segunda-feira, 22 de março de 2021

Na íntegra, a dura carta de banqueiros e economistas com críticas a Bolsonaro e propostas para pandemia

"Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas", diz carta; Brasil vive o maior colapso sanitário e hospitalar de sua história, aponta a Fiocruz


Brasil urgente! Entre a morte e a vida. É escapar do vírus ou morrer. (Crédito da foto: Diogo Vara/Reuters)

Em carta aberta, mais de 200 economistas, banqueiros, empresários e ex-autoridades do setor público fizeram críticas à atuação ao governo Bolsonaro na pandemia, cobraram mais vacinas, máscaras gratuitas e medidas de distanciamento social e refutaram o "falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável".

"Dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de covid-19", afirma o documento, assinado por nomes como os banqueiros Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles (Itaú), os ex-ministros Pedro Malan e Rubens Ricupero e os economistas como Laura Carvalho, Elena Landau e Affonso Celso Pastore, este ex-presidente do Banco Central.

A carta de quase 2.700 palavras pode ser dividida em dois: um diagnóstico da situação sanitária e econômica alarmante do país hoje e uma defesa de quatro grandes medidas contra o avanço da doença.

"Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive."

Nas últimas três semanas, o Brasil vem batendo diariamente sucessivos recordes de mortes registradas num período de 24 horas. Atualmente, a média diária é de 2.255 mortes, mas a tendência é de alta, e alguns pesquisadores não descartam que esse número pode até dobrar em breve.

Quase 300 mil pessoas morreram até agora, diversas cidades do país estão com hospitais lotados e muitos profissionais de saúde e autoridades alertam para a iminente falta de oxigênio e de medicamentos essenciais para intubar pacientes graves, que levaria a um aumento expressivo das mortes pela doença.

Covid-19: mapa da Fiocruz mostra UTIs brasileiras no vermelho

Desemprego recorde e vacinação lenta

Para o grupo que assina a carta aberta pedindo medidas de combate à pandemia, a situação econômica e social do Brasil é "desoladora".

O PIB (soma de todas riquezas produzidas no país em um período) continua a cair neste ano, o desemprego atingiu níveis recordes e pode ser maior do que apontam as estatísticas e a desigualdade se agravou.

"A contração da economia afetou desproporcionalmente trabalhadores mais pobres e vulneráveis, com uma queda de 10,5% no número de trabalhadores informais empregados, aproximadamente duas vezes a queda proporcional no número de trabalhadores formais empregados."

Os signatários da carta também criticam o governo Bolsonaro pela falta de vacina e lentidão do programação nacional de imunização, que levaria teria impacto direto na recuperação econômica. " Na semana iniciada em 8 de março foram aplicadas, em média, apenas 177 mil doses por dia. No ritmo atual, levaríamos mais de 3 anos para vacinar toda a população."

E acrescentam: "Em torno de 5% da população recebeu ao menos uma dose de vacina, o que nos coloca na 45ª posição no ranking mundial de doses aplicadas por habitante."

Quatro propostas contra a crise

Vacinação mais rápida

Os signatários da carta aberta fazem duras críticas ao governo federal pela falta de vacinas no país. "A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação."

O grupo aponta que "a relação benefício-custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação" e calcula que o atraso na vacinação "irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em dois trimestres".

Para eles, é fundamental que o governo use sua política externa para obter mais vacinas com grandes países produtores ou com aqueles com excedentes, como o caso dos Estados Unidos.

O Ministério das Relações Exteriores do Brasil divulgou que negocia desde 13 de março com o governo norte-americano a importação de doses excedentes de vacina. Mas ainda não se sabe se os EUA vão de fato vender ou doar esses imunizantes e nem quantos seriam.

Até agora, o país disse ter garantido 563 milhões de doses de vacina, mas a entrega delas será escalonada ao longo desse ano se tudo correr conforme planejado, o que não tem se confirmado durante a pandemia.

Grande parte dessas doses depende da exportação de outros países, que tem atrasado, como Índia e China, além de vacinas que ainda não foram aprovadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), como a indiana Covaxin, a belga Janssen e a russa Sputnik.

Máscaras gratuitas e eficazes

Na carta aberta, o grupo de signatários defende outra medida tida como um ótimo custo-benefício: a distribuição massiva de máscaras com filtragem eficaz contra o coronavírus que não custam mais do que R$ 3.

"Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial."

Máscaras que atendem normas técnicas, como a FFP2 e N95, têm uma estrutura semi-rígida (algumas em modelo concha e outras dobráveis), uma peça metálica para contornar o nariz e elásticos que ficam presos na cabeça e na nuca, gerando uma tensão maior que em modelos presos apenas na orelha.

Essa vedação é o que faz com que todo o ar inspirado e expirado passe pelo filtro, que é composto por várias camadas que fazem filtragem mecânica (partículas colidem e ficam presas nas fibras) e eletrostática (partículas são atraídas por fibras com carga elétrica).


É essa combinação de vedação e filtragem, explicou o engenheiro biomédico Vitor Mori à BBC News Brasil, que torna a máscara tão eficiente e garante que o usuário também está se protegendo, e não apenas protegendo os outros.

Há mais críticas direcionadas ao governo Bolsonaro nesse quesito, visto que o presidente é o principal opositor a elas no país.

"Estudos mostram que mensagens contrárias às medidas de prevenção afetam a sua adoção pela população, levando ao aumento do contágio."

Coordenação nacional para diretrizes e distanciamento social

Para signatários da carta, a postura de líderes políticos que desdenham da ciência, defendem tratamentos sem eficácia comprovada e estimulam aglomerações "reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos e aumenta custos que o país incorre".

O grupo defende coordenação do governo federal, e no caso de sua ausência de governos estaduais e prefeituras, para comprar vacinas e adotar medidas para conter o avanço da doença, como eventuais lockdowns (quando a circulação de pessoas é duramente limitada) restrições a viagens intermunicipais, interestaduais e internacionais.

Eles cobram que o governo federal deixe de agir contra os gestores que adotam essas medidas. Bolsonaro, inclusive, recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra medidas do tipo adotadas pelos governadores da Bahia, do Distrito Federal e do Rio Grande do Sul.

"Muitos Estados não tiveram alternativa senão adotar medidas mais drásticas, como fechamento de todas as atividades não essenciais e o toque de recolher à noite. Os gestores estaduais e municipais têm enfrentado campanhas contrárias por parte do governo federal e dos seus apoiadores."

Como medida para tornar possível e eficaz o distanciamento social mais amplo, o grupo defende os programas de amparo socioeconômico, como o auxílio emergencial.

"Há sólida evidência de que programas de amparo socioeconômico durante a pandemia aumentaram o respeito às regras de isolamento social dos beneficiários."


Leia abaixo a carta na íntegra:

CARTA ABERTA À SOCIEDADE REFERENTE A MEDIDAS DE COMBATE À PANDEMIA

O Brasil é hoje o epicentro mundial da covid-19, com a maior média móvel de novos casos.

Enquanto caminhamos para atingir a marca tétrica de 3 mil mortes por dia e um total de mortes acumuladas de 300 mil ainda esse mês, o quadro fica ainda mais alarmante com o esgotamento dos recursos de saúde na grande maioria de estados, com insuficiente número de leitos de UTI, respiradores e profissionais de saúde. Essa situação tem levado a mortes de pacientes na espera pelo atendimento, contribuindo para uma maior letalidade da doença.

A situação econômica e social é desoladora. O PIB encolheu 4,1% em 2020 e provavelmente observaremos uma contração no nível de atividade no primeiro trimestre deste ano. A taxa de desemprego, por volta de 14%, é a mais elevada da série histórica, e subestima o aumento do desemprego, pois a pandemia fez com que muitos trabalhadores deixassem de procurar emprego, levando a uma queda da força de trabalho entre fevereiro e dezembro de 5,5 milhões de pessoas.

A contração da economia afetou desproporcionalmente trabalhadores mais pobres e vulneráveis, com uma queda de 10,5% no número de trabalhadores informais empregados, aproximadamente duas vezes a queda proporcional no número de trabalhadores formais empregados.

Esta recessão, assim como suas consequências sociais nefastas, foi causada pela pandemia e não será superada enquanto a pandemia não for controlada por uma atuação competente do governo federal. Este subutiliza ou utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia. Sabemos que a saída definitiva da crise requer a vacinação em massa da população. Infelizmente, estamos atrasados. Em torno de 5% da população recebeu ao menos uma dose de vacina, o que nos coloca na 45ª posição no ranking mundial de doses aplicadas por habitante.

O ritmo de vacinação no país é insuficiente para vacinar os grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI) no 1º semestre de 2021, o que amplia o horizonte de vacinação para toda a população para meados de 2022.

As consequências são inomináveis. No momento, o Brasil passa por escassez de doses de vacina, com recorrentes atrasos no calendário de entregas e revisões para baixo na previsão de disponibilidade de doses a cada mês. Na semana iniciada em 8 de março foram aplicadas, em média, apenas 177 mil doses por dia.

No ritmo atual, levaríamos mais de 3 anos para vacinar toda a população. O surgimento de novas cepas no país (em especial a P.1) comprovadamente mais transmissíveis e potencialmente mais agressivas, torna a vacinação ainda mais urgente. A disseminação em larga escala do vírus, além de magnificar o número de doentes e mortos, aumenta a probabilidade de surgirem novas variantes com potencial de diminuir a eficácia das vacinas atuais.

Vacinas são relativamente baratas face ao custo que a pandemia impõe à sociedade. Os recursos federais para compra de vacinas somam R$ 22 bilhões, uma pequena fração dos R$ 327 bilhões desembolsados nos programas de auxílio emergencial e manutenção do emprego no ano de 2020.

Vacinas têm um benefício privado e social elevado, e um custo total comparativamente baixo. Poderíamos estar em melhor situação, o Brasil tem infraestrutura para isso. Em 1992, conseguimos vacinar 48 milhões de crianças contra o sarampo em apenas um mês.

