domingo, 18 de abril de 2021

'Não foi uma absolvição', afirma Gilmar sobre caso de Lula

Em entrevista ao Estadão, ministro do STF afirma que a Operação Lava jato provocou um 'colapso' no Judiciário, atingindo da primeira instância até o STJ

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, avalia que a Operação Lava Jato provocou um “colapso” no Judiciário, atingindo da primeira instância até o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em entrevista ao Estadão, Gilmar disse que essas instâncias sucumbiram a “pressões políticas” da força-tarefa que comandou a operação em Curitiba. “O STJ não cumpriu adequadamente seu papel”, afirmou.

Expoente da ala garantista, Gilmar admite que a correção de rumos imposta pelo STF coincide com o momento em que a Lava Jato caiu em desgraça, mas afirma que isso se deve à “estrutura hierárquica do Judiciário”, na qual o Supremo é o último a se manifestar.


O ministro do STF Gilmar Mendes, em sua residência no Lago Norte. Foto: Gabriela Biló/ Estadão

O ministro ressalta que o Supremo anulou as condenações contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por questões meramente processuais, ao concluir que os casos não deveriam ter ficado em Curitiba. O STF não entrou no mérito se o petista cometeu corrupção passiva e lavagem de dinheiro. “Não foi uma absolvição”, observou.

Gilmar já fez duras críticas a posições adotadas pelo novato Kassio Nunes Marques que coincidem com os interesses do presidente Jair Bolsonaro, responsável por sua indicação. Mesmo assim, disse não ver riscos de uma Corte “bolsonarista” e afirmou que os vínculos políticos dos magistrados vão se “esmaecendo com o tempo”.

Confira abaixo a entrevista.

Anular as condenações impostas pela Lava Jato ao ex-presidente Lula legitima o discurso do PT de que ele não praticou corrupção?

Não. O que o tribunal está mandando é para o juiz competente processar e julgar as denúncias. É isso. Não foi uma absolvição. Claro que cancela as condenações, mas manda que o juiz competente prossiga no seu julgamento.

Lula ainda tem um novo encontro marcado com a Justiça?

Com certeza. Você viu que surgiu a dúvida sobre a vara competente –  São Paulo ou Distrito Federal. Definida a competência (na próxima quinta-feira, quando o julgamento for retomado no STF), essa vara vai prosseguir (com os trabalhos).

O senhor vê espaço para o plenário do STF dar uma reviravolta na suspeição do Moro ou isso é uma questão já encerrada?

Essa questão está resolvida. Porque, de fato, nós julgamos o habeas corpus (da suspeição de Moro na Segunda Turma). Nós temos que ser rigorosos com as regras processuais. Não podemos fazer casuísmo com o processo, por se tratar de A ou de B. O que é curioso é que eu propus que a matéria fosse afetada ao plenário, na época, em 2018 no início do julgamento. E por três a dois a minha posição ficou vencida. E, agora, a decisão foi tomada. (O relator da Lava Jato, Edson Fachin, no entanto, vai levar a discussão para o plenário na próxima semana).

O julgamento de Lula pode provocar um efeito cascata e beneficiar outros réus?
Não vejo assim. O caso do Lula, no que diz respeito à suspeição, é muito delimitado. É uma situação muito personalista mesmo. 

Lula foi condenado, ficou 580 dias preso, acabou afastado da disputa eleitoral de 2018 e apenas na última quinta-feira o plenário do STF decidiu que Curitiba não tinha competência para julgá-lo. O Supremo dormiu no ponto?

Acho que não. Na verdade, o processo judicial como um todo é muito complexo. E ele segue toda essa escala: o juiz de primeiro grau; o tribunal intermediário, no caso deles, o TRF-4; o STJ; e o Supremo. Desde 2015, o STF vem afirmando que a competência de Curitiba não é universal. Talvez o STJ fosse o locus mais adequado para fazer essa revisão. Isso chamou a atenção do ministro Fachin, mas esse habeas corpus (contestando a competência de Curitiba) estava com ele desde novembro de 2020.

Cabe indenização ao ex-presidente, por danos morais?

Não sei se ele vai fazer, mas é uma questão a ser considerada.

Como explicar para a sociedade que o Judiciário cometeu um erro que acabou levando à prisão de uma pessoa?

Isso é fruto, primeiro, dessa estrutura hierárquica do Judiciário. O Supremo só fala por último. Essa questão só, de fato, aportou no Supremo, no caso do Lula, em novembro. Agora, o Supremo, em tese, em outras teses, no caso do “quadrilhão do MDB”, já tinha decisão. O caso da Gleisi (Hoffmann, presidente nacional do PT) e do Paulo Bernardo é um antecedente, de 2015, e ali, se assentaram balizas muito interessantes. Dizendo, por exemplo, que não bastava que um delator informasse vários fatos para justificar a competência de Curitiba. Quer dizer, o mesmo delator poderia ensejar fatos com competências diversas. 

Por que as instâncias inferiores não foram na mesma linha?

Havia um pouco de ambiente de mídia opressiva. Uma ânsia de decidir rapidamente. E decidir de acordo com aquilo que a Lava Jato tinha estabelecido. Se nós formos olhar, havia uma certa opressão dos tribunais que eram suscetíveis de serem oprimidos. O STJ, nesse período, também foi submetido a uma pressão político-judicial. Uma perseguição judicial. Por conta daqueles episódios ligados à nomeação do Marcelo Navarro (alvo de acusação feita na delação premiada do ex-senador Delcídio do Amaral). Disso resultou-se em um processo, inquérito, contra o presidente do STJ, ministro Falcão e contra o Marcelo Navarro. O tribunal, ele próprio, perdeu a ossatura. Ele não cumpriu, adequadamente, o seu papel. 

Gilmar Mendes diz que a Operação Lava Jato ‘avançou sobre competências que não tinham. Foto: Gabriela Biló/ Estadão

O STF impôs uma correção de rumos à Lava Jato?

Claro que a Lava Jato sofreu inúmeras derrotas ao longo desse tempo. Mas por seus próprios méritos. Ou deméritos. Ela causou isso. Na medida em que, por exemplo, eles avançavam sobre competências que não tinham. A pergunta básica é: como que se deu tanto poder a uma força tarefa? Em que lugar do mundo haveria isso? É alguma coisa que precisa ser explicada. Virou um esquadrão.

O senhor utilizou as mensagens de hackers como reforço argumentativo para declarar Moro parcial.
Houve, de alguma forma, um colapso aí, em termos de gestão administrativa. Esses problemas se multiplicam. De alguma forma, estão ocorrendo episódios semelhantes na Sétima Vara de do Rio de Janeiro. Em que aparece um super advogado (Nythalmar Filho, alvo de mandados de busca da Polícia Federal), que teria relacionamento com o juiz (Marcelo Bretas), que teria trânsito com os procuradores, que faziam todas as delações… E tudo mais. Nesse mundo obscuro que é o Rio de Janeiro. O combate à corrupção não pode ser instrumento de corrupção.

No julgamento da suspeição de Moro, o senhor ficou frustrado com o voto de Nunes Marques, que foi contra declarar o ex-juiz parcial?

Eu saio do julgamento, o tema se encerra, e a vida segue com a mesma normalidade. Sou bastante enfático, como vocês sabem. Mas, depois… Posso até ter adversários, não tenho inimigos, não. 

O senhor destacou que “não há salvação para o juiz covarde.” O voto dele foi covarde?

Não estava falando sobre isso. Esse é um clássico do direito constitucional e da luta política. É um artigo de Ruy Barbosa, que diz: “O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde.” É uma expressão clássica. Estimula-se muito a técnica do não-conhecimento (rejeição de processos por questões técnicas), para evitar enfrentar determinadas questões, especialmente em matéria criminal. Eu sou crítico disso, porque depois nós acabamos por chancelar brutais injustiças.

O senhor foi advogado-geral da União no governo FHC, antes de assumir uma cadeira no STF. Depois da indicação, qual deve ser a relação de um ministro do Supremo com o presidente da República?
Tenho a impressão que esses vínculos políticos vão se esmaecendo com o tempo. É natural e surge até um distanciamento… É claro que eu tenho ainda hoje muitos amigos daquele período, fui assessor do governo FHC desde 1996, fiquei lá até 2002, portanto, anos morando dentro do Palácio. É claro que temos uma relação cordial, de amizade, quando vou a São Paulo e posso, visito o presidente, conversamos sobre rumos e análises de cenário. Eu mesmo, por exemplo, tive relações de cordialidade com o presidente Lula e também tenho uma relação de cordialidade com Bolsonaro.

Bolsonaro riu ao ser informado por um apoiador que uma ação para cobrar o impeachment do ministro Alexandre de Moraes ficou nas mãos de Nunes Marques. Essa bancada bolsonarista que pode se formar dentro do STF não preocupa o senhor?

Acho que não. A vida é tão dinâmica, e as pessoas vão se conscientizando do seu papel. O que acontece é que talvez o momento político está tão crispado e acaba acontecendo que muitos políticos ficam falando para os seus convertidos. ‘Ah, estou atuando nisso’, ‘Tenho controle dessa ou daquela situação’, mas o ministro Kassio simplesmente encaminhou para o arquivo essa matéria. Portanto, aqui não sinaliza nenhuma conexão direta ou subordinação hierárquica ao presidente da República. Ao revés, mostra que simplesmente ele está seguindo a jurisprudência do STF.

Em outras decisões, no entanto, Nunes Marques votou alinhado aos interesses do Planalto.
Essa é uma questão que vocês vão ter sempre de fazer um exame mais profundo. Se nós olharmos no caso do Lula, é um caso interessante, naquele 6 a 5 do habeas corpus (de negar o pedido de Lula para não ser preso, em abril de 2018), tivemos o voto em favor do Lula do Celso de Mello, Marco Aurélio, meu, Lewandowski e Toffoli. Os demais (votos contra Lula) eram todos de (ministros) indicados por governos do PT. Essa vinculação se dissipa. 

O senhor não vê risco de um Supremo bolsonarista?

Não vejo, acho que as pessoas (os ministros indicados) começam a fazer uma crítica e uma autocrítica também do seu papel.

O senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) divulgou um áudio de uma conversa reservada mantida com Bolsonaro. O senhor vê algum tipo de crime nesse tipo de conduta?

Tudo isso é muito estranho, eu preferia aguardar mais desdobramentos disso. De fato, a gente tem de resguardar a figura do presidente da República. A impressão que ficou é que um órgão que detém um tipo de soberania está muito vulnerável. São condutas que devem ser evitadas. Eu acho que a gente tem de trabalhar para a melhoria da qualidade da política. A interdição do debate público e a criminalização da política estimularam muitos aventureiros, que hoje compõem bancadas no Congresso, mas que não têm sequer cultura política parlamentar. Espero que esses aventureiros não renovem mandato.


