Ao falar em ‘caos’, ‘ação dura’, ‘esticar a corda’, Bolsonaro demonstra desespero e tenta radicalizar ainda mais os seus radicais
Montanhas de fake news desvirtuam a internet, vídeos de sujeitos com boinas militares e caras de milicianos ameaçam guerra à bala, o ministro da Justiça usa a Lei de Segurança Nacional contra críticos do presidente Jair Bolsonaro... Essas investidas, que não são inocentes nem isoladas, fazem parte da alma autoritária do bolsonarismo e enfrentam crescente resistência de todos os lados.
Centenas de banqueiros, empresários e economistas criticam o governo e rechaçam o “falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável”. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, pediu aos EUA para negociarem vacinas excedentes com o Brasil. E 62 dos 81 senadores assinaram uma moção liderada por Kátia Abreu (TO) implorando ajuda à comunidade internacional.
Todos se mexem para cobrir o vácuo do presidente e não dá para acusar de “comunistas”, “esquerdistas” e “petistas” gente como Pacheco e Kátia, Roberto Setúbal, Pedro Moreira Salles, Pedro Malan... Será que são esses os alvos do bolsonarista ignorante, valentão, com pose de militar, mas linguajar de miliciano? Que provoca “esse pessoal da canhota, que quer derrubar o nosso presidente”: “Deixa eu dizer um negocinho pra vocês. Ele não tá sozinho, não, tá? Junta o que vocês tiver de melhor e tenta” (sic sic sic).
Ao falar em “caos”, “ação dura”, “esticar a corda”, Bolsonaro demonstra desespero e tenta radicalizar ainda mais os seus radicais. Isso, porém, equivale a demonstrar fragilidade e a afastar a direita consciente, cada vez mais indignada com ele e seu governo na pandemia. Se o desespero de Bolsonaro é porque a realidade ameaça seu pescoço e sua reeleição, o do Brasil é por um motivo nada personalista: o pânico por leitos faltando, oxigênio e remédios escasseando, vacinas devagar, quase parando.
O negacionismo de Bolsonaro e da sua turma não resiste às cenas tétricas de famílias destroçadas pela dor e pelo luto, aos doentes sem leitos e assistência, ao número cada vez maior de jovens mortos, aos cadáveres no chão de hospitais, seja no Piauí, seja no DF, a poucos quilômetros dos palácios de Bolsonaro.
A estratégia dele, porém, continua sendo a de falar absurdos e empurrar a culpa para os outros, insistindo em mentiras: não fez nada (e não fez mesmo...) porque Supremo impediu; só atrapalhou tudo (e atrapalhou muitíssimo...) para tentar salvar a economia; gastou dinheiro público com cloroquina (e gastou bastante, sim...) porque só o “tratamento precoce” salva. O céu está cheio de “salvos” pela cloroquina...
A essa estratégia Bolsonaro adicionou uma aposta: fingir que apoia as vacinas desde criancinha e atrair os louros pelas doses que estão vindo. Como se fosse possível esconder que o Brasil só está realmente vacinando por causa da Coronavac (“a vacina chinesa do Doria”) e que seu governo se pendurou num único imunizante – a Oxford-AstraZeneca, que tem atrasado – e desdenhou de Pfizer, Moderna, Janssen, Sputnik V...
Assim como o governo fez comemoração patética para receber 2 milhões de doses da Oxford, quer fazer oba-oba político por acertar com a Pfizer nove meses depois – e passando ridículo no mundo: não bastasse ter o quarto ministro na pandemia, Bolsonaro agora tem dois ao mesmo tempo. Quem tem dois não tem nenhum. E o que dizer do capitão criando um ministério para premiar o general pelos péssimos serviços prestados?
A divisão do País não é entre Bolsonaro e Lula, direita e esquerda, mas sim entre um bolsonarismo tosco e incendiário e todo o resto que, independentemente de ideologia, usa outro tipo de armas: inteligência, competência, defesa da economia e da vida. Cada um escolhe o seu lado. E que depois preste satisfações à história e ao Brasil.
Eliane Cantanhêde é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Jornal (PE) e do Telejornal GloboNews "Em Pauta". Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Pauo, em 23 de março de 2021.
Paciente teve indicação para tomar cloroquina e outros remédios antes mesmo de ter diagnóstico confirmado; medicamento não tem eficácia contra o vírus
Ao longo da pandemia no Brasil, parte dos médicos e de autoridades - incluindo o presidente Jair Bolsonaro - defendeu o uso de remédios sem eficácia contra o novo coronavírus, como a ivermectina e a hidroxicloroquina. Filha de um paciente que morreu de covid mesmo após a opção pelo kit de remédios, C. relata que o pai não ouviu seus apelos para evitar esses medicamentos. "Ele disse que queria porque era o remédio do Bolsonaro", conta ela.
"Fui diagnosticada com covid no início de dezembro e meu pai, como morava comigo, decidiu fazer o teste. Ele fez o PCR no dia 5 em uma unidade da Prevent Senior e foi orientado a esperar o resultado em casa. Mesmo sem sintomas nem teste positivo, ele já saiu de lá com o kit covid. Tinha azitromicina, cloroquina, vitaminas, corticoide.
Eu e minha mãe também recebemos o kit. Eu cheguei a tomar um comprimido de cloroquina no primeiro dia, mas passei muito mal e decidi parar. Minha mãe também não tomou.
Cloroquina não tem eficácia comprovada contra a covid-19. Foto: LQFEx/Ministério da Defesa
Mas meu pai tomou durante os cinco dias. Eu sabia que esses remédios não têm eficácia comprovada, mas como ele era muito teimoso por questões políticas, nem adiantou eu falar. Ele disse que queria porque era o remédio do Bolsonaro.
O corticoide eu sabia que, se dado na fase inicial, pode até piorar a resposta imune, mas não adiantava falar. Ele ficava o dia inteiro vendo esses vídeos do Bolsonaro no YouTube, não queria nem ouvir a gente criticando ele.
No dia 13 de janeiro, depois que ele já tinha tomado cinco dias de remédios, ele começou a ter sintomas e fez um novo teste. Esse deu positivo. Deram mais um kit para ele, mas, três dias depois, ele piorou e foi internado.
Ele nem queria ir ao hospital, achava que estava bem. Esse kit dá uma falsa sensação de segurança. A pessoa vê os outros falando que deu certo e acha que vai funcionar para ela também. Mas não tem nada provado que esses medicamentos funcionam. Tanto é que eu e minha mãe não tomamos e evoluímos melhor que ele.
No dia 19 de dezembro, um dia depois da internação, ele teve duas paradas cardíacas e foi intubado. Três dias depois, ele morreu. A causa foi covid, mas a gente sempre fica pensando se esse monte de remédio pode ter diminuído as chances dele."
Adoção de qualquer terapia é responsabilidade dos médicos, diz Prevent Senior
Questionada sobre o caso do paciente, a Prevent Senior afirmou que ele "lamentavelmente faleceu em decorrência da covid-19 depois de chegar ao atendimento médico com mais de 50% do pulmão comprometido".
Sobre os remédios prescritos, a operadora disse que "a adoção de qualquer linha terapêutica é de responsabilidade dos médicos" e destacou que, tanto na primeira quanto na segunda consulta e posterior acompanhamento do paciente, "não houve queixa de qualquer alteração ou eventos adversos dos remédios".
A empresa disse ainda que tem monitorado, por meio do seu instituto de ensino e pesquisa, "os resultados e evidências clínicas de mais de 130 mil beneficiários testados para covid-19 nos últimos 12 meses".
A Prevent defende que "os dados trazem evidências robustas que o conjunto de tratamentos com diversas medicações evita o agravamento da covid-19 por reduzir a inflamação provocada pelo vírus". As informações não foram publicadas em formato de artigo científico, mas a empresa afirma que estão disponíveis para "qualquer instituição de pesquisa que queira examiná-los".
Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo, em 23 de março de 2021
Medicamentos sem eficácia contra o vírus, como ivermectina e hidroxicloroquina, trazem riscos de efeitos colaterais; médicos relatam hepatite causada por remédios. Venda dessas drogas subiu até 557%
O uso do chamado kit covid, que reúne medicamentos sem eficácia contra a doença, mas que continua sendo prescrito por alguns médicos e propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro, levou cinco pacientes à fila do transplante de fígado em São Paulo e está sendo apontado como causa de ao menos três mortes por hepatite causada por remédios, segundo médicos ouvidos pelo Estadão.
Hemorragias, insuficiência renal e arritmias também estão sendo observadas por profissionais de saúde entre pessoas que fizeram uso desse grupo de drogas, que incluem hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e anticoagulantes. O aumento relatado por médicos de pacientes que chegam ao pronto-socorro com algum efeito relacionado ao uso desses remédios coincide com o agravamento da pandemia.
Medicamentos como a ivermectina e a hidroxicloroquina não têm eficácia comprovada contra a covid-19 Foto: Gerard Julien/ AFP
Números do Conselho Federal de Farmácia (CFF) mostram que o total de unidades vendidas de ivermectina, por exemplo, subiu 557% em 2020 em comparação com 2019, sendo dezembro o mês recordista de vendas da droga. O remédio, indicado para tratar sarna e piolho, não teve sua eficácia contra a covid comprovada. Seu uso contra o coronavírus foi desaconselhado pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e pelo próprio fabricante do produto, a Merck.
O produto, porém, é um dos que foram utilizados pelos cinco pacientes que entraram na fila de transplante de fígado. Todos eles haviam tido, semanas antes, diagnóstico de covid e receberam a prescrição do chamado “tratamento precoce”.
