segunda-feira, 26 de abril de 2021

'Brasil não levou pandemia a sério e muitos morreram desnecessariamente', diz Nobel de Medicina

"Embora Bolsonaro e sua administração sejam responsáveis, acho que a prioridade agora deve ser seguir em frente, agir e enfrentar a pandemia. Será um desafio, principalmente com a atual liderança, mas talvez a vontade do povo e a imprensa ajudem."

Para virologista americano Charles Rice, que venceu o prêmio em 2020, presidente Jair Bolsonaro é culpado pela crise de covid-19 e enfrentar pandemia sob sua liderança "será um desafio" (Crédito da foto: The Rockfeller University)

Na opinião do virologista americano Charles Rice, vencedor do Nobel de Medicina em 2020, "como aconteceu nos Estados Unidos, o governo brasileiro não levou a pandemia a sério e, como consequência, muitos morreram desnecessariamente".

Falando à BBC News Brasil por e-mail, ele diz acreditar que o presidente Jair Bolsonaro é culpado pela crise de covid-19, e que enfrentar a pandemia sob sua liderança "será um desafio".


Professor de virologia na Universidade Rockefeller (Estados Unidos), Rice dividiu o prêmio do ano passado com os pesquisadores Michael Houghton e Harvey J. Alter por seus trabalhos sobre o vírus da hepatite C. A doença, para a qual não existe vacina, provoca uma inflamação do fígado que pode se tornar crônica e causar câncer, levando à morte.

Carta assinada por mais de 200 nomes, incluindo três vencedores do Nobel, critica atuação de Bolsonaro em pandemia de covid-19 (Crédito da foto: Marcos Correa / PR)

Carta aberta

Recentemente, Rice foi um dos três ganhadores do prêmio Nobel a assinar uma carta com mais de 200 nomes, entre cientistas e pesquisadores de todo o mundo, para defender a ciência no Brasil e criticar a atuação do governo Bolsonaro durante a pandemia de covid-19. O documento, publicado em 7 de abril, diz que a área está sob ataque pela sua gestão (ver íntegra ao fim desta reportagem).

Além de Rice, outros dois laureados com o Nobel, Michel Mayor (Nobel de Física em 2019) e Peter Ratcliffe (Nobel de Medicina em 2019), também estão entre os signatários.

A BBC News Brasil entrou em contato com os dois - Mayor não respondeu aos questionamentos da reportagem e Ratcliffe afirmou, por meio de sua secretária, que ficou "feliz" de ter assinado a carta, mas que não "desejava fazer comentários adicionais" sobre a situação da pandemia da covid-19 no Brasil.

No documento, os signatários dizem que Bolsonaro "deve ser responsabilizado pela condução da crise sanitária no Brasil, que não somente fez explodir o número de mortes mas acentuou as desigualdades no país".

A carta lembra que o presidente se referiu à covid-19 como "gripezinha", criticou as medidas preventivas, como isolamento físico e uso de máscaras, e "por diversas vezes provocou aglomerações", além de "propagar o uso da cloroquina" e "desencorajar a vacinação".

"Em meio ao negacionismo, proliferação de falsas informações e ataques à ciência, em plena crise sanitária, o presidente chegou a mudar quatro vezes de ministro da saúde", acrescenta o documento.

Na carta, os signatários também destacam que a ciência no Brasil "vem sofrendo diversos ataques".

"Cortes e mais cortes orçamentários que ameaçam pesquisas e colocam o trabalho de cientistas em xeque; instrumentalização da ciência à fins eleitoreiros como bem mostram as declarações do presidente desacreditando o trabalho de cientistas durante a crise sanitária. Esses ataques, no entanto, vão além do contexto da covid-19".

O Brasil é um dos países mais afetados pela pandemia de covid-19 no mundo: tem o terceiro maior número de casos confirmados de coronavírus (mais de 14 milhões) e o segundo maior número de mortes (391 mil).

Veja a íntegra da carta abaixo.

Carta Aberta: solidariedade internacional aos pesquisadore(a)s e cientistas no Brasil e ao povo brasileiro.

Pesquisadore(a)s do mundo todo

Terça-feira, 6 de abril de 2021 - O Brasil registra 4195 mortes pela Covid. Ao todo, são mais de 340 000 óbitos contabilizados desde o começo da pandemia. Se o coronavírus afeta todos os países do globo, a amplitude da catástrofe sanitária que acomete o país não pode ser dissociada da gestão desastrosa do presidente Jair Bolsonaro. O presidente deve ser responsabilizado pela condução da crise sanitária no Brasil, que não somente fez explodir o número de mortes mas acentuou as desigualdades no país.

Em inúmeros momentos, o dirigente da república brasileira se referiu à covid-19 como « gripezinha », minimizando a gravidade da doença. Bolsonaro criticou as medidas preventivas, como o isolamento físico e o uso de máscaras, e por diversas vezes provocou aglomerações. Chegou a propagar o uso da cloroquina, embora cientistas alertassem para os efeitos tóxicos do uso do fármaco para combater a covid. Pesquisadores que publicaram estudos que demonstravam que o uso do medicamento aumentava o risco de morte em pacientes com Covid chegaram a ser ameaçados no Brasil. Bolsonaro desencorajou ainda a vacinação, chegando a sugerir, por exemplo, que as pessoas poderiam se transformar em « jacaré ». Em meio ao negacionismo, proliferação de falsas informações e ataques à ciência, em plena crise sanitária, o presidente chegou a mudar quatro vezes de ministro da saúde.

A ciência brasileira está sofrendo diversos ataques : cortes e mais cortes orçamentários que ameaçam pesquisas e colocam o trabalho de cientistas em xeque ; instrumentalização da ciência à fins eleitoreiros, como bem mostram as declarações do presidente desacreditando o trabalho de cientistas durante a crise sanitária. Esses ataques, no entanto, vão além do contexto da covid-19. Basta lembrar os ataques feitos por Bolsonaro ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em um contexto alarmante diante dos níveis de desmatamento da Amazônia.

Ao desmentir a ciência, Bolsonaro não somente fere a comunidade científica, mas toda a sociedade brasileira : são diários os recordes de mortes pela covid, dados da Fiocruz indicam por exemplo a circulação de 92 cepas do coronavírus no Brasil, o que torna o país uma gigantesca fábrica de variantes ; para além temos ainda os impactos sobre o meio ambiente, povos tradicionais da Amazônia e o clima global.

Em um contexto de crise sanitária, de agravamento das desigualdades, de mudanças climáticas, este tipo de conduta é inaceitável e o autor deve ser responsabilizado. Nós nos preocupamos com o agravamento da crise sanitária no Brasil, com os ataques à ciência e por meio desta carta aberta nós, acadêmico(a)s de todo o mundo, demonstramos nossa solidariedade com os/as colegas no Brasil, cujas liberdades estão ameaçadas e com a população brasileira que é afetada diariamente por essa política destrutiva.

Luis Barrucho - @luisbarrucho, da BBC News Brasil em Londres, em 26 abril 2021, 15:38 -03 / Atualizado Há 2 horas

Brasil registra mais 1.139 mortes por covid-19 em 24 horas

País também registrou 28.636 novos casos. Total de óbitos já ultrapassa 391 mil e infecções superam 14,3 milhões.

Em primeiro plano, uma cruz. Ao fundo, ocorre um enterro. 

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções

O Brasil registrou oficialmente 1.139 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta segunda-feira (26/04).

Também foram confirmados 28.636 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 14.369.423, e os óbitos somam agora 391.936.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Além disso, os números divulgados às segundas-feiras também costumam ser mais baixos, uma vez que as equipes responsáveis pela notificação trabalham em escala reduzida no fim de semana.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 12.809.169 pacientes se recuperaram da doença até este domingo. 

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes no Brasil subiu para 186,5, a 14ª mais alta do mundo, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 32,1 milhões de casos, e da Índia, com 17,3 milhões de pessoas infectadas. É também o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 572 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 147,4 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e mais de 3,1 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 26.04.2021

Lira afirma que não há razão para 95% dos pedidos de impeachment contra Bolsonaro

Presidente da Câmara afirma que não é o momento oportuno ou conveniente para analisar casos.

Arthur Lira comanda sessão da Câmara Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Depu / Agência O Globo

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), afirmou nesta segunda-feira, em entrevista à rádio Jovem Pan, que não vê motivos para a apresentação de 95% dos pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. Em meio à crise sanitária e social decorrente da Covid-19, Lira disse que não é o momento de levar o assunto adiante.  

O presidente da Câmara falou sobre o tema após ser perguntado sobre um "superpedido" de impeachment que deve ser apresentado pela oposição e deputados de direita que não apoiam Bolsonaro. Ao todo, Lira já tem mais de 70 pedidos à espera pela deliberação.

— Cabe ao presidente da Câmara , segundo a Constituição, ver a oportunidade e conveniência para a apreciação desses casos. Noventa por cento, noventa e cinco por cento dos que eu já vi não tem nenhuma razão de ter sido apresentado, a não ser um fato político que se queira gerar. Alguns outros, muito pouca coisa. Então, neste momento, não é conveniente se tratar de um assunto desta gravidade, deste tamanho — disse Lira.

Ele acrescentou que o prosseguimento de um pedido de impeachment é uma "mudança drástica na sociedade brasileira".

— O ex-presidente Rodrigo Maia passou cinco anos na presidência (da Câmara), dois anos de governo Bolsonaro, com mais de 66 pedidos de impeachment, e não teve sequer um minuto de pressão para a avaliação desse quadro. Mais uma vez , eu digo: quem errou, se errou, quem cometeu erros, dolo, falta de boa gestão do recurso público para a Covid, estará necessariamente responsabilizado no tempo adequado.

Lira disse ainda que é contra a investigação da CPI da Covid que funcionará no Senado e que o momento é de enfrentar a crise. Também ressaltou que, na sua opinião, o país está "dividido" entre o apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Segundo o deputado do PP, os pedidos de impeachment serão analisados "no tempo adequado e com responsabilidade".

— É normal, é democrático (a apresentação de impeachment), o Brasil está literalmente dividido. Você tem aí um ex-presidente com 30%. Você vê o atual presidente com 30%. Você enxerga os dois caminhando para o centro, então é normal que haja pressão de uma parte, e não de outra.