'O caso do Lula, no que diz respeito à suspeição, é muito delimitado. É uma situação muito personalista', afirma Gilmar Mendes. Foto: Gabriela Biló/ Estadão

Especialistas viram crime no conteúdo da fala do presidente, uma vez que ele orienta o senador a partir para cima de ministro do STF para segurar a CPI.

Quanto ao impeachment, os ministros do STF veem com muita naturalidade. Como vocês acompanham, são pedidos feitos por grupos contrariados com uma decisão, como aquela do ministro Alexandre em relação a esse deputado Daniel Silveira (parlamentar bolsonarista que acabou preso, após fazer apologia ao AI-5 e insultar o STF), que já não é mais uma decisão do ministro Alexandre, ela foi referendada pelo plenário. Por que então pedir o impeachment só do ministro Alexandre, né? Cada vez que um de nós tomar uma decisão, vai ficar suscetível a esse tipo de ameaça? Portanto, é uma questão de cultura política. 

O senhor não vê espaço nem para impeachment do presidente, nem para o de ministros do STF?
Não vejo. Estamos em meio a uma pandemia, com problemas os mais diversos, eu tenho propugnado para que a gente busque um consenso no sentido de encaminharmos bem, cada um com suas responsabilidades. Não entendo que devêssemos banalizar o impeachment de presidente da República.

A Lei de Segurança Nacional é uma herança maldita da ditadura militar?

Leis de ditadura nós temos muitas. O próprio Código Penal e o Código de Processo Penal são de uma ditadura hoje considerada mais soft, do Estado Novo, período Vargas. Não é isso que deve nos balizar para analisar a questão. Tenho a impressão de que temos de olhar com muito cuidado. Mas eu torço para que, de fato, haja a substituição da Lei de Segurança Nacional. Que o Congresso faça um novo projeto de lei, e a previsão expressa de uma lei de defesa do estado democrático direito. Corre-se sempre o risco de você afirmar que algo não foi recepcionado (pela Constituição) e produzirmos lacunas em tipos (penais) que talvez sejam importantes. Por isso temos de nos movimentar com muito cuidado.

Entrevista concedida a Rafael Moraes Moura e a Andreza Matais para O Estado de S.Paulo, publicada originalmente na edição de 18 de abril de 2021

Crônica de uma nação descentrada

"De fato, desequilibramo-nos, passamos a conviver com uma realidade anomalamente povoada de sociopatas. Individual e coletivamente, ao perder o “centro”, nos empobrecemos. Difunde-se em falas e documentos oficiais uma noção amputada de liberdade, só pela qual, segundo alguns, valeria sacrificar a vida"

Rompe-se o tecido social e poucas vezes a imagem do País terá descido tão baixo.

No quadro das ameaças de colapso da personalidade e também no das catástrofes sociais, recuperar o “centro”, seja só o de si próprio, seja o de toda uma comunidade, costuma ser o movimento que impede a descida aos infernos e a anomia generalizada. Não se trata de programa tímido ou moderado, embora a moderação, sem deixar de ir à raiz das coisas, esteja presente como um dos seus elementos constitutivos.

Em geral, a urgência de um movimento desse tipo sucede à percepção de um risco cuja natureza é, acima de tudo, existencial: vemo-nos, como indivíduos ou como coletividade, diante de forças que escapam ao nosso controle, com potencial de destruição que só podemos antever recorrendo às distopias mais contundentemente imaginadas. Em situações assim, podemos tocar Orwell com as mãos.

Como sociedade nacional, entramos num túnel alucinante com a mais grave crise sanitária em pelo menos um século. Uma crise verdadeiramente global, como é da natureza do nosso tempo de humanidade (contraditoriamente) unificada, mas que afeta cada uma das sociedades de maneira particular e quase única, a depender de fatores variadíssimos, como a demografia, a capacidade econômica ou a própria organização política.

“Escolhemos” enfrentar o grande drama abrindo mão, quase inteiramente, de vantagens preciosas, como a coesão social, a vontade democraticamente orientada para fins de saúde pública e defesa econômica, a mobilização consciente dos recursos científicos de que o País tradicionalmente dispunha e, certamente, ainda dispõe. Este, afinal, é o país de Oswaldo Cruz, de Carlos Chagas e da plêiade de médicos e gestores que ergueram, na redemocratização, o Sistema Único de Saúde.

Por decisão própria – e para espanto dos muitos amigos do Brasil em todo o mundo que nos percebiam, às vezes ingenuamente, como uma das possibilidades mais interessantes de criação de um soft power não só em escala regional, mas global – nos encerramos, desde 2018, numa aventura em que cotidianamente se conjugam, em doses colossais, atraso, fanatismo e irracionalismo.

Para alguma tentativa de explicação será preciso talvez recorrer a mais do que ao cansaço com a experiência do petismo no poder. Para remediar tal cansaço existiam, e existem, remédios políticos adequados, como a crítica severa, a tenaz construção de alternativas, a proposição de projetos concorrentes, mas certamente não a convocação de alguns dos piores traços recessivos da nossa formação como povo e como Estado nacional.

Uma parte das elites econômicas pretendeu que valia a pena difundir massivamente a mensagem do liberalismo extremado, associando-o ao fundamentalismo ideológico e religioso. Um liberalismo assim entendido dificilmente se poderia associar a qualquer ideia de “sociedade aberta”, como alguns chegaram a encenar, soletrando um Karl Popper aprendido de orelha. Como era previsível, antes daria origem a uma realidade atravessada por formações meramente reativas, entre elas a do “politicamente incorreto”, que sustenta ações e palavras particularmente cruéis em relação aos sujeitos socialmente “fracos”, negros, indígenas, mulheres. E, horror dos horrores, em relação aos mortos da pandemia, o que faz de nós um caso único de desprezo à vida e à dor humana no seu sentido mais elementar.

De fato, desequilibramo-nos, passamos a conviver com uma realidade anomalamente povoada de sociopatas. Individual e coletivamente, ao perder o “centro”, nos empobrecemos. Difunde-se em falas e documentos oficiais uma noção amputada de liberdade, só pela qual, segundo alguns, valeria sacrificar a vida. A liberdade que se proclama, com grau poucas vezes visto de irresponsabilidade, é aquela destituída de impedimentos de qualquer natureza, dando a cada indivíduo a possibilidade de se movimentar selvagemente entre outros indivíduos igualmente livres de freios e obrigações. Exercer tal liberdade seria rebelar-se, quem sabe com armas na mão, contra as limitações que nós mesmos livremente nos damos, a exemplo das que são indicadas consensualmente há séculos em situações de pestes e epidemias. Paradoxalmente, no entanto, a imposição de tal liberdade anárquica e prepotente não dispensa a mão pesada do Estado nem a difusão de bandos e milícias no corpo da sociedade civil.

O preço do “descentramento” e mesmo das excentricidades a que assistimos, bestificados, é de conhecimento geral: internamente, rompe-se o tecido social; externamente, poucas vezes a imagem do País terá descido a níveis tão baixos. Em meio a ruína ainda maior, intelectuais italianos de peso quiseram saber, antes da retomada da democracia no pós-guerra, se os 20 anos de fascismo teriam sido um “breve parêntese” ou, na verdade, a “autobiografia da nação”. Nós também logo acordaremos do pesadelo, mas por muito tempo não escaparemos de análogo exame da nossa História, tão marcada por “parênteses” autoritários, que, caso tornem a se repetir, terminarão por definir a fisionomia de uma nação recorrentemente enredada em terrores noturnos e medos infantis.

Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil. Este artigo foi publicado originariamente n'O Estado de São Paulo, em 18.04.2021.

Um Supremo trôpego

Nem sempre o Judiciário tem atingido o objetivo de ser especialmente cuidadoso em sua atuação, para gerar confiança e segurança

Naturalmente, as decisões judiciais suscitam críticas. É impossível que o Judiciário agrade a todas as partes. Daí decorre a importância de o Judiciário ser especialmente cuidadoso em sua atuação, para que, mesmo não agradando a todos, consiga gerar confiança e segurança. Infelizmente, parece que o Supremo Tribunal Federal (STF) nem sempre tem atingido esse objetivo.

Em março, a Segunda Turma do STF, ao avaliar a imparcialidade do juiz Sérgio Moro, deu todos os elementos possíveis para que se duvidasse de sua própria imparcialidade. Ao final do julgamento, parecia haver mais dúvidas, e não menos, se a Justiça tinha cumprido sua função de aplicar isentamente a lei.

Agora, assistiu-se a uma nova repetição do fenômeno no julgamento, no plenário da Corte, sobre a competência da 13.ª Vara da Justiça Federal de Curitiba em relação às ações penais contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 

De novo, o maior problema não foi o resultado em si, mas o modo como se chegou a ele.

O caso em julgamento era o Habeas Corpus (HC) 193.726, impetrado no fim de 2020, que discutia a competência de uma ação ajuizada em 2016, sentenciada em 2017, com apelação julgada pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região em 2018 e recurso analisado pelo Superior Tribunal de Justiça em 2019. Em todas essas instâncias – e também no STF, nas várias vezes em que se debruçou sobre o caso –, foi aceita a competência da 13.ª Vara da Justiça Federal de Curitiba.

Registra-se que, em março de 2016, o Ministério Público do Estado de São Paulo denunciou em São Paulo o ex-presidente Lula por crimes envolvendo o triplex do Guarujá. Naquele mesmo mês, a juíza da 4.ª Vara Criminal de São Paulo remeteu a denúncia à Justiça Federal de Curitiba, por entender que lá era o foro competente.

Agora, em 2021, o plenário do STF entendeu que Curitiba não é mais o foro adequado para as ações contra o ex-presidente Lula. A decisão baseou-se em um precedente de 2015 (antes da denúncia, portanto), que, ao analisar o modo como a Lava Jato vinha operando na distribuição das ações, reconheceu que “nenhum órgão jurisdicional pode-se arvorar de juízo universal de todo e qualquer crime relacionado a desvio de verbas para fins político-partidários, à revelia das regras de competência”.

Ou seja, o entendimento aplicado agora já estaria valendo desde 2015. No entanto, ao longo de cinco anos, nenhuma instância do Judiciário viu alguma objeção à competência da 13.ª Vara Federal de Curitiba – objeção essa que agora parece evidente ao plenário do Supremo.

A dificultar a confiança da população na Justiça, o plenário do STF entendeu que a 13.ª Vara da Justiça Federal de Curitiba não é competente para julgar as ações penais envolvendo o ex-presidente Lula, mas ainda não sabe qual é o foro competente: se é a Justiça Federal do Distrito Federal ou a de São Paulo.

Vale notar que a perplexidade em relação ao Supremo não se dá apenas com pessoas distantes do mundo jurídico, como se a causa do estranhamento fosse eventual desconhecimento técnico da Constituição e das leis. De forma um tanto chocante, são os próprios ministros do Supremo que relatam, em suas falas e votos, a confusão que sentem com tantas idas e vindas processuais.

