 20 clubes brasileiros da primeira divisão do campeonato nacional, por meio de estampas nas camisas e campanhas virtuais.

Grupos como Dafabet, Casa de Apostas, Betano, Betmotion, Betsul, Netbet, Sportsbet.io, Galera.bet, Amuleto Bet e Marsbet preenchem com propagandas as grades televisivas dos principais canais esportivos do país e se escoram em figuras de renome do cenário, como o ex-jogador Denílson, rosto da Sportsbet.io no Brasil, e os lutadores de MMA Wanderley Silva, Fabrício Werdum e Lyoto Machida, que aparecem em todas as publicidades da Sportingbet.

Página inicial do site da Betano, com diversos esportes e possibilidades de apostas.

“Comecei com 100 reais, hoje ganho até 4.000 por mês”

Rodrigo Barros, de 44 anos, conheceu as apostas virtuais em 2016, e se tornou um apostador diário desde de setembro do ano passado. Ele tinha uma agência de turismo em Orlando, nos Estados Unidos, mas voltou ao Brasil por conta da pandemia. Desde então, complementa a renda com as apostas. “Fui atraído pelos anúncios de ganhar dinheiro com futebol no conforto de sua casa”, conta. “Na primeira vez, coloquei 100 reais e perdi em cinco minutos. Aí coloquei mais 100 reais e fui persistindo. Hoje, começo todo mês com uma banca inicial de 5.000 reais e, ao fim dele, lucro de 3.000 a 4.000 reais”, explica.

Para se cadastrar numa casa de apostas, basta ter mais de 18 anos, fornecer um email, criar um usuário e senha. A partir daí, as transações são feitas por cartão de crédito, pix ou boleto. E as apostas vão muito além de quem vai ganhar ou perder o jogo. As combinações possíveis são infinitas, como tentar adivinhar quantos gols uma equipe fará, quantos cartões amarelos terão no jogo ou até quantos escanteios acontecerão até o fim do primeiro tempo. Casar diferentes apostas, juntando mais de um jogo ou mais de uma estatística, costuma dar um retorno ainda maior. E as apostas não se limitam ao campeonato brasileiro, e muito menos ao futebol, contemplando inclusive os e-sports.

“Não é só dar dois cliques e apostar, exige um estudo e um conhecimento geral de todos os times. Quem quer levar como um investimento precisa fazê-lo de forma séria”, argumenta Barros. As especificidades fizeram surgir até comunidades de especialistas que dão dicas e acumulam milhares de seguidores em canais do YouTube e grupos no Telegram, chamados de traders esportivos.

Risco de dependência

O próprio apostador, que visita os sites todos os dias, confessa que os jogos oferecem um grande risco dependência, entre outros problemas psicológicos. “Conheço pessoas que perderam muito dinheiro.” Barros diz que, para evitar que o mesmo aconteça, adotou um stop loss —um valor que, se perdido em um dia, o obriga a pausar. Além disso, diz que a melhor forma de prevenir é não se desesperar pelo que perde e nem se empolgar com o que ganha.

Hermano Tavares, psiquiatra e especialista em dependências e transtornos do jogo, diz que “apostar ativa a mesma região cerebral despertada pela sensação de comer, fazer sexo ou usar drogas de abuso”. “Não quer dizer que necessariamente causa dependência, mas tem um risco muito grande”, esclarece. Tavares considera “absurdo” não conseguir ver um jogo de futebol na TV sem ser bombardeado por publicidade de casas de aposta. Segundo ele, “quanto mais longe ficam dos jogos ou apostas, melhor estão” seus pacientes.

O debate deve ser amplificado com a regulamentação da atividade, prevista para sair até 2022. A última mudança na lei, em julho, favoreceu os empresários ao mudar o sistema de tributação da atividade, o que “sem dúvidas é uma tentativa do Governo de facilitar a entrada dessas empresas”, segundo André Fehér —e o consequente recolhimento de impostos. De acordo com o levantamento da Money Times, o mercado tem o potencial de arrecadar 74 bilhões de reais brutos em caso de regulamentação no país, o que geraria até 22,2 bilhões em receitas tributárias.