Bruno Góes para O Globo, em 26/04/2021 - 09:45 / Atualizado em 26/04/2021 - 10:29

Artigo de Gabeira: As voltas que a vida dá

Bolsonaro investiu contra a vida liderando a maior política de destruição ambiental do Brasil moderno. E investiu de novo contra a vida negando a pandemia do coronavírus.

A vida começa agora a cobrar de forma combinada os crimes de Bolsonaro. Numa só semana, convergiram a Cúpula de Líderes sobre o Clima e a CPI da Covid, eventos que lembram a Bolsonaro que sua própria vida ficará para sempre marcada por seu desprezo à vida das florestas e dos bichos e pelo sacrifício humano envolto na tese da imunização de rebanho.

Por mais que psicólogos mergulhem no labirinto da mente de Bolsonaro, nenhuma explicação atenua o dado objetivo de tantas árvores derrubadas, tantos animais carbonizados, tantas pessoas mortas pelo coronavírus.

A economia explica apenas parcialmente. Bolsonaro acha que é preciso tirar todos os recursos da natureza, independentemente do rastro de destruição. Da mesma forma, ele acha que a economia precisa funcionar, independentemente das pessoas que o vírus consome.

A verdade é que Bolsonaro não se importa tanto com a economia, não estuda o tema e, ao se eleger, designou um ministro para responder a todas as perguntas, a quem chamou de Posto Ipiranga. O que move o presidente não chega a ser, portanto, nem uma teoria econômica, por mais grosseira e obsoleta que possa parecer.

Tanto na destruição das florestas como na tragédia humana diante do vírus, o que move Bolsonaro é sua vontade de permanecer no poder.

A floresta interessa na medida em que garanta os votos dos seus predadores; as pessoas podem morrer para que uma suposta normalidade econômica garanta a reeleição.

É muito conhecida a literatura sobre essa obsessão com o poder, a necessidade de respeito e até admiração que os poderosos obtêm quando se revestem dessa condição que lhes parece mágica.

Mas o caso de Bolsonaro é singular. Existe uma coerência em todas as suas escolhas. A morte é a grande aliada desde a opção destrutiva no ambiente e na pandemia, passando pela difusão das armas, chegando até a detalhes como suprimir multas de quem se descuida da cadeirinha do bebê no carro.

Essa aliança com a morte pode ser também o resultado de uma grande frustração com a própria vida. Mas, de novo, deixo isso aos psicólogos ou àqueles que preferem combater Bolsonaro no plano da sanidade mental.

Por meio de grandes episódios como a Cúpula do Clima e a CPI da Covid, entretanto, é possível compreender o antagonismo de Bolsonaro com todos todos os tipos de vida no planeta.

E refletir sobre isso. Não importa a Bolsonaro se o país se tornar um deserto, muito menos se os que ele considera mais fracos forem tombando pelo caminho.

Nunca na história moderna do país a indiferença diante da realidade política poderá ter consequências tão devastadoras para nosso futuro.

A Cúpula do Clima serve para mostrar a importância da luta da Humanidade para a sobrevivência das novas gerações e a contradição de Bolsonaro com essa gigantesca reação vital.

Ali, ele apenas mentiu, supondo que possa enganar o mundo. Seu objetivo sempre foi desmontar a fiscalização, acabar com a “indústria da multa”, liberar o garimpo e enfraquecer os povos indígenas.

A CPI da Covid servirá para revelar aquilo que muitos de nós já sabemos. Mas pode fazê-lo de uma forma séria e pedagógica para que todos compreendam a responsabilidade de Bolsonaro.

Essas duas vertentes, a ambiental e a sanitária, sempre estiveram aí enquanto, de uma certa maneira, Bolsonaro gritava “Viva la muerte”, como o oficial do Exército de Franco.

É estranho que esse grito tenha dominado um país mundialmente conhecido pela vitalidade. Imperdoável, no entanto, que ele possa ecoar em 22, o prazo final para o encerramento dessa fúnebre passagem da História do Brasil.

Fernando Gabeira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 26.04.2021

Editorial do Estadão: O veredito da ciência

Os levantamentos científicos são unânimes em apontar que o morticínio no Brasil só não foi pior por causa da atuação responsável da maior parte dos governadores.

Uma questão crucial a ser elucidada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criada para apurar as responsabilidades do governo na crise pandêmica é: por que o País que tem um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, com histórico de sucesso no combate a outras doenças e um aparato de vigilância sanitária avançado, apresentou resultados tão catastróficos? Se a resposta, com todas as suas consequências, não vier à luz, não será por falta de subsídios da comunidade científica.

Como mostra um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de Michigan e da FGV, no início da pandemia o Global Health Security Index classificava o País como o mais preparado da América Latina para lidar com emergências de saúde pública. Daí a resposta bem-sucedida a epidemias como as de HIV/aids, hepatite C e H1N1.

O estudo sobre o Brasil integrou o livro The Comparative Politics and Policy of Covid-19, que reuniu mais de 60 pesquisadores para analisar governos de todo o mundo. Os resultados mostram que os países com melhor desempenho seguiram as orientações da Organização Mundial da Saúde e aliaram medidas de saúde a políticas sociais. Ou seja, ponto por ponto o contrário do que fez Jair Bolsonaro. “O presidente e seus apoiadores (governadores de quatro Estados, parte das Forças Armadas, alguns membros do governo, como o ministro das Relações Exteriores, e certos grupos de extrema direita) advogaram políticas públicas que refletiram uma pseudociência na melhor das hipóteses, e o negacionismo na pior.”

A pesquisa detalha como Bolsonaro empregou seus poderes constitucionais para minimizar a pandemia e boicotar os Estados. Um caso de prejuízo diretamente causado pela negligência do Planalto foi a demora no fechamento das fronteiras no início do surto. Outro, causado por sua ação direta, foram as medidas provisórias empregadas para obstruir os esforços de restrição da circulação por parte dos Estados, como a que indexou dezenas de serviços como “essenciais”. “Bolsonaro interferiu no Ministério da Saúde como nunca antes visto no período democrático”, lembrou uma das pesquisadoras. “Ele interveio em protocolos de tratamento e até no modo de divulgação dos dados da pandemia.”

Outro estudo, da revista médica The Lancet, identificou diversos problemas na gestão federal, entre eles as deficiências dos quadros levados ao Ministério da Saúde pelo ex-ministro Eduardo Pazuello, para substituir vários técnicos por militares sem competência, tal como ele, em saúde. Também questiona a subutilização dos fundos de emergência de R$ 44,2 bilhões aprovados em fevereiro. Até outubro de 2020 – período crítico para a contenção do surto – o Ministério havia empregado apenas 23% de seus recursos.

Além desses problemas, um levantamento da revista Science destaca a baixa capacidade de testagem. Até o final de 2020, o País havia testado apenas 13,6% da população, o que o coloca entre os que menos testaram no mundo, conforme o Our World Data, da Universidade de Oxford. O estudo também aponta a forte correlação no início da pandemia entre o número de mortes e as vulnerabilidades socioeconômicas. É outro ônus para o governo federal. Em emergências de saúde em um país tão grande e diverso como o Brasil, o Ministério da Saúde tem um papel fundamental na compensação das desigualdades regionais. Quando falta a articulação federal, as consequências podem ser catastróficas, como se viu na crise de abastecimento de oxigênio em Manaus.

Certa vez, Pazuello confessou que antes de assumir a pasta não sabia o que era o SUS. Talvez aprenda nos inquéritos a que será submetido no Congresso que a calamidade em sua gestão só não foi maior pela resiliência do sistema. Bolsonaro, por sua vez, tentou mobilizar congressistas para avançar a proposta de incluir os Estados na CPI. Não conseguiu, porque isso seria inconstitucional. Se fossem incluídos, seria outro tiro no pé do governo. Os levantamentos científicos são unânimes em apontar que o morticínio no Brasil só não foi pior por causa da atuação responsável da maior parte dos governadores. 

      
Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 26 de abril de 2021 | 03h00

Denis Lerrer Rosenfield: Henry e a maldade

A crueldade se esconde sob o manto de uma ‘família feliz’. O silêncio é aterrador!

O assassinato do menino Henry, de apenas 4 anos, em sua casa, provavelmente em seu quarto, perpetrado com toda a probabilidade por seu padrasto com a cumplicidade e participação de sua mãe, coloca-nos diante de uma face sombria da natureza humana. Não se trata de um crime qualquer, mas de um crime que foge dos parâmetros do que tendemos a considerar normal. Não há nada de banal aqui, uma vez que entra em cena um tipo de ação voltada para a maldade, tendo-a como guia.

Não estamos diante de uma ação má contraposta a uma ação boa, na medida em que pessoas que cometem tais atos se situam para além desta distinção moral. Sentimentos morais estão aqui completamente ausentes, não orientam tal tipo de comportamento. O que se pode dizer de uma mãe que mente e encobre o assassinato de seu filho? Ou de um padrasto (ou seja lá o que essa pessoa signifique) que tortura durante semanas essa criança até a explosão hemorrágica de seus órgãos internos? Pessoas que agem dessa maneira visam única e exclusivamente à destruição do outro.

A crueldade é outro componente desse tipo de ação. A tortura sistemática, o ritual de seu acompanhamento durante semanas, o gozo do sofrimento alheio e a progressão da violência expõem um comportamento estrangeiro a qualquer denominação de normalidade. O criminoso age impunemente, com uma mãe conivente e uma babá medrosa de poder ser ela mesma objeto de tais atos. Cria-se uma teia de cúmplices, cada um conforme a sua “razão”, cuja característica central é o acobertamento e o silêncio. Depois, procurarão elas dizer que foram coagidas, ameaçadas ou coisa que o valha. A crueldade se esconde sob o manto de uma “família feliz”. O silêncio é aterrador!

O ato mau, nesta acepção, não é simplesmente uma explosão, algo súbito, como sob o efeito de drogas ou num surto psicótico, mas algo que se inscreve num “cálculo”, medindo cada passo na execução progressiva da violência. Há uma ascensão da crueldade, cujas etapas exigem meios de execução e falas que encenem uma espécie de “normalidade”. São atos frios, não guiados por emoções, mas por uma certa forma de racionalidade que tem como finalidade a maldade. Ou seja, são atos que deveriam ser mais propriamente denominados irracionais, porém de uma irracionalidade específica, a de estar voltada friamente, com cálculo, para o mal.