Por exemplo, o ministro Gilmar Mendes lembrou que o próprio HC 193.726, que discutia o juízo natural de ações penais, teve vários juízes naturais. Num primeiro momento, o relator do caso remeteu-o ao plenário do STF. Depois, em embargos de declaração, decidiu o caso monocraticamente. Quatro dias depois da decisão, remeteu o recurso ao plenário, e não à Segunda Turma.

“Não posso deixar passar despercebido o andar trôpego desse processo no que atine a tema fundamental para a prestação jurisdicional, que é a definição do juízo natural. Veja que é um ir e vir realmente macabro, como acabo de registrar”, concluiu Gilmar Mendes.

É simplesmente impossível que o Judiciário consiga, com esse modo de atuar, exercer sua função de pacificar os conflitos sociais. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de abril de 2021 


sábado, 17 de abril de 2021

Brasil registra 2.929 mortes por covid-19 em 24 horas

País já soma mais de 371 mil óbitos ligados ao coronavírus. Secretarias estaduais confirmam ainda 67 mil novos casos, e total de infectados vai a 13,9 milhões.

Cruzes em túmulos de cemitério no Rio de Janeiro

O Brasil registrou oficialmente 2.929 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) neste sábado (17/04).

Também foram confirmados 67.636 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 13.900.091, e os óbitos somam agora 371.678.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números divulgados nos fins de semana também costumam ser mais baixos, uma vez que as equipes responsáveis pela notificação trabalham em escala reduzida.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 12.298.863 pacientes haviam se recuperado da doença até a noite de sexta-feira.

Com os dados de óbitos registrados neste sábado, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 176,9 no país, a 13ª maior do mundo, se excluído o país nanico San Marino.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 566 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (31,6 milhões) e Índia (14,5 milhões).

Ao todo, mais de 140,2 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, segundo números oficiais. Neste sábado, o planeta superou a trágica marca de 3 milhões de mortos na pandemia.

Deutsche Welle Brasil, em 17.04.2021

Mundo supera 3 milhões de mortes por covid-19

Doença fez mais de um milhão de vítimas em três meses desde janeiro, quando foram registrados no planeta 2 milhões de óbitos pelo coronavírus. Brasil segue em segundo lugar em total de mortes, atrás dos EUA.

Pacientes com covid-19 em hospital no Líbano

O número de mortes no mundo atribuídas à covid-19 superou 3 milhões, de acordo com números divulgados pela Universidade Johns Hopkins neste sábado (17/04).

Mais de 1 milhão de pessoas morreram nos três meses decorridos desde 15 de janeiro, quando o número de óbitos atingiu 2 milhões. Foram necessários cerca de nove meses para o primeiro milhão de mortos, registrado em 28 de setembro, e quatro meses e meio para que o mundo chegasse ao próximo milhão.

A pandemia continua a devastar as populações em todo o mundo à medida que mais variantes aparecem e se espalham rapidamente, com algumas aumentando a letalidade do vírus.

As mortes por covid-19 continuaram a aumentar, apesar de meses de campanhas de vacinação. No entanto, países mais ricos foram criticados por acumular doses de vacinas, enquanto nações com grandes populações, como Índia e Brasil, lutam para reduzir as taxas de infecção.

Número real deve ser maior

Embora a contagem seja baseada em números fornecidos por agências governamentais em todo o mundo, acredita-se que o número real seja significativamente maior por causa da falta de testes e de muitas mortes registradas incorretamente, especialmente durante os primeiros meses da pandemia.

Os casos e mortes globais continuam a aumentar, mas não de maneira uniforme em todo o mundo. Alguns países, como o Reino Unido e Portugal, que foram duramente atingidos, conseguiram reduzir o número de casos e suspender bloqueios rígidos.

Outros países viram seus esforços anteriores para controlar o vírus serem frustrados pelas variantes mais novas e contagiosas, como a cepa B117 registrada pela primeira vez no Reino Unido.

A Índia – com uma população de mais de 1,3 bilhão – relatou um recorde de 200 mil novas infecções diárias nesta quinta-feira, após ter conseguido controlar uma onda anterior. O país é o segundo com mais casos de covid-19, depois dos EUA.

Brasil em segundo lugar em óbitos

A Alemanha, foi elogiada durante os primeiros meses da pandemia por sua gestão da crise, relatou também nesta quinta-feira quase 30 mil novos casos – numa população de pouco mais de 80 milhões.

O Brasil é um dos países no mundo mais atingidos pela pandemia. Em número de mortos, está em segundo lugar em número de óbitos, atrás dos EUA (com 566.224 óbitos pela covid-19, segundo a Universidade Johns Hopkins). O país registrou um total de 368.749 mortes por covid-19. Nesta sexta-feira, o Brasil contabilizou oficialmente 3.305 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). Também foram confirmados 85.774 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 13.832.455, a terceira maior taxa mundial de casos de covid-19, atrás de EUA (mais de 31.575) e Índia (mais de 14.526). 

Deutsche Welle Brasil, em 17.04.2021

Gabeira: O som e a fúria em Brasília

Com um governo negacionista como o de Bolsonaro despontamos para o atraso

Não é fácil entender a política brasileira, mas quem se detiver, esta semana, nos dois mais intrincados nós a serem desatados em Brasília talvez chegue a algumas conclusões interessantes. Os dois nós são a CPI da pandemia e a inadequação do Orçamento da União.

No primeiro, o governo é acusado de omissão no processo de combate ao vírus que já nos custou mais de 360 mil vidas e poderá custar 600 mil até julho, segundo prognósticos da Universidade de Washington. Acusações e mesmo investigações sobre a atuação de Bolsonaro na pandemia não são novas. Há processos no Tribunal Internacional de Haia e inquéritos como o das mortes em Manaus, em que Eduardo Pazuello é o principal investigado.

Bolsonaro é acusado de negacionismo e, realmente, tem negado a importância da pandemia desde o início. Era previsível que surgisse uma CPI sobre o tema no Congresso, uma vez que os parlamentares estavam de quarentena, mas não mortos.

Eleito com apoio de Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, bloqueou a instalação da CPI. Quando, numa entrevista, perguntei a razão do bloqueio, ele respondeu com os argumentos usais de que é preciso união, foco no combate à doença. Na verdade, usou o argumento da própria pandemia para negar direitos legais, algo que muitos governos autoritários tentam fazer no mundo.

A reação de Bolsonaro à CPI foi uma nova forma de demonstrar seu negacionismo. Ele sabe que CPI, além do número legal de assinaturas, precisa de fato determinado. Na conversa gravada com o senador Kajuru, ele pede que a investigação seja estendida aos prefeitos e governadores. É preciso investigar tudo, diz ele. E nós sabemos que essa é a senha para não investigar nada.

A proposta é quase tão absurda quanto chamar a covid-19 de gripezinha ou insinuar que a vacina transforma gente em jacaré. O Senado teria de usar seus recursos limitados para investigar todo o Brasil, sabendo que 11 Estados já fazem essa investigação e em dois, Rio de Janeiro e Santa Catarina, os governadores investigados já foram afastados do cargo.

Isso tudo sem contar o fato de que a Polícia Federal trabalha no tema em nove Estados e já recuperou em torno de R$ 7 milhões desviados, até com incursões em gabinetes de governador, como no caso de Helder Barbalho, no Pará.

Bolsonaro convidou o Senado à dispersão de esforços para se proteger. E não satisfeito em lançar mão de Estados e municípios como escudo, quer que se abram processos contra ministros do Supremo.

São duas lições importantes sobre a política no Brasil. Acusados tentam sempre ampliar as investigações para desaparecerem nela, e quase sempre alegam que todos estão errados. No caso, a ideia é pôr a limitada estrutura do Senado a investigar todo o Brasil e, simultaneamente, tentar cassar membros do Poder Judiciário.

Em outras palavras, a melhor maneira de investigar a omissão criminosa de Bolsonaro é uma ofuscante e laboriosa atividade cujo resultado pode ser nulo. É uma nova pirueta do negacionismo. Não houve pandemia, muito menos responsáveis pela mortandade. A CPI seria apenas, como em Macbeth, uma história, contada por idiotas, cheia de som e fúria, significando nada.

O nó do Orçamento também é interessante, por mostrar que se tornou um instrumento tão precário que não serve nem para um desgoverno como esse que existe hoje no Brasil. Negociações medíocres entre governo e Congresso acabaram fazendo a balança pender para alguns ministérios e, sobretudo, para o lado dos parlamentares.

Não se sabe onde vai parar parte do dinheiro da Previdência, do seguro-desemprego, do financiamento da agricultura familiar. O próprio Paulo Guedes afirma que com esse Orçamento é impossível prosseguir e teme até o impeachment de Bolsonaro. Como sempre, a conta está um pouco mais alta: R$ 33 bilhões.

O que é esclarecedor sobre o Brasil são as soluções discutidas nos bastidores. Aí, sim, o observador conhecerá um pouco da nossa cultura, seguindo o debate. Uma das propostas para livrar Bolsonaro de processo é uma viagem ao exterior. O Orçamento seria assinado por Arthur Lira, que já está queimado mesmo e serviria de escudo para o presidente.

Também muito didática é a troca de ideias entre Guedes e os parlamentares. O ministro propõe que sejam cortados os R$ 33 bilhões e se façam ajustes lá na frente. Os parlamentares propõem que sejam mantidos e se façam ajustes lá na frente. Uma ausência tão completa de planejamento é também uma espécie de negação do governo. O Orçamento é apenas para tocar os assuntos correntes.

O problema é que essa ausência de governo real assusta até o mercado. Hoje apenas por ser uma dispendiosa ausência. Logo o próprio mercado sentirá falta de um governo com projetos de renovação pós-pandemia.

Nos Estados Unidos discute-se uma nova relação entre governo e forças produtivas, trabalha-se com a consciência de um desastre climático, aprofunda-se a experiência digital. O Brasil costuma levar alguns anos para se sintonizar com o mundo. Quase sempre foi assim, mas com um governo negacionista certamente despontamos para o atraso.

Fernando Gabeira é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, edição de 16.04.2021

A semente do mal

O presidente faz questão de demonstrar insensibilidade social e desprezo pela lógica. - Bolívar Lamounier no artigo que escreveu para O Estado de S. Paulo, edição de hoje.

“... do mal será queimada a semente/

e o amor será eterno novamente”

Nelson Cavaquinho, em Juízo Final

Para o poeta Manuel Bandeira, o verso “tu pisavas nos astros distraída”, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, é o mais bonito da língua portuguesa. Sem pretender contestar sua avaliação, atrevo-me a pôr o verso de Nelson Cavaquinho mais ou menos no mesmo plano.

A grande diferença é que o verso de Orestes e Sílvio é estritamente lírico; o de Nelson Cavaquinho pode ser lido em qualquer plano, inclusive no social e no político. É essa a linha que tentarei desenvolver neste artigo. Quais são, no momento, os males que precisamos queimar para que o amor de todos em relação a todos possa prevalecer pelo menos como aspiração?