Quatro deles foram atendidos no Hospital das Clínicas da USP e o outro no HC da Unicamp. Eles chegam com pele amarelada e com histórico de uso de ivermectina e antibióticos.
"Quando fazemos os exames no fígado, vemos lesões compatíveis com hepatite medicamentosa. Vemos que esses remédios destruíram os dutos biliares, que é por onde a bile passa para ser eliminada no intestino”, diz Luiz Carneiro D’Albuquerque, chefe de transplantes de órgãos abdominais do HC-USP e professor da universidade. Sem esses dutos, explica ele, substâncias que podem ser tóxicas ficam na circulação sanguínea, favorecendo quadros infecciosos graves. “O nível normal de bilirrubina é de 0,8 a 1. Um dos pacientes está com mais de 40”, conta ele.
D’Albuquerque conta que, dos quatro pacientes colocados na fila do transplante no HC, dois tiveram doença aguda e morreram antes da operação.
“É uma combinação de altas dosagens com a interação de vários medicamentos. A substância desencadeia um processo em que a célula ataca outros células, levando a fibroses, que causam a destruição dos dutos biliares”, diz Ilka Boin, professora da Unidade de Transplantes Hepáticos do Hospital das Clínicas da Unicamp, onde um paciente aguarda transplante.
Vítima da febre hemorrágica, homem foi atendido em três hospitais, o último deles o Hospital das Clínicas (HC-USP) Foto: Evelson de Freitas/Estadão
Os dois especialistas explicam que as biópsias do fígado desses pacientes evidenciam que os casos são de origem medicamentosa e não complicações do próprio coronavírus. “A covid pode atacar o órgão, mas de uma forma diferente. Ela causa pequenos trombos (coágulos) nos vasos. Esse padrão que encontramos é de lesão por medicamentos”, diz Ilka.
Agora à espera de operação, paciente tinha saúde perfeita antes da covid
H., de 57 anos, é um dos pacientes na fila. Ele conta que tinha a saúde perfeita antes da covid e que nunca tomava remédios. “Nem aspirina.” Ele conta que decidiu tomar os remédios do kit covid por causa de estudos preliminares que mostravam algum benefício da droga.
“Fiz com acompanhamento médico, mas acho que não imaginavam que isso poderia ocorrer comigo, alguém que não tinha nenhuma doença crônica.”
Além de duas mortes de pacientes do HC-USP, um óbito por doença hepática aguda foi registrado em uma unidade particular de Porto Alegre, relata a neurologista Verena Subtil Viuniski. “Era um paciente com quadro psiquiátrico que estava agitado e confuso e marcou um encaixe no ambulatório. As enzimas do fígado estavam 30 vezes mais altas do que o normal. Dez dias antes, ele tinha tido covid e tomado remédios do kit.”
O paciente foi levado para a emergência, onde começou a convulsionar. Exames revelaram que ele desenvolveu encefalopatia hepática, condição em que o cérebro é deteriorado por toxinas que o fígado não conseguiu filtrar. “É muito grave, difícil de reverter. Ele morreu no mesmo dia”, diz Verena, que disse já ter atendido outros seis casos de hepatite por medicamentos, ainda que menos graves. “Estão dando uma salada de remédios sem avaliar cada paciente individualmente, como se fosse receita de bolo.”
Além de duas mortes de pacientes do HC-USP, um óbito por doença hepática aguda foi registrado em uma unidade particular de Porto Alegre, relata a neurologista Verena Subtil Viuniski. “Era um paciente com quadro psiquiátrico que estava agitado e confuso e marcou um encaixe no ambulatório. As enzimas do fígado estavam 30 vezes mais altas do que o normal. Dez dias antes, ele tinha tido covid e tomado remédios do kit.”
O paciente foi levado para a emergência, onde começou a convulsionar. Exames revelaram que ele desenvolveu encefalopatia hepática, condição em que o cérebro é deteriorado por toxinas que o fígado não conseguiu filtrar. “É muito grave, difícil de reverter. Ele morreu no mesmo dia”, diz Verena, que disse já ter atendido outros seis casos de hepatite por medicamentos, ainda que menos graves. “Estão dando uma salada de remédios sem avaliar cada paciente individualmente, como se fosse receita de bolo.”
Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo, em 23 de março de 2021
País registra 1.383 óbitos e 49.293 novos casos da doença em 24 horas e ultrapassa marca de 12 milhões de pessoas infectadas pelo coronavírus desde o início da epidemia.
Médicos atendem pacientes de covid-19 em hospital em Santo André, São Paulo. Brasil registrou 1.383 mortes associadas à covid-19, segundo Conass
Brasil registrou 1.383 mortes associadas à covid-19, segundo Conass
O Brasil registrou nesta segunda-feira (22/03) 1.383 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).
Também foram identificados 49.293 novos casos da doença, de acordo com o Conass. Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 12.047.526, enquanto os óbitos chegaram a 295.425 desde o início da epidemia.
Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.
"Brasil errou ao não negociar vacinas no momento adequado"
O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.449.933 pacientes se recuperaram da doença até este domingo.
A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 140,6 no Brasil, a 19ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.
Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29,8 milhões de casos. É também o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 542 mil pessoas morreram nos EUA.
Ao todo, mais de 123 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,71 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.
Pesquisa foi feita entre os dias 15 e 16 março de 2021, com 2.023 brasileiros. A margem de erro é de dois pontos percentuais, para mais ou para menos. Levantamento também apontou que 51% acham que ex-presidente não deve concorrer em 2022; 47%, sim.
Pesquisa Datafolha divulgada pelo jornal "Folha de S.Paulo" nesta segunda-feira (22) mostra que 57% dos brasileiros consideram justa a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá. E 51% acham que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), agiu mal ao anular essa e outras decisões envolvendo o petista em da Operação Lava Jato.
O levantamento foi realizado com 2.023 brasileiros adultos, que possuem telefone celular, em todas as regiões e estados do país, entre os dias 15 e 16 de março. A margem de erro é de dois pontos percentuais, para mais ou para menos.
Datafolha: aprovação do trabalho de Moro na Lava Jato cai de 65% para 45% em 5 anos
Datafolha: fatia dos que acham que corrupção vai aumentar sobe de 55% para 67% em 3 meses
Em 2017, o então juiz Sergio Moro condenou Lula a 9 anos e 6 meses de prisão no caso do triplex. A pena foi revista em 2018 para 12 anos e 1 mês na segunda instância. E, em 2019, reduzida para 8 anos e 10 meses no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Depois, em 2019, o ex-presidente foi condenado no caso do sítio de Atibaia. Ele nega ter cometido crimes.
Veja os números da pesquisa sobre a condenação:
57% consideram justa a condenação de Lula no caso do triplex (era 54% em abril de 2018)
38% consideram injusta a condenação de Lula no caso do triplex (era 40% em abril de 2018)
5% não sabem responder (era 6% em abril de 2018)
Anulação de condenações
Em 8 de março, Fachin considerou que a Justiça Federal do Paraná não tinha competência para analisar as investigações contra Lula e anulou as condenações do ex-presidente nos casos do triplex do Guarujá e do sítio de Atibaia. A decisão atinge ainda dois processos que apuram doações ao Instituto Lula e que ainda não foram.
Entenda a decisão de Fachin que anulou as condenações de Lula e o que acontece agora
Veja os números da pesquisa sobre a decisão de Fachin de anular as condenações:
42% acham que Fachin agiu bem ao anular as condenações de Lula
51% acham que Fachin agiu mal ao anular as condenações de Lula
6% não sabem responder
O levantamento mostra que a maioria da população tem conhecimento sobre a anulação das condenações. Os percentuais são:
37% tem conhecimento e está bem informado
44% tem conhecimento e está mais ou menos informado
7% tem conhecimento e está mal informado
13% não tomou conhecimento
51% são contra Lula concorrer em 2022; 47% são a favor
Com a anulação das condenações, Lula está apto a participar da eleição presidencial de 2022. A pesquisa mostra que os brasileiros se dividem sobre uma eventual candidatura do petista, no limite da margem de erro. Os percentuais são:
51% acham que Lula não deveria concorrer em 2022
47% acham que Lula deveria concorrer em 2022
2% não sabem
Publicado originalmente por G1, em 22 de março de 2021
Omissão na abertura da CPI da pandemia indicaria alheamento da realidade
Frente a tantas e tão frequentes confusões, omissões e escárnios por parte do presidente da República na pandemia de covid-19, há quem se questione até quando o País terá de suportar tal descalabro moral, cívico e administrativo. Em geral, essa pergunta traz implícita a expectativa de que, em algum momento, a população vai reagir de forma explícita e contundente contra a atuação caótica de Jair Bolsonaro.
Em relação a esses questionamentos, é preciso lembrar que a população não precisa sair às ruas para se manifestar contra o presidente da República, seja porque o País vive um momento dramático em relação à pandemia – a recomendar um cuidadoso isolamento social –, seja porque – eis a principal razão – já existe um caminho para que a população faça valer a sua vontade: o Congresso.
É equivocada a ideia de que o País não dispõe dos meios para enfrentar o descalabro que é o comportamento de Jair Bolsonaro na pandemia. A Constituição de 1988 proporcionou os instrumentos necessários, que não se restringem, como às vezes equivocadamente se pensa, aos relacionados com o Poder Judiciário ou o Ministério Público. O legislador constituinte atribuiu ao Poder Legislativo, expressão máxima da representação popular no regime democrático, o dever de fiscalizar o Poder Executivo.
