terça-feira, 10 de agosto de 2021

Blindados nas ruas aumentam racha na base do governo no Congresso

Após desfile bélico, partidos se reúnem e Centrão apresenta maior divisão interna sobre PEC do voto impresso

       Desfile de tanques da Marinha na Esplanada dos Ministerios nesta terça-feira, 10, data em que a Câmara analisa PEC do voto impresso. (Foto: Gabriela Biló/ESTADÃO)

O desfile bélico na Praça dos Três Poderes, na manhã desta terça-feira, 10, serviu para aumentar o racha no Centrão sobre a proposta de emenda constitucional que institui o voto impresso nas eleições de 2022. Se na comissão especial da Câmara que derrubou a proposta, há cinco dias, já se podia verificar a divisão da base governista, depois que blindados se exibiram nos arredores do Congresso o quadro só piorou. A tendência é que o Palácio do Planalto sofra agora uma derrota maiúscula no plenário da Câmara. 

Até mesmo o Progressistas, partido do presidente da Câmara, Arthur Lira (AL) e do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, apresentava divisões. Antes da votação, vários deputados de partidos da esquerda à direita se reuniram e discutiram a importância de dar uma resposta “à altura” ao que classificaram como uma afronta ao Congresso. 

Lira também promoveu um encontro com líderes de bancadas na residência oficial da Câmara. Disse que o presidente Jair Bolsonaro havia lhe garantido que aqueles exercícios militares não tinham qualquer relação com a análise do voto impresso. Admitiu, no entanto  que, com o clima polarizado, o ato acirrou os ânimos e jogou mais combustível na crise. “Mas o que é preciso, neste momento, é que não haja nem vencidos nem vencedores”, afirmou Lira. 

A ordem política para a Marinha desviar seus tanques e lançadores de mísseis para a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios, porém, partiu do próprio Bolsonaro e do ministro da Defesa, Walter Braga Netto, como mostrou a colunista Eliane Cantanhêde. No Congresso, antes mesmo da votação desta terça-feira, não eram poucos os que diziam ser necessário “deter” Bolsonaro, mesmo no Salão Azul, onde a bandeira do voto impresso ainda não chegou. “Não haverá voto impresso. Não haverá golpe contra a nossa democracia. Instituições, Congresso à frente, não permitiriam”, disse o presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSD-AM).

O Estadão apurou que o ministro Ciro Nogueira pediu a Bolsonaro para não esticar a corda, caso a proposta seja derrotada na Câmara, como tudo indica. Ciro defendeu a pacificação até mesmo para construir apoio a outras propostas de interesse do governo, como a reforma tributária. Quem conhece o chefe do Executivo, no entanto, assegura que ele não vai se calar, até mesmo porque, até 2022, há muito tempo para renovar as ameaças golpistas. E, além disso, o Planalto avalia que, mesmo sofrendo mais um revés, ganhou o discurso nas redes sociais e, de quebra, semeou uma dúvida na cabeça de eleitoreso sobre a idoneidade das urnas eletrônicas. 

Nos últimos dias, Bolsonaro xingou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luis Roberto Barroso, de “filho da p...” por sua posição contrária ao voto impresso; acusou fraudes nas urnas eletrônicas sem apresentar quaisquer provas; afirmou que a “hora” do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) ia  chegar e disse haver um “complô” para eleger o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje líder nas pesquisas de intenção de voto, em 2022.

“Vamos votar contra o voto impresso, tirar isso da frente e cuidar do que é importante para o Brasil. E o que é importante para o Brasil é vacina, emprego, comida, combate à inflação e retomada da indústria”, insistiu o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), em campanha pela derrota do governo na votação desta terça-feira.

Vera Rosa, de Brasília para O Estado de S.Paulo, em 10 de agosto de 2021

Bolsonaro faz 10 minutos de cena com tanques na Esplanada para atiçar militância

Presidente assistiu à solenidade ao lado de ministros e militares. Foi a primeira vez, desde 1984, que comboio transitou no local fora de datas comemorativas

Tanque de guerra passa em frente ao Palácio do Planalto durante comboio ordenado por Bolsonaro. (ERALDO PERES / AP)

O presidente brasileiro Jair Bolsonaro tentou transformar uma ação militar protocolar num ato político nesta terça-feira. Ao lado de ministros e de comandantes das Forças Armadas, o chefe do Poder Executivo assistiu a uma espécie de desfile de algumas dezenas de tanques de guerra e veículos blindados que passaram em frente ao Palácio do Planalto. Eram menos de 50 carros no total. Oficialmente, a informação era de que o desfile militar serviria para a entrega de um convite para Bolsonaro acompanhar o treinamento de 2.500 militares em Formosa, no Estado de Goiás, a 82 quilômetros de Brasília. A operação ocorre anualmente desde 1988. Geralmente, autoridades são convidadas para o evento, mas esta foi a primeira vez que um presidente recebeu o documento diante de um minúsculo desfile militar. A ordem para que ele ocorresse foi do próprio Bolsonaro.

O desfile, porém, durou menos de dez minutos. Muitos moradores de Brasília nem tomaram conhecimento de que haveria carros militares na rua. A ausência de seu vice-presidente, o general da reserva Hamilton Mourão, também foi sentida. Ele e Bolsonaro, ambos egressos do Exército, estão com a relação estremecida e têm demonstrado diferença de opiniões sobre a condução do Governo. Nas últimas semanas, o presidente e seu vice quase não têm se reunido.

O evento foi transmitido pelas redes sociais do presidente, e acompanhado por cerca de 100 manifestantes que se postaram na praça dos Três Poderes, em frente ao Planalto. Boa parte deles gritava palavras de ordem, como a nossa “bandeira jamais será vermelha”, em alusão aos partidos de esquerda brasileiros que costumam usar o vermelho em seus símbolos. Um pouco antes do início do desfile, dois homens empunhavam uma faixa com os dizeres: “Presidente, destitua os 10 do STF”. O pedido era para manter apenas Kássio Nunes Marques, o único que foi indicado pelo presidente na corte. Quando o comboio começou a transitar, contudo, a faixa foi guardada.

O ato ocorre justamente no dia em que a Câmara dos Deputados vota a proposta de emenda constitucional que recria o voto impresso, uma das bandeiras do bolsonarismo. As chances de aprovação do projeto são quase nulas. Por isso, o ato político relâmpago do presidente, que costuma se referir às Forças como “meu Exército” é visto como provocação. “As Forças Armadas jamais podem ser usadas para intimidar sua população, seus adversários, atacar a oposição legitimamente constituída”, disse o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, o senador Omar Aziz (PSD-AM).” Ainda nesta terça-feira, 14 dos tanques e veículos de combate ficarão expostos na Esplanada dos Ministérios.

A última vez em que tropas se perfilaram em Brasília fora de datas comemorativas, como da Independência do Brasil ou da Proclamação da República, foi em 1984. Na ocasião, veículos e militares ocuparam o entorno do Congresso Nacional antes da votação emenda da Diretas Já, que pedia o retorno do voto direto para a Presidência da República. A ordem fora dada pelo presidente, general e ditador João Figueiredo. A cidade, que recebe protestos e atos políticos quase todos os dias, mal tomou conhecimento do comboio militar.

A maior parte dos veículos e dos profissionais envolvidos no treinamento vieram do Rio de Janeiro. A passagem por Brasília não estava no roteiro inicial, já que o trajeto mais curto entre o Rio, no litoral do Sudeste, e a cidade goiana, no Centro-Oeste, não passa pela capital federal. Partidos de oposição chegaram a apresentar um pedido no Supremo Tribunal Federal para que o evento militar fosse proibido, mas a corte rejeitou a solicitação.

Na rampa, ao lado de Bolsonaro, estavam seus principais ministros, como Walter Braga Netto (Defesa), Carlos França (Relações Exteriores), Paulo Guedes (Economia), e Marcelo Queiroga (Saúde). A maioria deles estava sem máscaras e se abraçavam normalmente. Após o evento, Bolsonaro promoveu uma reunião ministerial.

Enquanto isso, a poucos quilômetros do Planalto, na Câmara os deputados se preparavam para a votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do voto impresso. O projeto, de autoria da deputada governista Bia Kicis (PSL-DF), já foi rejeitado pela Comissão Especial que analisou o tema. Ainda assim, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), o levou para a votação no Plenário por entender que ele precisava ser analisado por todos os parlamentares. As chances de aprovação são reduzidas, já que ele precisa de 308 votos dos 513 deputados e 15 dos 24 partidos com representação no Legislativo já se manifestaram contra a proposta.

Em conversa com apoiadores na segunda-feira, o presidente Bolsonaro já admitiu a derrota, mas atribui essa falta de apoio à atuação do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso. Ele diz que o ministro influenciou a decisão de parlamentares. É mais uma de suas táticas diversionistas que vão na linha de atacar o status quo. Bolsonaro foi eleito presidente em 2018 com o discurso antissistema. Dizia que não se renderia ao toma-lá-dá-cá. No poder, contudo, se alinhou aos militares e ao Centrão, fisiológico grupo de partidos de centro-direita que antes era apontado pelo presidente como a “velha política”. De olho nas urnas em 2022, ele está ajustando seu novo alvo, o Judiciário.

AFONSO BENITES de Brasília para o EL PAÍS, em 10 AGO 2021

Maria Hermínia Tavares: “Bolsonaro produz um som estridente cada vez mais alto, mas sem efeito ”

Cientista política diz que instituições até agora têm conseguido frear o golpismo do presidente, mas alerta: “há sempre risco de ruptura, pois temos um presidente que gostaria de destruir a democracia”

A cientista política e socióloga Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora titular aposentada da USP, pesquisadora do Cebrap e membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns. (WANEZZA SOARES)

O presidente Jair Bolsonaro aumentou suas investidas contra a democracia, mas, até agora, as instituições, sobretudo o Supremo Tribunal Federal, vêm conseguindo frear o golpismo do mandatário de extrema direita. É o que opina cientista política e socióloga Maria Hermínia Tavares de Almeida (São Paulo, 1946), professora titular aposentada da USP e pesquisadora do Cebrap, em entrevista por escrito ao EL PAÍS. Porém, alerta ela, “há sempre risco de ruptura, pois temos um presidente autoritário que não preza a democracia e gostaria de destruí-la”.

Membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, Almeida vê o desfile das Forças Armadas programado para esta terça-feira como “mais uma provocação” e afirma que o voto impresso é ”um factoide para alimentar a desconfiança, açular os grupos mais radicais e criar caos político”. Por esse motivo, tem uma visão menos negativa sobre sua tramitação em plenário, também programada para esta terça-feira, mesmo após a rejeição que sofreu na comissão especial. “Não vejo como não colocar na pauta a proposta do voto impresso. Se o presidente não conseguir aprovar, a derrota será gigantesca. Deixará Bolsonaro sem chão e sem bandeira”, opina.