A indagação, como se vê, já traz implícita uma afirmação: a quadra em que nos encontramos não é a do bem. É a do mal.

Começa pela pandemia, sobre a qual poderíamos ter feito muito mais, mas que, estritamente falando, não decorre da maldade que todos temos na alma.

Suponhamos, então, que sejamos capazes de vencer a pandemia em mais alguns meses. A partir daí, qual ou quais males deveremos combater com todas as nossas forças? A estagnação econômica, sem dúvida; a desigualdade de renda e riqueza; os milhões de crianças que mal e mal conseguimos tirar das trevas do analfabetismo. Tudo isso é certo.

Arrisco-me, entretanto, a afirmar que não iremos muito longe se antes não compreendermos o que vem acontecendo no plano das instituições e da política. O mal, como esclareceu Thomas Hobbes (1651), é antes de tudo “a guerra de todos contra todos”, e não há como queimá-la senão construindo e respeitando a institucionalidade política. O homem é o lobo do homem.

Não por acaso, a tradução mais expressiva do verbo latino rebellare é a que surge como nos séculos 17-18, com a doutrina contratualista. Fazendo contraponto com rebelar-se, pegar em armas contra o governo, acepções mais estreitas, os contratualistas passaram a entender rebellare em seu sentido mais literal: “voltar ao estado de guerra”. O contrato social, geralmente codificado em Constituições, estabelece os termos mediante os quais os homens se poriam ao abrigo de instituições de governo, com a condição de que estas também respeitem e cumpram o pacto.

O “amor”, ou pelo menos a paz, o respeito mútuo e a civilidade, permanece como aspiração na medida em que essa condição for observada; se não o for, cedo ou tarde sobrevirão a anarquia, o caos e a guerra civil. A recaída no estado de guerra poderia ser causada por qualquer um dos principais grupos ou instituições que compõem a sociedade, em especial por um governo tirânico, ou por súditos que se recusassem a reconhecer a legitimidade de um governo que fizesse por merecê-la.

Deixando para trás a argumentação abstrata, cumpre-nos, pois, indagar onde, no Brasil de hoje, estão as sementes do mal. Há multidões armadas ocupando as ruas e praças, atacando autoridades, destruindo propriedades e patrimônios? Não, não há. E, no entanto, nenhum cidadão na plenitude de suas faculdades mentais dirá que estamos em paz, convivendo e colaborando uns com os outros como devemos.

É certo que nem todos os males decorrem da ação ou omissão dos atuais titulares das mais altas esferas institucionais. Alguns deles foram em mau momento insculpidos no próprio texto constitucional de 1988, o melhor exemplo sendo, sem dúvida, o inciso LVII do artigo 5.º: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Salta aos olhos que esse dispositivo estabelece que nossa sociedade será regida por duas justiças, uma para os ricos e outra para os pobres. Os que dispuserem de meios para remunerar advogados caros podem protelar indefinidamente, até a prescrição, os processos em que forem enquadrados. Os que não dispuserem caem na categoria dos três pês (pobres, pretos e putas), cujo destino é se amontoarem em masmorras sub-humanas, não raro se entrematando ou se decapitando uns aos outros. Temos como mudar isso? Sim, convocando outra assembleia constituinte, dado que tal alteração exigiria a convocação de outro poder constituinte originário.

A antípoda do trânsito em julgado é a conduta do atual presidente da República, e não só em conexão com o combate à pandemia de covid-19. Nesse particular, o presidente Bolsonaro já defendeu todas as posições concebíveis, como que fazendo questão de demonstrar não só sua insensibilidade social, mas também seu desprezo pela lógica. Contrapondo-se de forma flagrante ao que a Constituição estabelece no tocante à competência da União, dos Estados e municípios, Sua Excelência sabota as ações dos agentes de saúde, movido não só por um instinto semelhante ao de Iago no Otelo de Shakespeare, mas também com o objetivo, claramente, de se manter bem visível no meio do pandemônio da pandemia. A liturgia do cargo, a obrigação de se pôr como símbolo e exemplo para as demais instituições e para a sociedade não parecem passar-lhe pela cabeça.

Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Consultoria Augurium e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências.

A recidiva

Muitos brasileiros tendem a esquecer a tenebrosa passagem do lulopetismo pelo poder, ou a considerar como aceitáveis os desmandos do PT

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 8 votos a 3, anular as condenações impostas ao ex-presidente Lula da Silva na esteira das investigações da Operação Lava Jato. Com isso, o petista está apto a disputar as eleições presidenciais de 2022.

Nada disso significa, é claro, que Lula da Silva seja inocente das acusações que o levaram à condenação por corrupção. O Supremo apenas entendeu que a Justiça Federal de Curitiba, que condenou o ex-presidente, não era o foro competente para julgá-lo.

No entanto, a verdade dos fatos, em se tratando de Lula da Silva, é irrelevante: o demiurgo de Garanhuns e seus devotos já estão tratando a “decisão histórica” do Supremo, nas palavras do advogado do petista, como uma prova cabal não só da inocência do ex-presidente, mas da “perseguição política” que ele sofreu.

Peritos em imposturas, os petistas nem precisavam de ajuda alheia para alimentar essa narrativa, mas mesmo assim o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo, decidiu dar sua colaboração. O magistrado – que entrou no STF pelas mãos do então presidente Lula da Silva – disse que “a história do Brasil poderia ter sido diferente” se a Corte tivesse julgado o caso de Lula como se ele fosse um réu qualquer. Ou seja, o ministro sugeriu que os votos que ajudaram a condenar Lula foram enviesados, e “isso custou ao ex-presidente 580 dias de prisão e causou a impossibilidade de se candidatar a presidente da República”.

Antes de ser um arroubo inconsequente, essa declaração reflete o espírito que certamente norteará a mais que provável candidatura de Lula da Silva a presidente. Ele se apresentará como vítima de uma formidável perseguição das “elites” – rótulo usado pelos petistas para nomear todos os que não votam no PT nem adoram Lula.

Como vítima de uma injustiça – que, repita-se, só existe na fabulação petista –, Lula pode se apresentar como alguém moralmente superior, condição em que tudo o que diz ou faz se torna incontestável. Na semântica autoritária, o petista não é apenas inocente: é o mártir sacrificado no altar do reacionarismo e que agora renasce para “consertar o Brasil”, em suas próprias palavras.

Portanto, se a hipótese da candidatura de Lula se confirmar, como deve acontecer, teremos em 2022 uma disputa entre dois candidatos – o petista e o presidente Jair Bolsonaro – que se apresentam como vítimas: o primeiro, das “elites”; o segundo, dos “inimigos do Brasil”. Nesse cenário, a política partidária institucionalizada não tem lugar, e o debate racional para articular saídas para a imensa crise nacional corre o risco de ser interditado pela gritaria populista. E os cidadãos de bem deste país serão, mais uma vez, as verdadeiras vítimas, como sempre, da mediocridade, da ignorância e da má-fé.

De certa forma, os muitos excessos do lavajatismo não apenas alimentaram o clima que viabilizou a vitória de Bolsonaro em 2018, como, agora, permitiram que Lula da Silva revigorasse sua força eleitoral e política, que vinha declinando depois de tantos anos de corrupção e desastre econômico. E esse Lula tonificado aparece como caudilho a reivindicar reparação histórica, tal como exposto no voto do ministro Lewandowski. Quem haveria de contrariar os devaneios cesaristas de um governante surgido dessa injunção?

A renovada força eleitoral de Lula deriva também do fato de que, imersos no pesadelo do governo de Jair Bolsonaro, muitos brasileiros tendem a esquecer a tenebrosa passagem do lulopetismo pelo poder, ou então a considerar como aceitáveis os desmandos do PT se comparados ao descalabro bolsonarista. Por isso, nunca é demais advertir que a recidiva costuma ser muito pior do que a doença – que, recorde-se, consumiu o País em escândalos e, graças à natureza demagógica do lulopetismo, atrasou dramaticamente o desenvolvimento nacional.

Um aperitivo do que está por vir foi dado numa entrevista que Lula da Silva deu ao jornal espanhol El País: segundo o chefão petista, seu tempo no governo “foi o melhor momento da América Latina desde Colombo”.

Fosse na época em que mandava e desmandava, Lula da Silva teria dito que seu tempo foi o melhor desde a Criação. Mas o demiurgo de Garanhuns está mais modesto.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 17 de abril de 2021 


sexta-feira, 16 de abril de 2021

Radiografia da irresponsabilidade

Análise do TCU sobre o trabalho do Ministério da Saúde na pandemia é uma radiografia da irresponsabilidade do governo

O Tribunal de Contas da União (TCU) apresentou na quarta-feira um contundente relatório de avaliação acerca do trabalho do Ministério da Saúde no combate à pandemia de covid-19. Trata-se da mais nítida radiografia já produzida até aqui acerca da irresponsabilidade do governo federal na administração da crise. Conclui-se que o Ministério da Saúde empenhou-se mais em livrar-se de suas obrigações do que em organizar o combate à pandemia, que obviamente é sua atribuição precípua.

Quadro semelhante se observa na ação que o Ministério Público Federal (MPF) moveu, também na quarta-feira, contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Depois de uma investigação de três meses, o MPF decidiu acusar o intendente e mais cinco dirigentes do Ministério de improbidade administrativa por “omissões sucessivas” e lentidão na tomada de decisões, num cenário de recrudescimento da pandemia.

Recorde-se que Pazuello já é objeto de inquérito da Polícia Federal, que apura sua parcela de responsabilidade, como ministro da Saúde, pela falta de cilindros de oxigênio para o tratamento de doentes de covid-19 em Manaus, o que resultou em dezenas de mortes por asfixia. E o intendente provavelmente será chamado a depor na recém-instalada Comissão Parlamentar de Inquérito que investigará as ações e omissões do governo na pandemia.

Aos poucos, portanto, o governo do presidente Jair Bolsonaro começa a ser finalmente pressionado a responder, nos âmbitos judicial e político, por seu comportamento inconsequente, quando não delinquente, diante da pandemia. Os mais de 360 mil mortos e o total descontrole do vírus, com efeitos dramáticos sobre a economia, não são fruto do acaso.

“Envergonha-nos a gestão que o Ministério da Saúde vem realizando com relação a esse quadro tenebroso da crise da covid-19”, disse o ministro Bruno Dantas, do TCU, durante a apresentação do relatório. Ele cobrou a responsabilização imediata dos gestores do Ministério arrolados no processo, a começar por Pazuello, mas sugeriu que a atribuição de culpa pode atingir o chefe do então ministro: “Até o rei pode ser responsabilizado”.

Não seria absurdo, uma vez que o intendente Pazuello – aquele que manifestou publicamente obediência total a Bolsonaro – não agiria do modo infame como agiu se não contasse ao menos com o aval do presidente, que desde sempre se comportou como se não tivesse nada a ver com a crise.