“A regulamentação é o desejo da grande maioria dos stakeholders da indústria de gambling e a SECAP [Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria do Ministério da Economia] está trabalhando arduamente para isso”, diz Udo Seckelmann, advogado especialista na indústria de apostas. “Não acho que existirá um afrouxamento das regras federais em prol da arrecadação tributária, mas uma tentativa de adoção das melhores práticas internacionais —as quais buscam um mercado seguro e lucrativo, mas não muito burocrático e custoso para operadores.”

Essa “adoção de práticas internacionais” pode significar também a liberação de outros jogos de azar. A maioria das empresas do ramo que operam no Brasil não oferece somente as legalizadas apostas esportivas, mas jogos de cassino, ilegais no país, e tiram deles grande parte da arrecadação. “Não existe justificativa plausível para que um seja legal, e o outro não. Caso os operadores obtenham uma licença para operar no Brasil, eles serão obrigados a limitar o leque de produtos que ofereceriam aos brasileiros”, pontua Seckelmann. “Isso pode afastar muitas empresas de se regularizarem no Brasil, então esperamos que os demais jogos de azar sejam legalizados em breve. Entendo que hoje vivemos uma tempestade perfeita para a indústria de gambling no Brasil”, admite.

Novamente, a regulamentação e popularização da atividade levanta questões de ordem sanitária. O psiquiatra Hermano Tavares classifica a “tempestade perfeita” como “revoltante” e diz que o assunto não é discutido seriamente pela indústria e pelas autoridades brasileiras. “Se fala em legalizar, mas não em medidas de prevenção e controle social.” Para ele, grande parte dos impostos arrecadados deveria ser destinado à saúde pública, para campanhas de prevenção e sistemas de fiscalização de sonegação. “É um mercado pode gerar muitos problemas, como dívidas, desemprego e depressão, e isso não é considerado do jeito que deveria”, finaliza.

A reportagem tentou contato com as casas de aposta Sportsbet.io, Sportingbet, Betfair, Betano e Dafabet. A Dafabet respondeu que não poderia atender aos questionamentos por “política interna da empresa”. O restante não retornou os pedidos até o fechamento da edição.

DIOGO MAGRI, de São Paulo, em  25 SET 2021 - 09:21 para o EL PAÍS.

Por que o brasileiro não para de votar em corruptos?

Dos políticos eleitos em 2018, 35% respondem a processos. Mas logo serão reeleitos, como ocorre há décadas. É como se parte dos brasileiros invejasse a vida de clãs políticos, nepotistas e burladores da Justiça.

Certas notícias despertam pouca atenção no Brasil por fazerem parte da normalidade deste país. Os brasileiros se acostumaram a elas, no fundo não esperam mais outra coisa. Mas são notícias que em mim continuam despertando incompreensão e cólera.

Quando as conto aos meus conhecidos na Alemanha, em geral me perguntam, cheios de perplexidade: "E essa gente está no poder, no Brasil? Eles não renunciam por conta própria, quando algo assim vem à luz? Ou são forçados a renunciar?" Aí eu sempre digo: "É pior ainda, porque essa gente é até eleita vez após vez. Parece que os brasileiros, de certa maneira, os admiram."

Mas cada coisa a seu tempo. O estopim imediato da minha indignação é Ciro Nogueira, atual ministro-chefe da Casa Civil do presidente "anticorrupção" Jair Bolsonaro. Quando ainda era senador, ele ganhou o questionável título de "campeão de gastos com locomoção, hospedagem, alimentação e combustíveis".

Nenhum senador gastou mais dinheiro de vocês, queridos leitores, para fins que, na minha opinião, deveriam ser pagos por ele mesmo. Entre janeiro e julho de 2021, o atual ministro gastou R$ 263.300 dos cofres públicos somente para abastecer seu jatinho, que costumava usar nas viagens para Brasília. O salário mensal de um senador da República é de R$ 33.763.