Para cumprir a contento essa incumbência, a Constituição previu, entre outros instrumentos, a possibilidade de o Legislativo criar as comissões parlamentares de inquérito, as CPIs. “As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”, diz o art. 58, § 3.º da Constituição.
A CPI faz parte do aparato de defesa próprio de um regime democrático, com a instauração de um processo investigativo levado a cabo pelos próprios representantes da população. Tais comissões não são um teatro. Basta ver que a Constituição lhes assegura “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.
Trata-se, portanto, de um instrumento para investigar e, assim, atribuir responsabilidades políticas e jurídicas a quem deu causa aos fatos apurados. Depois de mais de um ano de pandemia de covid-19, não faltam motivos para apurar a atuação do Palácio do Planalto. Basta pensar que, nesse período, o País teve nada mais nada menos que quatro ministros da Saúde.
Num Estado Democrático de Direito, há situações nas quais não basta a atuação do Judiciário ou do Ministério Público, que não são representantes da vontade popular e, em razão de suas competências específicas, devem se pautar por um estrito rigor legal. É preciso que o próprio Legislativo volte sua atenção para tais situações, de forma a dar uma resposta satisfatória à população.
Atualmente, há na mesa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), um pedido de abertura de CPI relativo à condução da pandemia pelo governo federal que cumpre todos os requisitos constitucionais, assinado por 31 senadores de 11 partidos políticos. Deixá-lo na gaveta, como se fosse algo politicamente turbulento demais para o momento atual, não é apenas ignorar a Constituição ou ser cúmplice com o descaso do presidente Jair Bolsonaro com a saúde e a vida da população.
Eventual omissão na abertura da CPI da pandemia manifestaria alheamento da realidade humana, sanitária, social, econômica e política do País. Seria uma trapaça com a população, vinda justamente do Legislativo, a quem compete representar de forma plural e efetiva os anseios da população.
Na atual situação do País, não é preciso coragem para abrir a CPI, tampouco é necessária uma sofisticada compreensão dos deveres constitucionais do Legislativo. Basta olhar para o povo brasileiro.
Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 22 de março de 2021
É preciso aproveitar a convergência na oposição para articular projeto que vá além da interrupção da esbórnia bolsonarista
A inédita crise social, econômica e humanitária causada pela pandemia de covid-19 no Brasil, associada à forma irresponsável e muitas vezes criminosa como o governo de Jair Bolsonaro a administrou até aqui, parece ter dado ensejo ao que parecia impossível: algum entendimento entre forças políticas de centro e de esquerda que há tempos se tratam aos empurrões.
É prudente não nutrir grande entusiasmo, dado o histórico de desavenças e o caráter de alguns dos personagens envolvidos, mas nos últimos dias petistas e tucanos vêm se tratando de maneira razoavelmente civilizada e têm demonstrado genuína disposição de colaborarem uns com os outros para enfrentar a pandemia – e, por tabela, a insanidade disseminada pelo bolsonarismo no País.
“É hora de dar os braços ao João Doria, ao Eduardo Leite, independente (da eleição) de 2022. É a hora de os líderes demonstrarem grandeza”, disse ao Estado o governador do Piauí, o petista Wellington Dias, referindo-se aos governadores de São Paulo e do Rio Grande do Sul, ambos tucanos. Por terem adotado medidas de restrição para conter a pandemia e por serem dois dos principais críticos de Bolsonaro, Doria e Leite vêm sendo atacados brutalmente pelo presidente e por seus camisas pardas nas redes sociais.
O governador Dias falava como emissário do ex-presidente Lula da Silva, que pretende se incluir no esforço de governadores para obter vacinas – com seu alegado prestígio internacional, o ex-presidente acha que pode ser útil. É claro que, em se tratando de Lula da Silva, não há ponto sem nó, mas, nas atuais e dramáticas circunstâncias, já será de grande ajuda se o chefão petista pelo menos não atrapalhar.
Noves fora as eventuais artimanhas de Lula, o fato é que é raríssimo ouvir da boca de um petista graduado como o governador Dias um chamamento tão claro à superação de divergências com vista ao enfrentamento de uma crise que será sentida por gerações. E o gesto encontrou um lado tucano aparentemente inclinado a colaborar, não apenas contra a pandemia, mas contra a insanidade bolsonarista.
Assim, é parte desse balé político a ordem do governador Doria para investigar ameaças feitas a Lula por um bolsonarista na internet – o tucano, feroz adversário do PT, chegou a ligar para a presidente petista, Gleisi Hoffmann, para comunicar as medidas que tomou. Ele mesmo vítima de delinquentes bolsonaristas nas redes, o governador paulista parece disposto a deixar de lado momentaneamente suas profundas diferenças com o PT em nome do combate ao extremismo liderado pelo presidente.
Nada disso é por acaso. Ocorre em meio à reorganização das peças no xadrez da eleição de 2022, em razão da ressurreição de Lula da Silva como candidato. Tudo, portanto, passa por cálculo político, mas parece haver algo mais do que isso: trata-se de uma tomada de consciência de que não pode haver divergência política insuperável ante o imperativo de impedir a reeleição de Bolsonaro.
Assim, o antibolsonarismo – sentimento crescente no País, conforme atestam as mais recentes pesquisas – tende a ser o pilar da campanha dos candidatos de oposição. É tentador, portanto, oferecer aos eleitores um nome que se apresente como o oposto absoluto do presidente e de tudo o que ele representa.
Pode até servir para ganhar a eleição, mas tal projeto nada diz sobre o futuro do País. Corre-se o risco de repetir o que fez o próprio Bolsonaro, que nos palanques se apresentou como a encarnação do antipetismo e, uma vez no poder, pelo menos até este momento, limitou-se a destruir o que havia, sem erguer quase nada que prestasse no lugar.
É preciso aproveitar esse raro momento de convergência política na oposição para articular um projeto que vá além da promessa de interrupção da esbórnia bolsonarista. Será um alívio não ter mais Bolsonaro na cadeira presidencial, é claro, mas quem vier a ocupá-la deve ser portador de um grande entendimento nacional para superar as condições que, em primeiro lugar, permitiram que Bolsonaro chegasse lá. A restauração da inteligência no governo e na política é fundamental, mas é apenas o primeiro passo da longa caminhada para reconstruir o País.
Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 22 de março de 2021
Sistema de saúde no Distrito Federal está em situação de calamidade pública
Com o sistema de saúde em situação de calamidade pública no Distrito Federal, corpos de vítimas de covid-19 tem ficado à espera de deslocamento em corredores de hospitais e até dispostos no chão. Imagens gravadas por servidores de unidades localizadas no Guará e em Ceilândia, regiões do entorno de Brasília, mostram um corpo ensacado no piso. Em outra situação, há uma vítima da doença já sem vida enrolada em panos, sobre uma maca.
A rede de atendimento está esgotada. Números atualizados pelo governo do Distrito Federal mostram que, na tarde de segunda-feira, 22, há 411 pacientes que aguardam uma vaga de UTI para tratamento contra o coronavírus. A rede de 432 leitos de atendimento intensivo de hospitais privados está quase toda tomada, com apenas cinco vagas disponíveis. A pressão recai sobre os 409 leitos de covid-19 da rede pública.
Imagem de corpo em corredor no Hospital de Ceilândia Foto: Reprodução
A reportagem do Estadão questionou a Secretaria de Saúde do DF a respeito dos corpos dispostos no corredor e no chão nos hospitais públicos. Sobre o caso ocorrido em Ceilândia, a secretaria de Saúde afirmou que o corpo ficou no corredor porque “houve, sim, um atraso no procedimento em função do volume corporal e a indisponibilidade, naquele momento, de invólucro compatível com as dimensões do corpo”.
Segundo a Secretaria de Saúde, o corpo foi transferido para a área de anatomia, “até a remoção pela funerária em uma urna compatível com o volume corporal”.
A respeito do corpo colocado no chão no Hospital Regional do Guará, a direção do hospital informou que os corpos que aparecem na imagem não estariam no chão, mas sim “sobre um tablado de madeira enquanto aguardavam transição para o serviço funerário”.
“São casos isolados e precisam ser vistos dessa forma para que não sejam divulgadas informações equivocadas para a população do DF”, declarou a Secretaria de Saúde.
Imagem de corpo no chão do Hospital Regional do Guará Foto: Reprodução
Na sexta-feira, 19, o governador do DF, Ibaneis Rocha, prorrogou por mais uma semana as medidas de restrição de funcionamento de atividades não essenciais na capital federal. As medidas que tiveram início no dia 28 de fevereiro tinham validade até esta segunda-feira, 22. Agora, segundo o governador, serão estendidas até o dia 29 de março.
O governo do DF, ao lado do Rio Grande do Sul e Bahia, teve a sua decisão questionada diretamente pelo presidente Jair Bolsonaro, que recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra aquilo que ele definiu como “estado de sítio” determinado pelas unidades da federação.
André Borges, O Estado de S.Paulo, em 22 de março de 2021
"Um ano depois, estamos no pior lugar em que poderíamos estar, com uma transmissão altíssima, com uma variante extremamente alarmante e com sistema de saúde à beira de colapsar".
"O Brasil parece viver em um universo paralelo. Enquanto todos os países estão indo numa direção, seguimos na contramão".
Denise Garrett trabalhou mais de 20 anos no Centro de Controle de Doenças (CDC) do Departamento de Saúde dos EUA (Crédito da foto: Cristy Parry / Arquivo Pessoal)
"O Brasil é o exemplo de tudo que podia dar errado numa pandemia. Temos um país com uma liderança que, além de não implementar medidas de controle, minou as medidas que tínhamos, como distanciamento social, uso de máscaras e, por um bom tempo, também as vacinas. Viramos uma ameaça global."