O resultado de tamanha omissão foi detalhado pelo relator do processo, ministro Benjamin Zymler: “A segunda onda (da pandemia) era anunciada e exigia preparo, o que não aconteceu. A comunicação não ocorreu. A testagem não ocorreu”. Também não ocorreram ações de estímulo ao distanciamento social, ao mesmo tempo que o Ministério fez campanha para “o uso de medicamentos com eficiência duvidosa”, menosprezando seus efeitos adversos, como destaca o Ministério Público em sua ação.

O conjunto de investigações sobre a conduta do governo Bolsonaro ganha especial importância no momento em que uma CPI se dedicará ao assunto. O presidente demonstrou preocupação com o cerco, ao subir o tom de suas ameaças contra outros Poderes.

Fora a gritaria, Bolsonaro provavelmente conta com a proteção do Centrão, mas deveria saber que essa proteção não é garantida, pois, à medida que a crise se amplia e o cerco se fecha, o preço do apoio do Centrão sobe. Bolsonaro pode se tornar politicamente insolvente se resolver contrariar os senhores de seu governo e, por receio de cometer crime de responsabilidade, vetar o Orçamento maquiado para acomodar emendas parlamentares. Conforme noticiou o Estado, o presidente da Câmara, Arthur Lira, prócer do Centrão, avisou Bolsonaro que, se houver veto, o governo não aprovará mais nada no Congresso. Ou seja, anuncia-se, com todas as letras, que após o tombo virá o coice.

Assim, mesmo tendo se empenhado nos últimos tempos em construir uma rede de apoio no Supremo, no Congresso e nos órgãos de fiscalização e controle, o presidente enfrenta o desgaste de quem decidiu abrir várias frentes simultâneas de guerra. A única guerra que ele deliberadamente decidiu não lutar é contra o vírus – mas o País começa a se mobilizar para responsabilizá-lo por sua deserção.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 16 de abril de 2021 | 03h00

Cuba vira página histórica com despedida de Raúl Castro

Por 62 anos, os Castro escreveram a história da nação socialista caribenha. Aposentadoria do irmão mais novo de Fidel marca o início de uma nova era no comando do país.

Raúl Castro assumiu em 2006 todos os cargos de seu irmão Fidel provisoriamente e, em 2008, de forma definitiva

Após mais de 60 anos, a era castrista em Cuba finalmente chega ao fim. Aos 89 anos, Raúl Castro deve se despedir da política e renunciar ao cargo de presidente do partido durante o congresso do Partido Comunista de Cuba (PCC), que começa em Havana nesta sexta-feira (16/04) e vai até a próxima segunda.

Em 2006, ele assumiu todos os cargos de seu irmão Fidel Castro, inicialmente de forma provisória e em 2008, definitivamente. Será que a mudança de geração mudará a política cubana?

Mesmo que 2021 pudesse se tornar um ano importante na história da ilha comunista caribenha, Cuba ainda parece impensável sem os Castro, sob cuja liderança os revolucionários cubanos conquistaram a capital Havana em 1º de janeiro de 1959, pondo fim à ditadura do governante apoiado pelos Estados Unidos Fulgencio Batista.

Raúl Castro estava entre os combatentes de primeira hora. A revolução uniu os dois irmãos ideológica e politicamente e levou a uma cooperação vitalícia. Raúl Castro sempre foi ofuscado por Fidel, mas a partir de 1959 deu sua contribuição ao "socialismo tropical", como ministro das Forças Armadas Revolucionárias e vice-presidente do Conselho de Estado.

Também foi Raúl Castro quem implementou a reaproximação de Cuba com a União Soviética após a revolução. Moscou estabeleceu relações diplomáticas com o país comunista já em 1960. Depois que os EUA baniram, em outubro de 1960, as exportações de petróleo para Cuba e todas as importações de itens cubanos pelos EUA, Moscou se destacou no meio da Guerra Fria como uma importante potência protetora econômica e política.

Embargo em 1960

O bloqueio comercial dos Estados Unidos contra Cuba, até hoje em vigor, começou com o embargo imposto em outubro de 1960. O então presidente dos EUA, Dwight D. Eisenhower, impôs o embargo em retaliação à expropriação sem indenização de fazendas, bancos e refinarias dos Estados Unidos em Cuba.

O que começou com a proibição de exportação de petróleo dos EUA para Cuba e a proibição de importação de açúcar cubano para os EUA se expandiu cada vez mais nos anos seguintes e intensificou os gargalos de abastecimento na ilha.

Em 1992, o Congresso dos Estados Unidos endureceu o embargo com a chamada "Lei da Democracia Cubana". A lei estipulava que as empresas americanas não podiam mais negociar com Cuba também em países terceiros e que a maioria dos voos charter entre Miami e Havana deveria ser suspensa.

Em 2016, Obama se tornou o primeiro presidente dos EUA em 88 anos a fazer uma visita de Estado a Havana

Um ano depois, a Assembleia Geral da ONU pediu aos Estados Unidos, por 88 votos a favor e 57 abstenções, a suspensão do embargo. Mas Washington negou. Em novembro de 2018, a Assembleia Geral da ONU votou novamente pelo fim das sanções. Mas o que aconteceu foi o contrário.

Sob o presidente americano Donald Trump, as sanções contra Cuba ficaram ainda mais severas. Trump não apenas frustrou as esperanças de um fim ao embargo, mas também de uma reaproximação entre os dois países.

Poucos anos antes, tudo parecia completamente diferente: com intermédio do papa Francisco, ocorreu em 2014 um intercâmbio pessoal entre Raúl Castro e o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que levou à retomada das relações diplomáticas entre os dois países em 20 de julho de 2015.

Reaproximação

Em 20 de março de 2016, Obama se tornou o primeiro presidente dos Estados Unidos em 88 anos a fazer uma visita de Estado a Havana e foi recebido com entusiasmo. Ele relaxou algumas restrições ao embargo dos EUA cuja decisão não dependia da aprovação do Congresso dos EUA. Ele facilitou viagens para os cidadãos americanos e investimentos para as empresas americanas. E também removeu Cuba da lista americana de países terroristas.

Especialistas em Cuba como Bert Hoffmann, do Instituto Alemão de Estudos Globais e Regionais (Giga), vêm apontando há anos os efeitos contraproducentes do embargo, argumentando que ele não só ajudou os irmãos Castro a consolidarem seu poder, já que justificaram seu governo autoritário com o perigo iminente dos EUA.

O bloqueio também contribui para que as empresas americanas percam o mercado nas imediações para concorrentes originárias da Rússia e da China. A chinesa Huawei, por exemplo, está envolvida na expansão da infraestrutura de internet em Cuba.

À beira do colapso

Após a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, Cuba estava à beira do colapso econômico. Entre 1989 e 1992, a economia do país encolheu 50%, cortes de energia e gargalos no fornecimento estavam na ordem do dia, e as fábricas tiveram que fechar. Neste chamado "período especial", os irmãos Castro viram-se obrigados a abrir a economia à iniciativa privada e a permitir as chamadas feiras livres, que na realidade estavam proibidas desde 1986.

Encontro entre papa João Paulo 2° e Fidel Castro em 1998 foi considerado uma sensação

Durante este "período especial", Cuba recebeu a visita do papa João Paulo 2°, em 21 de janeiro de 1998. O encontro do anticomunista polonês do Vaticano com Fidel Castro foi considerado uma sensação. Castro estava procurava no papa um aliado em sua luta contra o capitalismo e os poderosos EUA e estava pronto para fazer algumas concessões por isso.

Assim, o "comandante en jefe" e ateu declarado reintroduziu os feriados de Natal antes da chegada do papa e libertou centenas de dissidentes. A posição da Igreja Católica foi fortalecida pela visita. Entre outras coisas, ela pôde usufruir de escassos suprimentos de papel e imprimir comunicados paroquiais, que também ofereciam uma plataforma às forças da oposição na ilha. Como resultado, ela se tornou uma mediadora entre o governo e a oposição.

A mediação para a aproximação entre Raúl Castro e Obama, por meio do papa Francisco, mostrou de forma impressionante como a linha entre Havana e o Vaticano pode funcionar. Como então vice-presidente, Joe Biden apoiou a reaproximação entre Washington e Havana. Como católico e apoiador do papa Francisco, Biden também cita repetidamente as posições do papa sobre as mudanças climáticas e a solidariedade com os pobres e refugiados.

O especialista em Cuba Günther Maihold, do Instituto de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), com sede em Berlim, avalia que a política cubana de Biden deve ter "uma influência decisiva sobre a rapidez e a forma com que a mudança ocorrerá após Raúl Castro sair da cena política em Cuba".

Guantánamo

Biden definitivamente vai querer concluir um projeto do antecessor Obama: o fechamento do polêmico campo de prisioneiros de Guantánamo, criado em 2002 na base naval da Baía de Guantánamo. A área foi arrendada aos Estados Unidos pelo Estado cubano em 1903, mas Havana considera o contrato inválido. Existem atualmente cerca de 40 presos no lugar. Biden depende da aprovação do Congresso americano para fechar o campo de prisioneiros.

Enquanto uma "velha raposa" se mudou para a Casa Branca nos EUA, uma mudança de geração está ocorrendo em Cuba, após 62 anos do regime dos irmãos Castro. O novo chefe do Partido Comunista de Cuba, a ser eleito no 8º Congresso do PCC, não terá o nome Castro. A ilha socialista terá que encontrar um novo rumo em meio à pandemia, à crise econômica e à reforma monetária.

E terá que defender um dos legados mais importantes e mundialmente reconhecidos da revolução: o sistema de saúde cubano. Ele não apenas colocou Cuba em pé de igualdade com os países industrializados ricos em todos os indicadores sanitários. Também contribuiu para que médicos e enfermeiros cubanos sejam empregados no combate de epidemias em todo o mundo.


1959 - A revolução triunfa / Fidel e suas tropas

Os rebeldes liderados por Fidel Castro chegam ao poder depois de derrubar o ditador Fulgencio Batista em janeiro. Os EUA reconhecem o novo governo. Logo, "leis revolucionárias" (como a reforma agrária) afetam empresas americanas. Em dezembro, o presidente republicano Dwight D. Eisenhower aprova um plano da CIA para derrubar Castro em um ano e substitui-lo por "uma junta amiga dos EUA".

Deutsche Welle Brasil, em 16.04.2021

"Brasil vive uma de suas provas mais difíceis", diz o Papa

Francisco manifesta solidariedade com familiares de mortos pela covid-19 no país, apontando que "pandemia não excluiu ninguém no seu rastro de sofrimento". Crise só será superada com união, afirma.

"É possível superar a pandemia. Mas só o conseguiremos se estivermos unidos", diz papa Francisco

O papa Francisco manifestou nesta quinta-feira (15/04) solidariedade com as centenas de milhares de famílias que sofrem com a perda de um ente querido no momento em que o Brasil enfrenta "uma das provas mais difíceis da sua história" devido à pandemia de covid-19.