Hannah Arendt, ao refletir sobre o caso Eichmann, utilizou a expressão “banalidade do mal” para caracterizar o comportamento desse oficial nazista. A expressão terminou fazendo fortuna, embora a própria autora não tivesse clareza de seu significado. Serviu, na época, para descrever a natureza de um ato cujo autor expunha uma certa normalidade, como se fosse um mero executor de ordens de um Estado anormal. Um comportamento “normal” em outros aspectos, salvo nesse precisamente. Independentemente de Eichmann não ser um mero executor e de ter plena consciência e responsabilidade de seus atos, o que está em questão é a forma de acobertamento de um tipo distinto de maldade, ou seja, o de atos exclusivamente voltados para o mal, para além da sua distinção em relação ao bem. Numa carta a Scholem, Arendt se vê obrigada a melhor explicar essa sua formulação, acrescentando, então, que a maldade nazista não seria diferente em sua natureza de outras, salvo em seu aspecto quantitativo, potencializado pela técnica. Ele nunca seria “radical”, por ser somente extremo, não tendo tampouco “profundidade” nem dimensão “demoníaca”. O conceito de mal radical, utilizado em Origens do Totalitarismo, não é mais, agora, de valia, pois ao perscrutá-lo nada se encontra, uma vez que só o bem teria “profundidade”. A sua banalidade significaria o seu aspecto chocante por expressar o comportamento de homens “normais” que, sob certas circunstâncias, abandonam toda “normalidade”.

Posteriormente, em seus Diários de Pensamento, ela se defronta com o caráter insatisfatório de sua abordagem, desta vez para reconhecer a sua limitação filosófica, restrita a uma análise moral, e não existencial, voltada para a natureza própria, positiva nela mesma, da maldade. Quando qualificamos cotidianamente uma pessoa ou uma ação como má, tal afirmação dá lugar a sentimentos morais como compaixão, comiseração e mesmo perdão. A relação com o outro se assenta em parâmetros morais tanto para o bem quanto para o mal, engendrando um terreno comum de entendimento e moralidade. Quando passamos, porém, para os fenômenos individuais ou coletivos que seriam nomeados pela expressão “mal radical”, tais parâmetros e sentimentos morais são implodidos, dando lugar a expressões de horror, de não reconhecimento, de alteridade absoluta, não ensejando nem compaixão nem perdão para os seus executores.

Ao pensarmos no Dr. Jairinho e em Monique, mulher e mãe, nos vemos na necessidade de recorrer a outro conceito de maldade, que transborda nossa forma habitual de pensar. E é esse transbordamento que se torna objeto de pensamento ao propiciar a reflexão sobre esta espécie de sem fundo da natureza humana.

Denis Lerrer Rosenfield é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este artigo foi publicdo originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 26 de abril de 2021 | 03h00

Suspeitos de serem 'fantasmas', ex-assessores de Bolsonaro receberam R$ 165 mil em auxílios

Investigados por 'rachadinha' no Rio, os cinco também tiveram cargos no ex-gabinete do atual presidente na Câmara; eles sacavam o que recebiam.

Investigados pelo Ministério Público do Rio sob a suspeita de serem “fantasmas”, cinco ex-assessores do presidente Jair Bolsonaro quando ele era deputado federal receberam R$ 165 mil só em auxílios enquanto estiveram nomeados na Câmara dos Deputados. Esses funcionários tiveram sigilo quebrado na investigação contra o senador e ex-deputado estadual Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho mais velho do presidente da República.

Os dados ali obtidos também apontaram supostos indícios da prática de “rachadinha” no gabinete de Bolsonaro. Em dois casos, os valores equivalentes aos auxílios eram os únicos que permaneciam nas contas dos assessores. Todo o restante depositado pela Câmara era sacado em caixas eletrônicos. A prática é considerada indício da “rachadinha”, a devolução dos salários para o político que os nomeou.

Bolsonaro discursando como deputado em 2016: ex-assessores tiveram sigilo quebrado em investigação do Ministério Público Foto: ANDRÉ DUSEK/ESTADÃO

É justamente essa a suspeita que recai sobre os cinco na investigação contra Flávio, já denunciado por peculato, lavagem de dinheiro, organização criminosa e apropriação indébita pelo MP. No caso dele, os desvios teriam acontecido quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro.

Ao quebrar o sigilo dos cinco, a investigação encontrou mais do que procurava. Eram indícios de desvios que teriam ocorrido quando trabalhavam para Jair Bolsonaro. O período da quebra – 2007 a 2018 – incluiu datas em que também estiveram contratados pelo gabinete do atual presidente, já que a família Bolsonaro mantinha o hábito de trocar funcionários entre si.

Em março, o portal UOL mostrou que Fernando Nascimento Pessoa, Nelson Alves Rabello, Jaci dos Santos e Daniel Medeiros da Silva sacaram 72% do que receberam do gabinete de Bolsonaro. Já Nathália Queiroz transferiu 65% para o pai, o suposto operador do esquema de Flávio, Fabrício Queiroz.

Confiança

O Estadão cruzou esse porcentual e o montante financeiro com os valores pagos em auxílios – obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação e no site da Câmara. Constatou-se que em dois casos, de Pessoa e Rabello, as verbas de benefícios foram quase idênticas ao pouco que permaneceu nas contas. 

Homem de confiança da família, Pessoa teve nos auxílios o equivalente a 24% de todos seus vencimentos. Ele sacava 77% do montante que recebia. Rabello, por sua vez, recebeu 27% das verbas da Câmara em auxílios, sendo que retirou 70% dos rendimentos totais. Segundo a Câmara, o único auxílio que os cinco ex-assessores receberam foi o de alimentação. Pessoa foi funcionário de Jair entre 2009 e 2014; Rabello, de 2005 a 2011, tendo voltado para o cargo em 2017 e permanecido até 2018. 

Como Rabello já era nomeado dois anos antes do início das informações contidas na quebra de sigilo, a reportagem considerou os valores de auxílios a partir de 2007 para chegar ao porcentual. Na soma geral dos valores, R$ 165 mil, as verbas dos dois anos anteriores foram incluídas. 

Ambos são tidos como homens de confiança da família presidencial, com passagens por mais de um gabinete. Rabello, inclusive, não se limitou a Jair e Flávio: passou ainda pelo mandato do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) na Câmara Municipal do Rio.

O filho ‘zero dois’ do presidente também é investigado por suspeitas de rachadinha – o peculato, apropriação de dinheiro público – por meio de assessores “fantasmas”. No caso dele, a investigação ainda não culminou em denúncia. Pessoa, por sua vez, é um dos advogados que atuaram em causas da família Bolsonaro ao mesmo tempo em que tinham cargos nos gabinetes. Atualmente, está nomeado como assessor parlamentar de Flávio no Senado. Seu salário foi R$ 22,9 mil no último mês.

Bento Ribeiro

Outros dois dos cinco assessores chamam atenção por motivos distintos. Um deles é Daniel Medeiros da Silva. Ele tinha oficialmente salários de cinco dígitos na Câmara enquanto vivia numa casa humilde em Bento Ribeiro, bairro da zona norte do Rio onde a família de Bolsonaro tem escritório político. Só em auxílio, ele recebeu R$ 36,3 mil, o que dá uma média de R$ 885 por mês no tempo em que esteve nomeado. 

Medeiros sacou 71% de tudo o que recebeu da Casa, enquanto o porcentual em auxílios era de 9%. Como o benefício tem valor fixo independentemente do salário, representava fatia pequena das receitas do assessor. Num mês com 22 dias úteis, Medeiros tinha direito a R$ 40 por dia para se alimentar.

Na vizinhança da casa em que seu endereço está registrado, uma placa anuncia a venda de sacolé – ou “geladinho” – por R$ 2. Com a verba da Câmara, o ex-assessor poderia comprar 20 deles diariamente.


Flávio Bolsonaro: Denúncia foi apresentada em novembro Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

Dos cinco assessores do então deputado Jair Bolsonaro investigados pelo MP do Rio, só em um caso não se constatou o hábito de se sacar o valor recebido. Trata-se de Nathália Queiroz, filha de Fabricio Queiroz, que transferia o dinheiro diretamente para o pai. Fabricio é acusado pelo Ministério Público do Rio de ser o operador do esquema de Flávio Bolsonaro, na Alerj. 

Nathália mantinha altos salários no emprego, assim como Medeiros. Ela recebeu R$ 233 mil entre 2016 e 2018 na Câmara. Só em auxílios, R$ 21 mil. Do total de rendimentos, ela transferia 65% para o pai. Ao mesmo tempo em que seu nome constava da lista de assessores do então deputado federal, Nathália era personal trainer no Rio. 

Dentre os ex-assessores, Nathália foi a única incluída na primeira denúncia do caso das “rachadinhas”, apresentada contra Flávio, Queiroz e outras 15 pessoas em novembro do ano passado. Os demais, apesar de serem citados ao longo da investigação, ficaram de fora da primeira peça acusatória. Apesar de lentas por causa de disputas judiciais, as apurações têm desdobramentos no MP do Rio. 

Um caso peculiar dentre os cinco é o de Jaci dos Santos, que trabalhou oito meses no gabinete de Jair Bolsonaro. Sempre foi tido como um “faz tudo” da família, mas passou pouco tempo com emprego formal no gabinete do presidente. Em auxílios, recebeu R$ 4,9 mil entre dezembro de 2011 e julho de 2012. Antes, passou 4 anos e 9 meses na Alerj, no gabinete de Flávio.

Outro lado

Procurado, o Palácio do Planalto não respondeu se gostaria de comentar as informações. Fernando Nascimento Pessoa também não deu retorno ao pedido de posicionamento. O advogado da família Queiroz, Paulo Emílio Catta Preta, alegou que Nathália exercia a função para a qual estava nomeada e que seus benefícios eram legítimos. “Nossa manifestação é no sentido da regularidade do recebimento de todas as vantagens decorrentes do efetivo exercício do cargo público.” O Estadão não conseguiu localizar Daniel Medeiros da Silva, Nelson Alves Rabello e Jaci dos Santos.