Essa é a opinião de Denise Garrett, infectologista, ex-integrante do Centro de Controle de Doenças (CDC) do Departamento de Saúde dos EUA e atual vice-presidente do Sabin Vaccine Institute (Washington).
Com a experiência de quem trabalhou no CDC por mais de 20 anos, Garrett não poupa críticas ao governo federal em relação ao combate à pandemia de covid-19.
No órgão, ligado ao Departamento de Saúde dos EUA (equivalente ao Ministério da Saúde no Brasil), ela atuou como conselheira-residente do Programa de Treinamento em Epidemiologia de Campo (FETP) no Brasil, como líder da equipe no Consórcio de Estudos Epidemiológicos da Tuberculose (TBESC) e como conselheira-residente da Iniciativa Presidencial contra a Malária em Angola.
Especialistas consideram que o Brasil vive o pior momento da pandemia - o país vem registrando nos últimos dias seguidos recordes de mortes diárias.
O Brasil é o segundo país do mundo em número de óbitos (294 mil), atrás apenas dos EUA (542 mil), de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins (EUA).
Garrett falou por telefone à BBC News Brasil. Confira os principais trechos.
BBC News Brasil - Faz um ano que a OMS decretou a pandemia de covid-19 no mundo. Qual é a sua análise a respeito da situação do Brasil?
Denise Garrett - O Brasil é o exemplo de tudo o que podia dar errado numa pandemia. Temos um país com uma liderança que, além de não implementar medidas de controle, minou as medidas que tínhamos, como distanciamento social, uso de máscaras e, por um bom tempo, também as vacinas.
A situação hoje é extremamente preocupante. Temos uma população que está exausta. E fizemos um lockdown 'meia boca'.
Um ano depois, estamos no pior lugar em que poderíamos estar, com uma transmissão altíssima, com uma variante extremamente alarmante e com sistema de saúde à beira de colapsar.
O Brasil parece viver em um universo paralelo. Enquanto todos os países estão indo numa direção, seguimos na contramão.
Um fator decisivo para isso, além daqueles sobre os que eu já falei, foi o incentivo do uso de medicações sem nenhuma comprovação cientifica com a população acreditando nelas como uma medida de proteção.
Ou seja, em vez de praticar o distanciamento social e usar máscara, muita gente acreditou no presidente da República e achou que se protegeria com ivermectina e hidroxicloroquina. Não vi nenhum outro país do mundo fazendo isso.
De fato, aqui nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump também chegou, em determinado momento, a recomendar esse medicamento. Mas, no Brasil, houve um protocolo recomendado pelo Ministério da Saúde.
O impacto dessa fake news é imenso - e faz com que até colegas médicos sofram pressão do próprio paciente.
Além de tudo isso, não temos vacina. O governo não fez acordos quando deveria fazer. O presidente disse que não se vacinaria. O estoque que o Brasil tem agora não é proveniente do governo federal.
BBC News Brasil - Muitos especialistas, tanto do Brasil quanto de fora, vêm dizendo que o país se tornou uma ameaça global. A sra. concorda?
Garrett -Claro. O Brasil virou uma grande ameaça global. O país se tornou um caldeirão para novas variantes.
Vírus estão sempre mutando. As mutações que forem favoráveis a ele, quando não há restrição à transmissão, serão selecionadas e vão predominar.
Eventualmente, e isso ainda não aconteceu, uma vez que as novas cepas estão respondendo às vacinas, que protegem contra a forma mais grave da doença, podemos ter variantes que comprometam a eficácia das vacinas.
Claro que num ambiente onde a taxa de vacinação é baixa e a taxa de transmissão alta, como no Brasil, esse risco é muito mais elevado.
Ninguém está seguro até que todos estejam seguros. Nenhum país vai se sentir seguro enquanto houver um país como o Brasil, onde não há nenhum tipo de controle.
Todos os esforços louváveis de outros países que estão funcionando podem simplesmente ser perdidos por causa de um país que não se importa com a pandemia. E onde não existe uma sensibilização pela vida por parte da liderança do país.
Jair Bolsonaro, presidente do Brasil (Crédito da foto: Reuters).
Garrett diz que falta liderança ao Brasil em combate à pandemia de covid-19
BBC News Brasil - Neste sentido, a sra. acredita que os brasileiros possam ser mal vistos e até mesmo impedidos de entrar em outros países?
Garrett - Isso é algo que já ocorrendo. E eu vejo isso se intensificando ainda mais. Há restrições contra a entrada de cidadãos brasileiros pelo mundo. Qualquer país de bom senso faria isso. Qualquer país que se preocupa com a saúde de sua população.
É óbvio que os países vão se proteger. As medidas que o Brasil não tomou o restante do mundo tomou. Quando se fala que vai ao Brasil agora é um risco. Antes era o risco de violência, demoramos para mudar essa imagem, agora é a covid-19.
BBC News Brasil - O que a sra. acha que o Brasil deveria fazer neste momento?
Garret - Duas coisas. O Brasil precisa de um lockdown estrito a nível nacional. Passou da hora de um lockdown a nível municipal ou estadual. E quando eu falo em lockdown, eu me refiro a não sair de casa, só em caso de urgência. De esvaziar as ruas, mesmo. Só funcionar serviços essenciais.
Existiu uma época em que poderíamos até fazer confinamentos a nível municipal ou estadual, quando a pandemia no Brasil ainda era "muitas pandemias".
Explico: somos um país enorme e houve um momento em que tínhamos diferentes estágios da pandemia em diferentes localidades. Ou seja, medidas localizadas poderiam ser tomadas.
No estágio atual, essa possibilidade não existe mais. O país inteiro está à beira do colapso. Não adianta fechar um Estado e os outros continuarem abertos. E as pessoas transitando de um para outro.
O Brasil precisa retomar o controle sobre o vírus. O vírus está solto - e isso é urgente. Só assim vamos reduzir os casos e, por consequência, as mortes.
Outra coisa é vacinar a população.
Precisamos de planejamento e estratégia. Mas, infelizmente, não tenho esperança quanto ao governo federal sobre isso.
Luis Barrucho - @luisbarrucho, da BBC News Brasil em Londres.
Margareth Dalcolmo, da Fundação Oswaldo Cruz, diz que Brasil errou ao não negociar vacinas para covid-19 com mais empresas farmacêuticas e que atuais números indicam que situação vai piorar nas próximas semanas.
Margareth Dalcolmo: "Não tivemos nenhum episódio de trombose ou embolia pulmonar com a vacina da AstraZeneca"
A pesquisadora Margareth Dalcolmo, da Fundação Oswaldo Cruz, afirmou em entrevista à DW que o Brasil passa pelo pior momento da epidemia de covid-19, com uma taxa de transmissão muito alta e curvas de mortalidade em ascensão.
"Eu temo verdadeiramente, eu declarei isso há algumas semanas, que teríamos o mês de março mais triste de nossas vidas, o que é verdade. Estamos tendo. Eu acho que o mês de abril será, igualmente, muito grave", afirmou na entrevista à DW Latinoamerica.
Ela fez um apelo aos brasileiros. "É necessário não só que as medidas sanitárias necessárias sejam tomadas pelas autoridades, mas que a sociedade civil se conscientize de que o que estamos dizendo e recomendando é o mais adequado e correto para o controle epidêmico", disse.
Ela avalia que o Brasil tomou uma decisão acertada com a vacina da AstraZeneca, mas errou ao não ter negociado, "no momento adequado", com as outras produtoras de vacinas.
Dalcolmo também expressou total confiança na vacina de Oxford. "Nós estamos muito tranquilos e satisfeitos com relação à vacina", declarou.
DW: Quase 12 milhões de casos no Brasil e um número de mortos acima de 2.600 por dia. Hospitais e UTIs lotadas. Ainda assim, não há um lockdown. Como médica, como a senhora avalia a situação atual?
Margareth Dalcolmo: Estamos vivendo o pior momento da pandemia no Brasil, com o aumento dos casos e a segunda onda totalmente estabelecida. Sabemos, através de um levantamento que fazemos na Fiocruz, que em oito estados – incluindo o Amazonas – a cepa P1, de Manaus, é que a produz mais infecções. A chamada cepa P1 é originária do Brasil, do Amazonas, e é responsável por mais de 90% dos casos atuais no estado. Nas grandes capitais, há um colapso do sistema de saúde, sobretudo de hospitais e unidades de terapia intensiva. Algo que nos preocupa é que com a vacinação dos mais velhos, em que já alcançamos uma proporção razoável, temos uma proporção de leitos ocupados por gente muito mais jovem. Estamos observando uma mortalidade que se aproxima cada vez mais da juventude, de pessoas com menos de 50 anos.
O Brasil tem duas vacinas aprovadas: Coronavac e AstraZeneca. Esta última é produzida pela Fiocruz, mas há algumas preocupações. A Agência Europeia de Medicamentos defende que a vacina é segura e eficaz. Mas não foi possível descartar a associação dela com alguns casos graves de coágulos sanguíneos associados à trombose. Você sabe mais sobre esses riscos?
Sim. Nós estamos muito tranquilos e satisfeitos com relação à vacina. Graças a Deus, a agência europeia, de uma maneira segura e muito bem fundamentada, também demonstrou confiança. Nós fazemos o processo de transferência de tecnologia e estamos fazendo também a vigilância sanitária dos vacinados. Não tivemos nenhum episódio de trombose ou embolia pulmonar com a vacina. O que sabemos, e o que eu posso afirmar, é que isso claramente não tem relação com a vacina. Isso será demonstrado em breve, eu espero. A incidência de casos de trombose, em termos epidemiológicos, por exemplo, entre a população de mulheres jovens que toma anticoncepcional oral é muito mais alta do que a que foi registrada com a vacina da AstraZeneca. Então nós não temos nenhum temor, nenhum medo de que a vacina possa ter esses efeitos. Eu acredito que isso será demonstrado muito em breve pelos jornais e publicações científicas de qualidade.
