domingo, 21 de março de 2021

Juan Arias: Brasil mergulhado na barbárie

Deixar um país inteiro à deriva, não por falta de recursos, mas de liderança, é um crime que também recai sobre as autoridades incapazes de intervir

Parentes de Benedito Rodrigues da Silva, 83, que morreu de covid-19 em São Paulo, em seu enterro no cemitério Vila Formosa. (Crédito da foto: Carla Carniel / Reuters)

O Brasil começa a ser um campo onde parece ter se instalado um regime bárbaro com atos de terrorismo perpetrados contra aqueles que defendem as medidas de lockdown contra a pandemia que ameaça afundar o país na maior crise de saúde de sua história. Dois atos de terror e violência levados a cabo nos últimos dias contra dois jornalistas por fanáticos de Jair Bolsonaro levantaram o alarme de que os seguidores do presidente, que os qualifica de “meu exército”, estão dispostos a incendiar o país para impedir as medidas restritivas exigidas pela ciência e pela medicina como única arma junto com a vacina para tentar deter o rastro de mortes cada dia maior que horroriza o país. Nesta quinta-feira, o presidente deu mais um incentivo a eles: em nova transmissão ao vivo, disse ter acionado o Supremo Tribunal Federal contra as medidas para conter a circulação.

O último ato de terror aconteceu na cidade de Olímpia, no interior de São Paulo, contra José Antonio Arantes, editor do jornal local que quase morreu junto com a mulher e a neta de sete anos enquanto dormiam. Atearam fogo na casa durante a madrugada e se não fossem os dois cachorros que os despertaram com o quarto já cheio de fumaça e fogo, toda a família teria morrido. “Mais quinze minutos e teríamos todos morrido sufocados pelo fogo”, disse o jornalista, que acrescentou: “Estou há 40 anos na profissão, comecei minha carreira já no final da ditadura. Não vou abrir mão de lutar pelo meu povo e contra qualquer tipo de terrorismo e pensamento político que visem tirar a liberdade e suprimir os direitos de minha população”.

Outro jornalista, do O Estado de Minas há 20 anos, foi agredido durante uma manifestação de bolsonaristas com pontapés e pancadas na cabeça dadas com um capacete de motociclista aos gritos de “Comunista! Não vamos deixar!”. O jornalista comentou: “A ferida está na alma. Saber que temos um líder no país que incentiva a violência”. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) escreveu que “o extremismo e a intolerância contra jornalistas atingem toda a sociedade”.

É sabido que os grandes incêndios que devastam florestas inteiras às vezes começam com uma ponta de cigarro acesa. O mesmo acontece na política. Muitas das grandes tragédias da humanidade às vezes começaram com um único tiro de pistola e acabaram manchando de sangue países inteiros.

O Brasil está numa situação grave e perigosa que, se não for contida a tempo, pode arrastar o país para as cenas dantescas vistas no final do Governo Trump. As instituições do Estado responsáveis pela defesa dos direitos sancionados na sociedade não podem fechar os olhos nem pensar que Bolsonaro ainda pode mudar, defender os valores da liberdade e acalmar suas hostes violentas. Em mais de dois anos de Governo já deu provas suficientes de que sua personalidade negacionista, destrutiva e violenta não vai mudar.

Como vários psiquiatras já indicaram, sua personalidade pertence a pessoas com traços de patologia impossíveis de curar. Em sua coluna de ontem no jornal Folha de S. Paulo, intitulada Jair Messias e o ‘pai dos psicopatas’, Guido Palomba cita o psiquiatra alemão Kurt Schneider, que em seu último livro tenta decifrar os transtornos de personalidade em tempos de tensão.

São disfunções de personalidade “com ausência de sentimento de piedade, compaixão e altruísmo; falta de valores éticos e morais e incapacidade de se sentirem culpados. São pessoas sem remorso e arrependimento”. São pessoas sem ressonância afetiva com a dor alheia. Por vaidade exagerada, sentem-se acima de tudo e de todos. São personagens agressivos, mal-educados e provocadores.

O psiquiatra alemão os compara aos oligofrênicos e os descreve como pessoas que, se voltam atrás, não é para reconhecer seus erros, mas por estratégia. “Rancorosos e vingativos reagem com virulência”, e conclui significativamente: “Ninguém os detêm, salvo uma reprimenda enérgica judicial ou legal”.

Seria possível dizer que, se o capitão responde a esse distúrbio psiquiátrico, é inútil continuar esperando dele alguma conversão milagrosa. Agora os responsáveis são os que têm o poder, com a lei nas mãos, de pôr fim a essa barbárie que oprime cada vez mais este país, ameaçando deixá-lo à própria sorte, deixando que a epidemia o devore com gente morrendo nos corredores dos hospitais à espera de uma UTI.

Deixar um país inteiro à deriva, não por falta de recursos, mas de liderança, é um crime que também recai sobre as autoridades incapazes de intervir.

Seria de se perguntar se os militares que hoje apoiam o presidente em seu Governo também vão fechar os olhos. Se vão preferir ficar também eles presos no Titanic ou se preferirão abandoná-lo antes que seja tarde demais. O Brasil não merece este massacre que produz morte e desolação sem esperança de salvação.

JUAN ARIAS é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente por EL PAÌS, 18 MAR 2021

Índia avisa que entrega de vacina ao Brasil vai atrasar

Instituto responsável por vacina da AstraZeneca importada pelo Brasil alega necessidade de cumprir demanda interna e expandir capacidade de produção.

Lotes da vacina produzida pelo Serum: mais de 70 países receberam

O Instituto Serum, responsável pela produção na Índia da vacina contra a covid-19 desenvolvida pela AstraZeneca e a Universidade de Oxford, comunicou ao Brasil que não conseguirá cumprir os prazos de entrega dos imunizantes comprados pelo governo Jair Bolsonaro.