Caio Sartori para  O Estado de S.Paulo, em 26 de abril de 2021 | 05h00

Doria quer eleição direta nas prévias tucanas para 2022

Governador paulista quer que voto da militância tenha o mesmo peso de bancadas e dirigentes; partido tem de organizar cadastro

Após o senador Tasso Jereissati (CE) admitir em entrevista ao Estadão publicada no domingo, dia 25, que pode disputar as prévias do PSDB para definir o candidato do partido ao Palácio do Planalto em 2022, os dirigentes tucanos vão se reunir nesta segunda-feira para começar a organizar o processo eleitoral interno. Só existe um precedente de prévias presidenciais na história política brasileira: em 2002 Lula venceu o senador Eduardo Suplicy no PT, com 84,4% dos votos válidos ante 15,6% do adversário. 

Marcadas para o dia 17 de outubro, as prévias tucanas ainda não têm colégio eleitoral definido e esbarram em obstáculos logísticos. Aliados do governador João Doria defendem eleições diretas, ou seja, que todos os filiados ao partido possam votar.

Doria e Tasso: falta definir quem votará nas prévias e como superar desafios logísticos  Foto: ANDRE LIMA - 18/8/2017

“Prévias têm que ser com todos os filiados, assim como aconteceu em São Paulo”, disse o tesoureiro nacional do PSDB, César Gontijo, que é aliado do governador paulista. Já o senador Izalci Lucas (DF), que integra a comissão das prévias, tem outra opinião. “Essa é uma discussão que vamos fazer. Uma parlamentar como a senadora Mara Gabrilli (SP), que teve 4 milhões de votos, não pode ter o mesmo voto que alguém que acabou de entrar no partido.”

Esse debate já ocorreu na semana passada durante um painel interno do PSDB sobre as prévias com dirigentes regionais do partido. Uma ala ligada ao deputado Aécio Neves (MG) pregou a tese de que o partido pode abrir mão de um nome próprio para apoiar um candidato “do centro”. Outros tucanos defenderam prévias com um modelo de colégio eleitoral, e os “doristas” bateram na tecla das eleições diretas. 

Comissão

Uma resolução da executiva do PSDB estabeleceu uma comissão para organizar as prévias – a ser presidida pelo ex-presidente nacional do PSDB, José Aníbal. Os outros membros da comissão são: a prefeita de Palmas, Cinthia Ribeiro; o líder do partido no Senado, Izalci Lucas; os deputados federais Lucas Redecker (RS) e Pedro Vilela (AL); o presidente do PSDB-SP, Marco Vinholi; e o ex-deputado Marcus Pestana. 

Estão na disputa interna o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, o senador Tasso Jereissati, Doria e o ex-prefeito de Manaus, Arthur Virgílio. O partido tem precedentes no caso de prévias. Com apoio do então governador Geraldo Alckmin, Doria venceu a escolha municipal em 2016 e formou uma coligação com PSDB, PSB e DEM, PTC, PMB, PHS, PV, PPS, PP, PRP e PTdoB. Em 2018, após abandonar a prefeitura, o governador também ganhou a disputa interna no partido. 

Em 2018, quando o então governador Geraldo Alckmin se lançou como candidato, o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, pediu prévias. Na ocasião, a executiva tucana apresentou um modelo que dava peso maior ao voto dos parlamentares e dirigentes. O processo, porém, não avançou e Alckmin, que presidia o partido, foi aclamado candidato.

O grupo de Doria defende eleição “direta” nas prévias, mas para isso será necessário atualizar o cadastro de filiados. São 1,4 milhão segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas não há precisão sobre a atualização da base de dados da Justiça Eleitoral.

Em 2018, Dória superou outros três concorrentes: o suplente de senador José Aníbal, o cientista político Luís Felipe d'Ávila e o secretário estadual de Desenvolvimento Social, Floriano Pesaro. “Sou filho das prévias. Disputei duas vezes e venci ambas”, disse o governador na época. Em ambas consultas, os gastos do processo foram bancados pela legenda.

Agora, pressionado no PSDB por movimentos contrários à sua potencial candidatura ao Planalto, o governador Doria escalou interlocutores para ir aos Estados e tem recebido tucanos no Palácio dos Bandeirantes. Em outra frente, o governador paulista criou um grupo de colaboradores para preparar o terreno para 2022. 

Transparência

Para o cientista político Marcelo Issa, diretor executivo da ONG Transparência Partidária, as prévias são “um desejável mecanismo de consulta interna, em linha com o comando constitucional de democratização partidária”. Segundo ele, é necessário que se garanta ampla participação dos filiados.

“Ainda que se possa atribuir pesos diferentes ao voto de cada eleitor, a depender do nível de envolvimento ou responsabilidade com a estrutura ou com o destino da agremiação”, argumenta o cientista político. Issa também entende que a pandemia de covid-19 traz desafios para a realização da votação com segurança. “Em 2020, algumas experiências realizadas nos Estados Unidos revelaram que não se trata de uma tarefa simples, já que se verificaram alguns casos de contestações e tumultos, especialmente, os relacionados às aplicações tecnológicas utilizadas.

Para Issa, é possível utilizar ferramentas seguras de identificação e registro de voto ou mesmo estabelecer mecanismos de delegação que tornem “viável a realização do procedimento em segurança, tanto do ponto de vista sanitário quanto de seus resultados.”

Pedro Venceslau e Tiago Aguiar, O Estado de S.Paulo, em 26 de abril de 2021 | 05h00

"Nomadland" é o grande vencedor do Oscar 2021

Premiado como melhor filme, longa também rendeu as estatuetas de melhor atriz à protagonista Frances McDormand e de melhor diretora a Chloé Zhao, a segunda mulher da história a vencer na categoria.

Chloé Zhao tornou-se a segunda mulher da história e a primeira não branca a vencer como melhor diretora

Nomadland, que narra a história comovente de uma mulher que decide viver em sua van e viajar pelo Oeste dos Estados Unidos, foi anunciado como o vencedor do Oscar 2021 de melhor filme neste domingo (26/04), numa cerimônia diferente do habitual devido à pandemia.

Também foi uma grande noite para a diretora do longa, Chloé Zhao, que levou para casa a estatueta de melhor diretora. Nascida na China, Zhao não apenas dirigiu Nomadland, mas também escreveu o roteiro e editou o filme. Foi a segunda vez na história que uma mulher venceu na categoria melhor direção.

Já havia sido considerado uma sensação o fato de duas mulheres, Zhao e Emerald Fennell, estarem na corrida pelo prêmio de melhor direção no mesmo ano – algo inédito no Oscar. Até agora, Kathryn Bigelow era a única mulher a receber a estatueta, por seu filme Guerra ao Terror, em 2010.

Além de Zhao, outra mulher saiu como grande vencedora de Nomadland: Frances McDormand recebeu sua terceira estatueta de melhor atriz por seu papel como protagonista do filme, o qual ela também produziu.

Frances McDormand em "Nomadland": protagonista recebeu estatueta de melhor atriz

Um ano diferente

Diferentemente de outras premiações durante a pandemia, incluindo a do Oscar 2020, a deste ano ocorreu de maneira presencial, mas de modo bastante restrito, somente com a presença dos indicados, apresentadores e alguns convidados.

A 93ª cerimônia do Oscar foi realizada na Union Station e no Dolby Theatre, em Los Angeles. Todos os indicados e convidados precisaram apresentar um mínimo de dois testes PCR para covid-19.

Cerimônia marcada por diversidade

Neste ano, o Oscar – historicamente dominado por homens brancos – se destacou pelas várias estatuetas concedidas a mulheres e a pessoas não brancas, entre elas Zhao.

O ator Daniel Kaluuya venceu o prêmio de melhor ator coadjuvante por sua interpretação do jovem ativista Fred Hampton no filme Judas e o messias negro. Hampton foi assassinado pelo FBI em 1969 após um informante se infiltrar na agremiação que presidia, o Partido dos Panteras Negras. Fred Hampton Jr. Trabalhou como consultor no filme, que contou apenas com integrantes negros na equipe de produção.

Anthony Hopkins surpreendeu ao levar o Oscar de melhor ator pelo filme Meu pai, no qual interpreta um homem com demência que recebe os cuidados da filha, interpretada por Olivia Colman. Um dos concorrentes de Hopkins, de 83 anos, era Chadwick Boseman, que morreu aos 43 anos em agosto do ano passado, após uma longa batalha contra um câncer. Esta foi a segunda estatueta de melhor ator recebida por Hopkins – 30 anos depois da que levou para casa por O silêncio dos inocentes.

Olivia Colman e Anthony Hopkins em cena de "Meu pai": protagonista venceu na categoria melhor ator

Também fez história a veterana atriz coreana Yuh-Jung Youn, que ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo filme Minari, sobre uma família coreana que começa uma nova vida em Arkansas, nos EUA. Ela se tornou a primeira pessoa coreana a ganhar um Oscar por sua atuação e a segunda atriz asiática a receber uma estatueta.

O prêmio de melhor roteiro original foi para o filme Bela vingança, de Emerald Fennell. Foi o primeiro longa-metragem da atriz e roteirista, que trabalhou como roteirista principal da popular série de TV Killing Eve.

A estatueta de melhor roteiro adaptado foi para Meu pai, de Christopher Hampton e Florian Zeller.

Soul, o primeiro filme da Pixar com um protagonista afro-americano, venceu na categoria de melhor animação. Um dos compositores do filme, Jon Batiste, se tornou o segundo compositor negro a receber uma estatueta.

Daniel Kaluuya venceu o prêmio de melhor ator coadjuvante por seu papel em Judas e o messias negro

Daniel Kaluuya venceu o prêmio de melhor ator coadjuvante por seu papel em "Judas e o messias negro"

Novas possibilidades na pandemia

A pandemia possibilitou que filmes de menor orçamento lançados via serviços de streaming tivessem uma chance de levar para casa um prêmio, uma vez que as datas de lançamento de blockbusters de Hollywood como West Side Story, de Steven Spielberg, e The French Dispatch, de Wes Andersen, foram adiadas por causa da crise.

A produção da Netflix Mank levou os prêmios de melhor fotografia e de design de produção. O filme preto e branco de ritmo lento sobre o roteirista de Cidadão Kane, Herman J. Mankiewicz, havia recebido dez indicações.