O Chile vem sendo um exemplo de vacinação na América Latina e no mundo. Desde o início, o país firmou contratos com muitas empresas farmacêuticas. O Brasil também deveria ter optado por outras vacinas?
Sim. Eu acho que o Brasil cometeu um erro, no sentido de sermos um país que desenvolveu estudos clínicos de grande qualidade, por exemplo, com a vacina da Johnson & Johnson, com a vacina da Pfizer, mas não conseguimos fazer boas negociações. De uma maneira ou de outra, o Brasil fez a sua aposta, o seu contrato com a vacina da AstraZeneca. Foi uma decisão muito acertada, sem dúvidas, porque foi um processo muito bem elaborado de transferência de tecnologia completa, incluindo a matéria prima da vacina – os chamados IFAs –, que vêm da China, mas que nós vamos começar a produzir. Até o final deste semestre, a vacina AstraZeneca-Oxford se chamará AstraZeneca-Fiocruz: completamente nacionalizada para a produção no Brasil. Mas isso não é suficiente nesse momento, porque não há vacinas suficientes.
Como muitos de nós, cientistas, advertimos, o cenário atual de novas variantes e uma segunda onda era perfeitamente previsível. Segunda onda que começou no estado do Amazonas, que teve o seu pico epidêmico mais cedo. No fim de abril do ano passado, o Amazonas já tinha tido o seu primeiro pico epidêmico, com uma mortalidade enorme. Ou seja, a imunidade produzida pela doença terminou. Ela não é duradoura, como nós sabemos. Então, a "intervenção" necessária é que se tenha muitas vacinas. O Brasil, como se sabe, é um país que tem uma grande tradição de vacinação.
O ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello afirmou que o país está em um ponto de inflexão no processo de controle da pandemia. A senhora compartilha dessa opinião?
Não. Não estamos, porque temos uma taxa de disseminação do vírus muito alta, enquanto os hospitais estão lotados, com quase 100% dos leitos ocupados, especialmente os de UTI. O que temos é um colapso em muitas das principais cidades brasileiras. Além disso, sabemos que as novas variantes são as responsáveis pela maioria dos casos de infecção atuais. Portanto, houve um erro de não ter negociado, no momento adequado, com as grandes produtoras de vacinas. O que acontece agora é que estamos tentando conseguir as vacinas porque o momento crucial é justamente esse. Temos que vacinar muita gente e rapidamente.
O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) exortou o Brasil a adotar medidas agressivas contra a pandemia. Pesquisadores como a senhora enfatizam a necessidade de expandir as medidas de distanciamento social. Existe coordenação e consenso entre o governo federal, governadores e cientistas?
Não. Lamentavelmente, no Brasil, nós não tivemos uma coordenação central harmônica entre a comunidade científica e as autoridades. Eu diria que nós tivemos retóricas muito diferentes em alguns momentos. Eu, pessoalmente, defendi que nós tínhamos duas grandes e poderosas armas para lutar contra a epidemia. O SUS, que é precioso e, como vocês sabem, é o maior sistema de saúde pública do mundo, assistindo mais de 150 milhões de pessoas. E o distanciamento social, para o qual não tivemos o apoio de algumas autoridades, que defenderam outra coisa. Do meu ponto de vista, a sociedade civil ficou um pouco confusa, pois recebeu informações diferentes e contraditórias. Agora estamos pagando o preço por não termos tido uma coordenação central, que tivesse trabalhado com harmonia e com consenso entre as opiniões muito bem fundamentadas que nós, a comunidade científica, defendemos.
O governo federal, os estados e os municípios culpam-se mutuamente pela crise. Quem deveria assumir a responsabilidade?
Eu acho que há responsabilidades compartilhadas. Por exemplo, de acordo com a Constituição, a compra de vacinas é algo que deve ser da competência do governo federal.
Nós deveríamos trabalhar na logística e, para isso, temos tido um apoio muito importante da iniciativa privada brasileira, que é muito poderosa. Como vocês sabem, o Brasil tem uma concentração de renda muito grande, e é necessário que a iniciativa privada tenha um papel mais proeminente durante esse período, o que aconteceu efetivamente durante o ano de 2020, com grandes doações de bancos e de grandes empresários.
Neste momento de mudança no Ministério da Saúde, esperamos que possamos estabelecer novos e melhores contatos. Não podemos ser tão pessimistas, temos que ter um pouco de confiança de que seremos escutados de maneira adequada. Mas a situação é, sem dúvida, muito grave e necessitamos de medidas pouco simpáticas, restritivas e muito duras, como o lockdown, em algumas cidades brasileiras. Eu diria que isso seria necessário em todo o país por um período de ao menos duas semanas, para controlar a taxa de transmissão, que está muito alta. Isso também está acontecendo porque não temos vacinas nesse momento, que seria o ideal do ponto de vista de concomitância entre duas ações de saúde pública. Ou seja, esperamos reparar o erro. Reconhecer o erro, na minha opinião, seria um ato de grandeza. Reconhecer que erramos, não negociamos no tempo certo, mas estamos trabalhando para recuperar um pouco. As mortes, no entanto, não vamos recuperar. O sentimento que nós temos com quase 300 mil brasileiros mortos na pandemia é algo que mudou as nossas vidas.
A Fiocruz é vinculada ao Ministério da Saúde. Marcelo Queiroga será o quarto ministro da Saúde em um ano, e todas as mudanças na pasta aconteceram em momentos críticos da pandemia. Será possível trabalhar melhor agora, com Queiroga?
Nós esperamos que sim. O doutor Queiroga é um médico, alguém que tem um pouco de experiência com o SUS e que tem relações políticas muito fortes. Esperamos ser escutados e que seja feita uma coordenação real, incluindo a valorização do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que no meu ponto de vista é algo muito importante. Como todos sabem, o PNI é reconhecido internacionalmente e, sem dúvida, foi um pouco desmantelado. É preciso fazer uma coordenação central em harmonia com a comunidade científica do Brasil.
O presidente Jair Bolsonaro disse que o Brasil é um dos países com melhor desempenho na vacinação, e a senhora está dizendo o contrário. Além disso, ele voltou a promover a hidroxicloroquina, um antimalárico que não tem comprovação científica de eficácia contra o coronavírus. Qual é a sua opinião sobre isso?
O tema da cloroquina, para nós, é um assunto totalmente encerrado. Os estudos em que nós confiamos, que são os randomizados, controlados e publicados em periódicos científicos de grande impacto, como nós chamados, já demonstraram que não tem eficácia. Não só com a hidroxicloroquina, mas também com outros remédios que foram recomendados e que comprovadamente não são eficazes nem para controlar a pandemia do ponto de vista dos casos leves, ou seja, impedir que o paciente desenvolva uma forma mais grave. Não há tratamento precoce. Do meu ponto de vista, isso não é verdade e já foi demonstrado muitas vezes. Em resumo, não há tratamento farmacológico para a covid-19. O que há são as boas práticas de terapia intensiva para casos graves. Para casos leves, observação médica, assistência adequada pelo SUS ou privada. É isso. Detectar no momento correto quando é a hora de o paciente procurar o hospital. Ou seja, considere o assunto cloroquina um assunto encerrado.
Onde o Brasil estará daqui a dois meses no que diz respeito à pandemia?
Eu temo verdadeiramente, eu declarei isso há algumas semanas, que teríamos o mês de março mais triste de nossas vidas, o que é verdade. Estamos tendo. Eu acho que o mês de abril será, igualmente, muito grave. Exatamente porque a taxa de transmissão está muito alta, e quando comparamos, por exemplo, as curvas de mortalidade, que no resto do mundo começaram a decrescer, no Brasil todas as tendências dessa curva são verticais, de ascensão. Isso é algo que nos preocupa muito e é necessário não só que as medidas sanitárias necessárias sejam tomadas pelas autoridades, mas que a sociedade civil se conscientize de que o que estamos dizendo e recomendando é o mais adequado e correto para o controle epidêmico.
"Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas", diz carta; Brasil vive o maior colapso sanitário e hospitalar de sua história, aponta a Fiocruz
Brasil urgente! Entre a morte e a vida. É escapar do vírus ou morrer. (Crédito da foto: Diogo Vara/Reuters)
Em carta aberta, mais de 200 economistas, banqueiros, empresários e ex-autoridades do setor público fizeram críticas à atuação ao governo Bolsonaro na pandemia, cobraram mais vacinas, máscaras gratuitas e medidas de distanciamento social e refutaram o "falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável".
"Dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de covid-19", afirma o documento, assinado por nomes como os banqueiros Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles (Itaú), os ex-ministros Pedro Malan e Rubens Ricupero e os economistas como Laura Carvalho, Elena Landau e Affonso Celso Pastore, este ex-presidente do Banco Central.
A carta de quase 2.700 palavras pode ser dividida em dois: um diagnóstico da situação sanitária e econômica alarmante do país hoje e uma defesa de quatro grandes medidas contra o avanço da doença.
"Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive."
Nas últimas três semanas, o Brasil vem batendo diariamente sucessivos recordes de mortes registradas num período de 24 horas. Atualmente, a média diária é de 2.255 mortes, mas a tendência é de alta, e alguns pesquisadores não descartam que esse número pode até dobrar em breve.