Francisco falou sobre a grave situação no Brasil numa mensagem em vídeo enviada aos participantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que desta vez reúne 485 bispos de forma virtual.

"Jovens e idosos, pais e mães, médicos e voluntários, ministros sagrados, ricos e pobres: a pandemia não excluiu ninguém no seu rastro de sofrimento", afirmou o pontífice. Ele pediu a Deus que conforte os familiares das vítimas da covid-19, lembrando que muitos sequer puderam se despedir.

O papa convidou os bispos a acompanhar o povo que sofre e a dar consolo aos familiares. "A caridade nos urge a chorar com os que choram e a dar uma mão, sobretudo aos mais necessitados, para que voltem a sorrir."

Francisco disse que atuar como "instrumento de reconciliação e unidade" é a missão da Igreja Católica no Brasil, "hoje mais do que nunca". O pontífice instou a Igreja a deixar suas "divisões e desacordos” e a ser um "exemplo de humanidade”.

Dessa forma, continuou, a sociedade e os governantes do Brasil serão inspirados a "trabalhar juntos para superar não só o coronavírus, mas também outro vírus, que há muito infeta a humanidade: o vírus da indiferença, que nasce do egoísmo e gera injustiça social". 

"É possível superar a pandemia. É possível superar suas consequências, mas só o conseguiremos se estivermos unidos", disse o papa. "A conferência episcopal deve ser uma neste momento, pois o povo que sofre é um."

Com mais de 365 mil mortos, o Brasil é o segundo país com mais óbitos ligados à covid-19 no mundo, depois dos Estados Unidos. O número de infectados passa de 13,7 milhões, fazendo do país o terceiro em número de casos, depois dos EUA e da Índia.

O Brasil vive o pior momento da pandemia, com hospitais sobrecarregados e filas por leitos de UTI. Março foi o mês mais mortal da epidemia no país, com mais de 66 mil óbitos, e especialistas afirmam que abril terminará com um saldo ainda pior.

Deutsche Welle Brasil, em 16.04.2021

Estoques de kit intubação estão em nível de "pré-colapso"

Escassez força equipes a diluir remédios e amarrar pacientes. Ministério da Saúde centralizou distribuição, mas enfrenta dificuldade para comprar novas doses

Enfermeiros tratam homem em UTI de covid

Entidades apontam que diversas unidades de saúde estão com estoques zerados do insumo

Um número cada vez maior de hospitais no Brasil relata estoques vazios ou muito baixos de medicamentos necessários para fazer a intubação de pacientes de covid-19 em estado grave.

A escassez tem obrigado algumas equipes médicas a diluir remédios ou amarrar doentes aos leitos, e a crise deve se alongar diante do alto número de novos casos da doença e da dificuldade do governo federal para comprar o insumo.

Assim como ocorreu com a falta de oxigênio hospitalar e a lentidão na compra de vacinas, o fornecimento dos medicamentos também provoca confrontos entre o Ministério da Saúde o governadores.

O chamado kit intubação é composto por bloqueador neuromuscular, que relaxa os músculos e a caixa torácica do paciente para que o tubo de respiração seja inserido e permaneça no local, e sedativos para manter a pessoa sem dor e em coma induzido até que ela seja retirada do respirador.

Sem o bloqueador neuromuscular, a inserção do tubo é praticamente inviabilizada e pode se assemelhar a uma tortura. Sem o sedativo, os pacientes enfrentam dor, mantêm a consciência e podem ter que ser amarrados ao leito para não arrancarem o tubo.

Na quinta-feira (15/04), o Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde, que representa entidades que gerenciam mais de 800 unidades públicas de saúde, informou em carta aberta que os estoques do kit intubação estão em nível "extremamente crítico de pré-colapso" e que algumas unidades tinham insumos suficiente para apenas 24 horas.

No mesmo dia, o Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems) informou que 68% dos serviços de saúde sob gestão municipal nas cidades paulistas estavam sem bloqueadores musculares e outros 10,6% tinham estoque para no máximo sete dias. Em relação aos sedativos, 61,6% estavam com o estoque zerado e 13,6% tinham insumos para até sete dias, situação pior que a do levantamento anterior, de 5 de abril.

Casos se multiplicam

Profissionais de saúde de dois hospitais públicos do estado do Rio de Janeiro relataram falta de sedativos e a necessidade de amarrar os pacientes ao leito em reportagem veiculada pela Rede Globo nesta sexta. "Eles sofrem porque ficam acordados. E nós, como profissionais, ficamos muito tristes de estar prestando esse tipo de atendimento”, afirmou um profissional, sob anonimato.

À agência de notícias AP, um médico do hospital Albert Schweitzer, gerenciado pela prefeitura do Rio, que também preferiu não se identificar, afirmou que os profissionais passaram dias diluindo sedativos para fazê-los render mais e que, quando o estoque acabou, tiveram que amarrar as pessoas. "Alguns [pacientes] tentam falar, resistir. Eles estão conscientes", disse.

Para contornar a escassez, alguns hospitais vêm usando medicamentos alternativos, de tecnologia antiga ou com maior probabilidade de efeitos colaterais. "O último caso é fazer o procedimento sem eles. Mas intubar um paciente sem sedativo ou relaxante é tortura, não podemos aceitar”, disse o presidente do Consems, Geraldo Reple, ao jornal Folha de S.Paulo.

A Santa Casa de São Carlos, no interior paulista, decidiu no início de março desativar seis de seus 30 leitos de UTI destinados a pacientes com covid para economizar medicamentos necessários ao atendimento. "Se esses leitos estivessem ocupados agora, certamente estaríamos sem medicações", afirmou à BBC Brasil o diretor-técnico do hospital, Vitor Marim.

Situação parecida ocorre em outras cidades. A Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes do Estado de São Paulo, que reúne 180 unidades, informou nesta semana que seus hospitais têm um estoque médio do kit intubação para três a cinco dias.

Ministério centralizou distribuição

Os alertas sobre a falta do kit intubação vinham sendo disparados por gestores e entidades da área de saúde há várias semanas, e o problema se tornou mais um ponto de confronto entre governadores e o Ministério da Saúde.

Em 18 de março, o coordenador do Fórum Nacional de Governadores, Wellington Dias (PT), governador do Piauí, enviou ofício ao Ministério da Saúde alertando para a situação grave dos estoques em 18 estados.

Diante da crise, o Ministério da Saúde requisitou a todas as empresas no país que produzem os medicamentos que entregassem seus estoques ao governo federal, que então centralizaria a distribuição aos estados e municípios. A ordem levou ao cancelamento de entregas a unidades de saúde que haviam feito compras com antecedência.

Nesta terça, o governo de São Paulo enviou ofício ao Ministério da Saúde afirmando que os estoques do kit intubação no estado estavam em situação "gravíssima, isto é, na iminência do colapso", e que faltaria medicamentos "a partir dos próximos dias" se não fossem enviadas doses. Foi o nono ofício do tipo em 40 dias enviado pelo governo paulista a Brasília.

O governador do estado, João Doria (PSDB), também afirmou que a decisão do Ministério da Saúde de requisitar os medicamentos era um "gravíssimo erro" e que a quantidade entregue de insumos seria "inexpressiva" em relação ao que havia sido confiscado.

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que assumiu o cargo quando a crise do kit intubação já era grave, rebateu Doria nesta quinta, dizendo que os estados, sobretudo os mais ricos, deveriam também comprar esses medicamentos no exterior.

"Não é só empurrar isso [a responsabilidade] para as costas dos Ministérios da Saúde. (...) Não adianta só ficar enviando ofício ao Ministério da Saúde, temos que trabalhar juntos", disse Quiroga. Doria afirmou que comprará esses medicamentos no exterior, mas não deu detalhes sobre prazo de entrega.

Dificuldade de compra

A escassez do kit intubação não deve ser solucionada rapidamente. A média móvel de novas mortes por covid, acima de 3 mil, está no pior patamar desde o início da pandemia e não dá sinais de recuo. A média móvel de novos casos também segue elevada, próxima aos 70 mil por dia. A demanda por medicamentos para fazer a intubação de pacientes, portanto, seguirá alta.

Por outro lado, o Ministério da Saúde está com estoques baixos e tem enfrentado dificuldade para comprar mais doses. Uma nota técnica da pasta datada desta segunda, revelada pelo jornal O Estado de S. Paulo, informa que o governo decidiu comprar no final de março 186 milhões de doses do kit, suficiente para seis meses, mas até o momento só conseguiu comprar 32,5 milhões, ou 17% do montante. Em março, o consumo médio mensal no país foi de 34,2 milhões de doses do kit intubação.

O governo também conta com doações, mas em volume ainda muito inferior à necessidade. Um grupo de empresas formado por Engie, Itaú Unibanco, Klabin, Petrobas e Vale comprou um lote de 2,3 milhões doses do kit intubação da China, que chegou no Brasil na noite de quinta-feira e será repassado aos estados nos próximos dias.

O Ministério da Saúde informou que enviaria a São Paulo 407,5 mil dessas doses, 17,7% do que o governo paulista havia solicitado de forma emergencial e suficiente para 3,5 dias. Outras 324 mil doses serão entregues para o Rio de Janeiro, suficientes para 7 dias, segundo o governo fluminense.

Deutsche Welle Brasil, em 16.04.2021

Brasil tem 3.305 mortes por covid-19 em 24 horas

Ao todo, mais de 368 mil pessoas morreram devido ao coronavírus no país. Balanço oficial confirma ainda 85 mil novos casos, e total de infectados chega a 13,83 milhões.

    
Funcionária de hospital em Belém reza em frente a leito

O Brasil registrou oficialmente 3.305 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta sexta-feira (16/04).

Também foram confirmados 85.774 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 13.832.455, e os óbitos somam agora 368.749.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 12.236.295 pacientes haviam se recuperado da doença até a noite de quinta-feira.

Com os dados de óbitos registrados nesta sexta, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 175,5 no país, a 11ª maior do mundo, se excluído o país nanico San Marino.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 565 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (31,5 milhões) e Índia (14,2 milhões).

Ao todo, mais de 139,4 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus em todo o mundo, segundo números oficiais, e 2,99 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 16.04.2021

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Brasil registra mais 3.560 mortes por covid-19

País soma agora 365 mil óbitos ligados ao coronavírus. Secretarias estaduais confirmam ainda 73 mil casos em 24 horas, e total de infectados chega a 13,74 milhões.

Caixão é enterrado em cemitério de São Paulo

O Brasil registrou oficialmente 3.560 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta quinta-feira (15/04).

Também foram confirmados 73.174 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 13.746.681, e os óbitos somam agora 365.444.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 12.170.771 pacientes haviam se recuperado da doença até a noite de quarta-feira.

Com os dados de óbitos registrados nesta quinta, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 173,9 no país, a 13ª maior do mundo, se excluído o país nanico San Marino.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 565 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (31,4 milhões) e Índia (14 milhões).