O filme de Netflix A voz suprema do blues venceu nas categorias melhor maquiagem e cabelo e melhor figurino. Viola Davis foi indicada a melhor atriz pelo longa, tornando-se a atriz negra mais indicada ao Oscar da história.

O prêmio de melhor documentário foi para a produção da Netflix Professor Polvo.

Deutsche Welle Brasil, em 16.04.2021

domingo, 25 de abril de 2021

Brasil registra 1.305 mortes por covid-19 em 24 horas

Total de óbitos associados ao coronavírus no país supera os 390 mil. Mês de abril já é o mais letal desde o início da pandemia, com cerca de 69 mil mortes.

Familiares choram em torno de caixao de vitima da covid

Conass também confirmou 32.572 novos casos da doença

O Brasil registrou 1.305 novas mortes associadas à covid-19 neste domingo (25/04), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). O mês de abril já é o mais letal da pandemia no Brasil, com cerca de 69 mil mortes.

O Conass também confirmou 32.572 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega agora a 14.340.787, e os óbitos somam 390.797.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números divulgados nos fins de semana também costumam ser mais baixos, uma vez que as equipes responsáveis pela notificação trabalham em escala reduzida.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 12.766.772 pacientes se recuperaram da doença até este sábado. 

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes no Brasil subiu para 186, a 13ª mais alta do mundo, se excluído o país nanico San Marino.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 32 milhões de casos, e da Índia, com 16,9 milhões de pessoas infectadas. É também o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 571 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 146,7 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e mais de 3,1 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 25.04.2021

ʽMeu paiʼ: A lucidez que se esgota

Ninguém havia mostrado com tanta eficiência esse efeito, infelizmente tão habitual, de que alguém comece a dar sinais de não reconhecer nem mesmo seus seres queridos


Olivia Colman e Anthony Hopkins, em ‘Meu Pai’.

A ideia é de uma simplicidade tão marcante que ninguém jamais havia pensado em desenvolvê-la com tamanha grandeza: mostrar a demência senil de um idoso, sua falta de certezas, sua confusão mental, seus lamentáveis esquecimentos, os mais cotidianos e os mais essenciais, suas vívidas lembranças, seus acessos de clarividência, sua honestidade brutal, sua ternura e seu mau humor, seu desequilíbrio e suas quedas no terror de se sentir absolutamente perdido em sua casa, exposto a um labirinto indecifrável, do seu próprio ponto de vista mental. Foi o que fez o prestigioso dramaturgo francês Florian Heller em seu primeiro e excelente filme como diretor de cinema, baseado em sua obra teatral Meu Pai, um drama profundamente doloroso e felizmente humano, que se aproxima da doença com o tato da devoção e do carinho, mas também com a aspereza da verdade. E com a inestimável ajuda de Anthony Hopkins e sua interpretação brilhante. O filme está indicado a 6 Oscars, inclusive na categoria principal de melhor filme.

Sem grandiloquências na encenação, de um rigor clássico inusual num estreante, Zeller vai mostrando os sucessivos encontros do protagonista com sua filha, sua cuidadora e seu genro no apartamento onde mora, com ressalva de que os intérpretes vão mudando de identidade, revelando os rostos acompanhantes de uma memória avariada para sempre, assim como os rumos inseguros de um homem que se sente não apenas atordoado, mas também enganado, formando assim uma espécie de thriller de enganos. Sempre atento ao relógio e ao momento do dia, pois intui que seu tempo se esgota e que sem ele são misturados o dia e a noite, o pijama e a roupa da rua, os comprimidos do café da manhã e os do jantar, a infância e o ocaso, o velho se aferra à informação no pulso como quem se abraça a uma vida que se rompe onde mais dói, em certos momentos com o impulso shakespeareano do Rei Lear.

Ninguém havia mostrando com tanta eficiência esse efeito, infelizmente tão habitual, de que alguém comece a dar sinais de não reconhecer nem mesmo seus seres queridos, numa idade em que nem sempre somos ternos e educados, e numa situação em que emergem palavras e atitudes certamente sinceras, mas implacáveis com os que nos amam e pretendem nos ajudar. Somos nós mesmos ou já somos outros?

Porque também está presente o reverso da imensa variedade de registros na sublime atuação de Hopkins, carrancudo, divertido e, sobretudo, perdido: a dor da filha, a formidável Olivia Colman (mas não somente); o ressentimento do genro; a profissional doçura da cuidadora. A confusão mental do ser humano que se esgota é a nossa como espectadores, que enfrentamos a situação de não saber onde nos colocarmos ante um desafio que alcança até mesmo a esfera da moral.

MEU PAI

Direção: Florian Zeller.Elenco: Anthony Hopkins, Olivia Colman, Olivia Williams, Imogen Poots. Gênero: drama. Reino Unido, 2020. Duração: 97 minutos.

O filme estrelado por Anthony Hopkins estreia nos cinemas de São Paulo nesta sábado (24) e se encontra disponível para compra em plataformas digitais como YouTube, Now, Apple TV e Google Play, por 29,90 reais.

JAVIER OCAÑA para o EL PAÍS, em 22 ABR 2021 - 22:46 BRT

A desconhecida vida de Anthony Hopkins, o indicado ao Oscar 2021 que aprendeu a ser feliz aos 75

Artista britânico, gigante da interpretação e literalmente um lorde, pode se tornar nesta noite também o mais idoso a receber prêmio na categoria principal. Seria o corolário perfeito para uma carreira cheia de marcos, fracassos e de uma vida pessoal atormentada

O ator Anthony Hopkins fotografado em 1991, em plena ressaca da fama estratosférica (e de amor da crítica e do público) que conheceu após ‘O silêncio dos inocentes’. ( Crédito a foto: MIRRORPIX / GETTY IMAGES)

Quando em dezembro passado Anthony Hopkins (Port Talbot, País de Gales, 1937) comemorou em um vídeo do Twitter os seus 45 anos sem beber álcool, a revelação surpreendeu os seus seguidores. Sua imagem pública é a de um ator de máximo prestígio no teatro e no cinema, gentil cavalheiro do Império Britânico e, de uns anos para cá, o velhinho favorito da internet. A verdade é que Hopkins, que aos 83 anos bateu o recorde de idade na categoria de melhor ator do Oscar com sua indicação por Meu pai, narrou em várias ocasiões a sua luta contra o alcoolismo, a depressão e os ataques de ira. E o remorso por ter abandonado uma filha recém-nascida. E seu ódio a Shakespeare e a tudo que é britânico. Senhoras e senhores, com vocês: o outro Anthony Hopkins.

“Lembro o primeiro dia de aula com aquele cheiro de leite estragado, canudinhos e casacos úmidos. Sentei lá, totalmente petrificado, e aquele sentimento permaneceu comigo durante toda a minha infância e adolescência”, contou à revista Playboy, sobre suas primeiras lembranças em Port Talbot, a localidade siderúrgica do sul de Gales onde cresceu. Os professores, os colegas e seus pais lhe repetiam que era tonto demais para qualquer trabalho. Nunca teve nenhum amigo e passava as tardes desenhando ou tocando piano. Às vezes não ia nem à própria festa de aniversário. “Eu me sentia o mais idiota da classe, talvez tivesse problemas de aprendizagem, mas o fato é que eu não conseguia entender nada. Minha infância foi inútil e inteiramente confusa. Todo mundo me ridicularizava”, revelou ao The New York Times.

Richard Burton também era de Port Talbot, e Hopkins Maluco, como o chamavam na época, o conheceu aos 15 anos. “Ele montou que virou ator porque não prestava para nenhum trabalho. Depois entrou no seu Jaguar e foi-se embora. Não se viam muitos carros assim no pós-guerra. Naquele momento entendi que precisava sair de lá. Deixar de ser quem era. Ser rico e famoso. E comecei a sonhar em morar nos Estados Unidos”, recordou ao jornal nova-iorquino no final do ano passado.

Em poucos anos alcançou o máximo prestígio ao qual qualquer ator britânico aspira: protagonizar obras do National Theatre. E quando liderava o elenco da mais importante de todas, Macbeth, se mandou no meio da temporada para rodar um filme em Hollywood. “O teatro não se encaixa na minha personalidade nem no meu temperamento. Nunca me diverti. O teatro britânico é muito acadêmico e eu sempre fui péssimo aluno. Não gosto da autoridade, já sofri suficientes abusos quando criança. Lembro que Katherine Hepburn, durante a rodagem do meu primeiro filme, O leão no inverno, me disse: ‘Estamos em pleno janeiro no sul da França e ganhando por isso. Esta é a melhor vida, não largue dela!”, contaria na Vanity Fair.

O ator Anthony Hopkins comparece à entrega dos prêmios SF&TV (posteriormente chamados BAFTA) no Royal Albert Hall, em Londres. O ano era 1973.( Crédito da foto: FOX PHOTOS / GETTY IMAGES)

Em 1968, deixou a primeira mulher, com quem tinha um bebê de quatro meses, porque percebeu que era “egoísta demais” para criar uma família. A um jornalista do The Guardian, há três anos, afirmou vir “de uma geração na qual os homens eram homens. E a parte negativa disso é que não nos damos bem com receber amor ou dá-lo. Não entendemos”. Apesar de uma tentativa de aproximação nos anos noventa, Hopkins nunca teve relação com sua filha, e hoje não sabe nem sequer se tem netos.

Durante os anos setenta, ganhou certa fama de “ator temperamental”. Sofria ataques de ira durante as filmagens, chegava a sair no braço com os diretores, ou sumia sem dar explicações. Anos depois, ele mesmo admitiria que, como não queria beber durante a jornada de trabalho, sua agressividade aflorava porque sempre estava de ressaca. Em 29 de dezembro de 1975, amanheceu num motel de Phoenix sem ter a menor ideia de como tinha chegado lá. Nunca mais voltou a beber. “Admiti que tinha medo, o que me deu uma liberdade maravilhosa. Eu me sentia inseguro, paranoico, aterrorizado. Temia não servir para nada, que não me encaixava em nenhum lugar”, confessou à The New Yorker no mês passado.