Quase 300 mil pessoas morreram até agora, diversas cidades do país estão com hospitais lotados e muitos profissionais de saúde e autoridades alertam para a iminente falta de oxigênio e de medicamentos essenciais para intubar pacientes graves, que levaria a um aumento expressivo das mortes pela doença.
Covid-19: mapa da Fiocruz mostra UTIs brasileiras no vermelho
Desemprego recorde e vacinação lenta
Para o grupo que assina a carta aberta pedindo medidas de combate à pandemia, a situação econômica e social do Brasil é "desoladora".
O PIB (soma de todas riquezas produzidas no país em um período) continua a cair neste ano, o desemprego atingiu níveis recordes e pode ser maior do que apontam as estatísticas e a desigualdade se agravou.
"A contração da economia afetou desproporcionalmente trabalhadores mais pobres e vulneráveis, com uma queda de 10,5% no número de trabalhadores informais empregados, aproximadamente duas vezes a queda proporcional no número de trabalhadores formais empregados."
Os signatários da carta também criticam o governo Bolsonaro pela falta de vacina e lentidão do programação nacional de imunização, que levaria teria impacto direto na recuperação econômica. " Na semana iniciada em 8 de março foram aplicadas, em média, apenas 177 mil doses por dia. No ritmo atual, levaríamos mais de 3 anos para vacinar toda a população."
E acrescentam: "Em torno de 5% da população recebeu ao menos uma dose de vacina, o que nos coloca na 45ª posição no ranking mundial de doses aplicadas por habitante."
Quatro propostas contra a crise
Vacinação mais rápida
Os signatários da carta aberta fazem duras críticas ao governo federal pela falta de vacinas no país. "A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação."
O grupo aponta que "a relação benefício-custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação" e calcula que o atraso na vacinação "irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em dois trimestres".
Para eles, é fundamental que o governo use sua política externa para obter mais vacinas com grandes países produtores ou com aqueles com excedentes, como o caso dos Estados Unidos.
O Ministério das Relações Exteriores do Brasil divulgou que negocia desde 13 de março com o governo norte-americano a importação de doses excedentes de vacina. Mas ainda não se sabe se os EUA vão de fato vender ou doar esses imunizantes e nem quantos seriam.
Até agora, o país disse ter garantido 563 milhões de doses de vacina, mas a entrega delas será escalonada ao longo desse ano se tudo correr conforme planejado, o que não tem se confirmado durante a pandemia.
Grande parte dessas doses depende da exportação de outros países, que tem atrasado, como Índia e China, além de vacinas que ainda não foram aprovadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), como a indiana Covaxin, a belga Janssen e a russa Sputnik.
Máscaras gratuitas e eficazes
Na carta aberta, o grupo de signatários defende outra medida tida como um ótimo custo-benefício: a distribuição massiva de máscaras com filtragem eficaz contra o coronavírus que não custam mais do que R$ 3.
"Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial."
Máscaras que atendem normas técnicas, como a FFP2 e N95, têm uma estrutura semi-rígida (algumas em modelo concha e outras dobráveis), uma peça metálica para contornar o nariz e elásticos que ficam presos na cabeça e na nuca, gerando uma tensão maior que em modelos presos apenas na orelha.
Essa vedação é o que faz com que todo o ar inspirado e expirado passe pelo filtro, que é composto por várias camadas que fazem filtragem mecânica (partículas colidem e ficam presas nas fibras) e eletrostática (partículas são atraídas por fibras com carga elétrica).
É essa combinação de vedação e filtragem, explicou o engenheiro biomédico Vitor Mori à BBC News Brasil, que torna a máscara tão eficiente e garante que o usuário também está se protegendo, e não apenas protegendo os outros.
Há mais críticas direcionadas ao governo Bolsonaro nesse quesito, visto que o presidente é o principal opositor a elas no país.
"Estudos mostram que mensagens contrárias às medidas de prevenção afetam a sua adoção pela população, levando ao aumento do contágio."
Coordenação nacional para diretrizes e distanciamento social
Para signatários da carta, a postura de líderes políticos que desdenham da ciência, defendem tratamentos sem eficácia comprovada e estimulam aglomerações "reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos e aumenta custos que o país incorre".
O grupo defende coordenação do governo federal, e no caso de sua ausência de governos estaduais e prefeituras, para comprar vacinas e adotar medidas para conter o avanço da doença, como eventuais lockdowns (quando a circulação de pessoas é duramente limitada) restrições a viagens intermunicipais, interestaduais e internacionais.
Eles cobram que o governo federal deixe de agir contra os gestores que adotam essas medidas. Bolsonaro, inclusive, recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra medidas do tipo adotadas pelos governadores da Bahia, do Distrito Federal e do Rio Grande do Sul.
"Muitos Estados não tiveram alternativa senão adotar medidas mais drásticas, como fechamento de todas as atividades não essenciais e o toque de recolher à noite. Os gestores estaduais e municipais têm enfrentado campanhas contrárias por parte do governo federal e dos seus apoiadores."
Como medida para tornar possível e eficaz o distanciamento social mais amplo, o grupo defende os programas de amparo socioeconômico, como o auxílio emergencial.
"Há sólida evidência de que programas de amparo socioeconômico durante a pandemia aumentaram o respeito às regras de isolamento social dos beneficiários."
Leia abaixo a carta na íntegra:
CARTA ABERTA À SOCIEDADE REFERENTE A MEDIDAS DE COMBATE À PANDEMIA
O Brasil é hoje o epicentro mundial da covid-19, com a maior média móvel de novos casos.
Enquanto caminhamos para atingir a marca tétrica de 3 mil mortes por dia e um total de mortes acumuladas de 300 mil ainda esse mês, o quadro fica ainda mais alarmante com o esgotamento dos recursos de saúde na grande maioria de estados, com insuficiente número de leitos de UTI, respiradores e profissionais de saúde. Essa situação tem levado a mortes de pacientes na espera pelo atendimento, contribuindo para uma maior letalidade da doença.
A situação econômica e social é desoladora. O PIB encolheu 4,1% em 2020 e provavelmente observaremos uma contração no nível de atividade no primeiro trimestre deste ano. A taxa de desemprego, por volta de 14%, é a mais elevada da série histórica, e subestima o aumento do desemprego, pois a pandemia fez com que muitos trabalhadores deixassem de procurar emprego, levando a uma queda da força de trabalho entre fevereiro e dezembro de 5,5 milhões de pessoas.
A contração da economia afetou desproporcionalmente trabalhadores mais pobres e vulneráveis, com uma queda de 10,5% no número de trabalhadores informais empregados, aproximadamente duas vezes a queda proporcional no número de trabalhadores formais empregados.
Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal. Este subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia. Sabemos que a saída definitiva da crise requer a vacinação em massa da população. Infelizmente, estamos atrasados. Em torno de 5% da população recebeu ao menos uma dose de vacina, o que nos coloca na 45ª posição no ranking mundial de doses aplicadas por habitante.
O ritmo de vacinação no país é insuficiente para vacinar os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI) no 1º semestre de 2021, o que amplia o horizonte de vacinação para toda a população para meados de 2022.
As consequências são inomináveis. No momento, o Brasil passa por escassez de doses de vacina, com recorrentes atrasos no calendário de entregas e revisões para baixo na previsão de disponibilidade de doses a cada mês. Na semana iniciada em 8 de março foram aplicadas, em média, apenas 177 mil doses por dia.
No ritmo atual, levaríamos mais de 3 anos para vacinar toda a população. O surgimento de novas cepas no país (em especial a P.1) comprovadamente mais transmissíveis e potencialmente mais agressivas, torna a vacinação ainda mais urgente. A disseminação em larga escala do vírus, além de magnificar o número de doentes e mortos, aumenta a probabilidade de surgirem novas variantes com potencial de diminuir a eficácia das vacinas atuais.
Vacinas são relativamente baratas face ao custo que a pandemia impõe à sociedade. Os recursos federais para compra de vacinas somam R$ 22 bilhões, uma pequena fração dos R$ 327 bilhões desembolsados nos programas de auxílio emergencial e manutenção do emprego no ano de 2020.
Vacinas têm um benefício privado e social elevado, e um custo total comparativamente baixo. Poderíamos estar em melhor situação, o Brasil tem infraestrutura para isso. Em 1992, conseguimos vacinar 48 milhões de crianças contra o sarampo em apenas um mês.
Na campanha contra a Covid-19, se estivéssemos vacinando tão rápido quanto a Turquia, teríamos alcançado uma proporção da população duas vezes maior, e se tanto quanto o Chile, dez vezes maior. A falta de vacinas é o principal gargalo. Impressiona a negligência com as aquisições, dado que, desde o início da pandemia, foram desembolsados R$ 528,3 bilhões em medidas de combate à pandemia, incluindo os custos adicionais de saúde e gastos para mitigação da deteriorada situação econômica. A redução do nível da atividade nos custou uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em 2 trimestres.
Nesta perspectiva, a relação benefício custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação. A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação.
O quadro atual ainda poderá deteriorar-se muito se não houver esforços efetivos de coordenação nacional no apoio a governadores e prefeitos para limitação de mobilidade. Enquanto se busca encurtar os tempos e aumentar o número de doses de vacina disponíveis, é urgente o reforço de medidas de distanciamento social. Da mesma forma é essencial a introdução de incentivos e políticas públicas para uso de máscaras mais eficientes, em linha com os esforços observados na União Europeia e nos Estados Unidos.