Pergunta. Em que estágio a crise política se encontra?

Resposta. Essas coisas são difíceis de medir e nós cientistas políticos não temos bons indicadores objetivos para medir a temperatura de uma crise política. O presidente escalou em suas investidas contra instituições, especialmente ao STF, multiplicou as ameaças de abandonar a Constituição e alardeia que tem apoio das Forças Armadas para isso. Mas, por enquanto, não passou de discurso, de ameaça verbal. A sensação que dá é de um som estridente que se repete e se repete cada vez mais alto, mas sem efeito, a não ser o de criar crispação política. Houve retrocessos imensos em várias áreas que dependem muito do Governo Federal: na atuação internacional do país, no meio ambiente, na educação, na proteção das populações indígenas. Isso é péssima política reacionária, mas é diferente de retrocesso democrático.

P. O risco de uma ruptura democrática aumentou?

R. Há sempre risco de ruptura, pois temos um presidente autoritário que não preza a democracia e gostaria de destruí-la. E a democracia, especialmente no país, está longe de ser indestrutível. Mas, não sei se o risco é maior hoje do que em abril do ano passado, ou em qualquer outro momento em que Bolsonaro ameaçou romper as regras.

P. Em fevereiro, você avaliou que as instituições estavam conseguindo conter Bolsonaro com eficácia. Ainda possui a mesma percepção?

R. Continuo achando o mesmo e sei que essa não é uma percepção consensual entre os analistas. Bolsonaro foi contido pelas regras da federação, que tornam importantes os governos subnacionais. Basta ver a reação à pandemia. Se dependesse do presidente, os brasileiros estariam morrendo com a cloroquina na mão e não haveria vacinação. Ele foi derrotado nessa frente, ainda que sua conduta tenha elevado de forma absurda e desnecessária o preço em vidas pago pela população. O STF impôs uma série de derrotas importantes ao chefe do Executivo e, neste momento, ele é objeto de investigação da Corte Suprema. Mesmo o Congresso, onde uma base de apoio —obtida sabemos como— impede o andamento dos muitos pedidos do impeachment, lhe impôs derrotas. O auxílio emergencial, com a dimensão que teve, foi obra do Congresso. Nem Bolsonaro, nem Guedes foram responsáveis por ele. É bem possível que a PEC do voto impresso seja enterrada na Câmara. Por outro lado, toda a grande imprensa escrita lhe faz oposição dura e livremente. A ela se soma a rede Globo, que ainda é poderosa. Finalmente, a sociedade civil organizada tem feito sua parte na contenção dos arroubos autoritários do presidente. Ele teve que se livrar de seus ministros mais afinados com seus propósitos e discurso: Ernesto Araújo [Relações Exteriores], Ricardo Vélez [Educação], Abraham Weintraub [Educação], Eduardo Pazuello [Saúde], Ricardo Salles [Meio-Ambiente].

P. O que mudou desde então?

R. Bolsonaro parece estar perdendo apoio entre empresários e grupos de alta renda que nele votaram. Muito lentamente, sua base de apoio na opinião pública parece estar diminuindo, ou no mínimo está estacionada entre 25 e 30%. Claramente não cresceu. Não há qualquer evidência de que tenha ganho força social ou política. Foi contido. Agora, o custo é grande. Um enorme esforço de contenção, enquanto poderíamos estar dedicando forças para enfrentar os muitos problemas que temos.

P. Bolsonaro quis se aproveitar de uma manobra militar nesta terça para se exibir com tanques em Brasília, no dia em que o plenário analisa o voto impresso. O que isso representa?

R. Mais uma provocação.

P. Você disse uma vez ao EL PAÍS, em 2018, que Bolsonaro, e não o PT, podia repetir o processo venezuelano. Isso vem se concretizando?

R. Eu continuo achando isso. Bolsonaro, Chavez, Maduro [presidente da Venezuela], Lopez Obrador [presidente do México], Orbán [primeiro-ministro da Hungria], Modi [primeiro-ministro da Índia] são frutos da mesma árvore, do populismo autoritário. Se ele não for permanentemente contido e, de preferência, derrotado no ano que vem, o perigo continuará. Eu não sei qual a extensão do apoio que lhe dão as Forças Armadas. Chavez introduziu mudanças muito profundas: na formação, nas regras de promoção na carreira militar, no controle de seu serviço secreto sobre militares dissidentes. Até onde sabemos isso não aconteceu aqui. Por outro lado, a ocupação de posições de mando por militares se parece com o que o chavismo promoveu na Venezuela. E isso é ruim para as Forças Armadas e para a democracia. Só observo que golpe não depende apenas da iniciativa e participação dos militares. No passado, ele ocorreu com grande mobilização de setores da população que foram às ruas em número bem maior do que o pessoal das motociatas, dependeu do apoio da grande imprensa, de uma parcela importante dos políticos, das elites empresariais, de apoio internacional. Parece-me que a situação hoje não é essa.

P. Como vê o aparecimento de tantos líderes populistas?

R. O populismo autoritário está instalado hoje em muitos países grandes de desenvolvimento médio que, para além de suas histórias muito diferentes, têm muita pobreza e muitas desigualdades: México, índia, Turquia, Venezuela. É algo que temos que levar em conta. As instituições são importantes, mas não são os únicos fatores a considerar. Líderes populistas tiram força do desencanto dos que não veem sua vida melhorar significativamente sob a democracia, dos que não acreditam que as instituições democráticas possam fazer diferença para pessoas como elas, dos que descreem de partidos, daqueles para os quais as liberdades e direitos são palavras sem significado concreto, no seu dia a dia.

P. Enxerga alguma legitimidade na desconfiança com as urnas eletrônicas?

R. Nenhuma legitimidade. É um factoide para alimentar a desconfiança, açular os grupos mais radicais e criar caos político.

P. Como avalia o papel do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que vem adotando um tom ameno na crise? Além de não oferecer riscos a Bolsonaro, vem pautando vários temas de interesse do Governo na Câmara, o último deles o voto impresso...

R. Tenho uma visão menos negativa. Esse foi o Congresso mais fragmentado e, provavelmente, o mais direitista que o Brasil já teve. Se tomarmos isso em consideração, poderia ser bem pior. Não vejo como não colocar na pauta a proposta do voto impresso. Se o presidente não conseguir aprovar, a derrota será gigantesca. Deixará Bolsonaro sem chão e sem bandeira.

P. Já com relação ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ele vem fazendo falas mais contundentes contra Bolsonaro, mas até agora não indicou algum instrumento para frear o presidente. Como avalia o papel dele na crise?

R. Lideres da Câmara e do Senado são lideranças importantes, para coordenar decisões, mas tem que tomar em consideração as forças existentes nas casas que presidem. Essa é uma legislatura na qual a direita é forte e nenhum partido é grande o suficiente para se impor aos outros.

FELIPE BETIM, de São Paulo para o EL PAÍS, em 10 AGO 2021

'Não há evidência de fraude': Diego Aranha, professor defensor do voto impresso, rebate discurso bolsonarista

Referência na defesa do voto impresso no Brasil, o professor Diego Aranha, que atualmente leciona no Departamento de Computação da Universidade de Aarhus (Dinamarca), tem sido constantemente citado por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro para sustentar que a mudança é urgente e necessária para conter supostas fraudes nas eleições.

"Não, não há evidência (de fraude na contabilização) e esse procedimento já é auditável e já foi auditado", declara Diego Aranha (Ag. Senado)

Aranha, porém, não endossa os argumentos bolsonaristas e, inclusive, tem rebatido constantemente os apoiadores do presidente nas redes sociais. Em um desses momentos, respondeu um comentário da deputada Bia Kicis (PSL-DF) de que deixou o país pela dificuldade de defender o voto impresso.

"A nobre deputada apoia o governo mais anti-ciência da história do Brasil, mas tem a cara de pau de compartilhar frustração de cientista que deixa o país para fazer uso político de uma questão técnica", criticou no Twitter.

Em entrevista à BBC News Brasil, Aranha reforça que não há evidências de fraudes nas urnas eletrônicas e diz que sua defesa do voto impresso é para dar mais transparência ao sistema eleitoral. A ideia é que o eleitor possa ver um registro físico do seu voto após votar na urna eletrônica, dentro de uma caixa de vidro fechada, ou seja, sem poder tocar nesse papel, antes de ele ser depositado em um recipiente sigiloso, lacrado.

Depois, uma amostra estatisticamente relevante poderia ser conferida com o resultado eletrônico para auditar a votação.

Ele ressalta, porém, que esse procedimento melhoraria a auditagem da etapa de votação na urna. A fase de contabilização de votos, diz, já é perfeitamente auditável, o que desmonta, segundo ele, os argumentos de Bolsonaro sobre suposta fraude na contabilização dos votos na eleição presidencial de 2014, quando Dilma Rousseff (PT) derrotou Aécio Neves (PSDB).

"Não faz sentido, primeiro, sugerir um mecanismo (de voto impresso) com discurso de fraude, porque isso contamina a origem do debate. E, em segundo lugar, sugerir o voto impresso como maneira de coibir fraudes na transmissão e na totalização, onde já existe um procedimento de auditoria que funciona. Então esses dois pontos comprometem o debate como ele vem sendo discutido hoje", critica.

Especialista rebate argumentação da deputada federal Bia Kicis, aliada de Bolsonaro e defensora do voto impresso

Para o professor, a adoção do voto impresso é positiva como ferramenta para neutralizar rapidamente discursos de "alegações vazias de fraude" como o de Bolsonaro ou o adotado pelo ex-presidente americano Donald Trump, após perder a eleição para Joe Biden no ano passado.

Ele ressalta, porém, que jamais defendeu que todos os registros sejam contados um a um pelo Brasil, como propõem os bolsonaristas. Além disso, Aranha reforça que a implementação do voto impresso teria que ser gradual, começando com testes em poucas urnas, sendo impossível sua adoção segura para a eleição presidencial de 2022.

Quando era professor da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Aranha participou de testes de segurança das urnas eletrônicas promovidos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2012 e 2017. Na ocasião, equipes coordenadas por ele identificaram vulnerabilidades no sistema, posteriormente corrigidas pela Corte.

Foi essa experiência que o tornou defensor do voto impresso, recurso que é usado em outros países com sistema eletrônico, como Índia e parte dos Estados Unidos. Já o TSE afirma que o sistema brasileiro tem inúmeras etapas de segurança e auditagem, que asseguram a integridade das eleições.

Além de criticar os bolsonaristas, Aranha também faz ressalvas à atuação da Corte Eleitoral, como a postura de negar as evidências técnicas de vulnerabilidade produzidas nos testes.

A proposta do voto impresso se tornou nas últimas semanas o epicentro de uma crise institucional, com Bolsonaro atacando ministros do TSE e do Supremo Tribunal Federal. Em reação, as duas Cortes abriram investigações contra ele, uma delas com potencial de barrar o presidente da eleição de 2022.