Tentou apaziguar seu caráter mediante a sobriedade, mas seus demônios continuavam por trás dele. Às vezes, entrava no seu carro e dirigia durante semanas; outras vezes passava dias sem dirigir a palavra a ninguém. Em 1981, quando já tinha ganhado dois Emmys, seu pai morreu. Nas últimas horas dele, Anthony aproveitou para lhe dizer que o amava (era a primeira vez que dizia isso a alguém na vida), mas só se atreveu a beijá-lo depois de morto. “Ao recolher seus pertences, encontrei um mapa dos Estados Unidos. Sempre quis ir lá. Morreu sem ir”, lamentaria Hopkins. O médico lhe informou que o coração do homem tinha se inchado por causa de anos e anos de esforço. “Quando penso em como meus pais se escravizaram a vida toda numa padaria para ganhar uma miséria... para mim foi tudo fácil demais. Tenho vergonha de ser ator. Deveria estar fazendo outra coisa. Atuar é uma arte de terceira. Pagam-nos muito e dão muita trela para nós. Gosto da atenção e do dinheiro, mas me sinto como um vigarista”, lamentou-se no The Guardian.

Apesar do sucesso de Magic, O Homem elefante e Rebelião em alto-mar, sua carreira em Hollywood não decolava, e teve que voltar a Londres. “Essa parte de minha vida acabou, é um capítulo encerrado. Suponho que terei que me conformar em ser um ator respeitável no teatro e fazer trabalhos respeitáveis na BBC durante o resto da minha vida”, declarou na época. Uma tarde foi ao cinema ver Mississippi em chamas e sentiu inveja, raiva e frustração por não ter uma carreira como a de Gene Hackman. Dias depois, seu agente norte-americano ligou para ele: Hackman tinha recusado o papel de Hannibal Lecter, e ele era a segunda opção.

Anthony Hopkins e Jodie Foster seguram o Oscar que cada um ganhou por seu papel em ‘O silêncio dos inocentes’, em 1992. (Crédito da foto: JOHN T. BARR / GETTY IMAGES)

Bastaram a Hopkins 17 minutos em O silêncio dos inocentes para entrar para a história do cinema. Aquele triunfo lhe trouxe um Oscar, um título de sir e a percepção coletiva de ser o que o grande público chama de “um senhor ator”. Mas seu maior triunfo foi pessoal. “Queria curar minha ferida interna, queria vingança. Queria dançar sobre as tumbas de todos os que me fizeram infeliz. Queria ser rico e famoso. E consegui”, gabava-se na época na Vanity Fair.

Durante os anos noventa, Hopkins era o ator mais prestigioso do mundo. Interpretou personagens históricos que, a priori, não seriam seus (Nixon, Picasso), contribuiu com distinção para o “cinema de porcelana” (Retorno a Howard’s End, Terra das sombras, Vestígios do dia), e sua definição do trabalho do ator entrou para o folclore de Hollywood: “Seja pontual, aprenda os diálogos e tenha certeza de que seu agente recebeu o cheque”. O público assumiu que Hopkins era um senhor sensível e retraído como os personagens que interpretava, mas ele corrigia essa percepção: “Posso ser um tirano. Sem escrúpulos. Eu quero o que quero. Sou muito, muito egoísta. Algo me atormenta, não sei o que é, mas me provoca muita inquietação”, confessava em 1996. “Fui num psicólogo e acabei chorando na primeira sessão. Senti tanta vergonha. Ensinaram para mim que os homens não choram”. Não voltou mais à terapia.

Em 1993 Hopkins teve uma aventura com uma ex-namorada de Sylvester Stallone que conheceu nos Alcoólicos Anônimos, e sua esposa se mudou para Londres. “Jenni não entende. Adoro estar em Los Angeles. É a terra do Mickey Mouse! Tem tanto dinheiro. Mais de que você poderia sonhar. Ela acha que parece uma cidade de brinquedo, com um entusiasmo e efusão excessivos. Pois a mim é isso que me maravilha”, contava o ator. Seu novo status como estrela, ao menos, lhe permitia conseguir o que queria sem precisar gritar nem encarar ninguém. “Agora basta pedir amavelmente ao produtor”, sugeria.

Durante as entrevistas promocionais de No Limite, um thriller coprotagonizado por Alec Baldwin e um urso, quando era perguntado sobre o arco do seu personagem, Hopkins respondia: “Não tenho a mínima ideia do que você está falando”. Quando lhe perguntavam o que o atraíra a determinado projeto, costumava responder: “O dinheiro”. Era como queria desmontar a imagem que o público criou dele. O lorde britânico com boas maneiras de repente enfrentava seus compatriotas (“Se amam tanto esse lugar sujo, chuvoso e cheio de merda de cachorro nas calçadas, que fiquem. São um bando de fracos, chorões, chatos, invejosos que só são felizes se estiverem desgraçados. Estão obcecados com que o sucesso não me suba à cabeça, e raivosos porque eu consegui fugir de lá. Que se fodam”).

Anthony Hopkins e Antonio Bandeiras em ‘A máscara do Zorro’ (1998). Hopkins se referia ironicamente a papéis desse tipo como sendo os que “dispensam interpretação". (Crédito da foto: RONALD SIEMONEIT / GETTY IMAGES)

As eventuais concessões comerciais (A máscara do Zorro, ou uma cena em Missão impossível 2, pelas quais ganhou 26 e 13 milhões de reais, respectivamente) começaram a ser a norma com franquias como O lobisomem, Thor e Transformers. Filmes em cujos roteiros Hopkins anotava a sigla NRA (de “no acting required”, ou “sem necessidade de interpretação”). Durante a rodagem de Transformers, Mark Wahlberg o incentivou a abrir uma conta no Twitter, uma rede social na qual hoje Hopkins parece se divertir mais do que nenhum outro usuário. Seus vídeos cotidianos, a meio caminho entre a crônica de costumes e o dadaísmo, causam tamanha sensação que ele abriu também um canal no TikTok. Lá Hopkins publicou vídeos dançando músicas de Drake, do Fleetwood Mac com seu gato e de Elvis Crespo com sua mulher, a colombiana Stella Arroyave. Ela o convenceu a compartilhar suas composições musicais e seus quadros com o mundo. As críticas dos especialistas, além disso, foram positivas.

Perto de completar 70 anos, começou a sonhar todas as noites com Gales e decidiu visitar sua terra mais frequentemente. Naquela época também dirigiu um filme, Slipstream – Um sonho dentro de um sonho, que satirizava Hollywood. Hopkins confessou que, depois de chegar ao topo, descobriu apenas que “não tinha nada lá em cima”. “Pelo amor de Deus, eu deveria estar em Port Talbot. Ou morto, ou trabalhando na padaria do meu pai”, refletia. O maior alívio em sua maturidade foi um diagnóstico de Asperger leve, uma condição no espectro funcional do autismo que afeta as interações sociais. Essa descoberta, explica, o ajudou a entender melhor a si mesmo e a explicar por que passou a vida toda querendo estar sozinho.

O ator afirma que nunca foi tão feliz como depois de completar 75 anos. Tanto que até arrumou um amigo, que ainda por cima é ator: Ian McKellen, com quem trabalhou no filme O fiel camareiro, da BBC, em 2015. A experiência o estimulou a voltar a Shakespeare, também com a BBC, em Rei Lear. E durante a filmagem finalmente compreendeu por que a tanta gente gosta de Shakespeare. Ultimamente sonha com elefantes, como os que viu quando criança com seu avô no clássico de aventuras Elephant boy, de 1937. “Também penso muito em um dia que passei com meu pai na praia”, contou à Interview. “Eu estava chorando porque um doce que ele tinha comprado para mim havia caído na areia. Penso naquele menino medroso, que estava destinado a crescer e virar um idiota na escola. Atrapalhado, solitário, raivoso. E quero dizer a ele: ‘Não se preocupe, garoto, a gente se virou bem’.”

JUAN SANGUINO para o EL PAÍS, em 25 ABR 2021 - 15:40 BRT

Roberto Romano: Federação, municípios, morticínio. Tragédia nacional

Temos um povo dizimado pelo poder, que age como conquistador em terra arrasada

Jair Bolsonaro ataca Estados e municípios como inimigos a serem destruídos. Para ele, não existem cidadãos merecedores de respeito nas unidades federativas. Em vez de lutar contra a pandemia, o presidente gera batalhas contra as bases administrativas e políticas do País. Surgem os frutos assustadores: mais de 350 mil brasileiros entregues à tortura da morte sem ar, o que revolta quem sente misericórdia ou segue a ética e a moral.

O ignaro governante reitera – em cena macabra – uma guerra antiga das culturas políticas humanas. Trata-se do choque entre poderes centrais e municípios. Estes últimos eram desconhecidos na Grécia e na Roma primitiva. Ali existiam soberanas cidades-Estado. Na Itália as urbes eram livres para organizar suas práticas internas. Vencidas por Roma e ela ligadas em federação (foedus) dela recebiam em especial a justiça. O prefectus, agente romano, resolvia os casos urgentes, mas o júri reunia habitantes locais, cujas instituições eram mantidas.

Os elos entre municípios e Roma se retraíam e se estendiam conforme as vicissitudes políticas, econômicas, sociais. Ora o poder se concentrava, ora se espraiava pelas bases federadas. Os municípios conservavam independência na sua organização, a assembleia do povo elegia os dirigentes. “Os magistrados municipais têm sobre os cidadãos o imperium. Todos obedecem à lei votada pelo povo e se inclinam diante dos administradores nas taxas ou nos trabalhos públicos. Em casos extremos o município cede aos poderes centrais e a lei de Roma toma a dianteira” (Mommsen). “Em casos extremos”, sublinhemos.

Após a chamada “guerra social”, quando as cidades italianas exigiram tratamento similar ao concedido a Roma, os municípios se generalizaram. Cito novamente o grande historiador Mommsen: “O município, constituído no interior do Estado e a ele se subordinando, é uma das mais notáveis manifestações políticas e das mais fecundas da era comandada por Sylla. As reformas constitucionais de Sylla definem um Estado cuja base é múltipla, a das comunas locais”. Dentre os municípios do Estado romano temos Olissipo, Lisboa. Aquelas unidades começaram a ruir por causa dos abusos das autoridades locais, abusos agravados pelo aumento sem freios do fisco em vantagem do poder central.