A controvérsia em torno dos impactos econômicos do distanciamento social reflete o falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável. Na realidade, dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de covid-19. A experiência mostrou que mesmo países que optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo, em formas variadas, diante do agravamento da pandemia - é o caso do Reino Unido, por exemplo. Estudos mostraram que diante da aceleração de novos casos, a população responde ficando mais avessa ao risco sanitário, aumentando o isolamento voluntário e levando à queda no consumo das famílias mesmo antes ou sem que medidas restritivas formais sejam adotadas.15 A recuperação econômica, por sua vez, é lenta e depende da retomada de confiança e maior previsibilidade da situação de saúde no país.
Logo, não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada.
O efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social. Em particular, os trabalhadores informais, que constituem mais de 40% da força de trabalho, não têm proteção contra o desemprego. No ano passado, o auxílio emergencial foi fundamental para assistir esses trabalhadores mais vulneráveis que perderam seus empregos, e levou a uma redução da pobreza, evidenciando a necessidade de melhoria do nosso sistema de proteção social. Enquanto a pandemia perdurar, medidas que apoiem os mais vulneráveis, como o auxílio emergencial, se fazem necessárias. Em paralelo, não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais. Uma proposta nesses moldes é o programa de Responsabilidade Social, patrocinado pelo Centro de Debate de Políticas Públicas, encaminhado para o Congresso no final do ano passado.
Outras medidas de apoio às pequenas e médias empresas também se fazem necessárias. A experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade.
O aumento em 34,7% do endividamento dos pequenos negócios durante a pandemia amplifica essa necessidade. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.
Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica. Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive.
Medidas indispensáveis de combate à pandemia: a vacinação em massa é condição sine qua non para a recuperação econômica e redução dos óbitos.
1. Acelerar o ritmo da vacinação.O maior gargalo para aumentar o ritmo da vacinação é a escassez de vacinas disponíveis. Deve-se, portanto, aumentar a oferta de vacinas de forma urgente. A estratégia de depender da capacidade de produção local limitou a disponibilidade de doses ante a alternativa de pré-contratar doses prontas, como fez o Chile e outros países. Perdeu-se um tempo precioso e a assinatura de novos contratos agora não garante oferta de vacinas em prazo curto. É imperativo negociar com todos os laboratórios que dispõem de vacinas já aprovadas por agências de vigilância internacionais relevantes e buscar antecipação de entrega do maior número possível de doses. Tendo em vista a escassez de oferta no mercado internacional, é fundamental usar a política externa - desidratada de ideologia ou alinhamentos automáticos - para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores seja nos países que têm ou terão excedentes em breve.
A vacinação é uma corrida contra o surgimento de novas variantes que podem escapar da imunidade de infecções passadas e de vacinas antigas. As novas variantes surgidas no Brasil tornam o controle da pandemia mais desafiador, dada a maior transmissibilidade.
Com o descontrole da pandemia é questão de tempo até emergirem novas variantes. O Brasil precisa ampliar suas capacidades de sequenciamento genômico em tempo real, de compartilhar dados com a comunidade internacional e de testar a eficácia das vacinas contra outras variantes com máxima agilidade. Falhas e atrasos nesse processo podem colocar em risco toda a população brasileira, e também de outros países.
2. Incentivar o uso de máscaras tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. Economistas estimaram que se os Estados Unidos tivessem adotado regras de uso de máscaras no início da pandemia poderiam ter reduzido de forma expressiva o número de óbitos. Mesmo se um usuário de máscara for infectado pelo vírus, a máscara pode reduzir a gravidade dos sintomas, pois reduz a carga viral inicial que o usuário é exposto. Países da União Europeia e os Estados Unidos passaram a recomendar o uso de máscaras mais eficientes - máscaras cirúrgicas e padrão PFF2/N95 - como resposta às novas variantes. O Brasil poderia fazer o mesmo, distribuindo máscaras melhores à população de baixa renda, explicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da covid.
Máscaras com filtragem adequada têm preços a partir de R$ 3 a unidade. A distribuição gratuita direcionada para pessoas sem condições de comprá-las, acompanhada de instrução correta de reuso, teria um baixo custo frente aos benefícios de contenção da Covid-1923. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial. Embora leis de uso de máscara ajudem, informar corretamente a população e as lideranças darem o exemplo também é importante, e tem impacto na trajetória da epidemia. Inversamente, estudos mostram que mensagens contrárias às medidas de prevenção afetam a sua adoção pela população, levando ao aumento do contágio.
3. Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local com coordenação nacional. O termo "distanciamento social" abriga uma série de medidas distintas, que incluem a proibição de aglomeração em locais públicos, o estímulo ao trabalho a distância, o fechamento de estabelecimentos comerciais, esportivos, entre outros, e - no limite - escolas e creches. Cada uma dessas medidas tem impactos sociais e setoriais distintos. A melhor combinação é aquela que maximize os benefícios em termos de redução da transmissão do vírus e minimize seus efeitos econômicos, e depende das características da geografia e da economia de cada região ou cidade. Isso sugere que as decisões quanto a essas medidas devem ser de responsabilidade das autoridades locais.
Com o agravamento da pandemia e esgotamento dos recursos de saúde, muitos estados não tiveram alternativa senão adotar medidas mais drásticas, como fechamento de todas as atividades não-essenciais e o toque de recolher à noite. Os gestores estaduais e municipais têm enfrentado campanhas contrárias por parte do governo federal e dos seus apoiadores. Para maximizar a efetividade das medidas tomadas, é indispensável que elas sejam apoiadas, em especial pelos órgãos federais. Em particular, é imprescindível uma coordenação em âmbito nacional que permita a adoção de medidas de caráter nacional, regional ou estadual, caso se avalie que é necessário cercear a mobilidade entre as cidades e/ou estados ou mesmo a entrada de estrangeiros no país.
A necessidade de adotar um lockdown nacional ou regional deveria ser avaliado. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção em termos de escopo, abrangência das atividades cobertas, cronograma de implementação e duração.
Ademais, é necessário levar em consideração que o acréscimo de adesão ao distanciamento social entre os mais vulneráveis depende crucialmente do auxílio emergencial. Há sólida evidência de que programas de amparo socioeconômico durante a pandemia aumentaram o respeito às regras de isolamento social dos beneficiários. É, portanto, não só mais justo como mais eficiente focalizar a assistência nas populações de baixa renda, que são mais expostas nas suas atividades de trabalho e mais vulneráveis financeiramente.
Dentre a combinação de medidas possíveis, a questão do funcionamento das escolas merece atenção especial. Há estudos mostrando que não há correlação entre aumento de casos de infecção e reabertura de escolas no mundo. Há também informações sobre o nível relativamente reduzido de contágio nas escolas de São Paulo após sua abertura.
As funções da escola, principalmente nos anos do ensino fundamental, vão além da transmissão do conhecimento, incluindo cuidados e acesso à alimentação de crianças, liberando os pais - principalmente as mães - para o trabalho. O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. A evidência mostra que alunos de baixa renda, com menor acesso às ferramentas digitais, enfrentam maiores dificuldade de completar as atividades educativas, ampliando a desigualdade da formação de capital humano entre os estudantes.
Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social. Há aqui um papel fundamental para o Ministério da Educação em cooperação com o Ministério da Saúde na definição e comunicação de procedimentos que contribuam para a minimização dos riscos de contágio nas escolas, além do uso de ferramentas comportamentais para retenção da evasão escolar, como o uso de mensagens de celular como estímulo para motivar os estudantes, conforme adotado em São Paulo e Goiás.
4. Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional - preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores - orientada por uma comissão de cientistas e especialistas, se tornou urgente. Diretrizes nacionais são ainda mais necessárias com a escassez de vacinas e logo a necessidade de definição de grupos prioritários; com as tentativas e erros no distanciamento social; a limitada compreensão por muitos dos pilares da prevenção, particularmente da importância do uso de máscara, e outras medidas no âmbito do relacionamento social.
Na ausência de coordenação federal, é essencial a concertação entre os entes subnacionais, consórcio para a compra de vacinas e para a adoção de medidas de supressão.
O papel de liderança: Apesar do negacionismo de alguns poucos, praticamente todos os líderes da comunidade internacional tomaram a frente no combate ao covid-19 desde março de 2020, quando a OMS declarou o caráter pandêmico da crise sanitária. Informando, notando a gravidade de uma crise sem precedentes em 100 anos, guiando a ação dos indivíduos e influenciado o comportamento social.
Líderes políticos, com acesso à mídia e às redes, recursos de Estado, e comandando atenção, fazem a diferença: para o bem e para o mal. O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos que o país incorre.
O país pode se sair melhor se perseguimos uma agenda responsável. O país tem pressa; o país quer seriedade com a coisa pública; o país está cansado de ideias fora do lugar, palavras inconsequentes, ações erradas ou tardias. O Brasil exige respeito.
Em novo recorde, país registra mais de mil óbitos pelo terceiro domingo consecutivo, dia em que o número costuma ser mais baixo. Total de vítimas da covid-19 passa de 294 mil.
Túmulos com flores em cemitérios em São Paulo
O Brasil registrou neste domingo (21/03) 1.290 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). Essa é a maior marca já registrada num domingo, dia da semana em que o número costuma ser significativamente menor devido ao represamento de testes.
O país já havia registrado recordes no domingo passado (14/03), quando notificou 1.138 óbitos ligados ao coronavírus, e no retrasado (07/03), quando o número de mortes ficou acima de mil pela primeira vez num domingo.