A informação foi publicada neste domingo (21/03) pelo jornal indiano Indian Times. Segundo o diário, o chefe do instituto, Adar Poonawalla, enviou uma carta à Fiocruz confirmando a suspensão das entregas, sem data exata para restabelecimento.

O Brasil, de acordo com Poonawalla, recebeu até agora 4 milhões dos 20 milhões de vacinas encomendados. A cifra difere da previsão mais recente da Fiocruz. Segundo a fundação, a negociação com a AstraZeneca e o Instituto Serum incluía a aquisição de mais oito milhões de doses ao longo dos próximos dois meses.

O atraso anunciada pelo Instituto Serum afeta também outros países, como Marrocos e Arábia Saudita. Ele foi justificado pelo aumento da demanda interna e dificuldades no trabalho de expansão de capacidade.

No início do mês, em declarações ao Congresso, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já havia indicado que poderia haver atrasos em março na carga vinda da Índia.

Pressão interna na Índia

A Índia, o maior fabricante mundial de vacinas, está sendo criticada domesticamente por doar ou vender mais doses do que administra em casa. O país está em meio a mais uma onda de covid-19, e já registrou mais de 11,6 milhões de infectados.

A informação do atraso de entregas ao Brasil é noticiado dias depois de o Reino Unido anunciar que teria que retardar seu programa de vacinação no próximo mês porque o instituto indiano demoraria a entregar doses planejadas. O Instituto Serum forneceu até agora metade das doses dos 10 milhões que o governo britânico encomendou.

Uma fonte citada pela agência de notícias Reuters disse que o Serum trabalha para expandir sua produção mensal de 60 para 100 milhões de doses até abril ou maio.

Originalmente, o instituto deveria vender vacinas apenas para países de média e baixa renda, principalmente na Ásia e África, mas problemas de produção em outras instalações da AstraZeneca forçaram-no a enviar para muitos outros países em nome da AstraZeneca.

A Índia doou até agora 8 milhões de doses e vendeu quase 52 milhões para 75 países, principalmente a vacina da AstraZeneca feita pelo Serum. A Índia já administrou mais de 44 milhões de doses desde que iniciou sua campanha de imunização, em meados de janeiro.

Vacina gerou constrangimento para Bolsonaro

No início do ano, sob pressão após a aquisição da Coronavac pelo governo de São Paulo e sem ter nenhuma dose em mãos para o início da campanha de vacinação nacional, Bolsonaro enviou uma carta  ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, pedindo urgência no envio ao Brasil, para, assim, tentar garantir o protagonismo da imunização.

O pedido de urgência para a importação das doses ocorreu após a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entidade do governo federal, ter informado que ocorreria um atraso na chegada ao país do insumo necessário para a produção local do inoculante da AstraZeneca. 

Pouco depois, o Ministério das Relações Exteriores afirmou em nota que o Brasil adquiriu as doses do Instituto Serum e que a embaixada brasileira teria feito os preparativos junto às autoridades indianas para receber os lotes. Um avião chegou a iniciar viagem para buscar a vacina no país asiático. Tanto Bolsonaro quanto o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, prometiam a chegada do imunizante em dois dias.

Num constrangimento para Bolsonaro, o voo, porém, acabou sendo adiado depois que o governo indiano declarou que não poderia ainda dar uma data para a exportação de doses produzidas no país.

"Parece que o Brasil queimou a largada ao anunciar oficialmente o envio de uma aeronave para transportar 2 milhões de doses de vacina", afirmou uma reportagem do jornal indiano Hindustan Times na época.

A carga com 2 milhões de doses acabou chegando apenas em finais de janeiro. O material já vem pronto para ser aplicado e é apenas rotulado na Fiocruz. O segundo lote, com mais dois milhões de doses, chegou ao Brasil em 23 de fevereiro.

Importação supriria demora na produção interna 

Segundo a Fiocruz, a vacina indiana serviu para reduzir o impacto inicial sobre o cronograma de entregas. A fundação planeja entregar cerca de 20 milhões de vacinas da AstraZeneca-Oxford por mês, a partir de abril. As entregas ocorrerão de forma semanal. Para março, estão previstos 3,8 milhões de doses, com entrega de 1,08 milhão para esta semana

As vacinas se referem à produção feita pela Fiocruz, sem contar com as compradas pelo Instituto Serum, na Índia.

A quantidade das doses indianas enviadas ao Brasil nunca foi confirmada, mas a imprensa brasileira noticiava que a previsão do governo era de que 2 milhões de doses fossem repassados mensalmente, a partir de abril.

Deutsche Welle Brasil, em 21.03.2021

Dúvida sobre futuro de Bolsonaro já paira no ar

Nos últimos dias, uma questão perigosa passou a ser debatida reservadamente entre os líderes de Brasília até bem pouco atrás refratários a solavancos: o que aconteceria, em um país sem vacina e com desemprego e inflação nas alturas, se o presidente fosse substituído? 

Trocando em miúdos, o afastamento de Jair Bolsonaro paralisaria ainda mais o Brasil ou resultaria em avanço imediato? Para os veteranos de 1992 e 2016, as respostas são menos importantes do que a instauração e disseminação da questão. O vírus da dúvida já está no ar de Brasília.


Presidente Jair Bolsonaro. (Crédito da foto: Ueslei Marcelino/Reuters)

Avarias. Há também boa dose de cálculo eleitoral. O Centrão adverte: 2022 é logo ali e ninguém quer ficar em barco que pode afundar antes de a regata começar.

Deu… A ação de Bolsonaro no STF contra governadores conseguiu agravar a tensão no Congresso.