Nepotismo sistêmico

Quando Nogueira, hoje com 52 anos, foi nomeado ministro-chefe da Casa Civil, a mãe dele foi atrás, ocupando uma vaga de senadora. O que em democracias funcionantes seria proibido como nepotismo é perfeitamente normal no Brasil. Aqui, os políticos fundam pequenos impérios familiares, empurram os cargos de um lado para o outro, dentro do clã. Em 2017, seis de cada dez parlamentares tinham parentes na política. O Congresso brasileiro, portanto, não representa o povo brasileiro: é um negócio de certas famílias.

Do avô ao neto, passando pelo filho, cargos políticos são herdados, e postos lucrativos, entregues a tios, tias, sobrinhas, sobrinhos e amigos íntimos da família – fazendo pensar mais em feudalismo do que em democracia. Em 2015 veio à tona o caso de Bonifácio de Andrada: em seu décimo mandato na Câmara, ele representava a quinta geração de um clã que, nos últimos 194 anos, já teve outros 14 representantes no órgão legislativo brasileiro.

E enquanto isso, os brasileiros se perguntam: por que nossa política nunca muda? Por que algumas famílias acumulam riquezas e terras inimagináveis, enquanto a maioria da população vive no limite da pobreza?

E assim voltamos à mãe de Ciro, Eliane Nogueira. Parece que o Senado não vai economizar muito com ela, que repete o hábito do filho de gastar o dinheiro dos brasileiros para o próprio conforto e já apresentou notas fiscais no valor de R$ 14.200 em combustível para o seu jatinho.


Quando senador, Ciro Nogueira ganhou o título de "campeão de gastos com locomoção, hospedagem, alimentação e combustíveis".

Assim se criam monstros

O caso é emblemático da arrogância de grande parte da classe política do Brasil. Aqui muitos não entram para a política com a intenção de melhorar algo para a população, fazer algo pela educação, justiça, proteção ambiental, segurança e saúde dos brasileiros, mas para usufruir pessoalmente dos privilégios que o disfuncional sistema político do país garante.

Na Alemanha, os políticos eleitos são também chamados representantes do povo. No Brasil, eles são representantes de si mesmos e de seu clã. Os únicos que poderiam mudar esse sistema são os próprios políticos, e estes não vão mover uma palha para limitar os próprios privilégios. Eles vivem como pinto no lixo, desfrutam de restaurantes, hotéis e viagens caros, pagos pelo contribuinte.

Um ótimo exemplo é o clã Bolsonaro. Perfeitos representantes do neofeudalismo brasileiro não são só os três filhos mais velhos – que estão sendo investigados por corrupção, e dos quais ninguém até hoje sabe o que é mesmo que fazem na vida, além de suas carreiras políticas – mas também o caçula, Jair Renan Bolsonaro.

As escapadas dele mostram de forma exemplar como o poder deforma certos indivíduos. "Há uma fera em cada ser humano, quando se coloca uma espada na mão dele" – é como dizem na série Game of Thrones.

No Twitter, Jair Renan descreveu o que considera um dia perfeito. "Bom dia rapaziada. Então, com vocês aí, melhor jeito de acordar: tomando um suquinho, comendo um pão de queijo, visitando a loja de um grande amigo meu aqui: Júnior. Sabe o que o cara vende? Arma, brinquedo." O rapaz, ao que tudo indica, não estuda, não trabalha, apenas aproveita a vida com o dinheiro e os contatos proporcionados pelo pai e os irmãos mais velhos. Assim se criam monstros.

Decadência moral generalizada

Tenho certeza de que no próximo pleito os brasileiros vão reeleger Aécio Neves, Fernando Collor, Eliane Nogueira, o palhaço Tiririca e os cerca de 35% dos deputados e senadores que já elegeram em 2018 embora a Justiça os esteja processando por corrupção, lavagem de dinheiro, assédio sexual, fraude e numerosos outros delitos. Trata-se de 160 parlamentares e 38 senadores. Quem sabe também Michel Temer e Eduardo Cunha voltem a ocupar cargos na política.