Ao todo, mais de 138,6 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus em todo o mundo, segundo números oficiais, e 2,97 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 15.04.2021

STF confirma anulação das condenações de Lula na Lava Jato

Plenário do Supremo referenda decisão de Fachin que considerou a 13ª Vara Federal de Curitiba incompetente para julgar ações contra o ex-presidente. Com isso, petista retoma o direito de disputar eleições em 2022.

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou nesta quinta-feira (15/04), por 8 votos a 3, a decisão do ministro Edson Fachin que anulou todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no âmbito da Operação Lava Jato em Curitiba.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva

Ao derrubar as sentenças, a decisão retira o ex-presidente do alcance da Lei da Ficha Limpa, devolvendo assim seu direito de disputar eleições.

Em 8 de março, Fachin concluiu que a 13ª Vara Federal de Curitiba, que esteve sob o comando do então juiz Sergio Moro durante a maior parte da Lava Jato, não era competente para analisar e julgar as quatro ações penais que corriam ali contra o petista: a do triplex do Guarujá, a do sítio em Atibaia, a compra de um terreno para o Instituto Lula e doações feitas para o instituto.

Em seu voto nesta quinta-feira, o relator Fachin reforçou que as ações não estão diretamente relacionadas à corrupção na Petrobras – foco inicial da Lava Jato – e, por isso, não deveriam ter sido julgadas em Curitiba.

O ministro Alexandre de Morais foi o primeiro a seguir o voto do relator, favorável à anulação das condenações. Depois dele, também votaram a favor de Lula os ministros Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Luís Roberto Barroso.

Kassio Nunes Marques, Marco Aurélio Mello e o presidente da Corte, Luiz Fux, divergiram do voto de Fachin. Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o posto no STF, Nunes Marques alegou que as investigações contra o petista na Vara de Curitiba estão ligadas a crimes cometidos na Petrobras e não devem ser anuladas.

Processos encaminhados

Em sua decisão em março, Fachin, que é relator da Lava Jato no Supremo, determinou que os processos contra Lula fossem encaminhados à Justiça Federal no Distrito Federal, e que o novo juiz dos casos avalie se aproveitará parte dos atos processuais realizados em Curitiba, como depoimentos ou coleta de provas.

O habeas corpus havia sido impetrado pelos advogados do ex-presidente, Cristiano Zanin e Valeska Martins, em 3 de novembro de 2020.

Lula foi impedido de se candidatar à Presidência em 2018 porque havia sido condenado em primeira e segunda instância no caso do tríplex, julgado por Moro. A pena do petista no caso foi inicialmente de 12 anos e 7 meses – posteriormente reduzida para 8 anos e 10 meses pelo Superior Tribunal de Justiça. Lula chegou a ficar preso por um ano e sete meses.

Deutsche Welle Brasil, em 15.04.2021

Bolsonaro diz esperar 'sinal' de apoio do povo. Que povo?

‘O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu tenho que tomar providências. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização. Porque a fome, a miséria, o desemprego estão aí, pô. Só não vê quem não quer’, afirmou o presidente Jair Bolsonaro, na manhã da quarta-feira, à sua claque de plantão na porta do Palácio da Alvorada. / Comentário de Malu Gaspar n'O Globo hoje.

O presidente da República, Jair Bolsonaro, durante discurso no Palácio do Planalto no dia 31 de março. Crédito da foto: Evaristo Sá/AFP)

“Esse pessoal, amigos do Supremo Tribunal Federal… Daqui a pouco vamos ter uma crise enorme aqui”, continuou. “Parece que é um barril de pólvora que está aí. E tem gente de paletó e gravata que não quer enxergar.”

Tudo o que Bolsonaro disse ali, ele já falou com outras palavras, em outras ocasiões. O golpismo continua, mas há algo diferente. O tom beligerante de um ano atrás deu lugar à desorientação e ao cansaço, e até o apelo ao povo sai sem muita convicção.

Embora o discurso para as redes bolsonaristas ainda seja triunfante e desafiador, o presidente no fundo sabe que não há nada de tão explosivo para acontecer, afora a tragédia sanitária da Covid-19, que já fez mais de 360 mil vítimas fatais. O capitão percebe, também, que seu “povo” não lhe dará nenhuma mostra de apoio mais enfática do que as já prestadas em manifestações de rua e buzinaços.

Não que elas tenham sido desprezíveis. O “mito” não deixou de ter seu público cativo. Até agora, porém, esse contingente não foi capaz de evitar a crise em que Bolsonaro se afundou.

O que o presidente da República mais precisa agora é de uma solução para o impasse em torno do Orçamento para 2021, que veio do Congresso com previsão de gastos acima do teto legal permitido, a maior parte com emendas parlamentares. Se não cortar despesas, Bolsonaro corre o risco de ser processado por crime de responsabilidade e de sofrer impeachment. Mas, se cortá-las, entra em colisão com o Congresso, que acaba de abrir uma CPI para apurar responsabilidades pelos erros na condução do governo na pandemia.

Na guerra feroz dos bastidores, líderes do Parlamento e ministros palacianos não aceitam cortes além de certo limite, considerado o mínimo necessário para deputados e senadores gastarem no “Orçamento da reeleição”. A equipe econômica defende os cortes, mas tem em Paulo Guedes um chefe politicamente cambaleante, que sofre ataques e humilhações de todos os lados, mas justifica o apego ao cargo com variações do “ruim comigo, pior sem mim”.

Embora já tenha enfrentado outras crises, Guedes nunca pareceu tão vulnerável. E não só aos olhos dos colegas de Esplanada, mas também aos dos operadores do mercado, que já especulam quem pode vir a substituí-lo. Isso diz muito não só sobre o ministro, mas também sobre o próprio presidente. Se Bolsonaro manteve o “posto Ipiranga” até hoje, foi por acreditar que abrir mão dele seria admitir uma derrota política de que talvez não pudesse se recuperar. Ele sabe que o Centrão está à espreita, esperando a vaga abrir para ocupá-la.

Nesse contexto, a fala de Fernando Collor de Mello contra a CPI da Covid, na sessão do Senado que a instalou, na última terça-feira, ganha contornos especialmente simbólicos. “Temos que ter consciência do momento que vivemos. Falo isso como alguém que já passou e viveu episódios dramáticos da vida nacional”, disse o ex-presidente, afastado depois que uma CPI desnudou as relações espúrias de seu operador, PC Farias, com a elite empresarial da época.

Há muitas diferenças entre a situação de Bolsonaro e a de Collor pré-impeachment, até porque, em 1992, a ameaça à sobrevivência dos brasileiros era “só” a inflação alta. Escândalos de corrupção abalavam o país, mas não havia centenas de milhares de mortes assombrando o Planalto. 

Mas há também semelhanças. A primeira é um governo em frangalhos, com os ministros que realmente importam se unindo em torno do presidente por poder e dinheiro. A segunda é uma CPI com maioria de membros da oposição, prestes a dar o bote.

Por fim, há um presidente acuado, que convoca o povo para ir às ruas apoiá-lo usando verde e amarelo. “Vamos mostrar a essa minoria que intranquiliza diariamente o país que já é hora de dar um basta a tudo isso”, disse Collor em agosto de 1992. “A sociedade quer tranquilidade para poder trabalhar.” Em resposta, o povo foi às ruas de preto, e Collor saiu do Planalto pelos fundos semanas depois.

Não há, por ora, sinais de que o destino de Bolsonaro será o mesmo. Mas já está claro que esse povo de quem o presidente espera sinais pouco pode fazer para salvá-lo. A esta altura, o único “povo” que pode tirar o presidente do corner é justamente essa gente que está de paletó e gravata, cercando seu gabinete em Brasília. Resta saber se ela o fará.

MALU GASPAR, Jornalista formada pela USP, cobriu política e economia nos principais veículos do país. Escritora, lançou dois livros: "Tudo ou Nada: Eike Batista e a Verdadeira História do grupo X" e "A Organização: a Odebrecht e o Esquema de Corrupção que Chocou o Mundo". Publicado originalmente n'O Globo, em 15.04.2021.

Governo Bolsonaro é o maior culpado por erros na pandemia no Brasil, indica estudo publicado na revista Science

Trabalho sai na mesma semana em que o Senado prepara CPI para investigar equívocos do governo federal na resposta à Covid-19

Cemitério Parque Taruma, em Manaus, Amazonas Foto: BRUNO KELLY/Reuters / BRUNO KELLY/Reuters

O fracasso brasileiro no combate à pandemia pode ser parcialmente atribuído a falhas de gestores públicos em diferentes lugares, mas o peso do governo federal tem um tamanho proporcionalmente muito maior na tragédia. A conclusão é de um estudo assinado por dez cientistas do Brasil e dos EUA, liderado pela demógrafa Márcia Castro, professora da Universidade Harvard, publicado na revista Science, vitrine da ciência mundial.

O trabalho, que mapeou o espalhamento da doença com detalhes no Brasil entre fevereiro e outubro do ano passado, sai na mesma semana em que o Senado prepara uma CPI (comissão parlamentar de inquérito) para investigar a responsabilidade por equívocos na resposta à epidemia. Alavancada por outros estudos realizados antes, a pesquisa mostra houve grande variedade na qualidade da resposta à pandemia, e isso é uma marca típica de problemas de "omissão" e "erro" do governo federal, porque o Ministério da Saúde e o SUS são os grandes responsáveis por atenuar as desigualdades regionais nas políticas de saúde.

Bolsonaro defendeu o uso de cloroquina em lives Foto: Reprodução

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"Apesar de nenhuma narrativa única explicar a diversidade do espalhamento do vírus no Brasil, uma falha maior em implementar respostas ágeis, coordenadas e equânimes no contexto de desigualdades locais marcantes alimentou a disseminação da doença", escrevem os pesquisadores que apontam cinco ingredientes capazes de explicar por que o país foi tão mal na resposta à pandemia.

Se o primeiro ingrediente da falha foi a própria desigualdade já instalada no país, outros são problemas mais relacionados ao momento político que o país vive.

O segundo problema foi a falta de bloqueios que pudessem evitar o espalhamento da doença entre municípios e estados, porque o Brasil é um país grande e relativamente bem conectado. O terceiro ingrediente foi o fator político em si, porque cidades e estados governados por aliados do presidente Jair Bolsonaro tomaram menos ações, e a polarização ideológica prejudicou a adesão a medidas.

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O quarto elemento (o mais bem documentado no estudo de Márcia Castro) é a falha de testagem e acompanhamento da epidemia, com várias cidades tendo começado a registrar alta nas mortes por Covid-19 antes da alta de casos.

— Isso tem a ver com questões de notificação e de falha na vigilância, porque não faz sentido que seja assim. Os casos precisam aparecer antes das mortes — diz Castro, lembrando que se estima que o vírus tenha circulado por mais de um mês no país antes de ser detectado.

O quinto ingrediente, finalmente, foi a falta de sincronia nas medidas de distanciamento e contenção do vírus. A falta de uma política nacional de distanciamento social ajudou o vírus a encontrar sempre um refúgio onde pudesse crescer, explicam os cientistas.