…pra ti? A leitura: os últimos dias revelaram, mais uma vez, que o presidente prefere radicalizar e espalhar mentiras ante agir politicamente no combate à pandemia. Com a escalada nos índices de mortes e filas de UTI, ficou atestada a inoperância do governo.

Linha. Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Arthur Lira (PP-AL) têm feito de tudo para não entrar em rota de colisão com o governo, mas a sensação no entorno dos presidentes do Congresso é de situação limítrofe.

Aff. Pacheco ficou bastante abalado com a morte de Major Olímpio e não gostou nem um pouco da insinuação de Bolsonaro de um estado de sítio no País.

Chega. Em carta aberta, Simone Tebet (MDB-MS) cobrou, mais uma vez, a instalação da CPI da Covid-19 no Senado como forma de pressionar o Executivo federal a agir com “rapidez, coordenação e vontade”.

Caos. “Ou Bolsonaro se dirige à nação e demonstra plena consciência da gravidade da situação e apresenta, ao lado do ministro da Saúde, um plano nacional de execução urgente para enfrentamento da pandemia, ou permaneceremos, todos, no caos”, afirma Tebet.

Publicado originalmente na Coluna do Estadão, em 21 de março de 2021.

Eliane Cantanhede: Guerra insana

Uma união nacional contra a pandemia só funciona com uma premissa: isolar Jair Bolsonaro.

O Brasil exige união de forças contra o coronavírus, mas o presidente Jair Bolsonaro trabalha na direção oposta, pela desunião e o caos. Enquanto instituições, Estados e municípios buscam a iniciativa privada e articulam uma frente para salvar vidas e garantir atendimento e humanidade aos pacientes, o presidente da República insiste na sua guerrinha pessoal, insana e cheia de ameaças autoritárias contra governadores e isolamento social.

Na quinta-feira à noite, o presidente da Câmara, Arthur Lira, foi à residência oficial do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ali ao lado da sua, para discutir a extrema gravidade da situação e formas de reagir, abrindo portas com empresas, fábricas e laboratórios, para suprir o que já começa a faltar: leitos, oxigênio, medicamentos para intubação e, sim, vacinas, vacinas, vacinas.

Na sexta, às 8h em ponto, o general Luís Eduardo Ramos, secretário de Governo da Presidência, chegou à casa de Pacheco com o mesmo objetivo, tentando viabilizar uma reunião na próxima terça com os presidentes da República, do Senado, da Câmara e do Supremo, o procurador-geral da República e um representante dos governadores de cada região do País.

E o que anda fazendo Bolsonaro?

Trabalhando a favor da pandemia! É um aliado incondicional do coronavírus, faça chuva ou faça sol, morram 30 ou 300 mil, o que deixa, inclusive, uma dúvida: que papel terá na terça? O que dirá? Que compromissos assumirá?

Como Bolsonaro não é um interlocutor minimamente apto na pandemia e ninguém se dirige ao Planalto para tratar de providências, os poderes e entes federativos se acertam e tomam decisões. Rodrigo Pacheco também se reuniu com o quase futuro ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e mandou ofício ao quase ex Eduardo Pazzuelo sobre cronogramas de vacinas – atrasados, confusos e de baixa credibilidade.

E o senador pediu à sua correspondente nos EUA, Kamala Harris (que acumula a vice com a presidência do Senado), um “gesto de solidariedade” para negociar as doses excedentes de vacinas com o Brasil e, assim, atacar a pandemia no seu atual epicentro e aumentar a segurança nos países das Américas. São bons argumentos.

Enquanto os Poderes se mexiam, Bolsonaro anunciava uma ação contra o toque de recolher no DF, na Bahia e no Rio Grande do Sul, para conter a circulação de pessoas e do vírus assassino. Se o Supremo acatar a ação, ele estará liberado para abrir uma guerra mortal aos governadores e às medidas de combate à pandemia. Mas o Supremo não vai acatar.

Ato contínuo, o presidente disse a apoiadores que “o caos vem aí” e “vai chegar o momento de tomar uma ação dura”. Luiz Fux, que preside a Corte, telefonou para ele. Não há indicação de estado de sítio e governadores têm autonomia para decretar toque de recolher, previsto na lei sobre a pandemia. Bolsonaro erra, confunde, ameaça, e o ministro da Justiça, André Mendonça, usa a Lei de Segurança Nacional contra quem usa o termo “genocida” e critica o presidente.

Cidadãos pregarem um cartaz em Palmas (TO) dizendo que Bolsonaro “não vale um pequi roído” é muito diferente de um deputado ameaçar “dar uma surra” num ministro do Supremo. Uma coisa é liberdade de expressão e crítica, como cartazes contra Bolsonaro e balões de Lula presidiário. Outra é o crime de ameaçar bater em ministros, invadir suas casas e jogar fogos de artifício sobre o Supremo.

Assim como o vírus, o presidente está fora de controle, sempre testando os limites da democracia. Não vê o que todos veem: o colapso da saúde e as mortes. Mas vê o que ninguém vê: insurreição popular e quebra-quebra, mantendo seus delírios sobre golpes e arroubos autoritários. Uma união nacional contra o vírus depende de uma premissa: isolar Bolsonaro.

União nacional contra pandemia só funciona com uma premissa: isolar Bolsonaro.

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Jornal (PE) e do Tele Jornal Globo News - "Em Pauta". Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, edição de 21 de março de 2021.

J.R. Guzzo: Sempre o mesmo

Políticos de “centro” acreditam que Lula possa, um dia, abrir mão de interesses pessoais. Não vai dar certo nunca.