Os esqueletos municipais serviram às cidades europeias na resistência ao moderno absolutismo, cuja tarefa era unificar os Estados monárquicos. Nos século 16 e 17 tudo fizeram as Cortes para arrancar finanças e poderes dos municípios. Hobbes pensa as urbes como ameaça ao poder absoluto e vê como doença “a desmesurada grandeza de uma cidade, quando ela é apta a fornecer para além de seu próprio domínio os números e o pagamento de um grande exército” (Leviatã). A história da centralização estatal passa pela beligerância entre a Corte e os municípios. Tocqueville (O Antigo Regime e a Revolução) revela as táticas do rei: ele arranca das cidades as suas prerrogativas, como a de eleger os próprios magistrados, para revendê-las com lucro aos mesmos municípios. O prefeito assim escolhido, acrescenta Tocqueville, tem poder menor do que o fiscal do Reino. Daí ser possível aquilatar o grau de corrupção do Antigo Regime. Nele tudo se vende, tudo se compra. O Antigo Regime é um imenso Centrão.

Não citei Lisboa por acaso. Quando surge o Brasil os reis europeus – incluído o português – controlam os países, os municípios perdem força. Em nossa terra os municípios existem, mas não há foedus com a Corte, apenas subordinação. Líderes locais são desprovidos de real autonomia, como seus colegas da Europa absolutista. Tal realidade vigora no Império e na República. Maria Sylvia Carvalho Franco (Homens Livres na Ordem Escravocrata) analisa o controle e o parasitismo do poder central em relação às cidades. Impostos são retirados dos cofres municipais e para eles quase nunca retornam. Tal regime faz dos poderes subordinados fontes de recursos para o Executivo do País, sem retorno em obras públicas dignas do nome.

Com documentos a autora mostra aí a fonte brasileira da indistinção entre público e privado, o compadrio político e outras mazelas. Para obter verbas surgem as oligarquias regionais. No Congresso elas vendem apoio ao presidente/monarca. Tal é a gênese do perene Centrão.

As ditaduras do século 20 reforçam o Executivo nacional. Temos uma enganosa Federação a jungir Estados e municípios. Se na Presidência há uma pessoa despótica e desprovida de saberes – jurídicos, políticos, científicos, históricos –, o combate pátrio vira carnificina. Temos um povo dizimado pela virulência do poder, que age, em relação aos municípios, como conquistador em terra arrasada. Os mortos, hoje aos milhares, são enterrados sem justiça.

Se a Federação brasileira não deixar de ser apenas farsa, seguiremos sob o guante de dirigentes que violam os direitos de Estados e municípios, espaço onde vivemos ou morremos. Quem não respeita tal fato da vida pública não merece governar.

Roberto Romano, Professor da UNICAMP, é autor de "Razões de Estado e outros Estados da Razão". ( Ed. Perspectiva). Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 25 de abril de 2021 

Tasso admite disputar prévias no PSDB

'Se meu nome servir para unir, vamos trabalhar nessa direção', diz senador tucano sobre candidatura à Presidência, em 2022

Pela primeira vez desde que foi incentivado a entrar na disputa de 2022, o  senador Tasso Jereissati (CE) admitiu participar de prévias do PSDB para a escolha do candidato à Presidência e construir uma terceira via, diante da polarização entre a esquerda e a extrema direita. “Se meu nome servir para unir, em algum momento, vamos trabalhar nessa direção”, disse o senador ao Estadão.

Integrante da CPI da Covid, Tasso gostou de ser chamado de “Biden brasileiro” por um grupo do PSDB que se refere a ele como o único político capaz de agregar forças no campo de centro. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden, de 78 anos, teve esse papel. “Vejo nele um cara que está mudando a história do mundo”, afirmou o tucano, que tem 72 anos.

Senador defende conversas com outros partidos até 2022: ‘Acho que as prévias deveriam ficar para mais tarde’ .

Senador Tasso Jereissati (PSDB) e Senadora Simone Tebet (MDB)

As prévias do PSDB estão marcadas para outubro, mas Tasso acha melhor adiá-las para 2022. “Ainda tem muita água para rolar debaixo da ponte”, previu. Até hoje, o PSDB tinha três pré-candidatos à sucessão de Jair Bolsonaro: os governadores João Doria (São Paulo) e Eduardo Leite (Rio Grande do Sul), além do ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio. Agora Tasso, ex-governador do Ceará, também entrou no páreo.

O presidente do PSDB, Bruno Araújo, lançou sua candidatura à sucessão de Jair Bolsonaro. O sr. pode ser a terceira via?

Ser candidato à Presidência não está ainda nos meus planos. Eu falo “ainda”. Eu defendo a ideia de uma união do centro. Quando eu digo união é porque vejo espaço, nas próximas eleições, para um candidato entre Lula (ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva) e Bolsonaro, que não seja nem de esquerda, nem de extrema esquerda, nem de extrema direita. Com certeza eu não acho bom para o País mais quatro anos de Bolsonaro. É um governo desastroso em todos os pontos, da condução da pandemia de covid – levando o Brasil ao maior número de mortes do mundo por dia – à política econômica, que não anda. E também não vejo como repetir o governo do PT. Então, está na hora do equilíbrio. Se dividir muito, ninguém vai ter (apoio para chegar ao segundo turno). Se meu nome servir para unir, em algum momento, vamos trabalhar nessa direção.

O sr. aceitaria disputar uma prévia no partido com João Doria, Eduardo Leite e Arthur Virgílio?

Eu sempre fui defensor de prévias. Mas ponderando que essa prévia seja feita dentro do limite da coerência, de um posicionamento ético. E que sirva para unir, não para desunir. Nunca falei isso, mas acho que as prévias deveriam ficar um pouco para mais tarde, para que nós pudéssemos conversar com os outros partidos. Quando defendo essa união, eu acho que não deve ser só dentro do PSDB.

Mas, com tanta divisão no PSDB, é possível um consenso, sem necessidade de prévia?

As prévias são boas. Eu não sei se são oportunas agora (em outubro). Até o início do ano que vem, muita coisa vai acontecer. Mas isso é minha opinião. Vai prevalecer, evidentemente, a visão do partido, dos dirigentes.

Esse vácuo não beneficia a polarização Bolsonaro-Lula?

Não tem vácuo, não. Tem é candidato demais. Daqui a pouco, um começa a dar cotovelada no outro. Ainda tem muita água para rolar debaixo da ponte. Um exemplo de como as coisas mudam: eu não sabia (em 2018) que tinha uma extrema direita tão radical e tão organizada. Foi uma surpresa gigantesca. E esse movimento se uniu ao antipetismo e à facada (sofrida pelo então candidato Bolsonaro). Ninguém sabia o tamanho dessa direita porque ela estava enrustida há muito tempo. Bolsonaro soube catalisar isso através das redes sociais.

Como ninguém enxergou que a direita estava se estruturando pelas redes sociais?

Desde a redemocratização se criou uma espécie de preconceito contra a direita. Era difícil você encontrar alguém que dissesse que era de direita, mesmo sendo. Significava uma afinidade com o golpe, com a ditadura, com o período autoritário. Quando falavam que o Bolsonaro poderia ganhar, eu desprezava a hipótese, solenemente. Tinha certeza de que não seria possível porque um político que fazia aquele discurso nunca poderia ganhar. Se tem uma coisa do Bolsonaro que nós temos de respeitar é que ele não mudou.

Passados dois anos de governo, Bolsonaro ainda é um candidato competitivo, apesar de todas as crises? O centro se preparou para enfrentá-lo nas redes sociais?

Não. O centro não tem rede social organizada e espalhada. Nenhum desses candidatos que estão aí tem. Vamos precisar ter.

O sr. chegou a dizer que o marqueteiro João Santana, quando estava com o PT, espalhou fake news e derrubou Marina Silva. Agora, ele foi contratado por Ciro Gomes, que é próximo ao sr. e tem conversado com esse campo de centro. Isso preocupa?

Eu não sabia que o Ciro tinha feito essa contratação. Pelo caráter do Ciro, acho muito estranho. Agora, o João Santana pagou tanto pelos seus pecados, indo preso, que talvez tenha mudado e queira se redimir.

Dizem que o sr. é o único que pode convencer  Ciro a desistir da candidatura presidencial em nome de uma aliança maior.

Eu acho difícil o Ciro sair (do páreo). Mas não acho muito difícil o Ciro vir. O Ciro já foi de esquerda, mas hoje é de centro. E acredito que ninguém vá mudar o desejo dele de tentar a Presidência. Ele tem esse objetivo na vida.

O manifesto assinado por seis presidenciáveis, em defesa da democracia, é um caminho para construir a terceira via, em 2022?

Acho que foi um primeiro passo. Como diz o poeta, “você começa o caminho caminhando”. Mas a abertura de diálogo entre todos esses candidatáveis é fundamental. Eu posso ajudar, acho até que tenho uma facilidade de diálogo. Isso não indica que seja eu o candidato. Tenho enorme admiração pelo governador Eduardo Leite.

O que falta, na  sua opinião? É um programa para unificar esse grupo ou deixar as vaidades de lado para montar uma aliança?

A palavra principal é desprendimento. Mas alguns pontos são relevantes para uma agenda comum, como meio ambiente, respeito à ciência e não desprezar a questão fiscal.

O sr. tem sido chamado por algumas alas do PSDB de ‘Biden brasileiro’ por ter um perfil capaz de unir diferentes correntes. O que acha dessa comparação?

Fico extremamente lisonjeado, mas acho que é por causa da idade (risos). Vejo nele um cara que está mudando a história do mundo. Eu meço, hoje, a responsabilidade do Bolsonaro na nossa pandemia através dos Estados Unidos. Prestem atenção na mudança que houve lá no combate à pandemia depois da eleição. E agora Biden está colocando a questão do meio ambiente na agenda do planeta.

O PSDB passou por várias crises e não conseguiu chegar nem ao segundo turno da eleição de 2018. Como o partido pode se reposicionar no jogo?

Todos os partidos sofreram crises. O PSDB, o PT, o MDB... De uma maneira geral, os partidos estão bastante desmoralizados. Nessas eleições agora, vamos ter de nos reconstruir com um programa claro e, ao mesmo tempo, restabelecer a questão da ética. 

Além do sr., quais outros nomes podem furar a polarização na campanha presidencial?