Munição para CPI 

Questionada sobre a possibilidade do uso de seu estudo como instrumento para a CPI da pandemia, Márcia Castro afirma que as conclusões tiradas ali não foram produzidas com finalidade jurídica, e que este não foi o único estudo científico a apontar as origens dos problemas na política brasileira contra o coronavírus.

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— O que estamos mostrando são associações e correlações, mas nenhum desses trabalhos vai apontar uma causalidade definitiva — diz a cientista. — Mas mesmo não sendo uma causalidade, esses trabalhos se unem num quebra-cabeça, bem complicado, em que todos convergem para a mesma coisa.

Entre os trabalhos citados pelo estudo de Castro está o levantamento produzido pela sanitarista Deisy Ventura, da USP, que compilou atos administrativos do governo federal e declarações de Bolsonaro e ministros sobre a Covid-19 para avaliar sua atuação na pandemia. Para a pesquisadora de Harvard, há alguns elementos, como a subutilização da estrutura de saúde do país, que são evidências gritantes de omissão.

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— Não há como negar que a rede do SUS não esteja sendo usada e que a estrategia de saúde da família não é envolvida. Os agentes estão até hoje sem treinamento e sem equipamento de proteção — afirma. — Se os estudos tivessem chegado a conclusões diferentes, seria outra situação, mas essas coisas não são subjetivas. É ciência. Os números estão aqui e não dá para negar.

Apelo por ação

O estudo da Science termina em tom de apelo, afirmando que a situação atual da pandemia agora é ainda mais preocupante, dada a demora do país na campanha de vacinação e à emergência de  variantes mais contagiosas do vírus, como a P.1.

"Sem contenção imediata, medidas coordenadas de vigilância epidemiológica e genômica e um esforço para vacinar o maior número de pessoas o mais rápido possível, a propagação da P.1 provavelmente vai emular o padrão mostrado aqui (no estudo), levando a uma perda de vidas inimaginável", escrevem os cientistas.

Rafael Garcia, O Globo online. Publicado originalmente em 15.04.2021, às 9:13 hs.

Miriam: Um país sem um dia de calmaria

"Quando eu terei um dia de calmaria para falar com os investidores? Preciso trabalhar notícias boas, mas é preciso encontrar uma fórmula de governar com menos ruídos.” Esse desabafo eu ouvi dentro do próprio governo, de uma autoridade que está convencida de que há, na economia, alguns dados positivos para comunicar. 

Mesmo quem não vê essas notícias boas concordaria com esse integrante do governo que o Brasil tem excesso de ruídos, tumultos, conflitos, como se já não bastasse o que a população vive na pior pandemia em um século.

A avaliação que essa autoridade faz é que o Congresso aprovou algumas medidas importantes no começo deste ano, como o marco do gás e do saneamento. Acha que o país pode ter um segundo semestre de recuperação, se conseguir vacinar parte importante da população neste primeiro semestre. No mundo, as economias em crescimento, como a China, estão valorizando as commodities exportadas pelo Brasil. O mercado global está melhorando, a bolsa americana está batendo recordes, tudo isso ajudaria a amenizar a crise interna. “Mas o Brasil continua prisioneiro da sua história.”

A questão é que a maior parte dos tumultos é resultado da própria ação do governo. Hoje, a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022 tem que chegar ao Congresso, mas o país ainda não tem o Orçamento de 2021. As fórmulas mais estranhas para resolver o problema estão sendo discutidas, mas ninguém quer encarar o que é tecnicamente correto. A solução defendida por integrantes da equipe econômica — e eu já ouvi isso de mais de um — é vetar as emendas parlamentares e mandar um PLN reconstituindo despesas obrigatórias. “O ideal é ter tudo redondo, era vetar tudo, ter um PLN, mas isso não atende ao Congresso, porque seria a desmoralização dos tratados feitos. E o presidente pode ficar fragilizado”, explica essa autoridade que quer um dia de calmaria.

O presidente Bolsonaro sempre foi o principal foco de instabilidade institucional, e isso ele mostrou ontem novamente, quando fez novas ameaças ao país. Ele as faz sempre, de forma deliberadamente vaga para dar a impressão de que tem poderes que não está usando.

“O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização”, disse Bolsonaro, no seu estilo autoritário e populista. E continuou: “Estamos na iminência de ter um problema sério no Brasil. Parece um barril de pólvora que está aí. Eu não estou ameaçando ninguém, mas estou achando que brevemente teremos um problema sério no Brasil”.

Bolsonaro foi assim desde o começo desta pandemia. A cada dia ele levanta um fantasma, joga uma sombra, cria um conflito. Criou, por exemplo, na semana passada, diretamente com o ministro Luís Roberto Barroso, quando ele determinou a abertura da CPI. Ficou claro no rápido julgamento de ontem que Barroso teve todo o apoio do STF para a sua decisão, que apenas determinou o cumprimento da Constituição. CPI é direito das minorias, e cumpridos os requisitos de um terço do Senado e fato determinado não cabe ao presidente do Senado impedir.

Barroso saiu vitorioso e mandou recados educados para responder à truculência do presidente. Elogiou o senador Pacheco, que, mesmo derrotado, reagiu com “elegância, correção e civilidade”, lembrando que são qualidades raras nos tempos atuais. Mas a resposta mais forte de Barroso toca no principal ponto de instabilidade do Brasil. Para os economistas, a fonte de incerteza é de natureza fiscal. Um orçamento confuso, soluções esquisitas, como a que surgiu na tal PEC do fura-teto, elevam os temores de um descontrole nas contas públicas.

Mas o mais eloquente recado veio com o aviso sobre o que está em jogo nos ataques ao STF. “Diversos países do mundo vivem hoje uma onda referida como recessão democrática”. O ministro citou Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Venezuela. Lembrou que todos eles, sem exceção, sofreram processos de esvaziamentos e ataques aos seus tribunais constitucionais. “Quando a cidadania daqueles países despertou, já era tarde. Reafirmar o papel das supremas cortes de proteger a democracia e os direitos fundamentais é imprescindível ato de resistência democrática”. Esse é o ponto. A nossa instabilidade é muito maior do que a questão fiscal. A fonte maior de tumulto institucional é o próprio Bolsonaro.

Miriam Leitão é um blog que tem análises exclusivas sobre economia nacional e estrangeira feitas pela Míriam e equipe. Além disso, posta os produtos que são divulgados em vários veículos do Grupo Globo pela jornalista, os comentários na TV e Rádio, e a coluna no GLOBO. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 15.04.2021. Com Alvaro Gribel (de São Paulo).


Nicolelis: Está na hora de remover Bolsonaro

Como um gigantesco navio sem capitão, singrando desgovernado por um oceano viral que rotineira e impiedosamente ceifa, num intervalo de 24 horas, perto de 4 mil vidas brasileiras — número equivalente ao total acumulado de mortes reportadas pela China em toda a pandemia —, a combalida nau chamada Brasil sofreu nos últimos dias mais uma série de golpes devastadores. 

Como se não bastasse ter de combater uma pandemia fora de controle, em meio a um colapso sem precedentes de todo seu sistema hospitalar e, no processo, ter se tornado um verdadeiro pária internacional, o Brasil assistiu atônito à escalada vertiginosa do pandemônio político que o assola. Rotulado de forma quase unânime pela imprensa internacional como inimigo público número 1 do combate à pandemia de Covid-19 em todo o mundo, o atual ocupante do Palácio do Planalto deu claras demonstrações públicas e notórias de estar perdendo qualquer tipo de controle — se algum dia o teve — do caos semeado por ele mesmo desde a ascensão ao maior cargo da República.

Acuado pela decisão do STF de obrigar o presidente do Senado Federal a instalar uma CPI para investigar a conduta do governo federal no combate ao coronavírus, isolado e demonizado pela comunidade internacional, e tendo sua tentativa de interferência nas Forças Armadas repudiada simultaneamente pelos comandantes das três Armas, o presidente da República parece ter achado um novo moinho de vento para chamar de seu inimigo preferido: os cientistas. Numa declaração proferida aos berros numa de suas aparições públicas em Brasília, o gestor e principal responsável pela maior catástrofe humanitária da história da República brasileira vociferou contra toda a comunidade científica brasileira (e mundial, presume-se) nos seguintes termos: “Cientistas canalhas, se não têm nenhum remédio para indicar, cale a boca e deixe (sic) o médico trabalhar”.

Ao indivíduo que transformou imagens de infindáveis fileiras de covas rasas, sendo abertas às pressas por todo o país, no mais visualizado “cartão-postal” do Brasil atual em todo o mundo, ao mandatário que selou o destino de centenas de milhares de brasileiros cujas mortes poderiam ter sido evitadas, levando o Brasil ao ponto em que as mortes em um mês podem superar os nascimentos pela primeira vez, ao gestor que impediu a compra de dezenas de milhões de vacinas quando elas ainda estavam disponíveis no mercado internacional, ao propagandista que estimulou a população a usar medicamentos sem nenhuma eficácia comprovada contra o coronavírus, ao presidente que nunca ofereceu uma palavra de consolo ou solidariedade a uma nação ferida e golpeada mortalmente como nunca antes na sua história, e que negou qualquer ajuda digna a milhões de brasileiros que diariamente convivem com a perda irreparável de seus entes amados, enquanto tendo de tomar a monstruosa decisão entre morrer de fome ou de Covid-19, a Ciência e os cientistas brasileiros só têm uma reposta a oferecer: Basta!

No momento em que todos nós, brasileiros, testemunhamos a manifestação de uma bifurcação trágica e decisiva, é preciso dar um “Basta!” definitivo, decisivo e inequívoco aos inúmeros crimes perpetrados contra os brasileiros de hoje e os que ainda hão de nascer, antes que seja tarde demais. Tarde demais para salvar centenas de milhares de vidas que ainda podem ser salvas; tarde demais para salvar o que resta das instituições e da democracia brasileira; tarde demais para evitar que o país cruze o limiar de um ponto de onde serão precisos anos ou décadas para que dele se possa retornar.

Em nome dos 362.180 brasileiros que pagaram com a própria vida pelo maior ato de incompetência e inépcia da nossa história, em nome de todas as famílias das vítimas desta que já é a maior tragédia nacional, em nome da preservação do Brasil como nação e, finalmente, em nome da garantia de um futuro digno para futuras gerações de brasileiros, chegou a hora de remover do posto o carcereiro inominável que nos transformou a todos em prisioneiros, potencialmente condenados à morte, seja de fome ou de asfixia; isolados de todo o mundo e vivendo diariamente à merce dos delírios e desmandos de alguém que, por atos e palavras, renunciou voluntariamente a suas responsabilidades constitucionais de proteger, a qualquer custo, o povo brasileiro de uma guerra de extermínio contra um inimigo letal.

Miguel Nicollelis é médico, neurocientista e professor catedrático da Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos da América. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 05.04.2021.