Na campanha contra a Covid-19, se estivéssemos vacinando tão rápido quanto a Turquia, teríamos alcançado uma proporção da população duas vezes maior, e se tanto quanto o Chile, dez vezes maior. A falta de vacinas é o principal gargalo. Impressiona a negligência com as aquisições, dado que, desde o início da pandemia, foram desembolsados R$ 528,3 bilhões em medidas de combate à pandemia, incluindo os custos adicionais de saúde e gastos para mitigação da deteriorada situação econômica. A redução do nível da atividade nos custou uma perda de arrecadação tributária apenas no âmbito federal de 6,9%, aproximadamente R$ 58 bilhões, e o atraso na vacinação irá custar em termos de produto ou renda não gerada nada menos do que estimados R$ 131,4 bilhões em 2021, supondo uma recuperação retardatária em 2 trimestres.

Nesta perspectiva, a relação benefício custo da vacina é da ordem de seis vezes para cada real gasto na sua aquisição e aplicação. A insuficiente oferta de vacinas no país não se deve ao seu elevado custo, nem à falta de recursos orçamentários, mas à falta de prioridade atribuída à vacinação.

O quadro atual ainda poderá deteriorar-se muito se não houver esforços efetivos de coordenação nacional no apoio a governadores e prefeitos para limitação de mobilidade. Enquanto se busca encurtar os tempos e aumentar o número de doses de vacina disponíveis, é urgente o reforço de medidas de distanciamento social. Da mesma forma é essencial a introdução de incentivos e políticas públicas para uso de máscaras mais eficientes, em linha com os esforços observados na União Europeia e nos Estados Unidos.

A controvérsia em torno dos impactos econômicos do distanciamento social reflete o falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável. Na realidade, dados preliminares de óbitos e desempenho econômico sugerem que os países com pior desempenho econômico tiveram mais óbitos de covid-19. A experiência mostrou que mesmo países que optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo, em formas variadas, diante do agravamento da pandemia - é o caso do Reino Unido, por exemplo. Estudos mostraram que diante da aceleração de novos casos, a população responde ficando mais avessa ao risco sanitário, aumentando o isolamento voluntário e levando à queda no consumo das famílias mesmo antes ou sem que medidas restritivas formais sejam adotadas.15 A recuperação econômica, por sua vez, é lenta e depende da retomada de confiança e maior previsibilidade da situação de saúde no país.

Logo, não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada.

O efeito devastador da pandemia sobre a economia tornou evidente a precariedade do nosso sistema de proteção social. Em particular, os trabalhadores informais, que constituem mais de 40% da força de trabalho, não têm proteção contra o desemprego. No ano passado, o auxílio emergencial foi fundamental para assistir esses trabalhadores mais vulneráveis que perderam seus empregos, e levou a uma redução da pobreza, evidenciando a necessidade de melhoria do nosso sistema de proteção social. Enquanto a pandemia perdurar, medidas que apoiem os mais vulneráveis, como o auxílio emergencial, se fazem necessárias. Em paralelo, não devemos adiar mais o encaminhamento de uma reforma no sistema de proteção social, visando aprimorar a atual rede de assistência social e prover seguro aos informais. Uma proposta nesses moldes é o programa de Responsabilidade Social, patrocinado pelo Centro de Debate de Políticas Públicas, encaminhado para o Congresso no final do ano passado.

Outras medidas de apoio às pequenas e médias empresas também se fazem necessárias. A experiência internacional com programas de aval público para financiamento privado voltado para pequenos empreendedores durante um choque negativo foi bem-sucedida na manutenção de emprego, gerando um benefício líquido positivo à sociedade.

O aumento em 34,7% do endividamento dos pequenos negócios durante a pandemia amplifica essa necessidade. A retomada de linhas avalizadas pelo Fundo Garantidor para Investimentos e Fundo de Garantia de Operações é uma medida importante de transição entre a segunda onda e o pós-crise.

Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica. Não há mais tempo para perder em debates estéreis e notícias falsas. Precisamos nos guiar pelas experiências bem-sucedidas, por ações de baixo custo e alto impacto, por iniciativas que possam reverter de fato a situação sem precedentes que o país vive.

Medidas indispensáveis de combate à pandemia: a vacinação em massa é condição sine qua non para a recuperação econômica e redução dos óbitos.

1. Acelerar o ritmo da vacinação. O maior gargalo para aumentar o ritmo da vacinação é a escassez de vacinas disponíveis. Deve-se, portanto, aumentar a oferta de vacinas de forma urgente. A estratégia de depender da capacidade de produção local limitou a disponibilidade de doses ante a alternativa de pré-contratar doses prontas, como fez o Chile e outros países. Perdeu-se um tempo precioso e a assinatura de novos contratos agora não garante oferta de vacinas em prazo curto. É imperativo negociar com todos os laboratórios que dispõem de vacinas já aprovadas por agências de vigilância internacionais relevantes e buscar antecipação de entrega do maior número possível de doses. Tendo em vista a escassez de oferta no mercado internacional, é fundamental usar a política externa - desidratada de ideologia ou alinhamentos automáticos - para apoiar a obtenção de vacinas, seja nos grandes países produtores seja nos países que têm ou terão excedentes em breve.

A vacinação é uma corrida contra o surgimento de novas variantes que podem escapar da imunidade de infecções passadas e de vacinas antigas. As novas variantes surgidas no Brasil tornam o controle da pandemia mais desafiador, dada a maior transmissibilidade.

Com o descontrole da pandemia é questão de tempo até emergirem novas variantes. O Brasil precisa ampliar suas capacidades de sequenciamento genômico em tempo real, de compartilhar dados com a comunidade internacional e de testar a eficácia das vacinas contra outras variantes com máxima agilidade. Falhas e atrasos nesse processo podem colocar em risco toda a população brasileira, e também de outros países.

2. Incentivar o uso de máscaras tanto com distribuição gratuita quanto com orientação educativa. Economistas estimaram que se os Estados Unidos tivessem adotado regras de uso de máscaras no início da pandemia poderiam ter reduzido de forma expressiva o número de óbitos. Mesmo se um usuário de máscara for infectado pelo vírus, a máscara pode reduzir a gravidade dos sintomas, pois reduz a carga viral inicial que o usuário é exposto. Países da União Europeia e os Estados Unidos passaram a recomendar o uso de máscaras mais eficientes - máscaras cirúrgicas e padrão PFF2/N95 - como resposta às novas variantes. O Brasil poderia fazer o mesmo, distribuindo máscaras melhores à população de baixa renda, explicando a importância do seu uso na prevenção da transmissão da covid.

Máscaras com filtragem adequada têm preços a partir de R$ 3 a unidade. A distribuição gratuita direcionada para pessoas sem condições de comprá-las, acompanhada de instrução correta de reuso, teria um baixo custo frente aos benefícios de contenção da Covid-1923. Considerando o público do auxílio emergencial, de 68 milhões de pessoas, por exemplo, e cinco reusos da máscara, tal como recomenda o Center for Disease Control do EUA, chegaríamos a um custo mensal de R$ 1 bilhão. Isto é, 2% do gasto estimado mensal com o auxílio emergencial. Embora leis de uso de máscara ajudem, informar corretamente a população e as lideranças darem o exemplo também é importante, e tem impacto na trajetória da epidemia. Inversamente, estudos mostram que mensagens contrárias às medidas de prevenção afetam a sua adoção pela população, levando ao aumento do contágio.

3. Implementar medidas de distanciamento social no âmbito local com coordenação nacional. O termo "distanciamento social" abriga uma série de medidas distintas, que incluem a proibição de aglomeração em locais públicos, o estímulo ao trabalho a distância, o fechamento de estabelecimentos comerciais, esportivos, entre outros, e - no limite - escolas e creches. Cada uma dessas medidas tem impactos sociais e setoriais distintos. A melhor combinação é aquela que maximize os benefícios em termos de redução da transmissão do vírus e minimize seus efeitos econômicos, e depende das características da geografia e da economia de cada região ou cidade. Isso sugere que as decisões quanto a essas medidas devem ser de responsabilidade das autoridades locais.

Com o agravamento da pandemia e esgotamento dos recursos de saúde, muitos estados não tiveram alternativa senão adotar medidas mais drásticas, como fechamento de todas as atividades não-essenciais e o toque de recolher à noite. Os gestores estaduais e municipais têm enfrentado campanhas contrárias por parte do governo federal e dos seus apoiadores. Para maximizar a efetividade das medidas tomadas, é indispensável que elas sejam apoiadas, em especial pelos órgãos federais. Em particular, é imprescindível uma coordenação em âmbito nacional que permita a adoção de medidas de caráter nacional, regional ou estadual, caso se avalie que é necessário cercear a mobilidade entre as cidades e/ou estados ou mesmo a entrada de estrangeiros no país.

A necessidade de adotar um lockdown nacional ou regional deveria ser avaliado. É urgente que os diferentes níveis de governo estejam preparados para implementar um lockdown emergencial, definindo critérios para a sua adoção em termos de escopo, abrangência das atividades cobertas, cronograma de implementação e duração.

Ademais, é necessário levar em consideração que o acréscimo de adesão ao distanciamento social entre os mais vulneráveis depende crucialmente do auxílio emergencial. Há sólida evidência de que programas de amparo socioeconômico durante a pandemia aumentaram o respeito às regras de isolamento social dos beneficiários. É, portanto, não só mais justo como mais eficiente focalizar a assistência nas populações de baixa renda, que são mais expostas nas suas atividades de trabalho e mais vulneráveis financeiramente.

Dentre a combinação de medidas possíveis, a questão do funcionamento das escolas merece atenção especial. Há estudos mostrando que não há correlação entre aumento de casos de infecção e reabertura de escolas no mundo. Há também informações sobre o nível relativamente reduzido de contágio nas escolas de São Paulo após sua abertura.

As funções da escola, principalmente nos anos do ensino fundamental, vão além da transmissão do conhecimento, incluindo cuidados e acesso à alimentação de crianças, liberando os pais - principalmente as mães - para o trabalho. O fechamento de escolas no Brasil atingiu de forma mais dura as crianças mais pobres e suas mães. A evidência mostra que alunos de baixa renda, com menor acesso às ferramentas digitais, enfrentam maiores dificuldade de completar as atividades educativas, ampliando a desigualdade da formação de capital humano entre os estudantes.

Portanto, as escolas devem ser as últimas a fechar e as primeiras a reabrir em um esquema de distanciamento social. Há aqui um papel fundamental para o Ministério da Educação em cooperação com o Ministério da Saúde na definição e comunicação de procedimentos que contribuam para a minimização dos riscos de contágio nas escolas, além do uso de ferramentas comportamentais para retenção da evasão escolar, como o uso de mensagens de celular como estímulo para motivar os estudantes, conforme adotado em São Paulo e Goiás.