Há 40 anos, desde a sua fundação, o PT pensa, fala e vive como um partido único; não sabe, simplesmente, ser de outro jeito. É bem fácil de entender. Se o PT não é uma ditadura, por que o presidente do partido – oficial ou oculto, mas o único verdadeiro – é sempre o mesmo desde 1982? O PT, na verdade, não tem um presidente. Tem uma autoridade máxima – uma mistura de Fidel Castro, ou algo parecido, com o papa, no tempo em que o papa mandava em alguma coisa. O comandante nunca permitiu, e continua a não permitir, que qualquer outro nome possa disputar um mínimo de espaço com ele dentro do partido. Todos os que tentaram, de Luiza Erundina a Marta Suplicy, passando por Deus e todo o mundo, acabaram postos para fora.

Há 40 anos, apesar de nada disso ser nenhum segredo, os políticos brasileiros que imaginam ser do centro-equilibrado-democrático-civilizado-asseado-de meia esquerda-preocupado com o “social” e amigo das crianças acreditam que Lula possa, um dia, abrir mão de seus interesses pessoais e aliar-se para valer com algum deles. Jamais deu certo, é claro, e não vai dar certo nunca. O ex-governador Ciro Gomes, por exemplo, já está ali pela décima tentativa; até outro dia continuava tentando. Os últimos a acreditar foram os pré-candidatos – ou melhor, a essa altura, expré-candidatos – à sucessão do presidente Jair Bolsonaro. Tiveram uma miragem, durante dois anos: acharam que podiam ficar amigos de Lula, do PT e da esquerda. Levaram um belo somebody love, como se diz, e hoje estão a pé.

A decisão do ministro Edson Fachin de anular as quatro ações penais que Lula tinha nas costas, incluindo sua condenação em terceira e última instância por corrupção e lavagem de dinheiro – com sentenças de nove juízes diferentes – anulou, ao mesmo tempo, as candidaturas que tentavam disputar o espaço entre Bolsonaro e o “campo

progressista”. Foi um efeito inesperado. Ao declarar que a ficha suja de Lula não vale mais, o STF, tão louvado por todos os que não querem a reeleição do presidente da República, decidiu qual é a candidatura de oposição que vai existir na vida real. O prejuízo, em consequência, é de todas as outras – os que esperavam o apoio de Lula terão de se contentar, agora, em esperar que o ex-presidente lhes dê alguma sobra e a permissão de apoiar a sua campanha. É o avesso do avesso.

A fila é grande: empresários com “agendas sociais”, gente do mundo dos auditórios, generais da reserva e uma porção de etcéteras se aglomeram na lista de espera, rezando por um chamado do alto para “compor a chapa”. No fim, pode não ser nenhum desses; Lula tem lá as suas próprias ideias a respeito do assunto e, de qualquer forma, ainda falta muito tempo até a eleição de 2022. O certo é que o “espaço vazio” que se imaginava existir para a sucessão presidencial não existe mais – nesse espaço há um Lula, outra vez, querendo ser presidente. O STF devia ter ajudado, claro, mas o que se esperava era outra coisa. O conveniente seria ficar expedindo liminares, agravos e embargos contra Bolsonaro e o seu governo, só isso; não era para ressuscitar Lula. Agora está assim.

O resultado é que o horizonte do Brasil, até prova em contrário, é de extremo contra extremo. O centro sumiu. Lula não precisa dizer nada de diferente daquilo que tem dito a vida inteira para garantir seu apoio: quem está com ele não quer ouvir nada que já não tenha ouvido. O mesmo acontece com Bolsonaro: seus admiradores não estão interessados em escutar outra voz. Quem está no meio encontra-se sem escolha, sem nomes e sem um programa alternativo. Não há muita coisa boa que possa vir disso aí.

José Roberto Guzzo é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 21 de março de 2021.

A crise tem nome e sobrenome

Pressionado pela queda de sua popularidade, Bolsonaro tenta transferir a responsabilidade pela crise para os governadores.

O presidente Jair Bolsonaro convidou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, para integrar um comitê dos Três Poderes para discutir a pandemia de covid-19. Além de muito atrasado, o gesto serve somente para dar um verniz de estadista a um presidente que tudo tem feito para atrapalhar o combate ao coronavírus.

Fux submeteu o convite ao plenário do Supremo, e todos os seus 10 colegas escolheram rejeitá-lo, pois o tribunal deverá ser chamado a julgar a legalidade de medidas adotadas pelo governo. Mas há outros bons motivos para que o Supremo mantenha distância prudente de Bolsonaro, cuja única competência é criar tumulto.

Nos últimos dias, Bolsonaro voltou a contestar a eficácia de vacinas, a fazer campanha contra o uso de máscaras, a desdenhar de doentes e a colocar em dúvida o número de mortos e de ocupação de UTIs. Anunciou a troca de ministro da Saúde para sinalizar mudança de rumo, mas não só o incompetente Eduardo Pazuello continua a despachar como ministro, como o futuro ministro, Marcelo Queiroga, amigo da família Bolsonaro, promete manter tudo como está.

O Bolsonaro que acena com uma concertação institucional contra a pandemia é o mesmo que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo para questionar as medidas restritivas adotadas por governadores do Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Federal, notadamente o toque de recolher e o fechamento de atividades não essenciais.

Em abril do ano passado, o Supremo reconheceu a competência concorrente dos entes da Federação para tomar medidas contra a pandemia, entre as quais restrições de circulação. Ou seja, se decidir a favor de Bolsonaro, o Supremo estará, na prática, dizendo que suas decisões anteriores, tomadas em estrito respeito à Constituição, eram inconstitucionais – o que seria uma óbvia aberração.

O novo ataque de Bolsonaro ao princípio federativo terá outra frente: o presidente anunciou que encaminhará projeto de lei para definir o que é “atividade essencial”, que pode funcionar em meio à pandemia. Segundo Bolsonaro, “atividade essencial é toda aquela necessária para você levar um pão para dentro de casa” – ou seja, em suas próprias palavras, “basicamente tudo passa a ser atividade essencial”.