E é o próprio governo Bolsonaro que contribuiu, através de seu próprio exemplo, para a banalização da corrupção e do nepotismo.

Um dos financiadores dos atos bolsonaristas do Sete de setembro, Antônio Galvan, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil). já foi multado por desmatar 500 hectares de vegetação nativa e vender soja sem nota fiscal. Também responde na Justiça por plantio clandestino de grãos e por uma tentativa de invasão de terra numa fazenda vizinha à sua.

Essa é a gente de bem do bolsonarismo. Gente que representa a suposta elite política e econômica deste país. E os brasileiros a elegem. Repetidamente, a cada quatro anos. Já há décadas.

Por isso acho que muitos se identificam com eles. Também gostariam de enriquecer à custa da coletividade e de burlar a Justiça. Como nenhum outro, o atual governo contribuiu com seu nepotismo, suas mentiras e sua moral dupla para essa decadência moral generalizada.

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Philipp Lichterbeck, o autor deste artigo, queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio. Publicado oriiginalmente por Deutsche Welle Brasil, em 22.09.21

A CORRUPÇÃO ATRAVÉS DA HISTÓRIA DO BRASIL

As origens

A colonização do Brasil foi baseada na concessão de cargos, caracterizada pelo patrimonialismo (ausência de distinção entre o bem público e privado) e o clientelismo (favorecimento de indivíduos com base nos laços familiares e de amizade). Apesar de mudanças no sistema político, essas características se perpetuaram ao longo dos séculos.

Por que é possível pegar covid mesmo vacinado, como o ministro Queiroga

O diagnóstico positivo para covid do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, durante viagem do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e comitiva aos Estados Unidos para a Assembleia Geral da ONU vem dominando o noticiário e reacendeu o debate sobre a eficácia das vacinas.

Marcelo Queiroga foi vacinado com duas doses

Pelo Twitter, Queiroga anunciou que está com coronavírus — diferentemente de Bolsonaro, no entanto, ele diz ter sido vacinado com as duas doses. A informação foi confirmada em nota divulgada pela Secretaria Especial de Comunicação Social.

De acordo com o comunicado, o ministro passa bem. Os demais integrantes da comitiva foram testados e receberam diagnóstico negativo para a doença.

O ministro terá que cumprir quarentena na cidade por 14 dias antes de retornar ao Brasil. Ele foi o segundo integrante da equipe presidencial a contrair o vírus nos Estados Unidos. Antes dele, um diplomata que foi enviado para preparar a viagem de Bolsonaro à ONU também recebeu resultado positivo para a covid-19.

"Comunico a todos que hoje testei positivo para Covid19. Ficarei em quarentena nos EUA, seguindo todos os protocolos de segurança sanitária. Enquanto isso, o Ministério da Saúde seguirá firme nas ações de enfrentamento à pandemia no Brasil. Vamos vencer esse vírus", escreveu ele, em sua conta pessoal no Twitter.

Queiroga não é o primeiro caso de infecção após duas doses. Em julho, a apresentadora Ana Maria Braga, por exemplo, diz ter tido covid mesmo depois de ter sido duplamente vacinada.

Outras personalidades, também duplamente vacinadas, morreram mesmo depois de imunizadas — como o ator Tarcísio Meira, em agosto.

Mas o que explica a infecção por covid mesmo depois de a vacinação com as duas doses?

Em primeiro lugar, nenhuma vacina para covid é 100% eficaz — como, aliás, nenhum imunizante é, mesmo aqueles que estão disponíveis há décadas para outras enfermidades, como sarampo, gripe e catapora.

Mas estudos científicos apontam há meses que elas têm uma boa eficácia para barrar os casos mais graves das doenças que combatem.

Por isso, especialistas advertem que, no caso da covid, todos devem continuar se cuidando com o distanciamento físico e o uso de máscaras, até que uma grande porcentagem da população esteja vacinada e a pandemia fique controlada, com números de casos e mortes bem baixos.