Nesta terça-feira (10/08), uma proposta de emenda à Constituição (PEC) deve ser votada na Câmara dos Deputados para tentar implementar o voto impresso no próximo pleito, mas a expectativa é que será rejeitada.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista com Aranha.

BBC News Brasil - O senhor é um antigo defensor do voto impresso, mas tem criticado a forma como a pauta é defendida por Bolsonaro e seus apoiadores. Gostaria que explicasse o que é o voto impresso que defende e por que considera que essa mudança seria positiva.

Diego Aranha - Essa é uma questão que foi discutida por um bom tempo na comunidade técnico-científica, e aí eu incluo tanto a prática internacional do voto eletrônico, mas também pesquisadores de outros países que trabalham no tema, e nós adotamos uma definição chamada princípio de independência do software.

Então, o sistema de votação é considerado transparente e seguro se os resultados produzidos por aquele sistema podem ser verificados de maneira independente do software. A justificativa para se fazer isso é que se você utiliza registros eletrônicos que são produzidos por um software, de repente se esse software foi adulterado pra se comportar de maneira maliciosa, pode ser que os registros produzidos por ele não sejam mais íntegros. Então, não faria sentido utilizar esses registros para auditá-los.

Essa noção determina a prática de voto eletrônico em todos os países do mundo que utilizam máquinas de votar, em particular para eleições nacionais, e é o que tem sido proposto desde os anos 1990 para adoção no caso brasileiro. E o debate foi evoluindo na medida em que houve tentativas (preliminares em 2002) de implementação desse registro pelo próprio TSE. Houve a aprovação de leis que determinavam a implantação desse registro ao longo do tempo em múltiplas ocasiões (não foi adotado porque o STF declarou essas leis inconstitucionais), e ultimamente esse debate ganhou contornos, de certa forma, político-partidários, que distorceram a versão original do debate.

Então, a versão que pesquisadores defendem é que sistemas de votação devem ter um registro físico para que uma vulnerabilidade não detectada na tecnologia que dá suporte a esse sistema de votação não possa produzir erros ou falhas indetectáveis nos resultados.

Na maioria dos países que também utilizem voto eletrônico e têm uma população grande e alguns desafios como o caso brasileiro, essa implantação também demorou muito tempo. Você observa o caso da Índia e o caso dos Estados Unidos, há processos da ordem de uma década para se migrar de sistemas de votação eletrônicos que não tinham registro físico do voto para sistemas com algum tipo de registro físico do voto.

E, nesse processo, evidentemente, (teve que) resolver questões de usabilidade, determinar quais são os protocolos de auditoria para se utilizar essa evidência física para se confirmar resultados eletrônicos de eleição e assim por diante. Isso é algo muito importante e não faz sentido se considerar uma experiência de uma eleição para outra, (que) num período muito curto essa alteração fosse realizada.

A ideia é o eleitor, ao votar, poder observar a produção de um registro físico com as suas escolhas que seja verificável de maneira independente e que permaneça na seção eleitoral. Obviamente, o eleitor não leva esse registro físico consigo porque isso violaria o sigilo do voto. Esse registro permanece na seção eleitoral para uma eventual auditoria, uma conferência com o registro eletrônico, muitas vezes por amostragem, para que esse procedimento de auditoria seja eficiente.

Brasil adota urnas eletrônicas há 25 anos e TSE aponta que nunca foram encontradas evidências sérias de fraudes (TSE)

BBC News Brasil - Qual é a sua divergência com o discurso bolsonarista de defesa do voto impresso hoje?

Aranha - O voto impresso, ou qualquer registro físico implementado num sistema de votação, é implementado para transparência, para que seja possível uma auditoria do resultado eletrônico de maneira acessível, por auditores, inclusive sem especialização.

O que é muito complicado nessa última proposta do voto impresso no Brasil é que foi introduzida e vem sendo discutida sob a justificativa de que há fraude. E o país acompanhou na última semana (no dia 29 de julho) uma apresentação (do presidente Bolsonaro) onde a ideia era apresentar evidências de fraude.

Há dois grandes problemas aí (na argumentação de Bolsonaro): a questão de serem evidências de fraude ou não, e serem evidências de fraude num ponto do processo de votação em que o voto impresso faria alguma diferença (como a fase de contabilização dos votos).

Esse procedimento (o voto impresso) faz sentido para auditoria do procedimento de coleta dos votos. A ideia é auditar o comportamento do software de votação quando o eleitor deposita seu voto numa máquina de votar, numa urna eletrônica no caso brasileiro. Então, desse ponto em diante, após a máquina de votar produzir um conjunto de resultados parciais para aquela seção eleitoral, que no caso do Brasil é chamado boletim de urna, o voto impresso já não faz mais sentido.

O procedimento de transmissão da versão eletrônica do boletim de urna e de totalização desses boletins de urna do país inteiro, das parciais do país inteiro para produzir o resultado oficial, esse é um procedimento posterior que já é auditado no Brasil, exatamente usando essa mesma ideia da comparação do boletim de urna físico com o boletim de urna digital, um impresso pela urna no dia da eleição com outro recebido pelo TSE após a eleição.

Essa confrontação é um processo de auditoria independente. Se a gente olha para o processo eleitoral, há duas fases em que os resultados são produzidos: a fase de votação, onde o voto impresso funciona com um mecanismo de auditoria, e a fase de transmissão e totalização que é posterior, onde a confrontação do boletim de urna impresso com o boletim de urna digital funciona com um mecanismo de auditoria.

Não faz sentido, primeiro, sugerir um mecanismo com discurso de fraude, porque isso contamina a origem do debate. E, em segundo lugar, sugerir o voto impresso como maneira de coibir fraudes na transmissão e na totalização, onde já existe um procedimento de auditoria que funciona no mesmo princípio.

Então esses dois pontos comprometem o debate como ele vem sendo discutido hoje

BBC News Brasil - Como o sr. destacou, um dos argumentos do presidente Bolsonaro para defender o voto impresso é dizer que há indícios de fraudes na contabilização dos votos. Ele cita, por exemplo, uma pretensa análise matemática que indicaria manipulação na contagem dos votos do segundo turno de 2014, em que Dilma Rousseff foi reeleita. Como o boletim de urna já permite fazer uma auditoria da contagem, essa suposta fraude na contabilização que o presidente aponta é um argumento que não se sustenta?

Aranha - Não, não há evidência (de fraude na contabilização) e esse procedimento, como eu argumentei, já é auditável e já foi auditado. No último pedido de auditoria, após as eleições de 2014, o relatório dos auditores naquela ocasião é conclusivo, ele é bem claro nesse ponto do sistema, em que a transmissão e a totalização permitem, por amostragem, coletar evidência verificável de que os resultados foram transmitidos e totalizados de maneira correta.

A experiência de auditoria dessa eleição (de 2014, realizada pelo PSDB) encontrou problemas e dificuldades para auditoria do software de votação. E naquela ocasião os auditores também recomendaram a implantação de registro físico, novamente seguindo o que é consenso científico atual e prática internacional em voto eletrônico.

Mesmo rejeitada em comissão, Arthur Lira decidiu levar PEC do voto impresso ao plenário da Câmara (Reuters)

BBC News Brasil - Embora parte da comunidade científica defenda o voto impresso para auditoria da parte de votação do software, o sr. concorda que, de fato, não há evidências em larga escala de fraudes nas últimas eleições?

Aranha - Concordo com essa afirmação. Evidentemente, a comunidade técnica sempre fez reclamações do ponto de vista de transparência, mas não há um conjunto de evidências, que possa ser analisado, que indique fraude em eleições anteriores. E, novamente, o discurso técnico sempre foi na direção de aumentar a transparência do sistema, para que, exatamente quando esse tipo de alegação seja produzida, que seja rápido determinar se ela é verdadeira ou não com base em um conjunto de evidências que seja verificável e acessível até para um auditor sem especialização.

Então, um ponto que vem sendo discutido na comunidade técnica, especialmente após as eleições nos Estados Unidos, onde processo semelhante apareceu, onde candidatos antes da eleição alegaram fraude em resultados anteriores e resultados futuros, é que é importante ter um procedimento de auditoria que rapidamente invalide alegações vazias de fraude, que não se arraste, não se delongue, porque tudo isso corrói a confiança do eleitorado no processo.

A possibilidade de você contar uma amostra estatisticamente significativa dos votos, dependendo da vantagem do primeiro candidato para o segundo candidato, e rapidamente esvaziar essas alegações, é algo importante porque evita esse processo de corrosão de fato aconteça.

BBC News Brasil - Se não há indícios de fraudes, por que mexer num sistema, digamos, que está ganhando? Os defensores da urna eletrônica dizem que fraudes que existiam no tempo do voto em cédula ficaram para trás, e o sistema se mostrou exitoso para a democracia, com alternância de poder no Brasil nos últimos anos.

Aranha - Por uma questão de transparência. Realizar uma auditoria conclusiva no sistema atual brasileiro é um procedimento difícil. Há dificuldades claras. Para dar um exemplo, o software de votação que é instalado nas urnas é um componente de software bastante complexo. Nos testes públicos de segurança a gente observou que a quantidade de código que faz parte desse sistema tem é da ordem de dezenas de milhões de linhas. É muito difícil para um auditor externo, até pra um auditor interno, da equipe de desenvolvimento, ter completo controle sobre toda essa base a ponto de você conseguir determinar que não há presença de nenhum defeito malicioso ou não, proposital ou não, naquele conjunto de código-fonte.

Os procedimentos de auditoria ou de transparência que existem hoje têm certa cobertura do que a gente chama de superfície de ataque, das possibilidades que um fraudador teria de provocar um comportamento malicioso no sistema, mas eles também têm as suas limitações.

Fala-se muito do teste de integridade, que é aquela eleição simulada que o TSE organiza para determinar que o sistema conta os votos de maneira correta. Mas tem algumas premissas embutidas aí: esse procedimento faz uma eleição simulada utilizando equipamento real, selecionado de seções eleitorais na véspera (da votação). Isso faz sentido se, primeiro, o número de equipamentos analisados é significativo. Tem que ser uma amostra, novamente, que seja estatisticamente significativa, e esse é um número bastante grande para um Estado, por exemplo, como São Paulo, que tem um parque de urnas muito grande. Cobrir essa amostra é desafiador.

Nas últimas semanas, apoiadores de Bolsonaro têm se manifestado a favor do voto impresso (EPA)

E, além disso, se o objetivo desse procedimento é determinar se o software se comporta de maneira honesta, não pode haver nenhuma diferença nessa eleição simulada da eleição real, que permitiria a um software adulterado malicioso detectar que ele está funcionando numa eleição simulada.