Tem o Mandetta (ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta) pelo DEM. O PSDB tem aí tanto o Eduardo Leite quanto o Doria. Tem o Ciro pelo PDT. Luciano Huck é o que tem mais popularidade e está com meio caminho andado. Tem um grupo grande muito consciente dos riscos que o Brasil corre e se dispõe a conversar.

Quais riscos?

Se nós tivermos mais quatro anos de Bolsonaro, vamos ser um pária internacional, isolado do mundo. E com a economia no caos. O primeiro governo do Lula foi bom, mas ele teve como formulador de política econômica o Marcos Lisboa. Se ele vier com a política do Guido Mantega, do descontrole fiscal, nós também iremos por um caminho equivocado. Temos de reconstruir credibilidade.

A CPI da Covid pode desembocar em um processo de impeachment contra o presidente?

Não é o objetivo. Com certeza, a CPI vai levantar responsabilidades sobre esse drama que o País vive. Agora, eu acho que nós não devemos chegar a impeachment. Além de ser outra crise, é inócua porque uma CPI demora seis meses. E depois, se começar um processo de impeachment, vão no mínimo mais seis meses. O País ficaria parado e sem rumo, já chegando às eleições do ano que vem. Agora é trincar os dentes.

O ex-secretário de Comunicação Social Fábio Wajngarten disse à Veja que o Brasil não comprou antes vacinas da Pfizer por culpa do então ministro da Saúde Eduardo Pazuello. É crível que o presidente não soubesse de nada?

Eu não acho crível. Temos de averiguar, mas acho estranho que a compra de vacinas passe pelo secretário de Comunicação, e não pelo presidente. Até porque tem a célebre frase do então ministro da Saúde: “Ele manda, eu obedeço”.

O que se pode esperar da economia com o desemprego em alta e orçamento apertado? O “Posto Ipiranga” do governo corre o risco de incendiar?

Não tem mais gasolina (risos). Existe uma sensação de descontrole. A economia parada, o déficit e a inflação subindo. É o pior dos mundos. Mas há uma coisa para prestar atenção, no ano que vem. É que, em função da inflação, haverá uma bomba fiscal maior. Em 2022, o governo Bolsonaro terá mais dinheiro para gastar. Acho muito difícil o Paulo Guedes (ministro da Economia) avançar em seus planos liberais. Esse choque aconteceria de qualquer forma porque Bolsonaro nunca foi liberal. Ele sempre foi corporativista.

Muitos acreditavam que os militares fossem atuar como freio para o presidente, mas ocorreu o contrário. O sr. acha que eles podem não apoiar o projeto da reeleição?

Eu acho que os militares também ficaram surpresos. Não deveriam ficar porque Bolsonaro foi saído, não digo expulso, do Exército pela hierarquia militar. Eu acho que os militares têm de ficar neutros, como sempre estiveram. Não devemos nos preocupar com eles nas eleições. Eles têm de estar ali, respeitando a Constituição e fazendo o seu papel.

Vera Rosa e Andreza Matais, O Estado de S.Paulo, em 25 de abril de 2021 | 05h00

Em 20 anos, Câmara dos Deputados gasta R$ 6,4 bilhões com cota parlamentar

Criada em meio a pressão para o aumento salarial dos deputados em Brasília, a reserva desses recursos para reembolsar parlamentares gerou um efeito cascata no País

Plenário da Câmara dos Deputados

Somente no primeiro trimestre de 2021, a Câmara dos Deputados desembolsou R$ 32,2 milhões com a cota parlamentar. ( Crédito da foto: Najara Araújo/CD).

Entre 2001 e 2021, a Câmara dos Deputados gastou R$ 6,4 bilhões, em valores corrigidos, com a cota parlamentar - a verba que cada parlamentar federal tem para reembolsos como aluguel de carros, combustível, passagens aéreas, alimentação, contratação de serviços, entre outros. No período de duas décadas, as despesas somadas equivalem ao orçamento executado (R$ 6,5 bilhões) em 2020 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), durante a pandemia global do novo coronavírus.

Criada em meio a uma pressão para o aumento salarial dos deputados em Brasília, a reserva desses recursos para reembolsar parlamentares gerou um efeito cascata no País. Ainda no início dos anos 2000, as Assembleias Legislativas dos 26 Estados e do Distrito Federal criaram normas para as verbas indenizatórias ou cotas parlamentares com o objetivo de financiar o exercício do cargo. Câmaras Municipais espalhadas pelos 5.570 municípios brasileiros também surfaram na onda e adotaram o ressarcimento de gastos.

No Congresso, o uso de dinheiro público para esta finalidade motivou recorrentes denúncias de desvio e irregularidades nestes últimos 20 anos. O dinheiro que cada um dos 513 deputados pode gastar varia de acordo com o Estado pelo qual ele foi eleito. A cota mensal atual oscila de R$ 30,8 mil (Distrito Federal) até R$ 45,8 mil (Roraima). Somente nos três primeiros meses de 2021, a Câmara desembolsou R$ 32,2 milhões com a cota parlamentar. Os dados das despesas com a cota são da própria Câmara, por meio de sua assessoria de imprensa.

Em julho do ano passado, o Estadão revelou que deputados da base governista e da oposição transformaram a divulgação da atividade na Câmara num negócio privado. Eles recorreram a empresas contratadas com dinheiro da verba de gabinete e assessores pagos pela Casa para gerir canais monetizados no YouTube, com vídeos que arrecadam recursos de acordo com o número de visualizações. Dias após a publicação da reportagem, um ato da Mesa Diretora proibiu deputados de usarem o dinheiro da cota parlamentar para contratar serviços que gerem lucro na internet. 

Em 2017, o uso irregular da verba levou o Ministério Público Federal (MPF) a apresentar à Justiça 28 denúncias contra 72 ex-deputados por envolvimento na chamada “farra” das passagens aéreas. As acusações formais foram pelo crime de peculato (desvio de dinheiro público). Quando presidiu a Câmara pela segunda vez, entre 2009 e 2010, o ex-presidente Michel Temer (MDB) limitou o uso de passagens para os próprios deputados ou seus assessores.

Além da cota, os deputados recebem salário (subsídio) mensal de R$ 26,7 mil e têm uma verba de gabinete, no valor mensal de R$ 111,7 mil, para pagar salários de até 25 secretários parlamentares que podem trabalhar em Brasília, ou no Estado pelo qual o deputado federal foi eleito.

A cota parlamentar foi uma ideia do deputado Aécio Neves (PSDB-MG), quando ele ocupava a presidência da Câmara. Nasceu com o nome de verba indenizatória. O tucano, que hoje preside a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Casa, estava sendo pressionado pelos deputados por aumento de salários. A partir daí, a iniciativa foi reproduzida em todo o País. Em janeiro de 2003, sob a presidência de Ramez Tebet (1936-2006), do então PMDB-MS, o Senado adotou a fórmula de reembolso para os 81 senadores da República.     

Na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a criação de uma cota ocorreu três meses após a implementação da regra na Câmara. No Legislativo do Maranhão, o deputado estadual é ressarcido por despesas mensais em até R$ 41,7 mil.

Na Câmara Municipal de São Paulo, que tem seu “auxílio-encargos gerais” vigente desde 2003, cada parlamentar tem direito a R$ 25,8 mil mensais para essas despesas (gasto de R$ 17 milhões ao ano). Pagamentos a empresas de marketing e manutenção de sites – que promovem os próprios vereadores – lideram os gastos. O vereador Felipe Becari (PSD), que se elegeu pela primeira vez no ano passado com uma agenda de defesa animal, gastou, por exemplo, R$ 19,6 mil com marketing, elaboração e hospedagem de sites. Segundo sua equipe, o site servirá para receber denúncias de maus-tratos contra bichos, enquanto a empresa de marketing presta consultoria para propor projetos de leis que conversem com outros públicos. 

O montante gasto pelos deputados federais nestes 20 anos de vigência do reembolso seria suficiente para custear os gastos realizados até o momento com a compra de vacinas para a covid-19. Os R$ 6,4 bilhões poderiam manter a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) operando por quase dez anos, dado o orçamento que a agência, crucial para a análise de vacinas, teve no ano passado (R$ 659,7 milhões).

O valor da cota parlamentar no período é bem superior ao valor previsto no Orçamento de 2021 - sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro na semana passada - de vários ministérios: mais de 200% a mais do que a previsão da pasta das Relações Exteriores (R$ 1,97 bilhão); do Ministério do Turismo (R$ 2 bilhões) e do Ministério do Meio Ambiente (R$ 1,99 bilhão).

Procurada, a assessoria da Câmara dos Deputados informou que não comenta os dados disponibilizados

'Transparência'

Aécio Neves afirmou que criou as cotas porque elas são necessárias para o “exercício” do mandato parlamentar e que elas dão mais transparência aos gastos. “A regulação das despesas referentes ao exercício da atividade parlamentar teve como finalidade ordenar, controlar e dar transparência a esses gastos, além de distinguir o que era remuneração do parlamentar daquilo que eram os gastos necessários ao exercício da sua função”, afirmou o deputado mineiro, por meio de nota.

Segundo ele, a criação da cota parlamentar se inspirou “no que já existia como prática administrativa em diversos parlamentos no mundo, como nos Estados Unidos e países da Europa”. Segundo o deputado, o uso das cotas deve ser fiscalizado pelos instrumentos de controle “e os responsáveis, devidamente punidos”.

Sem cotas

Na atual legislatura, dois deputados não usam a cota parlamentar da Câmara: a deputada Paula Belmonte (Cidadania-DF) e o deputado Hercílio Coelho Diniz (MDB-MG).“Fiz esse compromisso antes de ser eleita”, afirmou a deputada. “Não usei também recursos para mudança antes da posse, e recusei a aposentadoria especial e o plano de saúde da Câmara”. 

Já Diniz disse ser favorável ao benefício, apesar de não utilizá-lo. “O salário de deputado ajuda a custear as principais despesas, que são os deslocamentos para Brasília e no estado, telefones e hospedagem”, afirmou o deputado mineiro. “Mas reconheço a realidade dos colegas que usam os benefícios, pois cada gabinete tem suas despesas e as atividades nos Estados divergem.”

Carlos Eduardo Cherem,e Bruno Ribeiro, especial para o Estadão, em 25 de abril de 2021 | 14h00