4. Criar mecanismo de coordenação do combate à pandemia em âmbito nacional - preferencialmente pelo Ministério da Saúde e, na sua ausência, por consórcio de governadores - orientada por uma comissão de cientistas e especialistas, se tornou urgente. Diretrizes nacionais são ainda mais necessárias com a escassez de vacinas e logo a necessidade de definição de grupos prioritários; com as tentativas e erros no distanciamento social; a limitada compreensão por muitos dos pilares da prevenção, particularmente da importância do uso de máscara, e outras medidas no âmbito do relacionamento social.

Na ausência de coordenação federal, é essencial a concertação entre os entes subnacionais, consórcio para a compra de vacinas e para a adoção de medidas de supressão.

O papel de liderança: Apesar do negacionismo de alguns poucos, praticamente todos os líderes da comunidade internacional tomaram a frente no combate ao covid-19 desde março de 2020, quando a OMS declarou o caráter pandêmico da crise sanitária. Informando, notando a gravidade de uma crise sem precedentes em 100 anos, guiando a ação dos indivíduos e influenciado o comportamento social.

Líderes políticos, com acesso à mídia e às redes, recursos de Estado, e comandando atenção, fazem a diferença: para o bem e para o mal. O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina, caracterizou a liderança política maior no país. Essa postura reforça normas antissociais, dificulta a adesão da população a comportamentos responsáveis, amplia o número de infectados e de óbitos, aumenta custos que o país incorre.

O país pode se sair melhor se perseguimos uma agenda responsável. O país tem pressa; o país quer seriedade com a coisa pública; o país está cansado de ideias fora do lugar, palavras inconsequentes, ações erradas ou tardias. O Brasil exige respeito.

BBC News Brasil, em 22 de março de 2021

domingo, 21 de março de 2021

Com 1.290 mortes, Brasil tem pior domingo da pandemia

Em novo recorde, país registra mais de mil óbitos pelo terceiro domingo consecutivo, dia em que o número costuma ser mais baixo. Total de vítimas da covid-19 passa de 294 mil.

Túmulos com flores em cemitérios em São Paulo

O Brasil registrou neste domingo (21/03) 1.290 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). Essa é a maior marca já registrada num domingo, dia da semana em que o número costuma ser significativamente menor devido ao represamento de testes.

O país já havia registrado recordes no domingo passado (14/03), quando notificou 1.138 óbitos ligados ao coronavírus, e no retrasado (07/03), quando o número de mortes ficou acima de mil pela primeira vez num domingo.

Também foram identificados neste domingo 47.774 novos casos da doença, segundo o Conass. Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 11.998.233, enquanto os óbitos chegaram a 294.042 desde o início da epidemia.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.419.393 pacientes haviam se recuperado da doença até sábado.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 139,9 no Brasil, a 19ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29,8 milhões de casos. É também o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 542 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 123 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,71 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil,  em 21.03.2021

Vladimir Safatle: Este Governo tem que cair. Preservá-lo é ser cúmplice

Há um ano, movimentos exigiam impeachment de Bolsonaro, mas foram desqualificados pois era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia. O tempo passou e ficou claro que a verdadeira crise brasileira é o próprio presidente, que trabalha para aprofundá-la

Imagem que percorreu as redes sociais do idoso morto no chão de uma UPA em Teresina / Foto Reprodução Redes Sociais.

Na última sexta feira, a imprensa noticiou que “um homem”, “um idoso” morreu no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento em Teresina. O “homem” apresentava problemas respiratórios, mas a UPA não tinha maca disponível, não tinha leito e muito menos vaga em UTI. Ao fim, ele morreu de parada cardíaca. Sua foto circulou na imprensa e redes sociais enquanto o Brasil se consolidava como uma espécie de cemitério mundial, pois é responsável por 25% das mortes atuais de covid-19. País que agora vê subir contra si um cordão sanitário internacional, como se fôssemos o ponto global de aberração.

O “homem” em questão era negro e vinha de um bairro pobre na zona sul de Teresina, Promorar. Ele morreu sem que veículos de imprensa sequer dissessem seu nome. Uma morte sem história, sem narrativa, sem drama. Mais um morto que existiu na opinião pública como um corpo genérico: “um idoso”, “um homem”. Não teve direito à descrição de sua “luta pela vida”, nem da dor em “entes queridos”. Não houve declarações da família, nem comoção ou luto. Afinal, “um homem” não tem família, nem lágrimas. Ele é apenas o elemento de um gênero. Dele, vemos apenas seus últimos momentos, no chão branco e frio, enquanto uma enfermeira, com parcos recursos, está a seu lado, também sentada no chão, como quem se encontra completamente atravessada pela disparidade entre os recursos necessários e a situação caótica em sua unidade hospitalar. Reduzido a um corpo em vias de morrer, ele repete a história imemorial da maneira com que se morre no Brasil, quando se é negro e se vive na em bairros pobres. A foto de seus momentos finais só chegou até nós porque sua história tocou a história da pandemia global.

Enquanto “um homem” morria no chão de uma Unidade de Pronto Atendimento, com o coração lutando para conseguir ainda encontrar ar, o Brasil assistia o ocupante da cadeira de presidente a ameaçar o país com estado de sítio, ou “medidas duras” caso o STF não acolhesse sua exigência delirante de suspender o lockdown aplicado por governadores e prefeitos desesperados. Não se tratava assim apenas de negligencia em relação a ações mínimas de combate a morte em massa de sua própria população. Nem se tratava mais da irresponsabilidade na compra e aplicação de vacinas, até agora fornecidas a menos de 5% da população geral. Tratava-se, na verdade, de ameaça de ruptura e de uso deliberado do poder para preservar situações que generalizarão, para todo o país, o destino do que ocorreu em Teresina com “um homem”. Generalizar a morte indiferente e seca. Ou seja, via-se claramente uma ação deliberada de colocar a população diante da morte em massa.

Enquanto nossos concidadãos e concidadãs morriam sem ar, no chão frio de hospitais, a classe política, os ministros do STF não estavam dedicando seu tempo a pensar como mobilizar recursos para proteger a população da morte violenta. Eles estavam se perguntando sobre se Brasília acordaria ou não em estado de sítio. Ou seja, estávamos diante de um governo que trabalha, com afinco e dedicação, para a consolidação de uma lógica sacrificial e suicidária cujo foco principal são as classes vulneráveis do país. Um governo que não chora pela morte de suas cidadãs e seus cidadãos, mas que cozinha, no fogo alto da indiferença, o prato envenenado que ele nos serve goela abaixo. Não por outra razão “genocídio” apareceu como a palavra mais precisa para descrever a ação do governo contra seu próprio povo.

Um governo como esse deve ser derrubado. E devemos dizer isto de forma a mais clara. Preservá-lo é ser cúmplice. Esperar mais um ano e meio será insanidade, até porque há de se preparar para um governo disposto a não sair do poder mesmo se perder a eleição. Vimos isso nos EUA e, no fundo, sabemos que o que nos espera é um cenário ainda pior, já que este é um Governo das Forças Armadas.

Cabe a todas e todos usar seus recursos, sua capacidade de ação e mobilização para deixar de simplesmente xingar o governante principal, gritar para que ele saia, e agir concretamente para derrubá-lo, assim como a estrutura que o suportou e ainda o suporta. A função elementar, a justificativa básica de todo governo é a proteção de sua população contra a morte violenta vinda de ataques externos e crises sanitárias. Um governo que não é apenas incapaz de preencher tais funções, mas que trabalha deliberadamente para aprofundá-la não pode ser preservado. Ele funciona como um governo, em situação de guerra, que age para fortalecer aqueles que nos atacam. Em situação normal, isso se chama (e afinal, o vocabulário militar é o único que eles são capazes de compreender): alta traição. Um governo que não tem lágrimas nem ação para impedir que “um homem” morra no chão de um hospital, que age deliberadamente para que isso se repita de forma reiterada perdeu toda e qualquer legitimidade. Não há pacto algum que o sustente. E toda ação contra um governo ilegítimo é uma ação legítima.

Na verdade, esse governo já nasceu ilegítimo, fruto de uma eleição farsesca cujos capítulos agora veem à público. Uma eleição baseada no afastamento e prisão do candidato “indesejável” através de um processo no qual se forjou até mesmo depoimentos de pessoas que nunca depuseram. Ele nasce de um golpe militar de outra natureza, que não se faz com tanques na rua, mas com tweets enviados ao STF ameaçando a ruptura caso resultados não desejados pela casta militar ocorressem influenciando as eleições.

Há um ano, vários de nós começaram movimentos exigindo o impeachment de Bolsonaro. Não faltou quem desqualificasse tais demandas, afirmando que, ao contrário, era momento do Brasil se unificar diante dos desafios da gestão da pandemia, que mais um impeachment seria catastrófico para a vida política nacional, entre outros. Um ano se passou e ficou claro como o sol ao meio-dia que a verdadeira crise brasileira é Bolsonaro, que não é possível tentar combater a pandemia com Bolsonaro no governo. Mesmo assim, setores que clamavam por “frentes amplas” nada fizeram para realizar a única coisa sensata diante de tamanho descalabro, a saber, derrubar o governo: mobilizar greves, paralisações, bloqueios, manifestações, ocupações, desobediência civil para preservar vidas. Como dizia Brecht, adaptado pelos cineastas Straub e Huillet, só a violência ajuda onde a violência reina.

A primeira condição para derrubar um governo é querer que ele seja derrubado, é enunciar claramente que ele deve ser derrubado. É não procurar mais subterfúgios e palavras outras para descrever aquilo que compete à sociedade em situações nas quais ela está sob um governo cujas ações produzem a morte em massa da população. Há um setor da população brasileira, envolto em uma identificação de tal ordem, que irá com Bolsonaro, literalmente, até o cemitério. Como já deve ter ficado claro, nada fará o governo perder esse núcleo duro. Cabe aos que não querem seguir essa via lutar, abertamente e sem subterfúgios, para que o governo caia.

Vladimir Safatle para o EL PAÍS, em 20 de Março de 2021

Elio Gaspari: Bolsonaro flerta com o Apocalipse desde o início da pandemia

 No seu último surto apocalíptico, Bolsonaro tirou da gaveta o absurdo fantasma estado de sítio

Até a divulgação da última pesquisa do Datafolha, Bolsonaro e seu pelotão palaciano estavam certos de que o combate ao isolamento aumentava seu capital eleitoral.