Mas há várias características dessa eleição simulada que são bastante diferentes de uma eleição real. Um exemplo muito simples é que nessa eleição simulada os eleitores não têm biometria, até porque são auditores que estão simulando esses eleitores. Isso é uma questão hipotética, obviamente não estou argumentando que isso acontece ou vai acontecer, mas é simplesmente uma premissa que está embutida no procedimento, mas é difícil de satisfazer. Se o software de votação fosse adulterado para ser malicioso, se ele verifica que os eleitores não têm biometria cadastrada, muito provavelmente (ele identifica que) aquela urna está numa simulação. Fazendo essa distinção, o software poderia se comportar de uma maneira honesta numa eleição simulada, e de maneira desonesta numa eleição real. Então, é uma limitação que o teste de integridade, como ele está concebido, não consegue satisfazer.

Além disso, tem uma simples questão de acessibilidade, como eu argumentei anteriormente. A ideia de ter um registro físico permite um auditor que não entende de tecnologia, de programação, de como o software de votação é organizado, poder observar com uma evidência tangível que o resultado está correto.

A principal propriedade de segurança de um sistema de votação nem é exatamente entregar o resultado. Mais importante que entregar o resultado correto é convencer o perdedor que de fato ele perdeu, que há um conjunto de evidências que possa ser analisado de maneira independente para que um perdedor simplesmente chegue à conclusão de que a eleição foi honesta, o resultado está correto e ele perdeu. E é isso que geralmente gera confiança no eleitorado.

BBC News Brasil - Então, o voto impresso seria uma barreira para discursos como o de Bolsonaro, para dissuadir pessoas que levantem dúvidas sobre a integridade da eleição?

Aranha - Exatamente. E pelo menos esse fenômeno foi observado nos Estados Unidos: alegações similares foram colocadas por lá e, nos Estados que adotavam algum procedimento de verificação do registro físico com registro eletrônico por amostragem, rapidamente terminaram seus procedimentos e confirmaram o resultado.

Aqueles Estados (sem voto impresso) onde se fez perícia na máquina, verificação no software, onde as regras de auditoria foram mudando ao longo do tempo, com interações entre pedidos de evidências e respostas das autoridades responsáveis por coordenar o processo, aqueles se arrastaram por muito mais tempo. Exatamente porque as condições de auditoria não ficam claras e o procedimento termina sendo contaminado. Então, na experiência americana, ter um procedimento de auditoria por amostragem sobre um registro físico permitiu invalidar essas alegações de fraude de maneira mais rápida.

Uma experiência interessante do ponto de vista de auditoria também é na Índia, que adota um registro físico nas suas máquinas de votação. A Índia também foi um país pioneiro em implementar voto eletrônico. Após uma análise de segurança em 2009 encontrar uma série de problemas na concepção e na implementação desses equipamentos, uma trilha física em papel foi implementada como mecanismo de transparência. Num processo de dez anos, esse mecanismo atingiu todas as sessões eleitorais, e lá é feito uma verificação por amostragem por precaução.

Então, assim que o resultado é publicado, já se sorteia uma fração de, se não me engano, 1,5% das sessões eleitorais para se confrontar o registro físico e o registro eletrônico, se confirmar o resultado eletrônico e aí já esvaziar qualquer pedido desnecessário de auditoria por ter um procedimento que, por precaução, invalida alguma alegação que seja feita para fins político-partidários.

BBC News Brasil - O sr. aponta que o voto impresso seria mais um mecanismo de segurança para termos mais certeza de que o software dentro da urna está funcionando adequadamente. Outro acadêmico defensor do voto impresso, o professor Paulo Matias, do Departamento de Computação da Universidade Federal de São Carlos, reconhece que não seria algo trivial fazer isso: invadir a urna e adulterar o software. O sr. concorda que, dados os mecanismos de segurança que o TSE adota hoje, como criptografia e assinatura digital, é difícil corromper a urna eletrônica e fazer uma fraude em larga escala que afete os resultados das eleições?

Aranha - Eu gosto de analisar a possibilidade de intervenção no sistema sob dois diferentes prismas. Existe o que a gente chama de um atacante externo, alguém que não tem acesso privilegiado e está fora da infraestrutura da Justiça Eleitoral e das próprias eleições. Você pode pensar em alguém alterando ou tentando alterar resultados remotamente ou, de repente, no dia da eleição tentar sabotar a urna eletrônica da sua própria seção eleitoral. Então, a gente observa que o sistema é projetado para resistir (a ataques desse tipo). Nos testes de segurança (que participei em 2012 e 2017), a gente pôde encontrar problemas de segurança que inicialmente permitiam esse tipo de ataque e foram sendo corrigidos ou aprimorados ao longo do tempo.

Bolsonaro é alvo de investigação após usar fake news para pedir voto impresso no país (Reuters)

Então, atualmente esse tipo de ataque, eu diria que é bem difícil de ser implementado com sucesso, especialmente sem permitir detecção. Entretanto, do ponto de vista de um atacante interno, alguém que tem acesso privilegiado ao sistema, ao software de votação, eu entendo que ainda há lacunas de segurança na concepção e implementação do sistema que poderiam fragilizar o processo.

E é importante em eleições considerar esses dois atacantes porque a gente também observa que em outros tipos de sistemas, em sistemas bancários, em sistemas de órgãos de inteligência em outros países, os ataques com maior sucesso e que provocaram maior estrago tinham a colaboração e a participação de um atacante interno. Evidentemente, eu não estou alegando que funcionários da Justiça Eleitoral sejam mal-intencionados ou tenham esse objetivo. Eu estou pensando friamente do ponto de vista de análise de risco, que é a tarefa que a gente faz como pesquisador na área de segurança.

E no caso de eleições, o risco, de certa forma, é amplificado, porque acontecem em um dia e precisam produzir o resultado correto dentro daquela janela de tempo. Qualquer desvio — seja acidental, seja causado por uma tentativa de fraude — do esperado para o processo eleitoral, isso gera desconfiança e termina minando aí talvez o principal recurso de um sistema de votação que tenha sucesso. A gente observou esse fenômeno, por exemplo, acontecendo com simples atrasos na totalização em eleições anteriores, que geram teoria de conspiração, geram desinformação e geram, novamente, alegações vazias de fraude.

Nesse ponto, eleições são muito mais críticas do que sistemas bancários ou até órgãos de inteligência, porque um banco pode ter sua segurança comprometida, mas no dia seguinte ele pode restaurar seus sistemas e voltar a operar. Então, ele pode perder clientes, talvez, ele possa até ir a falência, mas não há um dano social, ao tecido social, que seja talvez até permanente e permita inspirações pouco democráticas por quem concorre nas eleições.

BBC News Brasil - Segundo o TSE, o que evita ataques internos é que apenas uma equipe pequena tem acesso ao sistema da urna eletrônica e tudo que elas fazem fica registrado no sistema. Isso não seria suficiente para afastar esses riscos?

Aranha - Eu diria que não, observando também eventos de outros tipos de sistema em outros contextos. A gente tem relatos de precedentes de outras organizações que também adotavam sistema de controle e versão, processos de desenvolvimento rigorosos e que também conseguiram ser atacados com sucesso. Há exemplos documentados.

Com apoio de todos os ministros do TSE, Barroso pediu investigação contra Bolsonaro no Supremo (TSE)

Um procedimento, por exemplo, que é extremamente crítico e que poderia, se atacado, causar um estrago ou um impacto importante, é o procedimento de compilação (do software). Então, existe um procedimento na geração do software de votação onde todo código escrito pelos programadores do TSE é extraído para uma máquina e lá ele é transformado nos (códigos) binários que vão ser instalados na urna.

Esse procedimento ocorre após o desenvolvimento e ele não gera rastros que ficam visíveis no sistema de controle e versão do software, por exemplo. Então, uma intervenção neste ponto em particular poderia, em tese, novamente estou fazendo análise de risco e não alegando que isso aconteça, tenha acontecido ou vá acontecer, mas uma intervenção naquele ponto poderia contaminar o software de votação que sai do TSE na origem com algum tipo de de código malicioso que permitiria violar sigilo ou a integridade de resultados.

Uma outra possibilidade também é um simples erro acidental ou proposital que venha da equipe de desenvolvimento. Escrever código seguro é difícil, é uma área de pesquisa bem estabelecida, mas que ainda tem muito a evoluir. Nenhum software é 100% seguro, 100% perfeito. Então, uma intervenção maliciosa ou um erro de programação acidental no sistema, no software de votação no TSE, poderia de repente introduzir uma vulnerabilidade que é explorada pelo técnico que está na outra ponta, às vezes é de uma empresa contratada para receber o software que o TSE emite para os TREs (tribunais regionais eleitorais) e gravar esse software em cartões de memória que vão instalar o software nas urnas.

Nos testes públicos de segurança de 2017, a gente observou uma lacuna na verificação de integridade do software de votação, naquele procedimento em que a urna verifica se os programas lá instalados estão íntegros, que permitiria a alguém que está gerando os cartões de memória que instalam software na urna injetar código intruso nesses cartões antes do software ser instalado. E como esses cartões instalavam 50 urnas cada, existia um fator de escala que funciona a favor do fraudador. Se ele consegue a possibilidade de adulterar o software armazenado em um destes cartões, esse cartão contaminaria 50 urnas posteriormente com software (malicioso).

A gente, nos testes, mostrou algumas formas de introduzir comportamento malicioso, como alterar mensagens na tela pra deixar claro que o software não mais seguiria sua programação original. A gente tinha código intruso, mas, que do ponto de vista do operador do sistema, o sistema se comportou de maneira indistinguível ao sistema real. Conseguimos instalar o software, executar as rotinas de autoteste, começar uma eleição, simular uma eleição, e o sistema funcionou como esperado do ponto de vista do operador. Então, por mais que esses problemas tenham sido corrigidos ou mitigados após os testes públicos de segurança, eu não consigo ignorar o risco disso de repente acontecer.

Mas a minha justificativa principal para implantação do registro físico do voto é, novamente, para um mecanismo de transparência, para que haja uma maneira acessível e eficiente de se confirmar que os resultados da eleição estão corretos sem necessitar de especialização técnica, que sejam auditores com treinamento na tecnologia eleitoral ou em segurança da informação, que permitam rapidamente esvaziar alegações de fraude.

BBC News Brasil - Um dos principais argumentos contra o voto impresso que o presidente do TSE, Luiz Roberto Barroso, adota é o risco ao sigilo do voto. Ele já disse, por exemplo, que num país onde há áreas dominadas por milícias, pelo tráfico de drogas, isso seria perigoso. Por que, na sua visão, isso não é uma vulnerabilidade?

Aranha - A implantação de um registro físico eventualmente seria feita, em primeiro lugar, gradualmente. A implementação gradual permitiria iniciar essa implementação por regiões menos sensíveis, onde a população não é vulnerável e há democracia plena no sentido de não haver intervenção de um poder local paralelo, alheio às instituições democráticas.