Também foram identificados neste domingo 47.774 novos casos da doença, segundo o Conass. Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 11.998.233, enquanto os óbitos chegaram a 294.042 desde o início da epidemia.
Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.
O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.419.393 pacientes haviam se recuperado da doença até sábado.
A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 139,9 no Brasil, a 19ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.
Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29,8 milhões de casos. É também o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 542 mil pessoas morreram nos EUA.
Ao todo, mais de 123 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,71 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.
Há um ano, movimentos exigiam impeachment de Bolsonaro, mas foram desqualificados pois era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia. O tempo passou e ficou claro que a verdadeira crise brasileira é o próprio presidente, que trabalha para aprofundá-la
Imagem que percorreu as redes sociais do idoso morto no chão de uma UPA em Teresina / Foto Reprodução Redes Sociais.
Na última sexta feira, a imprensa noticiou que “um homem”, “um idoso” morreu no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento em Teresina. O “homem” apresentava problemas respiratórios, mas a UPA não tinha maca disponível, não tinha leito e muito menos vaga em UTI. Ao fim, ele morreu de parada cardíaca. Sua foto circulou na imprensa e redes sociais enquanto o Brasil se consolidava como uma espécie de cemitério mundial, pois é responsável por 25% das mortes atuais de covid-19. País que agora vê subir contra si um cordão sanitário internacional, como se fôssemos o ponto global de aberração.
O “homem” em questão era negro e vinha de um bairro pobre na zona sul de Teresina, Promorar. Ele morreu sem que veículos de imprensa sequer dissessem seu nome. Uma morte sem história, sem narrativa, sem drama. Mais um morto que existiu na opinião pública como um corpo genérico: “um idoso”, “um homem”. Não teve direito à descrição de sua “luta pela vida”, nem da dor em “entes queridos”. Não houve declarações da família, nem comoção ou luto. Afinal, “um homem” não tem família, nem lágrimas. Ele é apenas o elemento de um gênero. Dele, vemos apenas seus últimos momentos, no chão branco e frio, enquanto uma enfermeira, com parcos recursos, está a seu lado, também sentada no chão, como quem se encontra completamente atravessada pela disparidade entre os recursos necessários e a situação caótica em sua unidade hospitalar. Reduzido a um corpo em vias de morrer, ele repete a história imemorial da maneira com que se morre no Brasil, quando se é negro e se vive na em bairros pobres. A foto de seus momentos finais só chegou até nós porque sua história tocou a história da pandemia global.
Enquanto “um homem” morria no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento, com o coração lutando para conseguir ainda encontrar ar, o Brasil assistia o ocupante da cadeira de presidente a ameaçar o país com estado de sítio, ou “medidas duras” caso o STF não acolhesse sua exigência delirante de suspender o lockdown aplicado por governadores e prefeitos desesperados. Não se tratava assim apenas de negligencia em relação a ações mínimas de combate a morte em massa de sua própria população. Nem se tratava mais da irresponsabilidade na compra e aplicação de vacinas, até agora fornecidas a menos de 5% da população geral. Tratava-se, na verdade, de ameaça de ruptura e de uso deliberado do poder para preservar situações que generalizarão, para todo o país, o destino do que ocorreu em Teresina com “um homem”. Generalizar a morte indiferente e seca. Ou seja, via-se claramente uma ação deliberada de colocar a população diante da morte em massa.
Enquanto nossos concidadãos e concidadãs morriam sem ar, no chão frio de hospitais, a classe política, os ministros do STF não estavam dedicando seu tempo a pensar como mobilizar recursos para proteger a população da morte violenta. Eles estavam se perguntando sobre se Brasília acordaria ou não em estado de sítio. Ou seja, estávamos diante de um governo que trabalha, com afinco e dedicação, para a consolidação de uma lógica sacrificial e suicidária cujo foco principal são as classes vulneráveis do país. Um governo que não chora pela morte de suas cidadãs e seus cidadãos, mas que cozinha, no fogo alto da indiferença, o prato envenenado que ele nos serve goela abaixo. Não por outra razão “genocídio” apareceu como a palavra mais precisa para descrever a ação do governo contra seu próprio povo.
Um governo como esse deve ser derrubado. E devemos dizer isto de forma a mais clara. Preservá-lo é ser cúmplice. Esperar mais um ano e meio será insanidade, até porque há de se preparar para um governo disposto a não sair do poder mesmo se perder a eleição. Vimos isso nos EUA e, no fundo, sabemos que o que nos espera é um cenário ainda pior, já que este é um Governo das Forças Armadas.
Cabe a todas e todos usar seus recursos, sua capacidade de ação e mobilização para deixar de simplesmente xingar o governante principal, gritar para que ele saia, e agir concretamente para derrubá-lo, assim como a estrutura que o suportou e ainda o suporta. A função elementar, a justificativa básica de todo governo é a proteção de sua população contra a morte violenta vinda de ataques externos e crises sanitárias. Um governo que não é apenas incapaz de preencher tais funções, mas que trabalha deliberadamente para aprofundá-la não pode ser preservado. Ele funciona como um governo, em situação de guerra, que age para fortalecer aqueles que nos atacam. Em situação normal, isso se chama (e afinal, o vocabulário militar é o único que eles são capazes de compreender): alta traição. Um governo que não tem lágrimas nem ação para impedir que “um homem” morra no chão de um hospital, que age deliberadamente para que isso se repita de forma reiterada perdeu toda e qualquer legitimidade. Não há pacto algum que o sustente. E toda ação contra um governo ilegítimo é uma ação legítima.
Na verdade, esse governo já nasceu ilegítimo, fruto de uma eleição farsesca cujos capítulos agora veem à público. Uma eleição baseada no afastamento e prisão do candidato “indesejável” através de um processo no qual se forjou até mesmo depoimentos de pessoas que nunca depuseram. Ele nasce de um golpe militar de outra natureza, que não se faz com tanques na rua, mas com tweets enviados ao STF ameaçando a ruptura caso resultados não desejados pela casta militar ocorressem influenciando as eleições.
Há um ano, vários de nós começaram movimentos exigindo o impeachment de Bolsonaro. Não faltou quem desqualificasse tais demandas, afirmando que, ao contrário, era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia, que mais um impeachment seria catastrófico para a vida política nacional, entre outros. Um ano se passou e ficou claro como o sol ao meio-dia que a verdadeira crise brasileira é Bolsonaro, que não é possível tentar combater a pandemia com Bolsonaro no governo. Mesmo assim, setores que clamavam por “frentes amplas” nada fizeram para realizar a única coisa sensata diante de tamanho descalabro, a saber, derrubar o governo: mobilizar greves, paralisações, bloqueios, manifestações, ocupações, desobediência civil para preservar vidas. Como dizia Brecht, adaptado pelos cineastas Straub e Huillet, só a violência ajuda onde a violência reina.
A primeira condição para derrubar um governo é querer que ele seja derrubado, é enunciar claramente que ele deve ser derrubado. É não procurar mais subterfúgios e palavras outras para descrever aquilo que compete à sociedade em situações nas quais ela está sob um governo cujas ações produzem a morte em massa da população. Há um setor da população brasileira, envolto em uma identificação de tal ordem, que irá com Bolsonaro, literalmente, até o cemitério. Como já deve ter ficado claro, nada fará o governo perder esse núcleo duro. Cabe aos que não querem seguir essa via lutar, abertamente e sem subterfúgios, para que o governo caia.
Vladimir Safatle para o EL PAÍS, em 20 de Março de 2021
No seu último surto apocalíptico, Bolsonaro tirou da gaveta o absurdo fantasma estado de sítio
Até a divulgação da última pesquisa do Datafolha, Bolsonaro e seu pelotão palaciano estavam certos de que o combate ao isolamento aumentava seu capital eleitoral.
Talvez a valentia tivesse algum valor, mas as estatísticas da pandemia abalaram essa crença.
Com 79% dos entrevistados achando que a peste está fora de controle, ir para um segundo turno com um passivo de mais de 300 mil mortos deixou de ser boa ideia.
Bolsonaro e o sítio
Bolsonaro flerta com o Apocalipse desde o início da pandemia. Anteviu saques e desordens que não aconteceram. Os saques que ocorreram em alguns estados, como no Rio do governador Witzel, não miravam em supermercados e sim na bolsa da Viúva, afanando verbas de hospitais de campanha.
No caso das desordens, basta olhar em volta: quatro ministros da Saúde, as vacinas de Manaus foram para Macapá e o Exército recebeu ordens para fabricar cloroquina.
Tudo teria sido melhor se o capitão tivesse olhado de outro jeito para a pandemia, mas a vida é como ela é. No seu último surto apocalíptico, Bolsonaro tirou da gaveta o absurdo fantasma estado de sítio.
As desordens que não aconteceram podem ocorrer. Num delírio de cloroquina pode-se imaginar alguns milicianos atacando lojas ou depredando ônibus.
Em 1981 procurou-se atribuir a uma organização terrorista de esquerda que não existia mais a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento, dentro do carro de um capitão lotado no DOI.
Anos antes, um maluco que via discos voadores juntou-se a policiais, assaltou um banco e botou bombas em São Paulo. Preso, contou que recebia ordens de poderosos.
Isolamento social
Jair Bolsonaro pode ter suas razões ao achar que o isolamento social abala a economia.
Com certeza, não há economia que ande direito se o presidente detona em menos de um mês os presidentes da Petrobras e do Banco do Brasil.
Isso para não se falar na desidratação dos frentistas do Posto Ipiranga. Pelo menos quinze já foram embora.
Elio Gaspari é Jornalista e autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada". Este artigo foi publicado originalmente no UOL, em 21.03.2021.