Talvez a valentia tivesse algum valor, mas as estatísticas da pandemia abalaram essa crença.

Com 79% dos entrevistados achando que a peste está fora de controle, ir para um segundo turno com um passivo de mais de 300 mil mortos deixou de ser boa ideia.

Bolsonaro e o sítio

Bolsonaro flerta com o Apocalipse desde o início da pandemia. Anteviu saques e desordens que não aconteceram. Os saques que ocorreram em alguns estados, como no Rio do governador Witzel, não miravam em supermercados e sim na bolsa da Viúva, afanando verbas de hospitais de campanha.

No caso das desordens, basta olhar em volta: quatro ministros da Saúde, as vacinas de Manaus foram para Macapá e o Exército recebeu ordens para fabricar cloroquina.

Tudo teria sido melhor se o capitão tivesse olhado de outro jeito para a pandemia, mas a vida é como ela é. No seu último surto apocalíptico, Bolsonaro tirou da gaveta o absurdo fantasma estado de sítio.

As desordens que não aconteceram podem ocorrer. Num delírio de cloroquina pode-se imaginar alguns milicianos atacando lojas ou depredando ônibus.

Em 1981 procurou-se atribuir a uma organização terrorista de esquerda que não existia mais a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento, dentro do carro de um capitão lotado no DOI.

Anos antes, um maluco que via discos voadores juntou-se a policiais, assaltou um banco e botou bombas em São Paulo. Preso, contou que recebia ordens de poderosos.

Isolamento social

Jair Bolsonaro pode ter suas razões ao achar que o isolamento social abala a economia.

Com certeza, não há economia que ande direito se o presidente detona em menos de um mês os presidentes da Petrobras e do Banco do Brasil.

Isso para não se falar na desidratação dos frentistas do Posto Ipiranga. Pelo menos quinze já foram embora.

Elio Gaspari é Jornalista e autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada". Este artigo foi publicado originalmente no UOL, em 21.03.2021.

Juan Arias: Brasil mergulhado na barbárie

Deixar um país inteiro à deriva, não por falta de recursos, mas de liderança, é um crime que também recai sobre as autoridades incapazes de intervir

Parentes de Benedito Rodrigues da Silva, 83, que morreu de covid-19 em São Paulo, em seu enterro no cemitério Vila Formosa. (Crédito da foto: Carla Carniel / Reuters)

O Brasil começa a ser um campo onde parece ter se instalado um regime bárbaro com atos de terrorismo perpetrados contra aqueles que defendem as medidas de lockdown contra a pandemia que ameaça afundar o país na maior crise de saúde de sua história. Dois atos de terror e violência levados a cabo nos últimos dias contra dois jornalistas por fanáticos de Jair Bolsonaro levantaram o alarme de que os seguidores do presidente, que os qualifica de “meu exército”, estão dispostos a incendiar o país para impedir as medidas restritivas exigidas pela ciência e pela medicina como única arma junto com a vacina para tentar deter o rastro de mortes cada dia maior que horroriza o país. Nesta quinta-feira, o presidente deu mais um incentivo a eles: em nova transmissão ao vivo, disse ter acionado o Supremo Tribunal Federal contra as medidas para conter a circulação.

O último ato de terror aconteceu na cidade de Olímpia, no interior de São Paulo, contra José Antonio Arantes, editor do jornal local que quase morreu junto com a mulher e a neta de sete anos enquanto dormiam. Atearam fogo na casa durante a madrugada e se não fossem os dois cachorros que os despertaram com o quarto já cheio de fumaça e fogo, toda a família teria morrido. “Mais quinze minutos e teríamos todos morrido sufocados pelo fogo”, disse o jornalista, que acrescentou: “Estou há 40 anos na profissão, comecei minha carreira já no final da ditadura. Não vou abrir mão de lutar pelo meu povo e contra qualquer tipo de terrorismo e pensamento político que visem tirar a liberdade e suprimir os direitos de minha população”.

Outro jornalista, do O Estado de Minas há 20 anos, foi agredido durante uma manifestação de bolsonaristas com pontapés e pancadas na cabeça dadas com um capacete de motociclista aos gritos de “Comunista! Não vamos deixar!”. O jornalista comentou: “A ferida está na alma. Saber que temos um líder no país que incentiva a violência”. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) escreveu que “o extremismo e a intolerância contra jornalistas atingem toda a sociedade”.

É sabido que os grandes incêndios que devastam florestas inteiras às vezes começam com uma ponta de cigarro acesa. O mesmo acontece na política. Muitas das grandes tragédias da humanidade às vezes começaram com um único tiro de pistola e acabaram manchando de sangue países inteiros.

O Brasil está numa situação grave e perigosa que, se não for contida a tempo, pode arrastar o país para as cenas dantescas vistas no final do Governo Trump. As instituições do Estado responsáveis pela defesa dos direitos sancionados na sociedade não podem fechar os olhos nem pensar que Bolsonaro ainda pode mudar, defender os valores da liberdade e acalmar suas hostes violentas. Em mais de dois anos de Governo já deu provas suficientes de que sua personalidade negacionista, destrutiva e violenta não vai mudar.

Como vários psiquiatras já indicaram, sua personalidade pertence a pessoas com traços de patologia impossíveis de curar. Em sua coluna de ontem no jornal Folha de S. Paulo, intitulada Jair Messias e o ‘pai dos psicopatas’, Guido Palomba cita o psiquiatra alemão Kurt Schneider, que em seu último livro tenta decifrar os transtornos de personalidade em tempos de tensão.

São disfunções de personalidade “com ausência de sentimento de piedade, compaixão e altruísmo; falta de valores éticos e morais e incapacidade de se sentirem culpados. São pessoas sem remorso e arrependimento”. São pessoas sem ressonância afetiva com a dor alheia. Por vaidade exagerada, sentem-se acima de tudo e de todos. São personagens agressivos, mal-educados e provocadores.

O psiquiatra alemão os compara aos oligofrênicos e os descreve como pessoas que, se voltam atrás, não é para reconhecer seus erros, mas por estratégia. “Rancorosos e vingativos reagem com virulência”, e conclui significativamente: “Ninguém os detêm, salvo uma reprimenda enérgica judicial ou legal”.

Seria possível dizer que, se o capitão responde a esse distúrbio psiquiátrico, é inútil continuar esperando dele alguma conversão milagrosa. Agora os responsáveis são os que têm o poder, com a lei nas mãos, de pôr fim a essa barbárie que oprime cada vez mais este país, ameaçando deixá-lo à própria sorte, deixando que a epidemia o devore com gente morrendo nos corredores dos hospitais à espera de uma UTI.

Deixar um país inteiro à deriva, não por falta de recursos, mas de liderança, é um crime que também recai sobre as autoridades incapazes de intervir.

Seria de se perguntar se os militares que hoje apoiam o presidente em seu Governo também vão fechar os olhos. Se vão preferir ficar também eles presos no Titanic ou se preferirão abandoná-lo antes que seja tarde demais. O Brasil não merece este massacre que produz morte e desolação sem esperança de salvação.

JUAN ARIAS é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente por EL PAÌS, 18 MAR 2021

Índia avisa que entrega de vacina ao Brasil vai atrasar

Instituto responsável por vacina da AstraZeneca importada pelo Brasil alega necessidade de cumprir demanda interna e expandir capacidade de produção.

Lotes da vacina produzida pelo Serum: mais de 70 países receberam

O Instituto Serum, responsável pela produção na Índia da vacina contra a covid-19 desenvolvida pela AstraZeneca e a Universidade de Oxford, comunicou ao Brasil que não conseguirá cumprir os prazos de entrega dos imunizantes comprados pelo governo Jair Bolsonaro.

A informação foi publicada neste domingo (21/03) pelo jornal indiano Indian Times. Segundo o diário, o chefe do instituto, Adar Poonawalla, enviou uma carta à Fiocruz confirmando a suspensão das entregas, sem data exata para restabelecimento.

O Brasil, de acordo com Poonawalla, recebeu até agora 4 milhões dos 20 milhões de vacinas encomendados. A cifra difere da previsão mais recente da Fiocruz. Segundo a fundação, a negociação com a AstraZeneca e o Instituto Serum incluía a aquisição de mais oito milhões de doses ao longo dos próximos dois meses.

O atraso anunciada pelo Instituto Serum afeta também outros países, como Marrocos e Arábia Saudita. Ele foi justificado pelo aumento da demanda interna e dificuldades no trabalho de expansão de capacidade.

No início do mês, em declarações ao Congresso, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já havia indicado que poderia haver atrasos em março na carga vinda da Índia.

Pressão interna na Índia

A Índia, o maior fabricante mundial de vacinas, está sendo criticada domesticamente por doar ou vender mais doses do que administra em casa. O país está em meio a mais uma onda de covid-19, e já registrou mais de 11,6 milhões de infectados.

A informação do atraso de entregas ao Brasil é noticiado dias depois de o Reino Unido anunciar que teria que retardar seu programa de vacinação no próximo mês porque o instituto indiano demoraria a entregar doses planejadas. O Instituto Serum forneceu até agora metade das doses dos 10 milhões que o governo britânico encomendou.

Uma fonte citada pela agência de notícias Reuters disse que o Serum trabalha para expandir sua produção mensal de 60 para 100 milhões de doses até abril ou maio.

Originalmente, o instituto deveria vender vacinas apenas para países de média e baixa renda, principalmente na Ásia e África, mas problemas de produção em outras instalações da AstraZeneca forçaram-no a enviar para muitos outros países em nome da AstraZeneca.

A Índia doou até agora 8 milhões de doses e vendeu quase 52 milhões para 75 países, principalmente a vacina da AstraZeneca feita pelo Serum. A Índia já administrou mais de 44 milhões de doses desde que iniciou sua campanha de imunização, em meados de janeiro.

Vacina gerou constrangimento para Bolsonaro

No início do ano, sob pressão após a aquisição da Coronavac pelo governo de São Paulo e sem ter nenhuma dose em mãos para o início da campanha de vacinação nacional, Bolsonaro enviou uma carta  ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, pedindo urgência no envio ao Brasil, para, assim, tentar garantir o protagonismo da imunização.

O pedido de urgência para a importação das doses ocorreu após a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entidade do governo federal, ter informado que ocorreria um atraso na chegada ao país do insumo necessário para a produção local do inoculante da AstraZeneca. 