No início da pandemia, Bolsonaro tentou concentrar na União as decisões sobre quais seriam as atividades essenciais e o alcance de medidas restritivas. A intenção, óbvia, era impedir o fechamento da economia. O Supremo vetou, sob o argumento de que Estados e municípios tinham autonomia para tomar as atitudes que julgassem necessárias.

Desde então, Bolsonaro tem dito que o Supremo o impediu de atuar no combate à pandemia, o que a Corte já desmentiu inúmeras vezes. Naquilo que lhe cabe, o presidente é um retumbante fracasso: tardou a comprar vacinas, tardou mais ainda a liberar o urgente auxílio emergencial e pouco faz para abastecer hospitais de insumos necessários para o atendimento de doentes de covid-19.

Pressionado pela queda acentuada de sua popularidade, Bolsonaro tenta desesperadamente transferir a responsabilidade pela crise para os governadores – a quem acusou de estarem “matando” a população de fome. “Querem derrubar o governo”, acusou Bolsonaro.

Empenha-se assim em criar um clima de enfrentamento, equiparando toque de recolher a estado de sítio, “que só uma pessoa pode decretar: eu”. Bolsonaro tem feito referência frequente, nos últimos dias, a medidas de exceção e a seu poder de determiná-las. O presidente tornou a se referir ao Exército como se fosse sua milícia privada, ao dizer que “o meu Exército não vai para rua para cumprir decreto de governadores” se “o povo começar a sair, entrar na desobediência civil”.

Parece claro o flerte com a ruptura institucional, para deleite de seus camisas pardas, a quem o presidente chama de “povo”. E, disse Bolsonaro, “o que o povo quer a gente faz”.

Com o sistema de saúde em colapso, péssimas perspectivas econômicas e cansado de tanta confusão, o povo quer apenas que Bolsonaro pare de prejudicar o País. A esta altura, será um grande favor.

Editorial d'O Estado de São Paulo, em 21 de março de 2021.

sábado, 20 de março de 2021

Brasil registra 2.438 mortes por covid-19

País também registrou mais 79 mil casos neste sábado. Total de mortes passa de 292 mil e casos oficiais se aproximam da marca de 12 milhões.

O Brasil registrou neste sábado (20/03) 2.438 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). .

Também foram identificados 79.069 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 11.950.459, enquanto os óbitos chegam a 292.752.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 10.383.460 pacientes haviam se recuperado até domingo.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 139,3 no Brasil, a 19ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29,7 milhões de casos. O Brasil é também o segundo em número absoluto de mortos, novamente atrás dos EUA, onde 541 mil pessoas morreram.

Ao todo, mais de 122,6 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,59 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 20.03.2021

A intimidação é intolerável

O presidente Jair Bolsonaro, seus familiares, seu governo e seus seguidores têm mostrado que desconhecem o Direito brasileiro. Estão descaradamente promovendo, por várias vias, uma campanha de intimidação contra adversários políticos, como se não existissem no País as liberdades de opinião e de expressão. 

No dia 15 de março, o youtuber Felipe Neto foi intimado a depor na Polícia Civil, em investigação relativa a crime de calúnia e a crimes contra a Segurança Nacional (Lei 7.170/83). O fato a ser apurado: Felipe Neto chamou o presidente Jair Bolsonaro de genocida, em razão de sua atuação na pandemia. Na semana anterior, Carlos Bolsonaro tinha anunciado, em rede social, que apresentara queixa-crime contra Felipe Neto e a atriz Bruna Marquezine, por supostos crimes contra seu pai, Jair Bolsonaro.

Não há dúvida de que as liberdades de opinião e expressão autorizam o exercício da crítica, especialmente em relação aos governantes. Essa intimação da Polícia Civil, que depois foi suspensa pela Justiça, foi claro uso do aparato estatal para perseguir quem se opõe à família Bolsonaro.

Nesse intento de intimidar, chama a atenção o descuido com o próprio Direito. A Lei de Segurança Nacional prevê que, “para apuração de fato que configure crime previsto nesta Lei, instaurar-se-á inquérito policial, pela Polícia Federal: de ofício, mediante requisição do Ministério Público, mediante requisição de autoridade militar responsável pela segurança interna, mediante requisição do ministro da Justiça”.

Cabe à Polícia Federal, e não à Polícia Civil, apurar o suposto crime. Além disso, ao que se sabe, Carlos Bolsonaro não é ministro da Justiça, tampouco representante legal de seu pai para apresentar queixa-crime relativa à suposta calúnia. Nessa história, é também muito estranha a conivência da Polícia Civil, permitindo-se ser usada para fins evidentemente ilegais. 

Outro órgão que tem permitido ser usado nessa empreitada de intimidação – às vezes, assumindo um lamentável protagonismo – é o Ministério da Justiça. Em vez de ser a voz que lembra o Direito no governo federal, o titular da pasta, André Mendonça, tem preferido esquecer a ordem jurídica e agradar ao presidente Jair Bolsonaro.

Além de desrespeitar liberdades fundamentais, os casos revelam uma obsessão doentia por perseguir quem se posiciona publicamente contra Jair Bolsonaro. Por exemplo, a pedido do ministro da Justiça, a Polícia Federal abriu investigação contra o sociólogo e professor Tiago Costa Rodrigues, por ter organizado a instalação de dois outdoors críticos ao governo Bolsonaro em Palmas, no Tocantins. Um dos outdoors trazia a frase “Cabra à toa, não vale um pequi roído. Palmas quer impeachment já”.