Você pode começar o processo por seções eleitorais onde a população não é tão vulnerável, observar como a população interage com aquele mecanismo novo. Até porque a população teria que ser instruída a verificar o registro físico que é apresentado durante a eleição, os protocolos para se comparar esse registro físico com o resultado eletrônico precisariam ser aprimorados também. Eles não iriam funcionar 100% da primeira vez. É importante lembrar que a própria implantação da urna eletrônica do Brasil não foi uma etapa única. Foi dividida em três eleições consecutivas, de 1996 ao ano 2000, exatamente porque é preciso haver uma salvaguarda caso alguma parte do sistema não funcione como esperado.

A implantação gradual permitiria, em primeiro lugar, projetar e validar um mecanismo que de repente pudesse ser mais confiável e funcionar melhor, de maneira mais robusta no dia da eleição. Essa é uma etapa importante do processo.

Além disso, é possível implementar um registro físico do voto que preserve o anonimato e o sigilo do voto como um requisito constitucional. Então, no que se propõe para ser implementado no Brasil, esse exame do registro físico do voto acontece dentro da cabine indevassável de votação e seria apresentado ao lado da tela da urna eletrônica, em uma impressora acoplada à urna eletrônica, dentro da cabine.

Eu vejo bastante esse argumento nas redes sociais: "Ah, mas seria possível fotografar, seria possível coletar algum tipo de evidência". Mas estes mesmos argumentos se aplicam à tela da urna. Seria possível para um eleitor que foi coagido entrar na sessão de votação e filmar sua interação inteira com o equipamento. Esse comportamento (filmar sua votação) é ilegal segundo o Código Eleitoral no Brasil, mas o risco de violação do sigilo (do voto impresso) é o mesmo que se aplica à tela da urna. Esse é o primeiro ponto.

Bolsonaro adota discurso sobre fraudes em urnas desde eleições de 2018, mas nunca apresentou prova verdadeira sobre o tema (Reuters)

Com esses registros físicos coletados na sessão eleitoral e armazenados numa urna física convencional, precisa-se projetar um protocolo que preserve a integridade dessa evidência até o ponto da auditoria, e uma forma simples, antiga, para se desvincular a ordem que esses papéis foram impressos da ordem de votação é você misturar essa urna física.

Um outro ponto importante na proposta do registro físico é que o TSE construiu um protótipo que satisfaz os requisitos desse mecanismo. Ele foi inclusive publicado num evento nacional de tecnologia eleitoral, um evento científico, foi revisado por pares, é um bom projeto inicial para se tentar um esforço, novamente, com implementação gradual, estudos de usabilidade, num esforço de longa duração. E nesse protótipo do TSE, há uma característica muito interessante que a urna eletrônica autentica esses registros físicos. Então, ela produz uma assinatura digital provando que aquele registro foi produzido durante a eleição especificamente por aquela urna.

Evidentemente não seria possível uma pessoa imprimir um monte de votos a mais em casa e introduzir estes votos a mais nas urnas físicas porque não teriam essa autenticação produzida pela urna eletrônica durante a eleição. Ao mesmo tempo, outros tipos de intervenção nestes registros físicos seriam detectados pela falta ou pela validade deste autenticador que a urna produz. Então, a trilha física aqui seria verificável pelo eleitor, porque é um pedaço de papel observado dentro da cabine indevassável, mas também autenticado pela urna para que a sua integridade possa ser verificada também.

Um último pnto, que também vem sendo discutido, seria a necessidade de se contar todos esses registros físicos do país inteiro. Essa não é a prática internacional e não é também o que se propõe na literatura científica. A ideia sempre é fazer uma auditoria, uma verificação por amostragem, exatamente para que não seja possível, com custo muito baixo (para o fraudador), se invalidar o resultado de uma sessão eleitoral.

Uma preocupação, por exemplo, seria se alguém com acesso a essa trilha física faz desaparecer um dos registros físicos para poder alegar que houve fraude. Se a contagem é por amostragem, a quantidade de registros físicos que teriam que desaparecer ou ter sua integridade comprometida para poder se anular o resultado da eleição seria muito grande o que tornaria inviável um esforço dessa magnitude para um fraudador até bem equipado.

BBC News Brasil - A proposta de voto impresso em discussão na Câmara está de acordo com o que o sr. defende?

Aranha - Eu sei que há várias versões (da proposta de voto impresso sendo discutidas na Câmara). Eu observei a versão original da proposta (da deputada Bia Kicis) e havia questões de redação. Por exemplo, ela falava em cédulas físicas. Eu acho isso complicado porque já há uma confusão enorme sobre o que é voto impresso. Não é nem difícil encontrar, por exemplo, referências ao termo voto impresso em veículos de imprensa que são de qualidade no país utilizando como sinônimo de voto em cédulas, quando são coisas diferentes.

Eu tenho inclusive utilizado o registro físico para tentar tornar mais específico o que se propõe. Utilizar a redação de cédulas físicas eu acho que cria confusão e cria facilmente argumentos contra, porque as pessoas iam associar às antigas eleições baseadas em cédulas.

Eu não sou um jurista, mas do ponto de vista técnico, o que faz sentido é fixar um conjunto de requisitos, porque especificar de maneira demasiada este mecanismo em uma emenda constitucional engessa a forma como ele pode ser evoluído ao longo do tempo. O que eu entendo que poderia ser proposto é uma cristalização de requisitos de segurança e transparência que devem ser satisfeitos pelo sistema de votação. O sigilo do voto é um destes requisitos que já existe na Constituição. A gente poderia pensar em um mecanismo de transparência, por exemplo, que capturasse essa ideia de independência do software como requisito, e a partir daí, sabendo quais são os requisitos (previstos na Constituição), trabalhar nesse espaço de soluções possíveis que satisfaçam esses requisitos da maneira mais eficiente possível.

BBC News Brasil - Como o sr. já disse, mesmo que o voto impresso venha a ser aprovado agora, não dá pra aplicá-lo para o próximo ano. Seria uma adoção gradual?

Aranha - Correto. Uma intenção sincera de se implementar o voto impresso para que ele cumpra o que se espera, que ele se torne um mecanismo transparente que aumenta a confiança da população nos resultados, ao invés de simplesmente um mecanismo que crie mais ruído, é a implementação gradual, cuidadosa com a submissão desse mecanismo novo a testes de usabilidade, a testes de segurança, como já acontece com o sistema de votação, para que ele possa de maneira controlada e cuidadosa atingir todas as sessões eleitorais, exatamente como foi a implementação da urna eletrônica nos anos 1990.

Essa é a única forma possível de se fazer uma mudança dessa natureza no sistema de votação, sem criar riscos maiores do que as vantagens que o mecanismo poderia trazer.

BBC News Brasil - O sr. vê problemas no discurso bolsonarista sobre voto impresso, mas também vê problemas historicamente na postura que o TSE adotou nesse tema. Qual sua crítica a forma como o tema foi conduzido no TSE?

Aranha - Sim. Eu gostaria de responder isso em nome da comunidade técnica porque essa não é uma reclamação apenas minha. Especialmente entre 2009 e 2014, quando as primeiras edições dos testes aconteceram, havia uma reclamação muito grande com transparência nas posturas do Tribunal Superior Eleitoral.

É importante lembrar: o sistema foi implantado no Brasil em 1996 e a primeira vez em que ele pôde ser testado com exame do código-fonte do sistema por especialistas independentes foi em 2012. E mesmo em 2012, quando eu coordenei uma equipe que naquela ocasião encontrou uma vulnerabilidade no embaralhamento dos votos que permitiria fragilizar o sigilo do voto utilizando apenas informação pública, mesmo naquela ocasião vários pesquisadores da nossa equipe em particular reclamaram das condições de trabalho dos testes. Você pega um procedimento extremamente adversarial, onde as condições dos pesquisadores nem sempre eram priorizadas, onde havia um controle muito forte da narrativa do que acontecia nos testes pelo próprio tribunal.

Depois dos testes acabarem, por um bom tempo a gente ainda precisou de maneira bem incisiva se manifestar na imprensa, nas oportunidades que apareceram pra isso, simplesmente para confirmar os nossos resultados, porque existe uma postura muito grande do tribunal em negar aqueles resultados técnicos.

Na própria forma como o TSE fala sobre a experiência de voto eletrônico em outros países, a gente também observa uma postura que não é exatamente transparente. O TSE sempre se manifesta listando o número de países que utilizam algum tipo de dispositivo eletrônico em suas eleições, mas muitas vezes omite que vários destes países utilizam também o registro físico em concomitância ao registro eletrônico como mecanismo de transparência. Há, de certa forma, uma versão do tribunal que é muito difícil de se colocar em discussão pela postura em que essa versão é apresentada.

Então, poderia haver aprimoramentos tanto na comunicação do tribunal com a sociedade, que privilegiasse a transparência, o reconhecimento da área de pesquisa e da prática internacional do voto eletrônico, como também na relação com a comunidade técnica na medida em que esses sistemas são disponibilizados para exame independente.

Um ponto, por exemplo, que está sendo discutido e foi inclusive promessa do tribunal em 2018 e ainda não satisfeita é a abertura do código-fonte. Eu não consigo entender porque um sistema crítico que é utilizado no país para um dos seus procedimentos mais importantes, um dos alicerces da democracia, que está em produção há 25 anos e que o tribunal defende como talvez o melhor sistema de apuração eleitoral do mundo, porque ele não pode ser examinado de maneira conveniente fora das dependências do Tribunal Superior Eleitoral por pesquisadores independentes.

Se o sistema tem esse nível de maturidade que é alegado pelo tribunal e tem essa história de 25 anos de sucesso como um sistema crítico, ele já deveria estar pronto há muito tempo para o exame de pesquisadores externos.

Então, tá aí uma sugestão de um mecanismo simples, que dá tempo de ser satisfeito até as próximas eleições, e que eu entendo aumentariam de maneira substancial a transparência no sistema: a publicação do código-fonte para que ele possa ser examinado por especialistas que não representam partidos ou não participam de testes públicos de segurança com a janela de análise inclusive muito mais longa, com a possibilidade de interação maior.

Mariana Schreiber - @marischreiber, de Brasília para a BBC News Brasil, em 10.08.2021

segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Desfile de blindados é sinal de fraqueza e efeito internacional será desastroso, diz Jungmann

Ex-ministro afirma que Bolsonaro não tem força para tirar o Brasil dos trilhos democráticos

Na avaliação do ex-ministro da Defesa e da Segurança Raul Jungmann, a realização nesta terça-feira (10) de um desfile de blindados em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, é um teatro promovido por Jair Bolsonaro na tentativa de demonstrar força, revelando na verdade a sua fraqueza.

O evento, organizado pelo Ministério da Defesa, acontece na mesma semana da votação da PEC do voto impresso na Câmara. Jungmann diz que já participou da chamada Operação Formosa, mas enquanto cerimônia fechada ao público.