Nos EUA, por exemplo, onde Queiroga provavelmente contraiu o vírus, os números de casos confirmados estão subindo, assim como o de mortes — a imensa maioria entre não vacinados.

Há algumas hipóteses para isso, entre as quais o ceticismo de muitos americanos quanto ao imunizante — para se ter uma ideia, hoje o Brasil tem uma proporção de vacinados com a primeira dose (68,57%) maior do que a dos Estados Unidos (63,11%), segundo dados da plataforma Our World in Data, ligada à Universidade de Oxford.

Outras suposições estão relacionadas a tipo de imunizante, tempo desde a vacinação, variantes e ao sistema imunológico (leia mais abaixo).

Também é preciso lembrar que os efeitos protetores da vacina só chegam ao auge somente 14 dias depois da imunização.

Infecção 'breakthrough'

Portanto, se você ainda tiver covid-19 depois de duas semanas da segunda dose, como foi o caso de Queiroga, você sofreu uma infecção "breakthrough" (invasiva), ou seja, quando uma pessoa é infectada mesmo tendo recebido vacina contra uma doença.

Em termos gerais, as infecções breakthrough são semelhantes às infecções comuns de covid-19 em pessoas não-vacinadas — mas existem algumas diferenças.

De acordo com o estudo Covid Symptom Study, os cinco sintomas mais comuns de uma infecção breakthrough são dor de cabeça, coriza, espirros, dor de garganta e perda do olfato. Alguns desses sintomas são os mesmos sentidos por pessoas que não se vacinaram.

Se você não foi vacinado, três dos sintomas mais comuns também são dor de cabeça, dor de garganta e coriza.

No entanto, os outros dois sintomas mais comuns em pessoas não-vacinadas são febre e tosse persistente. Esses dois sintomas "clássicos" da covid-19 se tornam muito menos comuns depois que você recebe as vacinas. Um estudo descobriu que pessoas com infecções breakthrough têm 58% menos probabilidade de ter febre em comparação com pessoas não-vacinadas. Em vez disso, a covid-19 após a vacinação tem sido descrita como sensação de resfriado por muitos.

Pessoas vacinadas também têm menos probabilidade do que pessoas não-vacinadas de serem hospitalizadas caso tenham covid-19. Elas também são propensas a ter menos sintomas durante os estágios iniciais da doença e são menos propensas a desenvolver covid longa.

O motivo para a doença ser mais branda em pessoas vacinadas pode ser porque as vacinas, quando não bloqueiam a infecção, parecem fazer com que as pessoas infectadas tenham menos partículas de vírus em seu corpo. No entanto, isso ainda não foi comprovado.

O que aumenta o risco?

No Reino Unido, pesquisas descobriram que 0,2% da população — ou uma pessoa em cada 500 — sofre uma infecção breakthrough depois de totalmente vacinada. Mas nem todos correm o mesmo risco. Quatro fatores parecem contribuir para seu nível de proteção com a vacina.

1. Tipo de vacina

O primeiro é o tipo específico de vacina que você recebeu e a redução do risco relativo que cada tipo oferece. A redução do risco relativo é uma medida de quanto uma vacina reduz o risco de alguém desenvolver covid-19 em comparação com alguém que não foi vacinado.

Ensaios clínicos descobriram que a vacina Moderna reduz o risco de uma pessoa desenvolver covid-19 sintomático em 94%, enquanto a vacina Pfizer reduz esse risco em 95%. As vacinas Johnson & Johnson e AstraZeneca tiveram pior desempenho, reduzindo esse risco em cerca de 66% e 70%, respectivamente (embora a proteção oferecida pela vacina AstraZeneca parecesse aumentar para 81% se um intervalo maior fosse deixado entre as doses).

2. Tempo desde a vacinação

Mas esses números não dão o quadro completo. Está se tornando cada vez mais evidente que o tempo decorrido desde a vacinação também é importante e é uma das razões pelas quais o debate sobre as imunizações de reforço está crescendo em intensidade.