Inicialmente, o caso foi arquivado por recomendação da Corregedoria Regional da Polícia Federal e do Ministério Público Federal do Tocantins. No entanto, o Ministério da Justiça insistiu, determinando a abertura do inquérito contra o sociólogo.

Recentemente, o ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Pedro Hallal e o pró-reitor de Extensão da universidade, Eraldo dos Santos Pinheiro, assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pela Corregedoria-Geral da União (CGU) se comprometendo a não criticar o governo Bolsonaro dentro de ambiente de repartição pública. Os dois atacaram a condução do combate à pandemia durante uma live realizada dentro da universidade.

Com essa ofensiva do governo federal de intimidar, há quem venha se sentindo à vontade para agir muito além do que a lei permite. No dia 15 de março, em Belo Horizonte e Salvador, dois jornalistas foram agredidos, enquanto trabalhavam na cobertura de manifestações a favor do presidente Jair Bolsonaro. Nos dois casos, bolsonaristas tentaram impedir que os profissionais filmassem e fotografassem as manifestações.

No dia 17 de março, por defender o distanciamento social, o jornal Folha da Região, em Olímpia (SP) teve sua sede atacada, o que provocou um incêndio.

Um governo que persegue opositores viola a essência da democracia e da liberdade. Pensando-se forte, expõe sua maior debilidade, a de caráter.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 20 de março de 2021 

Ciro Gomes: ‘Não vou deixar o Lula ganhar essa na lambança’

Ex-ministro mantém distância do PT e afirma que ex-presidente ‘não foi proclamado inocente’: ‘Ele, de novo, está mentindo’

Entrevista com Ciro Gomes (PDT), ex-ministro e ex-governador do Ceará

O resgate dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não alterou a disposição do ex-ministro Ciro Gomes (PDT) de disputar novamente a Presidência em 2022 nem mudou seu plano de tornar-se a opção de centro capaz de romper com a esperada polarização entre o bolsonarismo e o “lulopetismo”. “Eu não vou deixar o Lula ganhar essa na lambança”, diz.

Terceiro colocado na eleição presidencial de 2018, Ciro afirma que trabalha para construir um projeto de País que pode ter uma empresária como vice – Luiza Trajano, a dona da Magazine Luza, é classificada por ele como uma “pessoa extraordinária” – e o marqueteiro João Santana, que atuou nas campanhas vitoriosas de Lula e Dilma Rousseff, como estrategista eleitoral.

'Bolsonaro deve admitir erro e propor um pacto', diz Michel TemerEm entrevista ao Estadão, Ciro voltou a defender a abertura de um processo de impeachment de Jair Bolsonaro. Para ele, diante do contexto atual, não é certo que o presidente “será um dos polos do segundo turno” na eleição do próximo ano.

Ciro Gomes, ex-governador do Ceará: 'Eu acho que a solução para a terra arrasada, sob os pontos de vista sanitário, social e econômico que o Bolsonaro vai deixar, exige um novo projeto nacional de desenvolvimento'.  Foto: Taba Benedicto/Estadão

Ministro, o sr. é pré-candidato à Presidência? É uma condição irreversível?

O meu partido tem uma deliberação de que eu sou candidato e eu estou muito motivado para ser. E isso por uma circunstância: eu acho que a solução para a terra arrasada, sob os pontos de vista sanitário, social e econômico que o Bolsonaro vai deixar exige um novo projeto nacional de desenvolvimento, um novo desenho do diálogo nacional para sustentar as bases desse projeto, muita imaginação institucional para inovar e, neste sentido, acho que o lulopetismo é uma volta ao passado ilusória.

Sua relação com o que chama de lulopetismo continua intransponível?

Eu lutei pelo restabelecimento dos direitos políticos do Lula. Fui mal entendido quando disse que aquela condução coercitiva era arbitrária e que o Sérgio Moro estava semeando nulidades. Portanto, é um ato de civilidade declarar a suspeição do Moro e dizer que o Lula tem direito, como qualquer grande bandido – que não é o caso dele –  ao devido processo legal. Agora o Lula volta a ser um político para a gente examinar. Juridicamente, fez-se o melhor direito, mas não é que ele foi proclamado inocente, como ele, de novo, está mentindo. Politicamente, entretanto, não há como disfarçar que o Lula é o grande responsável pelo entranhamento orgânico da corrupção na vida brasileira. É inequívoco que o PT transformou a corrupção, a fisiologia, o loteamento das estruturas centrais do Estado como ferramenta central do modelo de poder que o Lula implantou no País.

No segundo turno de 2018, o senhor fugiu da associação com o PT como o diabo foge da cruz...

Eu não fugi não, eu me senti moralmente obrigado a não sancionar mais essas contradições do PT. Eu acho que temos de ajudar o povo brasileiro a entender que temos dois terríveis desafios pela frente. O primeiro é derrotar o bolsonarismo boçal, corrupto que está levando o Brasil a uma condição de terra arrasada. O Brasil está vivendo a pior crise de sua história sem rival. Então, essa é uma tarefa em que todo mundo tem que estar junto. Eu não vou escolher quem está e quem não está. Quem fez isso foi o Lula, lá atrás, quando eu me avistei com o Fernando Henrique Cardoso e assinamos manifestos pedindo a união do País contra o Bolsonaro e fomos pedir o impeachment. O Lula disse que não era “Maria vai com as outras”. A segunda missão, mais grave, é construir o futuro. E será que construir o futuro é um “back to the past”? Definitivamente não é. O lulopetismo, neste sentido, é parte do problema.

Então a resposta é sim.