Pouco depois, o Ministério das Relações Exteriores afirmou em nota que o Brasil adquiriu as doses do Instituto Serum e que a embaixada brasileira teria feito os preparativos junto às autoridades indianas para receber os lotes. Um avião chegou a iniciar viagem para buscar a vacina no país asiático. Tanto Bolsonaro quanto o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, prometiam a chegada do imunizante em dois dias.

Num constrangimento para Bolsonaro, o voo, porém, acabou sendo adiado depois que o governo indiano declarou que não poderia ainda dar uma data para a exportação de doses produzidas no país.

"Parece que o Brasil queimou a largada ao anunciar oficialmente o envio de uma aeronave para transportar 2 milhões de doses de vacina", afirmou uma reportagem do jornal indiano Hindustan Times na época.

A carga com 2 milhões de doses acabou chegando apenas em finais de janeiro. O material já vem pronto para ser aplicado e é apenas rotulado na Fiocruz. O segundo lote, com mais dois milhões de doses, chegou ao Brasil em 23 de fevereiro.

Importação supriria demora na produção interna 

Segundo a Fiocruz, a vacina indiana serviu para reduzir o impacto inicial sobre o cronograma de entregas. A fundação planeja entregar cerca de 20 milhões de vacinas da AstraZeneca-Oxford por mês, a partir de abril. As entregas ocorrerão de forma semanal. Para março, estão previstos 3,8 milhões de doses, com entrega de 1,08 milhão para esta semana

As vacinas se referem à produção feita pela Fiocruz, sem contar com as compradas pelo Instituto Serum, na Índia.

A quantidade das doses indianas enviadas ao Brasil nunca foi confirmada, mas a imprensa brasileira noticiava que a previsão do governo era de que 2 milhões de doses fossem repassados mensalmente, a partir de abril.

Deutsche Welle Brasil, em 21.03.2021

Dúvida sobre futuro de Bolsonaro já paira no ar

Nos últimos dias, uma questão perigosa passou a ser debatida reservadamente entre os líderes de Brasília até bem pouco atrás refratários a solavancos: o que aconteceria, em um país sem vacina e com desemprego e inflação nas alturas, se o presidente fosse substituído? 

Trocando em miúdos, o afastamento de Jair Bolsonaro paralisaria ainda mais o Brasil ou resultaria em avanço imediato? Para os veteranos de 1992 e 2016, as respostas são menos importantes do que a instauração e disseminação da questão. O vírus da dúvida já está no ar de Brasília.


Presidente Jair Bolsonaro. (Crédito da foto: Ueslei Marcelino/Reuters)

Avarias. Há também boa dose de cálculo eleitoral. O Centrão adverte: 2022 é logo ali e ninguém quer ficar em barco que pode afundar antes de a regata começar.

Deu… A ação de Bolsonaro no STF contra governadores conseguiu agravar a tensão no Congresso.

…pra ti? A leitura: os últimos dias revelaram, mais uma vez, que o presidente prefere radicalizar e espalhar mentiras ante agir politicamente no combate à pandemia. Com a escalada nos índices de mortes e filas de UTI, ficou atestada a inoperância do governo.

Linha. Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Arthur Lira (PP-AL) têm feito de tudo para não entrar em rota de colisão com o governo, mas a sensação no entorno dos presidentes do Congresso é de situação limítrofe.

Aff. Pacheco ficou bastante abalado com a morte de Major Olímpio e não gostou nem um pouco da insinuação de Bolsonaro de um estado de sítio no País.

Chega. Em carta aberta, Simone Tebet (MDB-MS) cobrou, mais uma vez, a instalação da CPI da Covid-19 no Senado como forma de pressionar o Executivo federal a agir com “rapidez, coordenação e vontade”.

Caos. “Ou Bolsonaro se dirige à nação e demonstra plena consciência da gravidade da situação e apresenta, ao lado do ministro da Saúde, um plano nacional de execução urgente para enfrentamento da pandemia, ou permaneceremos, todos, no caos”, afirma Tebet.

Publicado originalmente na Coluna do Estadão, em 21 de março de 2021.

Eliane Cantanhede: Guerra insana

Uma união nacional contra a pandemia só funciona com uma premissa: isolar Jair Bolsonaro.

O Brasil exige união de forças contra o coronavírus, mas o presidente Jair Bolsonaro trabalha na direção oposta, pela desunião e o caos. Enquanto instituições, Estados e municípios buscam a iniciativa privada e articulam uma frente para salvar vidas e garantir atendimento e humanidade aos pacientes, o presidente da República insiste na sua guerrinha pessoal, insana e cheia de ameaças autoritárias contra governadores e isolamento social.

Na quinta-feira à noite, o presidente da Câmara, Arthur Lira, foi à residência oficial do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ali ao lado da sua, para discutir a extrema gravidade da situação e formas de reagir, abrindo portas com empresas, fábricas e laboratórios, para suprir o que já começa a faltar: leitos, oxigênio, medicamentos para intubação e, sim, vacinas, vacinas, vacinas.

Na sexta, às 8h em ponto, o general Luís Eduardo Ramos, secretário de Governo da Presidência, chegou à casa de Pacheco com o mesmo objetivo, tentando viabilizar uma reunião na próxima terça com os presidentes da República, do Senado, da Câmara e do Supremo, o procurador-geral da República e um representante dos governadores de cada região do País.

E o que anda fazendo Bolsonaro?

Trabalhando a favor da pandemia! É um aliado incondicional do coronavírus, faça chuva ou faça sol, morram 30 ou 300 mil, o que deixa, inclusive, uma dúvida: que papel terá na terça? O que dirá? Que compromissos assumirá?

Como Bolsonaro não é um interlocutor minimamente apto na pandemia e ninguém se dirige ao Planalto para tratar de providências, os poderes e entes federativos se acertam e tomam decisões. Rodrigo Pacheco também se reuniu com o quase futuro ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e mandou ofício ao quase ex Eduardo Pazzuelo sobre cronogramas de vacinas – atrasados, confusos e de baixa credibilidade.

E o senador pediu à sua correspondente nos EUA, Kamala Harris (que acumula a vice com a presidência do Senado), um “gesto de solidariedade” para negociar as doses excedentes de vacinas com o Brasil e, assim, atacar a pandemia no seu atual epicentro e aumentar a segurança nos países das Américas. São bons argumentos.

Enquanto os Poderes se mexiam, Bolsonaro anunciava uma ação contra o toque de recolher no DF, na Bahia e no Rio Grande do Sul, para conter a circulação de pessoas e do vírus assassino. Se o Supremo acatar a ação, ele estará liberado para abrir uma guerra mortal aos governadores e às medidas de combate à pandemia. Mas o Supremo não vai acatar.

Ato contínuo, o presidente disse a apoiadores que “o caos vem aí” e “vai chegar o momento de tomar uma ação dura”. Luiz Fux, que preside a Corte, telefonou para ele. Não há indicação de estado de sítio e governadores têm autonomia para decretar toque de recolher, previsto na lei sobre a pandemia. Bolsonaro erra, confunde, ameaça, e o ministro da Justiça, André Mendonça, usa a Lei de Segurança Nacional contra quem usa o termo “genocida” e critica o presidente.

Cidadãos pregarem um cartaz em Palmas (TO) dizendo que Bolsonaro “não vale um pequi roído” é muito diferente de um deputado ameaçar “dar uma surra” num ministro do Supremo. Uma coisa é liberdade de expressão e crítica, como cartazes contra Bolsonaro e balões de Lula presidiário. Outra é o crime de ameaçar bater em ministros, invadir suas casas e jogar fogos de artifício sobre o Supremo.

Assim como o vírus, o presidente está fora de controle, sempre testando os limites da democracia. Não vê o que todos veem: o colapso da saúde e as mortes. Mas vê o que ninguém vê: insurreição popular e quebra-quebra, mantendo seus delírios sobre golpes e arroubos autoritários. Uma união nacional contra o vírus depende de uma premissa: isolar Bolsonaro.

União nacional contra pandemia só funciona com uma premissa: isolar Bolsonaro.

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Jornal (PE) e do Tele Jornal Globo News - "Em Pauta". Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, edição de 21 de março de 2021.

J.R. Guzzo: Sempre o mesmo

Políticos de “centro” acreditam que Lula possa, um dia, abrir mão de interesses pessoais. Não vai dar certo nunca.

Há 40 anos, desde a sua fundação, o PT pensa, fala e vive como um partido único; não sabe, simplesmente, ser de outro jeito. É bem fácil de entender. Se o PT não é uma ditadura, por que o presidente do partido – oficial ou oculto, mas o único verdadeiro – é sempre o mesmo desde 1982? O PT, na verdade, não tem um presidente. Tem uma autoridade máxima – uma mistura de Fidel Castro, ou algo parecido, com o papa, no tempo em que o papa mandava em alguma coisa. O comandante nunca permitiu, e continua a não permitir, que qualquer outro nome possa disputar um mínimo de espaço com ele dentro do partido. Todos os que tentaram, de Luiza Erundina a Marta Suplicy, passando por Deus e todo o mundo, acabaram postos para fora.

Há 40 anos, apesar de nada disso ser nenhum segredo, os políticos brasileiros que imaginam ser do centro-equilibrado-democrático-civilizado-asseado-de meia esquerda-preocupado com o “social” e amigo das crianças acreditam que Lula possa, um dia, abrir mão de seus interesses pessoais e aliar-se para valer com algum deles. Jamais deu certo, é claro, e não vai dar certo nunca. O ex-governador Ciro Gomes, por exemplo, já está ali pela décima tentativa; até outro dia continuava tentando. Os últimos a acreditar foram os pré-candidatos – ou melhor, a essa altura, expré-candidatos – à sucessão do presidente Jair Bolsonaro. Tiveram uma miragem, durante dois anos: acharam que podiam ficar amigos de Lula, do PT e da esquerda. Levaram um belo somebody love, como se diz, e hoje estão a pé.