"O presidente tenta com esse teatro criar a ilusão de que as Forças Armadas apoiam o seu constrangimento dos demais Poderes e ameaças. Não existe nada disso. As Forças Armadas estão de fato com a Constituição e não vão se afastar disso. E o presidente visa passar a impressão contrária", afirma Jungmann ao Painel.

Ainda assim, diz o ex-ministro, a medida terá efeito "triplamente desastroso".

"Primeiro, porque vai ampliar a derrota do voto impresso na Câmara, que de forma alguma vai aceitar esse tipo de pressão. Segundo, o efeito desses fatos internacionalmente será desastroso, não tenho a menor sombra de dúvida. Terceiro, é uma manifestação não de força, mas de fraqueza, de jus sperniandi, de perdedor, que quer criar uma falsa impressão de que tem força para que não tem, que é tirar o Brasil dos trilhos democráticos", afirma Jungmann ao Painel.

De acordo com um comunicado da Marinha, o desfile marcará a entrega a Bolsonaro e ao ministro Walter Braga Netto (Defesa) de um convite para que as autoridades acompanhem, na próxima segunda-feira (16), um tradicional exercício da Marinha que ocorre desde 1988.

De acordo com a assessoria de comunicação da Defesa, trata-se de uma ação de divulgação do exercício. Segundo a Marinha, a Operação Formosa envolverá neste ano mais de 2.500 militares das três Forças —é a primeira edição que Exército e Aeronáutica participam.

Publicado originalmente pela Folha de São Paulo online, em 09.08.2021

'Fraude é denunciar fraude inexistente', afirma analista sobre ataque à urna eletrônica

Para o argentino Daniel Zovatto, pressão por voto impresso é descabida e é 'inoportuno e perigoso' mudar regras a um ano das eleições

O argentino Daniel Zovatto nunca foi candidato a nada, mas de eleições ele entende, e muito. Diretor para a América Latina do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (Idea Internacional), ele conhece a fundo as instituições e autoridades que organizam votações em toda a região. Também monitora, com muita preocupação, o estado de saúde da democracia em todo o mundo.

Para Zovatto, a pressão pela implantação do voto impresso no Brasil é descabida. Ele considera que é "inconveniente, inoportuno e perigoso" mudar as regras das eleições quando falta pouco mais de um ano para os brasileiros irem às urnas.

Na entrevista abaixo, na qual manifesta opiniões pessoais, e não da instituição que representa, o doutor em Direito Internacional analisa, entre outros pontos, a estratégia dos políticos que buscam deslegitimar eleições em caso de risco de derrota.

Como analisa o conflito em relação ao sistema de votação no Brasil?

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) traçou uma linha vermelha oportuna e necessária ao abrir uma investigação sobre o presidente Jair Bolsonaro e ao emitir uma nota assinada por todos os ex-presidentes do TSE em defesa da urna eletrônica, que tem sido atacada quase diariamente pelo chefe do Executivo. Bolsonaro, por sua vez, reagiu dizendo que não aceitará intimidação e que continuará a exercer seu direito à liberdade de expressão, a criticar, a escutar e a atender, acima de tudo, à vontade do povo. E, fiel à sua palavra, ele continuou com seus ataques e denúncias. Como resposta, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, cancelou uma reunião de chefes de Poderes. Diante do atual clima de tensão, seria desejável abrir um espaço para o diálogo respeitoso entre o Executivo, o STF e o TSE, visando desescalar o conflito, mas sem abandonar a abordagem básica em defesa da independência do TSE, da credibilidade da urna eletrônica e da defesa do sistema democrático.

O que está por trás da pressão pela adoção do voto impresso?

Na minha opinião, houve uma ameaça muito forte à democracia brasileira quando a realização das próximas eleições foi condicionada à adoção do voto impresso. Diante desta grave ameaça, o TSE agiu corretamente, mostrando que tem poder suficiente para defender o processo eleitoral. Isto representa uma mudança muito importante. Se até a semana passada Bolsonaro agia como se não tivesse nada a perder, após a ofensiva do TSE o presidente é alvo de um risco triplo: pode perder a cadeira presidencial se o TSE encontrar irregularidades na campanha de 2018; pode sofrer impeachment; e pode ser impedido de ser candidato nas eleições de 2022.


Considera que o TSE deu uma resposta institucional, em nome de todo o Judiciário?

O TSE tem uma composição única na América Latina, pois seu presidente e parte de seus ministros também são do Supremo Tribunal Federal, e por concentrar tanto funções administrativas quanto judiciais. Estas características fazem do TSE uma instituição muito poderosa. Existem outros órgãos eleitorais sendo atacados na América Latina pelo Executivo - o INE no México -, por deputados do partido no poder - o TSE na Bolívia - ou pela oposição que perdeu as eleições - a JNE no Peru -, mas nenhum dos três tem a capacidade de reagir como o TSE brasileiro. Conheço o TSE desde 1990. Desde então, tenho colaborado com vários programas de cooperação técnica e com a maioria de seus presidentes. Tenho grande respeito e admiração por esta instituição, suas autoridades e equipes por seu profissionalismo, independência e transparência; respeito e admiração que é compartilhado por todos os órgãos eleitorais da América Latina. Também tenho grande confiança e admiração pela urna eletrônica brasileira. Tive a honra de acompanhar sua implementação e melhoria graduais desde 1996 até hoje. É um instrumento seguro, transparente e auditável. Nesses 25 anos de existência, nenhuma fraude foi provada. Por todas estas razões, não vejo razão para justificar sua reforma, e muito menos neste momento em que as eleições de outubro de 2022 estão a apenas 14 meses de distância. Fazer a reforma proposta é inconveniente, inoportuno e perigoso.

Quando reformar os processos eleitorais a fim de aperfeiçoá-los?

O sistema presidencial é baseado na divisão de Poderes, que exige respeito pela independência de cada Poder, um sistema de freios e contrapesos, diálogo para resolver de forma respeitosa e responsável as tensões que surgem. Na concepção, implementação e melhoria do sistema eleitoral, em sentido amplo, é aconselhável que cada poder faça a contribuição estabelecida na Constituição e que exista um diálogo frutífero entre eles, baseado no reconhecimento da independência dos Poderes, no respeito recíproco e na responsabilidade que vem com o exercício do cargo.

Como autoridades responsáveis pela organização de eleições devem responder a ataques à urna eletrônica?

Primeiro: expor todos os falsos argumentos que denunciam supostas fraudes. Demonstrar, com provas claras, que a verdadeira fraude é a denúncia de uma fraude inexistente. Realizar investigações e auditorias que demonstrem a robustez do sistema eleitoral, a solidez da urna eletrônica e a independência e profissionalismo das autoridades eleitorais. E, como o TSE vem fazendo, exercer ao máximo as competências e poderes que lhe são conferidos pela Constituição e pelas leis. A recente nota do TSE assinada por todos os antigos e pelo atual presidente do TSE desde a Constituição de 1988 e os discursos dos ministros Luís Roberto Barroso e Luiz Fux são uma contribuição muito valiosa neste sentido. Segundo: buscar, no país, o apoio do maior número possível de partidos políticos, acadêmicos, especialistas eleitorais, ex-membros do TSE, associações profissionais, ONGs e jornalistas e, internacionalmente, convidar instituições e órgãos eleitorais de renome internacional para que visitem o Brasil, realizem investigações e, se as conclusões forem positivas, contribuam para proteger o TSE, a urna eletrônica e a condução do processo eleitoral. Terceiro: convidar missões de observação eleitoral de prestígio (ONU, OEA, UE, entre outras) a ir ao Brasil para acompanhar o processo ao longo de suas diferentes etapas e fazer observações e recomendações.

De um ponto de vista técnico, é possível melhorar a segurança do voto eletrônico. Como esta discussão deve ser conduzida?

Cada país é soberano ao decidir os mecanismos de votação que deseja utilizar. Globalmente, existem vários mecanismos. Os mais comuns são a cédula única em papel, em várias formas, e o voto eletrônico, em suas várias formas, incluindo o voto pela internet. Há também várias formas de votar: votar somente no dia da eleição; votar pessoalmente; votar antecipadamente pelo correio; levar a urna de votação para a casa do eleitor etc. Alguns países até combinam vários mecanismos e várias formas de votação.

Mas o mais importante é que os mecanismos de votação que cada país escolher devem gerar certeza, segurança, transparência, serem auditáveis e, sobretudo, gozar de muita credibilidade e legitimidade entre os cidadãos. Se o mecanismo de votação em vigor em um país goza de altos níveis de confiança, legitimidade e credibilidade, é aconselhável mantê-lo, sem prejuízo de fazer ajustes periódicos para melhorar seu desempenho e eficácia. Por outro lado, quando o mecanismo sofre de debilidades que poderiam comprometer a confiança e credibilidade do público, é aconselhável realizar um processo de reflexão e revisão, baseado em evidências concretas e demonstráveis, com o objetivo de identificar as possíveis causas do problema e as opções mais adequadas para solucioná-lo.

Como consequência, qualquer proposta de reforma eleitoral, especialmente no caso do mecanismo de votação, deve ser bem fundamentada, e as opções propostas para substituir o mecanismo atual devem demonstrar solidez técnica e viabilidade política. Outros fatores que devem ser cuidadosamente analisados são: demonstrar que o saldo líquido da reforma - benefícios menos efeitos negativos - é positivo; determinar seu custo econômico; basear-se num consenso político o mais amplo possível; e determinar, com o parecer técnico do corpo eleitoral, se há tempo suficiente para sua implementação sem assumir riscos sérios para a conclusão bem sucedida do processo eleitoral. A experiência comparativa sugere que, a fim de reduzir os riscos, mudanças no mecanismo de votação devem ser implementadas gradualmente, ou seja, em etapas sucessivas, como foi o caso com a implementação da urna eletrônica no Brasil.

Donald Trump, como presidente, atacou a legitimidade das eleições nos Estados Unidos. Que influência isso tem sobre os países com tradições menos democráticas, especialmente na América Latina?

Muito forte, infelizmente. Acabamos de ver exemplo disso no Peru, na fase pós-eleitoral do segundo turno das eleições, com as múltiplas alegações de fraude, nunca provadas, feitas por Keiko Fujimori e seu partido Fuerza Popular, e os graves ataques realizados contra as autoridades. Também vimos isso nas recentes eleições no México, de junho e o referendo do último domingo, quando o presidente Lopez Obrador e seu partido Morena acusaram repetidamente o INE de ser o órgão eleitoral mais caro do mundo e de ser um obstáculo à democracia. E nesta semana, na Bolívia, um deputado do partido governista MAS apresentou uma queixa criminal contra quatro magistrados do Tribunal Supremo Eleitoral.

Uma tendência semelhante parece estar ocorrendo no Brasil com os ataques e denúncias de Bolsonaro contra a urna eletrônica e o presidente do TSE, a quem ele chamou de "idiota" e "imbecil" em julho. Deve-se lembrar que Bolsonaro, nas eleições de 2018, já havia ameaçado não reconhecer os resultados se ele não ganhasse.