Pesquisas iniciais, ainda em pré-publicação (ainda não revisadas por outros cientistas), sugerem que a proteção da vacina Pfizer diminui ao longo dos seis meses após a vacinação. Outro artigo pré-publicação de Israel também sugere a mesma coisa. É muito cedo para saber o que acontece com a eficácia da vacina depois de seis meses da segunda dose, mas é provável que ela caia ainda mais.

3. Variantes

Outro fator importante é a variante do vírus que você está enfrentando. As reduções no risco acima foram calculadas testando vacinas contra a forma original do coronavírus.

Mas, ao enfrentar a variante alfa, os dados da Public Health England sugerem que duas doses da vacina Pfizer são ligeiramente menos protetoras, reduzindo o risco de sintomas de covid-19 em 93%. Contra a delta, o nível de proteção cai ainda mais, para 88%. A vacina AstraZeneca também é afetada.

O estudo Covid Symptom Study confirma tudo isso. Seus dados sugerem que em duas a quatro semanas após receber a segunda dose da Pfizer, você tem cerca de 87% menos probabilidade de ter sintomas de covid-19 ao enfrentar a variante delta. Depois de quatro a cinco meses, esse número cai para 77%.

4. Seu sistema imunológico

É importante lembrar que os números acima se referem à redução média do risco em uma população. O seu próprio risco dependerá de seus próprios níveis de imunidade e de outros fatores específicos da pessoa (como o grau de exposição ao vírus, que pode ser determinado pelo tipo de trabalho que você faz).

A aptidão imunológica geralmente diminui com a idade. Condições médicas de longo prazo também podem prejudicar nossa resposta à vacinação. Idosos ou pessoas com sistema imunológico comprometido podem, portanto, ter níveis mais baixos de proteção induzida por vacina contra covid-19 ou podem ver sua proteção diminuir mais rapidamente.

Também vale a pena lembrar que os mais vulneráveis clinicamente receberam vacinas primeiro, possivelmente há mais de oito meses, o que pode aumentar o risco de sofrer uma infecção inicial devido ao declínio da proteção.

Vacinas têm boa eficácia, mas não protegem 100% contra nenhuma doença

As vacinas ainda reduzem muito suas chances de contrair covid-19. Elas também protegem em um grau ainda maior contra hospitalização e morte.

No entanto, é preocupante haver mais infecções breakthrough, como a de Queiroga. O temor é que elas possam aumentar se a proteção da vacina, como se suspeita hoje, cair com o tempo.

Portanto, muitos países ao redor do mundo, como o Brasil, estão oferecendo uma terceira dose aos mais vulneráveis e também considerando se os reforços devem ser dados mais amplamente ao restante da população.

Mas mesmo que eles venham a ser usados, isso não deve ser interpretado como "vacinas não funcionam".

E, enquanto isso, é essencial promover a vacinação para todos aqueles que possam ser vacinados mas que ainda não foram, advertem os especialistas.


Ganho individual ou um bem coletivo?

Quando tomamos uma vacina, sempre pensamos em nossa própria saúde: na maioria das vezes, o objetivo é diminuir o risco de pegar determinada doença infecciosa.

Mas precisamos ter em mente que o benefício da vacinação vai muito além de nós mesmos.

Quando nos protegemos, estamos beneficiando por tabela toda a sociedade.

Afinal, o imunizante pode quebrar as cadeias de transmissão de um vírus (quando ele é capaz de prevenir a infecção) ou diminuir o risco de superlotação dos leitos hospitalares (quando ele minimiza as chances de evolução para os quadros mais graves).

Mas há um detalhe importante nessa história. Esses efeitos positivos só costumam ser sentidos quando uma parcela considerável da população está efetivamente imunizada.

"A vacina é, principalmente, um bem coletivo. E esse impacto individual, de proteção contra determinada doença ou suas formas mais graves, cresce à medida que uma maior parte da população é vacinada", explicou a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas, nos Estados Unidos, em entrevista recente à BBC News Brasil.

Publicado originalmente por BBC News Brasil, em 22.09.21