A decisão do ministro Edson Fachin de anular as quatro ações penais que Lula tinha nas costas, incluindo sua condenação em terceira e última instância por corrupção e lavagem de dinheiro – com sentenças de nove juízes diferentes – anulou, ao mesmo tempo, as candidaturas que tentavam disputar o espaço entre Bolsonaro e o “campo

progressista”. Foi um efeito inesperado. Ao declarar que a ficha suja de Lula não vale mais, o STF, tão louvado por todos os que não querem a reeleição do presidente da República, decidiu qual é a candidatura de oposição que vai existir na vida real. O prejuízo, em consequência, é de todas as outras – os que esperavam o apoio de Lula terão de se contentar, agora, em esperar que o ex-presidente lhes dê alguma sobra e a permissão de apoiar a sua campanha. É o avesso do avesso.

A fila é grande: empresários com “agendas sociais”, gente do mundo dos auditórios, generais da reserva e uma porção de etcéteras se aglomeram na lista de espera, rezando por um chamado do alto para “compor a chapa”. No fim, pode não ser nenhum desses; Lula tem lá as suas próprias ideias a respeito do assunto e, de qualquer forma, ainda falta muito tempo até a eleição de 2022. O certo é que o “espaço vazio” que se imaginava existir para a sucessão presidencial não existe mais – nesse espaço há um Lula, outra vez, querendo ser presidente. O STF devia ter ajudado, claro, mas o que se esperava era outra coisa. O conveniente seria ficar expedindo liminares, agravos e embargos contra Bolsonaro e o seu governo, só isso; não era para ressuscitar Lula. Agora está assim.

O resultado é que o horizonte do Brasil, até prova em contrário, é de extremo contra extremo. O centro sumiu. Lula não precisa dizer nada de diferente daquilo que tem dito a vida inteira para garantir seu apoio: quem está com ele não quer ouvir nada que já não tenha ouvido. O mesmo acontece com Bolsonaro: seus admiradores não estão interessados em escutar outra voz. Quem está no meio encontra-se sem escolha, sem nomes e sem um programa alternativo. Não há muita coisa boa que possa vir disso aí.

José Roberto Guzzo é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 21 de março de 2021.

A crise tem nome e sobrenome

Pressionado pela queda de sua popularidade, Bolsonaro tenta transferir a responsabilidade pela crise para os governadores.

O presidente Jair Bolsonaro convidou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, para integrar um comitê dos Três Poderes para discutir a pandemia de covid-19. Além de muito atrasado, o gesto serve somente para dar um verniz de estadista a um presidente que tudo tem feito para atrapalhar o combate ao coronavírus.

Fux submeteu o convite ao plenário do Supremo, e todos os seus 10 colegas escolheram rejeitá-lo, pois o tribunal deverá ser chamado a julgar a legalidade de medidas adotadas pelo governo. Mas há outros bons motivos para que o Supremo mantenha distância prudente de Bolsonaro, cuja única competência é criar tumulto.

Nos últimos dias, Bolsonaro voltou a contestar a eficácia de vacinas, a fazer campanha contra o uso de máscaras, a desdenhar de doentes e a colocar em dúvida o número de mortos e de ocupação de UTIs. Anunciou a troca de ministro da Saúde para sinalizar mudança de rumo, mas não só o incompetente Eduardo Pazuello continua a despachar como ministro, como o futuro ministro, Marcelo Queiroga, amigo da família Bolsonaro, promete manter tudo como está.

O Bolsonaro que acena com uma concertação institucional contra a pandemia é o mesmo que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo para questionar as medidas restritivas adotadas por governadores do Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Federal, notadamente o toque de recolher e o fechamento de atividades não essenciais.

Em abril do ano passado, o Supremo reconheceu a competência concorrente dos entes da Federação para tomar medidas contra a pandemia, entre as quais restrições de circulação. Ou seja, se decidir a favor de Bolsonaro, o Supremo estará, na prática, dizendo que suas decisões anteriores, tomadas em estrito respeito à Constituição, eram inconstitucionais – o que seria uma óbvia aberração.

O novo ataque de Bolsonaro ao princípio federativo terá outra frente: o presidente anunciou que encaminhará projeto de lei para definir o que é “atividade essencial”, que pode funcionar em meio à pandemia. Segundo Bolsonaro, “atividade essencial é toda aquela necessária para você levar um pão para dentro de casa” – ou seja, em suas próprias palavras, “basicamente tudo passa a ser atividade essencial”.

No início da pandemia, Bolsonaro tentou concentrar na União as decisões sobre quais seriam as atividades essenciais e o alcance de medidas restritivas. A intenção, óbvia, era impedir o fechamento da economia. O Supremo vetou, sob o argumento de que Estados e municípios tinham autonomia para tomar as atitudes que julgassem necessárias.

Desde então, Bolsonaro tem dito que o Supremo o impediu de atuar no combate à pandemia, o que a Corte já desmentiu inúmeras vezes. Naquilo que lhe cabe, o presidente é um retumbante fracasso: tardou a comprar vacinas, tardou mais ainda a liberar o urgente auxílio emergencial e pouco faz para abastecer hospitais de insumos necessários para o atendimento de doentes de covid-19.

Pressionado pela queda acentuada de sua popularidade, Bolsonaro tenta desesperadamente transferir a responsabilidade pela crise para os governadores – a quem acusou de estarem “matando” a população de fome. “Querem derrubar o governo”, acusou Bolsonaro.

Empenha-se assim em criar um clima de enfrentamento, equiparando toque de recolher a estado de sítio, “que só uma pessoa pode decretar: eu”. Bolsonaro tem feito referência frequente, nos últimos dias, a medidas de exceção e a seu poder de determiná-las. O presidente tornou a se referir ao Exército como se fosse sua milícia privada, ao dizer que “o meu Exército não vai para rua para cumprir decreto de governadores” se “o povo começar a sair, entrar na desobediência civil”.

Parece claro o flerte com a ruptura institucional, para deleite de seus camisas pardas, a quem o presidente chama de “povo”. E, disse Bolsonaro, “o que o povo quer a gente faz”.

Com o sistema de saúde em colapso, péssimas perspectivas econômicas e cansado de tanta confusão, o povo quer apenas que Bolsonaro pare de prejudicar o País. A esta altura, será um grande favor.

Editorial d'O Estado de São Paulo, em 21 de março de 2021.

sábado, 20 de março de 2021

Brasil registra 2.438 mortes por covid-19

País também registrou mais 79 mil casos neste sábado. Total de mortes passa de 292 mil e casos oficiais se aproximam da marca de 12 milhões.

O Brasil registrou neste sábado (20/03) 2.438 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). .

Também foram identificados 79.069 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 11.950.459, enquanto os óbitos chegam a 292.752.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.383.460 pacientes haviam se recuperado até domingo.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 139,3 no Brasil, a 19ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29,7 milhões de casos. O Brasil é também o segundo em número absoluto de mortos, novamente atrás dos EUA, onde 541 mil pessoas morreram.

Ao todo, mais de 122,6 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,59 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 20.03.2021

A intimidação é intolerável

O presidente Jair Bolsonaro, seus familiares, seu governo e seus seguidores têm mostrado que desconhecem o Direito brasileiro. Estão descaradamente promovendo, por várias vias, uma campanha de intimidação contra adversários políticos, como se não existissem no País as liberdades de opinião e de expressão. 

No dia 15 de março, o youtuber Felipe Neto foi intimado a depor na Polícia Civil, em investigação relativa a crime de calúnia e a crimes contra a Segurança Nacional (Lei 7.170/83). O fato a ser apurado: Felipe Neto chamou o presidente Jair Bolsonaro de genocida, em razão de sua atuação na pandemia. Na semana anterior, Carlos Bolsonaro tinha anunciado, em rede social, que apresentara queixa-crime contra Felipe Neto e a atriz Bruna Marquezine, por supostos crimes contra seu pai, Jair Bolsonaro.

Não há dúvida de que as liberdades de opinião e expressão autorizam o exercício da crítica, especialmente em relação aos governantes. Essa intimação da Polícia Civil, que depois foi suspensa pela Justiça, foi claro uso do aparato estatal para perseguir quem se opõe à família Bolsonaro.

Nesse intento de intimidar, chama a atenção o descuido com o próprio Direito. A Lei de Segurança Nacional prevê que, “para apuração de fato que configure crime previsto nesta Lei, instaurar-se-á inquérito policial, pela Polícia Federal: de ofício, mediante requisição do Ministério Público, mediante requisição de autoridade militar responsável pela segurança interna, mediante requisição do ministro da Justiça”.

Cabe à Polícia Federal, e não à Polícia Civil, apurar o suposto crime. Além disso, ao que se sabe, Carlos Bolsonaro não é ministro da Justiça, tampouco representante legal de seu pai para apresentar queixa-crime relativa à suposta calúnia. Nessa história, é também muito estranha a conivência da Polícia Civil, permitindo-se ser usada para fins evidentemente ilegais. 

Outro órgão que tem permitido ser usado nessa empreitada de intimidação – às vezes, assumindo um lamentável protagonismo – é o Ministério da Justiça. Em vez de ser a voz que lembra o Direito no governo federal, o titular da pasta, André Mendonça, tem preferido esquecer a ordem jurídica e agradar ao presidente Jair Bolsonaro.

Além de desrespeitar liberdades fundamentais, os casos revelam uma obsessão doentia por perseguir quem se posiciona publicamente contra Jair Bolsonaro. Por exemplo, a pedido do ministro da Justiça, a Polícia Federal abriu investigação contra o sociólogo e professor Tiago Costa Rodrigues, por ter organizado a instalação de dois outdoors críticos ao governo Bolsonaro em Palmas, no Tocantins. Um dos outdoors trazia a frase “Cabra à toa, não vale um pequi roído. Palmas quer impeachment já”.

Inicialmente, o caso foi arquivado por recomendação da Corregedoria Regional da Polícia Federal e do Ministério Público Federal do Tocantins. No entanto, o Ministério da Justiça insistiu, determinando a abertura do inquérito contra o sociólogo.

Recentemente, o ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Pedro Hallal e o pró-reitor de Extensão da universidade, Eraldo dos Santos Pinheiro, assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pela Corregedoria-Geral da União (CGU) se comprometendo a não criticar o governo Bolsonaro dentro de ambiente de repartição pública. Os dois atacaram a condução do combate à pandemia durante uma live realizada dentro da universidade.

Com essa ofensiva do governo federal de intimidar, há quem venha se sentindo à vontade para agir muito além do que a lei permite. No dia 15 de março, em Belo Horizonte e Salvador, dois jornalistas foram agredidos, enquanto trabalhavam na cobertura de manifestações a favor do presidente Jair Bolsonaro. Nos dois casos, bolsonaristas tentaram impedir que os profissionais filmassem e fotografassem as manifestações.