Qual é o objetivo de quem busca o descrédito dos processos eleitorais?

A estratégia é semelhante na maioria dos países onde este fenômeno ocorre. Com bastante antecedência, com mentiras e falsas alegações, procuram gerar confusão, semear dúvidas sobre a credibilidade do processo eleitoral, a independência das autoridades eleitorais e a segurança do sistema de votação, criando uma realidade paralela que procura deslegitimar completamente o processo eleitoral no caso de uma derrota. Se eu perco, dizem eles, é porque houve fraude. Os danos que causam ao processo eleitoral, às autoridades eleitorais, às instituições e à democracia são enormes, e seus efeitos se estendem além do processo eleitoral.

Quando alguém analisa se um país está no caminho de se tornar menos democrático, em que se deve prestar mais atenção?

A experiência comparativa, global e regionalmente, identifica quatro luzes amarelas que indicam que estamos enfrentando um perigoso processo de deterioração democrática. Quando não se aceita as regras democráticas ou se joga permanentemente em seus limites. Quando não se reconhece a oposição como um ator legítimo - a oposição é desconsiderada, desqualificada e difamada. Quando se ataca constantemente a imprensa e se impõem restrições ao exercício da liberdade de expressão. E quando se promove o ódio e a violência, física ou verbal, de maneira expressa ou sutil, polarizando a sociedade o máximo possível. Há outros indicadores que normalmente acompanham estes quatro: 1) ataques frontais à divisão de poderes, especialmente às instituições que restringem propostas autoritárias, seja o Congresso, quando não se tem controle sobre ele, o Judiciário, os órgãos de controle, os tribunais eleitorais etc; 2) redução do espaço de ação da sociedade civil; e 3) aumento dos níveis de polarização ao extremo, com a divisão da sociedade em amigos e inimigos, e uso abusivo das redes sociais para atingir este objetivo.

De acordo com analistas e cientistas políticos, atualmente os autocratas atacam a democracia de forma lenta e gradual, e não tanto de maneira abrupta. Concorda com esse ponto de vista?

Concordo plenamente. Embora os golpes não tenham desaparecido completamente, como mostram Honduras em 2009 e Mianmar em 2021, a experiência comparativa indica que os principais e mais perigosos ataques à democracia hoje são realizados por atores que chegaram ao poder através de eleições e que, uma vez eleitos, enfraquecem gradual e permanentemente a democracia de dentro do poder. A maioria dos ataques à democracia em nosso tempo não ocorre por golpes de Estado, mas por quem está no poder e em câmera lenta, como é demonstrado em nossa região pelos regimes autoritários da Venezuela e da Nicarágua.

Como a democracia deve ser defendida quando seu processo de corrosão é gradual e muitas vezes não perceptível pela maioria da população?

Uma estratégia ampla tem de ser implementada, tanto a nível interno como a nível regional e global. A democracia está sitiada em muitos países. As tendências autoritárias estão ganhando terreno, como evidenciado por muitos relatórios de prestígio, incluindo a Economist Intelligence Unit, o projeto V-DEM, os relatórios da Freedom House e o relatório da International IDEA sobre o estado global da democracia. Precisamos estudar com mais profundidade este novo tipo de autoritarismo que está atualmente em construção, a fim de confrontá-lo de forma mais rápida e eficaz. Precisamos estar conscientes da fragilidade da democracia e dos riscos crescentes que ela enfrenta, bem como dos processos de retrocesso que estão ocorrendo em muitos países ao redor do mundo. Nenhum país é vacinado contra o vírus autoritário. Também é necessário rever e atualizar os mecanismos para a defesa regional da democracia, incluindo os estabelecidos pela Carta Democrática Interamericana, que completa 20 anos em 11 de setembro e se tornou ultrapassada diante do novo tipo de ameaças que a democracia enfrenta hoje. A Idea Internacional tem feito um duplo apelo: por um lado, para defender a democracia durante este período tão turbulento em nossa região, agravado pelo impacto da pandemia, e, por outro lado, para repensá-la a fim de avançar para uma nova geração de democracia, mais resistente e de melhor qualidade, com a capacidade de responder de forma oportuna e eficaz aos novos desafios do século 21.

Qual é o papel da desinformação, e sua ampliação nas redes sociais, na atual crise da democracia?

Novas tecnologias de informação e comunicação estão aqui para ficar e apresentar novos e difíceis desafios para a política, a integridade das eleições e a qualidade da democracia. As redes sociais e sua relação com as eleições, a política e a democracia têm, como o deus Jano, duas faces, Por um lado, essas ferramentas, quando utilizadas adequadamente, têm um efeito positivo no desenvolvimento de processos eleitorais legítimos, melhoram a qualidade da democracia, garantem o pleno exercício da liberdade de expressão, contribuem para um debate público informado e promovem a participação cidadã.

Mas, por outro lado, quando mal utilizadas, elas representam novas e sérias ameaças. As bolhas de filtragem ideológicas e as câmaras de eco geradas pelas redes sociais podem fomentar o ódio, aumentar perigosamente a polarização e facilitar a ação dos movimentos pós-verdade. Também podem contribuir para a viralização de notícias falsas e de campanhas de desinformação, afetando a condução normal das campanhas eleitorais, minando a confiança no processo e nas instituições eleitorais e manipulando o comportamento eleitoral dos cidadãos.

Como as plataformas e redes sociais devem responder aos ataques à democracia, sem restringir a liberdade de expressão?

Após o escândalo da Cambridge Analytica, as plataformas adotaram e continuam a adotar uma série de medidas destinadas a combater notícias falsas e desinformação durante os períodos eleitorais, incluindo códigos de conduta para reforçar a transparência e garantir informações confiáveis. Em um número significativo de países, dentro e fora de nossa região, os Legislativos também adotaram novas e melhores regulamentações sobre esta questão para preencher as lacunas legais existentes em muitos países da região.

Por sua vez, numerosos órgãos eleitorais, incluindo o TSE do Brasil, o INE do México e o TE do Panamá, tomaram uma postura proativa diante deste importante fenômeno e implementaram várias medidas e mecanismos, entre eles: desenvolver suas próprias capacidades institucionais e habilidades em assuntos digitais; promover debates on-line; assinar pactos éticos digitais com uma ampla coalizão de atores, como partidos políticos, organizações da sociedade civil e meios de comunicação tradicionais; chegar a acordos de colaboração - formais ou informais - com plataformas digitais; incentivar o uso responsável de redes; implementar mecanismos de verificação de fatos em colaboração com meios de comunicação tradicionais, universidades, grupos de reflexão e organizações da sociedade civil; implementar campanhas de educação digital para os cidadãos e sobre conteúdos educacionais sobre o processo eleitoral; e fomentar a cooperação horizontal entre os órgãos eleitorais e compartilhar boas práticas e lições aprendidas em relação a este fenômeno, tudo com o objetivo de mitigar os excessos e efeitos negativos das redes sociais durante as campanhas eleitorais e, ao mesmo tempo, maximizar seus efeitos positivos, sempre tomando cuidado para que estas medidas não afetem o pleno gozo da liberdade de expressão. Mas a liberdade de expressão não deve e não pode ser mal utilizada ou manipulada para propagar com impunidade notícias falsas ou campanhas de desinformação destinadas a deslegitimar um processo eleitoral ou atacar as instituições ou a própria democracia.

Qual deveria ser a posição de um presidente democrata em relação à oposição? Em que ponto se passa da crítica aceitável para os ataques que procuram deslegitimar a oposição?

Democracia é sinônimo de pluralismo, diálogo, respeito, tolerância. A oposição deve ser racional e jogar limpo. O Executivo também deve. Ambos devem reconhecer e respeitar um ao outro como jogadores legítimos no jogo democrático. Um presidente democrático deve defender seu programa e suas propostas com firmeza, mas sempre com respeito, reconhecendo a oposição como um jogador-chave no jogo democrático. Deve ser evitado um nível excessivo de polarização que leva a um jogo de soma zero, e a uma desqualificação e difamação da oposição que implica não reconhecê-la como um ator legítimo no jogo democrático. Em alguns casos, tais como Nicarágua e Venezuela, vemos como o Executivo desqualifica ou prende partidos e líderes da oposição. Em outros, como no caso de Bukele em El Salvador, adjetivos difamatórios são usados quando se refere à oposição. Sem uma oposição autêntica, não há democracia

Daniel Bramatti para o Portal TERRA, em 08.08.2021

Um governo investigado

Que tudo seja devidamente investigado. No Estado Democrático de Direito, não há espaço para ameaças às eleições ou para exercício do poder fora da lei

Na campanha eleitoral de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro prometeu uma nova política e uma nova ética pública. Além de acabar com a corrupção e o mau uso do dinheiro público, o seu governo iria promover uma rigorosa aplicação da lei. De acordo com o tom das promessas, a impunidade teria seus dias contados.

Agora, três anos depois, todo esse discurso soa não apenas muito distante, como ele parece ser a exata antítese do que vem ocorrendo. Em vez de promover o cumprimento da lei, o governo de Jair Bolsonaro vê-se envolto em novas suspeitas de desrespeito à lei. A cada dia surgem novas investigações sobre o comportamento do próprio governo federal.

Em primeiro lugar, há a investigação promovida pelo Senado, por meio da CPI da Pandemia. Vale ressaltar que a comissão não investiga um aspecto por assim dizer secundário do governo, como ocorreu em outras comissões parlamentares de inquérito. A atual CPI investiga as ações e as omissões do governo federal no enfrentamento do principal desafio da atualidade. E têm surgido suspeitas de mau uso do dinheiro público na negociação e compra de vacinas anticovid, precisamente o item mais decisivo para vencer a pandemia.

As investigações relativas à área da saúde no âmbito federal não se restringem ao Senado. Por exemplo, a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), foi aberto um inquérito para investigar se o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de prevaricação no episódio da compra da vacina indiana Covaxin.

Mais recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU) pediu esclarecimentos aos Ministérios da Defesa e da Economia a respeito do uso de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) em corriqueiros gastos militares. Há suspeitas de irregularidades na descentralização de recursos do Ministério da Saúde, ocorrida no ano passado, envolvendo a execução de ações de saúde pelo Ministério da Defesa.

Além disso, o poder público precisou abrir investigações em áreas de especial atuação do bolsonarismo, como a difusão de fake news e a promoção de atos antidemocráticos. No mínimo, é um tanto estranho. Aquele que prometeu um rigoroso cumprimento da lei tem seguidores que demandam continuamente a atuação dos órgãos de investigação.

E não são seguidores distantes. Num dos inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF), os três filhos mais velhos do presidente – Flávio, Carlos e Eduardo – são mencionados na condição de arrolados pela Polícia Federal como possíveis integrantes de organização criminosa destinada a atacar a democracia.