Na primeira tarefa estou junto da porta do inferno para trás. Agora, para construir o futuro, o lulopetismo é parte central do problema. Lula é candidato desde 1989. Ele não tem nenhuma responsabilidade por ter posto a Dilma? Bolsonaro acabou de derrubar a economia em 4,1% e está se desculpando porque está em uma pandemia. Alguma razão ele tem. A Dilma derrubou 3,2% sem pandemia! O Palocci era o braço direito desse modelo, devolveu R$ 100 milhões. Tudo bem, o Chico Buarque adora o Lula? Eu respeito os afetos do Chico Buarque, mas o Palocci?

Muitos consideram que para derrotar o Bolsonaro é preciso que a esquerda se una ao centro. Em que espectro político o senhor se encaixa? 

Há duas tarefas: A primeira é derrotar o Bolsonaro e, neste sentido, todos os democratas – pouco me importa se são de direita, de esquerda, de centro, se são de Marte, de Vênus, de Mercúrio –, todos temos a responsabilidade de criarmos um ambiente para isso. Segundo, é grande a necessidade estratégica deste momento. Eu não vou deixar o Lula ganhar essa na lambança. É construir o futuro e, infelizmente, neste sentido a largueza que eu sonho não é possível pelas nossas diferenças.

Nesse desafio de se construir um projeto de futuro, como o senhor vê possíveis projetos eleitorais como os de Luciano Huck e Sérgio Moro?

Eu acho que o desafio de construir um projeto de País depende de um requisito de experiência que falta a ambos. Falta visão, falta experiência, falta compreensão, conhecimento do Brasil, traquejo político. E o Brasil não aguenta mais estagiário! Meu Deus do céu! Qual era a experiência anterior da Dilma na política? Até o Bolsonaro consegue 1/3 do Congresso para impedir o impeachment. A Dilma não foi capaz de reunir isso no primeiro ano do mandato. Além da tragédia econômica, foi um desastre político.

Essa falta de experiência da qual o senhor fala vale para um eventual candidato a vice? O nome da empresária Luiza Trajano tem sido colocado.

Não imaginem que eu teria a indelicadeza de convidar a Luiza Trajano em público. O que eu posso dizer é que eu a conheço e que ela é uma figura extraordinária. Não só porque é uma empresária de grande êxito, mas porque tem uma origem humilde, começou de baixo, respeita os trabalhadores, está preocupada com a vacinação do povo genuinamente. E sempre foi assim. Eu admiro muito ela, mas não a convidaria pelo jornal.

Mas há conversa neste sentido ou é um ideal por enquanto?

Neste instante, eu tenho de conversar com todo mundo que, com mais ou menos intensidade, pensa a mesma coisa que eu. E, portanto, essas conversas vão nos aproximar de gente muito diferente de mim e que não se sentem bem entre ter de optar entre a tragédia do tempo presente ou uma volta ao passado idílico que não é mais possível de ser praticado.

Quando o senhor fala que é preciso conversar com todos o senhor se refere também aos militares?

Não existe projeto nacional sem uma estrutura de defesa profissional altamente tecnológica. Mas, em nenhuma circunstância, a alta cúpula das Forças Armadas pode ser transformada em um partido político. Hoje, isso virou um problema grave. Quando você vê um imbecil completo como o (Eduardo) Pazuello posando em cima de 287 mil brasileiros mortos e arrogantemente pregando uma continuidade, sendo general da ativa, isso é um problema grave. Sabe onde existe isso? Em repúblicas de bananas de quinta categoria. Em um governo meu, a legislação será mudada na primeira hora: militar se quiser entrar para a política larga a farda, vai para a reserva, como em qualquer país civilizado.

O senhor concorda que a possível entrada de Lula no jogo eleitoral estreita o espaço para candidaturas?

A preço de hoje, sem dúvida. Mas, com a minha experiência, digo, sem medo de errar, que nada do que parece será. Por exemplo: todo mundo considera, a preço de hoje, que Bolsonaro será um dos polos do segundo turno. Eu discordo, não acho que é certo que ele esteja.

O senhor tem conversado com o marqueteiro João Santana para comandar sua campanha em 2022? A estratégia é criar um “Ciro paz e amor” contra as críticas a seu temperamento?

É muito lisonjeiro para um homem com 63 anos de idade e 40 anos de vida pública que, a essa altura, a acusação que meus adversários fazem é sobre o meu temperamento. Claro que tenho de ouvir essas críticas porque eu tenho, enfim, que adaptar uma linguagem diante da expressão da minha indignação. Mas, sabendo do que eu sei, vou fazer o quê? Bancar o lord inglês? Eu sou do interior do Ceará, fui educado na escola pública, meus pais passaram fome, fui governador, comandei a economia do Brasil...

E o João Santana?

É um velho amigo, de longa data. Respeito muito as opiniões dele e temos sim conversado. Não sei se sairá uma parceria, vamos ver.

É iminente o fim da Lava Jato com a possível suspeição do Moro. Isso é bom ou ruim?

A Lava Jato foi enterrada pelo senhor Jair Messias Bolsonaro. No sentido de uma exemplaridade de combater a corrupção, isso é ruim. Mas, no sentido de restaurar os fluxos do Estado de direito democrático, está a destempo. Punir corrupção é uma coisa que tem de ser fria, sóbria, serena, severa, fora da política. O oposto do que Sérgio Moro e sua banda de procuradores fizeram. Moro só semeou nulidades. E os grandes bandidos deste País sairão com o atestado, que o povo não é obrigado a saber do direito, como Lula está fazendo, se anunciando inocente. Tem nada de inocente.

Lula é um grande bandido?

O que estou dizendo é que quando se comete nulidades na perseguição a um bandido, que não é o caso, você não está punindo o bandido. Não estou falando do Lula.

Com Bolsonaro no poder, o número de inquéritos abertos pela PF com base na Lei de Segurança Nacional cresceu 285%. O senhor mesmo é investigado, mas com base no Código Penal. Como avalia?