No dia 17 de março, por defender o distanciamento social, o jornal Folha da Região, em Olímpia (SP) teve sua sede atacada, o que provocou um incêndio.

Um governo que persegue opositores viola a essência da democracia e da liberdade. Pensando-se forte, expõe sua maior debilidade, a de caráter.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 20 de março de 2021 

Ciro Gomes: ‘Não vou deixar o Lula ganhar essa na lambança’

Ex-ministro mantém distância do PT e afirma que ex-presidente ‘não foi proclamado inocente’: ‘Ele, de novo, está mentindo’

Entrevista com Ciro Gomes (PDT), ex-ministro e ex-governador do Ceará

O resgate dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não alterou a disposição do ex-ministro Ciro Gomes (PDT) de disputar novamente a Presidência em 2022 nem mudou seu plano de tornar-se a opção de centro capaz de romper com a esperada polarização entre o bolsonarismo e o “lulopetismo”. “Eu não vou deixar o Lula ganhar essa na lambança”, diz.

Terceiro colocado na eleição presidencial de 2018, Ciro afirma que trabalha para construir um projeto de País que pode ter uma empresária como vice – Luiza Trajano, a dona da Magazine Luza, é classificada por ele como uma “pessoa extraordinária” – e o marqueteiro João Santana, que atuou nas campanhas vitoriosas de Lula e Dilma Rousseff, como estrategista eleitoral.

'Bolsonaro deve admitir erro e propor um pacto', diz Michel TemerEm entrevista ao Estadão, Ciro voltou a defender a abertura de um processo de impeachment de Jair Bolsonaro. Para ele, diante do contexto atual, não é certo que o presidente “será um dos polos do segundo turno” na eleição do próximo ano.

Ciro Gomes, ex-governador do Ceará: 'Eu acho que a solução para a terra arrasada, sob os pontos de vista sanitário, social e econômico que o Bolsonaro vai deixar, exige um novo projeto nacional de desenvolvimento'.  Foto: Taba Benedicto/Estadão

Ministro, o sr. é pré-candidato à Presidência? É uma condição irreversível?

O meu partido tem uma deliberação de que eu sou candidato e eu estou muito motivado para ser. E isso por uma circunstância: eu acho que a solução para a terra arrasada, sob os pontos de vista sanitário, social e econômico que o Bolsonaro vai deixar exige um novo projeto nacional de desenvolvimento, um novo desenho do diálogo nacional para sustentar as bases desse projeto, muita imaginação institucional para inovar e, neste sentido, acho que o lulopetismo é uma volta ao passado ilusória.

Sua relação com o que chama de lulopetismo continua intransponível?

Eu lutei pelo restabelecimento dos direitos políticos do Lula. Fui mal entendido quando disse que aquela condução coercitiva era arbitrária e que o Sérgio Moro estava semeando nulidades. Portanto, é um ato de civilidade declarar a suspeição do Moro e dizer que o Lula tem direito, como qualquer grande bandido – que não é o caso dele –  ao devido processo legal. Agora o Lula volta a ser um político para a gente examinar. Juridicamente, fez-se o melhor direito, mas não é que ele foi proclamado inocente, como ele, de novo, está mentindo. Politicamente, entretanto, não há como disfarçar que o Lula é o grande responsável pelo entranhamento orgânico da corrupção na vida brasileira. É inequívoco que o PT transformou a corrupção, a fisiologia, o loteamento das estruturas centrais do Estado como ferramenta central do modelo de poder que o Lula implantou no País.

No segundo turno de 2018, o senhor fugiu da associação com o PT como o diabo foge da cruz...

Eu não fugi não, eu me senti moralmente obrigado a não sancionar mais essas contradições do PT. Eu acho que temos de ajudar o povo brasileiro a entender que temos dois terríveis desafios pela frente. O primeiro é derrotar o bolsonarismo boçal, corrupto que está levando o Brasil a uma condição de terra arrasada. O Brasil está vivendo a pior crise de sua história sem rival. Então, essa é uma tarefa em que todo mundo tem que estar junto. Eu não vou escolher quem está e quem não está. Quem fez isso foi o Lula, lá atrás, quando eu me avistei com o Fernando Henrique Cardoso e assinamos manifestos pedindo a união do País contra o Bolsonaro e fomos pedir o impeachment. O Lula disse que não era “Maria vai com as outras”. A segunda missão, mais grave, é construir o futuro. E será que construir o futuro é um “back to the past”? Definitivamente não é. O lulopetismo, neste sentido, é parte do problema.

Então a resposta é sim.

Na primeira tarefa estou junto da porta do inferno para trás. Agora, para construir o futuro, o lulopetismo é parte central do problema. Lula é candidato desde 1989. Ele não tem nenhuma responsabilidade por ter posto a Dilma? Bolsonaro acabou de derrubar a economia em 4,1% e está se desculpando porque está em uma pandemia. Alguma razão ele tem. A Dilma derrubou 3,2% sem pandemia! O Palocci era o braço direito desse modelo, devolveu R$ 100 milhões. Tudo bem, o Chico Buarque adora o Lula? Eu respeito os afetos do Chico Buarque, mas o Palocci?

Muitos consideram que para derrotar o Bolsonaro é preciso que a esquerda se una ao centro. Em que espectro político o senhor se encaixa? 

Há duas tarefas: A primeira é derrotar o Bolsonaro e, neste sentido, todos os democratas – pouco me importa se são de direita, de esquerda, de centro, se são de Marte, de Vênus, de Mercúrio –, todos temos a responsabilidade de criarmos um ambiente para isso. Segundo, é grande a necessidade estratégica deste momento. Eu não vou deixar o Lula ganhar essa na lambança. É construir o futuro e, infelizmente, neste sentido a largueza que eu sonho não é possível pelas nossas diferenças.

Nesse desafio de se construir um projeto de futuro, como o senhor vê possíveis projetos eleitorais como os de Luciano Huck e Sérgio Moro?

Eu acho que o desafio de construir um projeto de País depende de um requisito de experiência que falta a ambos. Falta visão, falta experiência, falta compreensão, conhecimento do Brasil, traquejo político. E o Brasil não aguenta mais estagiário! Meu Deus do céu! Qual era a experiência anterior da Dilma na política? Até o Bolsonaro consegue 1/3 do Congresso para impedir o impeachment. A Dilma não foi capaz de reunir isso no primeiro ano do mandato. Além da tragédia econômica, foi um desastre político.

Essa falta de experiência da qual o senhor fala vale para um eventual candidato a vice? O nome da empresária Luiza Trajano tem sido colocado.

Não imaginem que eu teria a indelicadeza de convidar a Luiza Trajano em público. O que eu posso dizer é que eu a conheço e que ela é uma figura extraordinária. Não só porque é uma empresária de grande êxito, mas porque tem uma origem humilde, começou de baixo, respeita os trabalhadores, está preocupada com a vacinação do povo genuinamente. E sempre foi assim. Eu admiro muito ela, mas não a convidaria pelo jornal.

Mas há conversa neste sentido ou é um ideal por enquanto?

Neste instante, eu tenho de conversar com todo mundo que, com mais ou menos intensidade, pensa a mesma coisa que eu. E, portanto, essas conversas vão nos aproximar de gente muito diferente de mim e que não se sentem bem entre ter de optar entre a tragédia do tempo presente ou uma volta ao passado idílico que não é mais possível de ser praticado.

Quando o senhor fala que é preciso conversar com todos o senhor se refere também aos militares?

Não existe projeto nacional sem uma estrutura de defesa profissional altamente tecnológica. Mas, em nenhuma circunstância, a alta cúpula das Forças Armadas pode ser transformada em um partido político. Hoje, isso virou um problema grave. Quando você vê um imbecil completo como o (Eduardo) Pazuello posando em cima de 287 mil brasileiros mortos e arrogantemente pregando uma continuidade, sendo general da ativa, isso é um problema grave. Sabe onde existe isso? Em repúblicas de bananas de quinta categoria. Em um governo meu, a legislação será mudada na primeira hora: militar se quiser entrar para a política larga a farda, vai para a reserva, como em qualquer país civilizado.

O senhor concorda que a possível entrada de Lula no jogo eleitoral estreita o espaço para candidaturas?

A preço de hoje, sem dúvida. Mas, com a minha experiência, digo, sem medo de errar, que nada do que parece será. Por exemplo: todo mundo considera, a preço de hoje, que Bolsonaro será um dos polos do segundo turno. Eu discordo, não acho que é certo que ele esteja.

O senhor tem conversado com o marqueteiro João Santana para comandar sua campanha em 2022? A estratégia é criar um “Ciro paz e amor” contra as críticas a seu temperamento?

É muito lisonjeiro para um homem com 63 anos de idade e 40 anos de vida pública que, a essa altura, a acusação que meus adversários fazem é sobre o meu temperamento. Claro que tenho de ouvir essas críticas porque eu tenho, enfim, que adaptar uma linguagem diante da expressão da minha indignação. Mas, sabendo do que eu sei, vou fazer o quê? Bancar o lord inglês? Eu sou do interior do Ceará, fui educado na escola pública, meus pais passaram fome, fui governador, comandei a economia do Brasil...

E o João Santana?

É um velho amigo, de longa data. Respeito muito as opiniões dele e temos sim conversado. Não sei se sairá uma parceria, vamos ver.

É iminente o fim da Lava Jato com a possível suspeição do Moro. Isso é bom ou ruim?

A Lava Jato foi enterrada pelo senhor Jair Messias Bolsonaro. No sentido de uma exemplaridade de combater a corrupção, isso é ruim. Mas, no sentido de restaurar os fluxos do Estado de direito democrático, está a destempo. Punir corrupção é uma coisa que tem de ser fria, sóbria, serena, severa, fora da política. O oposto do que Sérgio Moro e sua banda de procuradores fizeram. Moro só semeou nulidades. E os grandes bandidos deste País sairão com o atestado, que o povo não é obrigado a saber do direito, como Lula está fazendo, se anunciando inocente. Tem nada de inocente.

Lula é um grande bandido?

O que estou dizendo é que quando se comete nulidades na perseguição a um bandido, que não é o caso, você não está punindo o bandido. Não estou falando do Lula.

Com Bolsonaro no poder, o número de inquéritos abertos pela PF com base na Lei de Segurança Nacional cresceu 285%. O senhor mesmo é investigado, mas com base no Código Penal. Como avalia?