De toda forma, o mais estranho – absurdamente contraditório – é que o próprio Jair Bolsonaro assumiu como sua prioridade uma campanha que é rigorosamente ilegal. De forma contínua e insistente, o presidente Bolsonaro tem desautorizado o sistema de votação vigente, difundindo inverdades e propagando desconfiança sobre o elemento central de um regime democrático – o respeito à vontade do eleitor manifestada nas urnas.

Tal é a situação que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se viu obrigado a agir. Por unanimidade, o tribunal decidiu abrir um inquérito administrativo envolvendo o presidente Jair Bolsonaro, em razão de suas declarações infundadas de fraude no sistema eletrônico de votação e de suas ameaças às eleições de 2022.

Além disso, a partir de uma notícia-crime enviada pelo TSE, o STF incluiu Jair Bolsonaro como investigado no inquérito das fake news. Também chegaram ao Supremo pedidos para que o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, seja investigado a respeito de ameaça feita no mês passado contra as eleições de 2022.

Como se pode ver, as investigações não são casos isolados, tampouco afetam integrantes menos importantes do governo. É o próprio Jair Bolsonaro e o grupo mais íntimo do governo que reclamam a atenção dos órgãos de apuração e investigação, em temas especialmente caros ao bolsonarismo. Que tudo seja devidamente investigado. No Estado Democrático de Direito, não há espaço para ameaça às eleições ou para exercício do poder fora da lei.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 09 de agosto de 2021 | 03h00

Generais não acreditam nas ameaças de golpe feitas por Bolsonaro

História da República está cheia de episódios em que boatos e mentiras foram usados antes de rupturas e revoltas

Presidente Jair Bolsonaro participa de motociata na cidade de Presidente Prudente, no interior de São Paulo. Foto: Marcos Corrêa/PR - 31/07/2021

A falsidade deliberada e a mentira descarada são usadas como meios legítimos para alcançar fins políticos desde os primórdios da história documentada. Não é preciso conhecer a análise de Hannah Arendt sobre a divulgação dos Papéis do Pentágono, os documentos sigilosos sobre a guerra do Vietnã, para saber que a veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas. 

Um coronel da Aeronáutica próximo ao núcleo bolsonarista que domina os clubes militares das três Forças enviou à coluna uma das muitas patranhas que circulam em grupos de WhatsApp. Eram dados de uma pesquisa eleitoral que dariam a Jair Bolsonaro a popularidade de um Saddam Hussein na Bagdá dos anos 1980. Alertado de que a notícia parecia desinformatzia, o oficial respondeu que "a mentira nem sempre é mentira, mas omissão para preservar mal maior". E completou sobre a tal pesquisa: 

"É fraca. Mas depois de a CPI dar o maior crédito a um cara com prontuário nada edificante, até dá para deixar passar esse lance de pesquisa eleitoral". E perguntou: "A propósito, vocês (jornalistas) deram destaque à maior motociata da história, a de agora, em Santa Catarina?" Pouco importa se a notícia é verdadeira, se a manifestação é grandiosa ou se as urnas eletrônicas funcionam. A mentira quase nunca visa ao inimigo, aos que não podem ser convertidos, mas ao consumo doméstico, à propaganda caseira e a enganar o Congresso. 

Bolsonaro não inventou nada de novo. E, desde que foi acusado de mentir em Conselho de Justificação até agora, sempre obteve sucesso. Sua pregação contra a urna eletrônica – desmentida por peritos da Polícia Federal e por 18 ministros e ex-ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – contaminou fortemente os militares que o apoiam. Isso pode ser medido pela mudança de humor entre policiais militares detectada pelo Instituto Idea, divulgada pela repórter Maria Carolina Trevisan. 

A pesquisa mostra que, em maio deste ano, 55% dos policiais militares entrevistados em cinco Estados disseram não confiar nas urnas eletrônicas contra 15% que acreditavam na segurança da máquina. Para se ter uma ideia da confusão causada pelo bolsonarismo, em outubro de 2018, esses números eram 35% e 30%, respectivamente. Pior: 54% dos PMs defendem a volta do voto impresso ante 45% que se declararam favoráveis à manutenção do voto eletrônico – quase três anos antes, 55% queriam a urna eletrônica e 35% a volta do papel nos pleitos.

O marechal Deodoro da Fonseca proclamou a República e chefiou o governo provisório até janeiro de 1891, quando foi eleito indiretamente o primeiro Presidente do Brasil.  Foto: Acervo/Estadão

Não se sabe ainda se Bolsonaro, como afirmam os críticos, usa a mentira da fraude nas urnas eletrônicas para preparar um golpe ou apenas para dar coesão e objetivo à sua gente. Conspiração ou provocação? Não é preciso, porém, buscar nas ações psicológicas da Guerra Fria um paralelo. Basta olhar para a história da República. O dia 14 de novembro de 1889 registrou uma dessas ações. Era manhã, quando, pela Rua do Ouvidor, no Rio, o major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro, em trajes civis, começou a espalhar um boato: o gabinete liberal de Visconde do Ouro Preto mandara prender o marechal Deodoro da Fonseca e o major Benjamin Constant. 

Deodoro retornara à capital federal dois meses antes e, convalescente, estava em casa. Não havia ordem de prisão contra os dois oficiais, como também era mentira a informação de que unidades do Exército seriam transferidas da capital ou que a 2.ª Brigada seria atacada por forças leais ao governo. Tampouco havia plano para dissolver o Exército. Pouco importa. Os boatos ajudaram a mobilizar as tropas que marcharam horas mais tarde para dar fim ao Império e instalar a República. 

Antes da revolta dos 18 do Forte, o clima político foi crispado por outra mentira: as cartas falsas atribuídas a Arthur Bernardes. Publicadas nos dia 9 e 10 de outubro de 1921, elas traziam ofensas ao líder da Reação Republicana, Nilo Peçanha, e aos militares. Serviram para mobilizar a mocidade militar nos meses que antecederam ao primeiro levante tenentista em 1922. Getúlio Vargas e o general Pedro Aurélio de Góis Monteiro se valeram também de um documento falso – o Plano Cohen – para atestar a existência de uma conspiração comunista e legitimar o golpe de 10 de novembro de 1937, que instituiu a ditadura do Estado Novo.

Foi a primeira vez, mas não a última, que o anticomunismo azeitou as engrenagens golpistas com uma mentira. Em suas memórias, o marechal Odylio Denys, que primeiro tentou impedir a posse de João Goulart em 1961 e depois ajudou a depô-lo em 1964, escreveu que a razão das restrições feitas a Jango era ele ser comunista. "Embora eleito vice-presidente da República, embora na posse do direito de assumir a Presidência quando Jânio Quadros renuncia, impedido estava ele de exercer o cargo pelo fato de haver-se, depois de eleito, vinculado aos comunistas e ao partido Comunista, tornando-se ele mesmo um comunista." 

Tancredo Neves, João Goulart, Ranieri Mazzili e Ulysses Guimarães na cerimônia de posse do segundo em 1962. Foto: Acervo/Estadão

A história de que Jango era comunista era então a "mentira necessária contra o mal maior". O general Olímpio Mourão Filho reconheceu em suas memórias: "É evidente que Goulart e (Leonel) Brizola nunca foram comunistas". O homem que saiu de Minas com seus homens para depor o governo repudiou o trecho de seu Manifesto de 31 de Março que acusava Goulart. "Eu não redigi aquela frase, na madrugada de 31 de março, quando fiz meu manifesto em cerca de 18 minutos. Mas entreguei-o ao atual ministro Antônio Neder (nomeado para o STF em 1971) para que o burilasse e, ao que parece, ele acrescentou que Goulart era comunista." 

Pouco depois do golpe, Mourão contou ao repórter José Stacchini, do Estadão, que seus oficiais achavam que ele "não estava bem da cabeça" quando falava de seus planos contra o governo: "Vamos partir e todas as regiões do País vão nos acompanhar". Escreveu Stacchini: "Mourão Filho tem um modo peculiar de conspirar: conspira abertamente, mas tão abertamente que aquilo não parece conspiração. Parece provocação".  

Quase 60 anos depois, Bolsonaro parece repetir Mourão. Diz que sem o voto impresso não haverá eleições em 2022. Há muitos generais que não acreditam no que o presidente afirma. Repetem o mesmo que diziam os subordinados de Mourão: quem conspira não faz isso abertamente. Um deles, já na reserva, confidenciou na campanha eleitoral, em 2018, a um interlocutor que eles, os generais, iam controlar "o doidão". 

Pensar que o que Bolsonaro faz é provocar em vez de conspirar está ligado à ideia do sigilo, dos arcana imperii. Os segredos de Estado são comumente vistos na história como um princípio do poder estatal. E seu abuso está na base das utopias autoritárias. Não há como garantir a democracia e as liberdades se os agentes do Estado escondem informações; se desejam acumular segredos e expor os súditos à luz perene do dia e se a verdade do Estado é a mentira para os cidadãos.

No Tratado Político, Spinoza mostra por que liberticidas precisam do segredo: "Àqueles que detêm o poder político é impossível mostrar-se bêbado ou acompanhado de prostitutas, bancar o palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis estabelecidas por eles mesmos e, apesar disto, conservar a sua majestade". Corre-se o risco, segundo o filósofo, de "transformar o temor em indignação e, consequentemente, o estado civil em estado de guerra". 



O novo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, durante a cerimônia de posse no Salão Nobre do Palácio do Planalto  Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Então por que Bolsonaro afirma que vai agir fora das quatro linhas da Constituição em vez de manter em segredo suas intenções? É que se – diz um general – trataria de ameaça e não de um plano? Mas o capitão acredita no que diz. E convence os apoiadores por isso. Ele olha a história do País e conclui que as chances de se tornar vítima de suas histórias são ínfimas. Deu certo no Exército. Deu certo no STM, no Congresso e também nas eleições de 2018. Quanto mais bem-sucedido for o presidente, mais ele arriscará. Após chamar o senador Ciro Nogueira (Progressitas-PI) para ocupar a Casa Civil, um general do Alto Comando acreditou que tudo ia se acalmar. A partir dali, a política profissional teria lugar no Planalto. Em vez disso, veio a tempestade de inquéritos no STF e no TSE.

Em circunstâncias normais, o mentiroso é derrotado pela realidade, para a qual não há substituto. Assim é com a pandemia e seus 560 mil mortos. Por maior que seja a rede de falsidades, ela nunca será suficiente para esconder a dimensão da tragédia. Assim também com as urnas eletrônicas. Em 25 anos, mais de um bilhão de votos foram contados para vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores e presidentes sem que ninguém – exceto Bolsonaro – contestasse a lisura das eleições. Pode-se não dar crédito a Bolsonaro quando ele ameaça a democracia. Mas não se deve ignorar que a mentira ronda a história dos golpes no País. Sem ela, nenhum autoritarismo é possível.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é repórter especial, formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). Publicado em 09.08.2021