Vejo isso como uma coisa muito boa. O senhor Jair Messias está entrando em desespero porque pedir para abrir inquérito é um constrangimento ilegal que nenhum juiz vai dar, nenhum tribunal vai sancionar. Trata-se de uma tentativa de constranger, de censurar que está funcionando pelo oposto. Veja o meu caso. Estou  pouco ligando.

Como avalia a crise federativa que vivemos com os governadores tendo de agir por conta própria ou mesmo se reunindo em consórcios para comprar vacinas?

Olha, o PDT e eu é que assinamos a petição que levou o Supremo a determinar a autonomia dos entes federativos para concorrentemente ajudar a enfrentar a pandemia. E ai de nós se não tivéssemos feito isso porque lá atrás o governo federal anunciou que era uma gripezinha, estimulou aglomeração, evitou importar respiradores. Foi um desastre completo. E ainda age como charlatão prescrevendo remédios e canalhas como o (Eduardo) Pazuello só agravam o fenômeno. O que teria acontecido com o Brasil se os prefeitos e governadores não tivessem corrido atrás? Estaríamos contando 1 milhão de mortos. Agora, isso é uma loucura porque é no limite genocida.

O senhor acredita que há condição política para o impeachment do presidente Bolsonaro?

Não importa. Esse é o gravíssimo erro histórico que o Rodrigo Maia cometeu. Não importa a condução política, importa que ele comete crime de responsabilidade continuamente. Na medida em que o Congresso, exercitando sua superior atribuição de representação do povo, abrisse o procedimento, ele não estaria impichado. Ele seria chamado a se defender, mas imediatamente o efeito seria o salvamento de mais de 150 a 200 mil vidas.

O senhor acha que poderia ter um efeito colateral?

Imagine: abriu a comissão do impeachment, o Bolsonaro iria continuar a fazer as loucuras que faz? Imediatamente mudaria de conduta, como está fazendo agora obrigado pelo Centrão, que não vende apoio, aluga. E o Centrão não vai carregar esse cadáver político que o Bolsonaro vai se transformar até a eleição. Vai largar ele no caminho. Ou esse Centrão não estava com a Dilma, com o Lula ou com o Collor?

E a CPI da Saúde, poderia ter esse feito também?

Imediatamente. Semana que vem vamos a 4 mil mortes por dia. Se o Congresso não se posicionar, vira cúmplice. Quero ver o Rodrigo (Pacheco) chegar nas Minas Gerais e explicar porque não abre a CPI se tem assinaturas suficientes. Morreram três senadores da República, um deles tinha 58 anos de idade.

Nas redes, tem-se espalhado que o Major Olímpio não morreu de covid...

Eles são uns canalhas, não têm limites. O Bolsonaro, ele mesmo, entrou na Justiça contra a conduta dos governadores e chamou de estado de sítio. Ele tem a premissa, e nisso ele é muito parecido com o Lula, de que todos nós somos idiotas e não sabemos o que é estado de sítio. Um picareta, apologista da tortura, apologista da ditadura, que vai na Justiça para garantir a comemoração do golpe de 64, agora vem defender franquias democráticas, de liberdade e estado de direito que estão totalmente cobertas pela legislação sanitária.

Adriana Ferraz e Eduardo Kattah, O Estado de S.Paulo, em 20 de março de 2021

Bolsonaro sabota auxiliares que tentam costurar pacto contra a covid-19

Ação do presidente no STF que pretende impedir que governadores e prefeitos decretem ‘lockdown’ é vista como uma tentativa de ele reforçar seu discurso político em contraposição aos governadores. Cresce no Senado movimentação pró-CPI da Covid

Protesto contra o presidente Jair Bolsonaro em Brasília. (Crédito da foto: Eraldo Peres / AP) 

Enquanto auxiliares do Palácio do Planalto se articulam para demonstrar alguma união com outros poderes e governadores no combate à pandemia de covid-19, o próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido) joga contra a sua equipe. Assessores da presidência, da Casa Civil e da secretaria do Governo trabalham para seguir as linhas traçadas por um pacto nacional que vem sendo pleiteado pelos Estados e o Congresso. Mas, o presidente reitera em suas ações que não tem a menor intenção de mudar sua estratégia. Em duas aparições públicas, na sua live de quinta, e numa conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada, na sexta-feira, o mandatário voltou a criticar governadores que impõem medidas de restrição de circulação, reforçou que entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para impedir esses decretos e citou que, em algum momento, o Governo Federal tenha de tomar uma “medida dura”, por causa da pandemia. Foi uma repetição do discurso que vem adotando há um ano.

A diferença é que agora o Brasil registra quase 300.000 óbitos em decorrência do coronavírus e encontra dificuldades em adquirir vacinas, já que ignorou as ofertas de preferência de compras apresentadas no ano passado, e está prestes a ficar sem remédios básicos para UTIs em 18 Estados. Os ataques ocorrem nas vésperas de promover uma reunião ampla, em que o objetivo era mostrar alguma coesão. Ela está prevista para o próximo dia 24 e espera contar com a participação dos presidentes da Câmara, do Senado, do STF, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal de Contas da União e uma comitiva de governadores que ainda não foi definida.

No Supremo, a ação apresentada pelo presidente tem sido vista como uma espécie de armadilha para reforçar o seu discurso, sem fundamento na realidade, de que o Judiciário não o deixa agir. Ele não espera uma vitória na Ação Direta de Inconstitucionalidade, e pretende usar uma possível derrota como plataforma política-eleitoral, na qual se eximiria de culpa no colapso da saúde e também pelas consequências do isolamento social. No ano passado, quando os ministros do STF decidiram que haveria uma responsabilidade compartilhada na gestão da crise, o presidente propagou entre os seus apoiadores a falsa informação de que ele foi impedido a agir por ordem dos magistrados.

Uma outra leitura política pode ser feita sobre o autor da ação. Geralmente, documentos que são enviados pela Presidência da República são assinados pela Advocacia Geral da União. Não foi o que ocorreu no caso. A petição inicial é firmada apenas pelo presidente Bolsonaro, e não por José Levi Mello do Amaral. No documento, o mandatário pede que os decretos emitidos pelos governos do Rio Grande do Sul, da Bahia e do Distrito Federal sejam suspensos. Também solicita “se estabeleça que, mesmo em casos de necessidade sanitária comprovada, medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem respaldo legal e devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas, possibilitando a subsistência pessoal e familiar”. Na prática, quer proibir o lockdown.

A ação do presidente vai na contramão do que a maioria da população deseja. Pesquisa Datafolha, divulgada na quinta-feira, mostrou que 71% dos brasileiros apoiam a restrição do comércio e serviços como medida de controle da pandemia. Também segue em sentido oposto aos países que tem apresentado melhores resultados no combate à doença, como o Reino Unido.

Os nove governadores da região Nordeste assinaram uma nota que disseram estar surpresos com a ação do presidente. A chamaram de inusitada e o convidaram a participar de uma união de esforços no combate à pandemia. “Fizemos a proposta de um Pacto Nacional pela Vida e pela Saúde e continuamos aguardando a resposta do presidente da República”, diz o documento assinado pelos chefes dos Executivos estaduais nordestinos.

Sem vácuo na política

Os movimentos descoordenados de Bolsonaro tiveram três reações no cenário político. O primeiro foi que, no Senado, tem crescido um movimento para que seja instalada a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19. Já há as assinaturas necessárias para tanto, mas o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), prefere postergar qualquer decisão. A abertura da comissão depende de seu aval.

O segundo movimento foi feito pelo próprio Pacheco. Nesta sexta-feira, ele enviou um ofício à a vice-presidenta dos Estados Unidos, Kamala Harris, pedindo que ela intermedeie a venda de vacinas excedentes em seu país para o Brasil. Harris acumula nos EUA o papel de presidente do Senado. Há ao menos 30 milhões de doses excedentes em território americano, produzidas pela AstraZeneca, que ainda dependem de autorização das agências sanitárias locais para serem usadas lá. A expectativa é que essas vacinas não sejam usadas tão cedo por lá. Enquanto que no Brasil, elas já têm autorização para o uso.

“O Governo não é só Executivo. O Governo é Executivo, é Legislativo e Judiciário. E a questão principal neste momento é unir forças em favor do povo brasileiro. E convém fazer mais do que tem sido feito”, disse a senadora Kátia Abreu (PP-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado que intercedeu no tema. O Senado se viu compelido a agir não só pela inépcia de Bolsonaro, mas também porque o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que não tem cargo algum, tem tentado usar de sua influência política para obter mais vacinas ao país.

O terceiro movimento no xadrez político partiu de um subprocurador da República junto ao TCU (Tribunal de Contas da União). Lucas Furtado pediu a esse tribunal que afaste o presidente Bolsonaro das funções administrativas e hierárquicas sobre os ministérios da Saúde, Economia e Casa Civil e repasse as suas atribuições ao vice-presidente, Hamilton Mourão. Em seu pedido, o procurador argumentou que haverá prejuízo aos cofres públicos se não houver atendimento à população durante a pandemia e se queixa das disputas político-ideológicas.

“Não se discute que toda estrutura federal de atendimento à saúde, com recursos financeiros, patrimoniais e humanos, terá representado inquestionável prejuízo ao erário se não cumprirem sua função de atender à população no momento de maior e mais flagrante necessidade. É inaceitável que toda essa estrutura se mantenha, em razão de disputas e caprichos políticos, inerte diante do padecimento da população em consequência de fatores previsíveis e evitáveis”, diz trecho do documento.

O subprocurador ainda justificou que seu pedido está embasado na lei orgânica do TCU, que prevê o afastamento temporário do responsável caso haja indícios suficientes de que, “prosseguindo no exercício de suas funções, possa retardar ou dificultar a realização de auditoria ou inspeção, causar novos danos ao Erário ou inviabilizar o seu ressarcimento”. Na prática, a tendência é que esse pedido não tenha sucesso. O afastamento de um presidente ocorre por meio de um processo de impeachment tocado no Congresso Nacional ou quando há a cassação da chapa por meio de uma ação no Tribunal Superior Eleitoral. O vácuo de liderança no Palácio do Planalto e os sinais trocados emitidos pelo presidente tem resultado até em ações esdrúxulas de outros atores.

AFONSO BENITES de Brasília para o EL PAÍS, em 19 MAR 2021.