Vejo isso como uma coisa muito boa. O senhor Jair Messias está entrando em desespero porque pedir para abrir inquérito é um constrangimento ilegal que nenhum juiz vai dar, nenhum tribunal vai sancionar. Trata-se de uma tentativa de constranger, de censurar que está funcionando pelo oposto. Veja o meu caso. Estou  pouco ligando.

Como avalia a crise federativa que vivemos com os governadores tendo de agir por conta própria ou mesmo se reunindo em consórcios para comprar vacinas?

Olha, o PDT e eu é que assinamos a petição que levou o Supremo a determinar a autonomia dos entes federativos para concorrentemente ajudar a enfrentar a pandemia. E ai de nós se não tivéssemos feito isso porque lá atrás o governo federal anunciou que era uma gripezinha, estimulou aglomeração, evitou importar respiradores. Foi um desastre completo. E ainda age como charlatão prescrevendo remédios e canalhas como o (Eduardo) Pazuello só agravam o fenômeno. O que teria acontecido com o Brasil se os prefeitos e governadores não tivessem corrido atrás? Estaríamos contando 1 milhão de mortos. Agora, isso é uma loucura porque é no limite genocida.

O senhor acredita que há condição política para o impeachment do presidente Bolsonaro?

Não importa. Esse é o gravíssimo erro histórico que o Rodrigo Maia cometeu. Não importa a condução política, importa que ele comete crime de responsabilidade continuamente. Na medida em que o Congresso, exercitando sua superior atribuição de representação do povo, abrisse o procedimento, ele não estaria impichado. Ele seria chamado a se defender, mas imediatamente o efeito seria o salvamento de mais de 150 a 200 mil vidas.

O senhor acha que poderia ter um efeito colateral?

Imagine: abriu a comissão do impeachment, o Bolsonaro iria continuar a fazer as loucuras que faz? Imediatamente mudaria de conduta, como está fazendo agora obrigado pelo Centrão, que não vende apoio, aluga. E o Centrão não vai carregar esse cadáver político que o Bolsonaro vai se transformar até a eleição. Vai largar ele no caminho. Ou esse Centrão não estava com a Dilma, com o Lula ou com o Collor?

E a CPI da Saúde, poderia ter esse feito também?

Imediatamente. Semana que vem vamos a 4 mil mortes por dia. Se o Congresso não se posicionar, vira cúmplice. Quero ver o Rodrigo (Pacheco) chegar nas Minas Gerais e explicar porque não abre a CPI se tem assinaturas suficientes. Morreram três senadores da República, um deles tinha 58 anos de idade.

Nas redes, tem-se espalhado que o Major Olímpio não morreu de covid...

Eles são uns canalhas, não têm limites. O Bolsonaro, ele mesmo, entrou na Justiça contra a conduta dos governadores e chamou de estado de sítio. Ele tem a premissa, e nisso ele é muito parecido com o Lula, de que todos nós somos idiotas e não sabemos o que é estado de sítio. Um picareta, apologista da tortura, apologista da ditadura, que vai na Justiça para garantir a comemoração do golpe de 64, agora vem defender franquias democráticas, de liberdade e estado de direito que estão totalmente cobertas pela legislação sanitária.

Adriana Ferraz e Eduardo Kattah, O Estado de S.Paulo, em 20 de março de 2021

Bolsonaro sabota auxiliares que tentam costurar pacto contra a covid-19

Ação do presidente no STF que pretende impedir que governadores e prefeitos decretem ‘lockdown’ é vista como uma tentativa de ele reforçar seu discurso político em contraposição aos governadores. Cresce no Senado movimentação pró-CPI da Covid

Protesto contra o presidente Jair Bolsonaro em Brasília. (Crédito da foto: Eraldo Peres / AP) 

Enquanto auxiliares do Palácio do Planalto se articulam para demonstrar alguma união com outros poderes e governadores no combate à pandemia de covid-19, o próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido) joga contra a sua equipe. Assessores da presidência, da Casa Civil e da secretaria do Governo trabalham para seguir as linhas traçadas por um pacto nacional que vem sendo pleiteado pelos Estados e o Congresso. Mas, o presidente reitera em suas ações que não tem a menor intenção de mudar sua estratégia. Em duas aparições públicas, na sua live de quinta, e numa conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada, na sexta-feira, o mandatário voltou a criticar governadores que impõem medidas de restrição de circulação, reforçou que entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para impedir esses decretos e citou que, em algum momento, o Governo Federal tenha de tomar uma “medida dura”, por causa da pandemia. Foi uma repetição do discurso que vem adotando há um ano.

A diferença é que agora o Brasil registra quase 300.000 óbitos em decorrência do coronavírus e encontra dificuldades em adquirir vacinas, já que ignorou as ofertas de preferência de compras apresentadas no ano passado, e está prestes a ficar sem remédios básicos para UTIs em 18 Estados. Os ataques ocorrem nas vésperas de promover uma reunião ampla, em que o objetivo era mostrar alguma coesão. Ela está prevista para o próximo dia 24 e espera contar com a participação dos presidentes da Câmara, do Senado, do STF, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal de Contas da União e uma comitiva de governadores que ainda não foi definida.

No Supremo, a ação apresentada pelo presidente tem sido vista como uma espécie de armadilha para reforçar o seu discurso, sem fundamento na realidade, de que o Judiciário não o deixa agir. Ele não espera uma vitória na Ação Direta de Inconstitucionalidade, e pretende usar uma possível derrota como plataforma política-eleitoral, na qual se eximiria de culpa no colapso da saúde e também pelas consequências do isolamento social. No ano passado, quando os ministros do STF decidiram que haveria uma responsabilidade compartilhada na gestão da crise, o presidente propagou entre os seus apoiadores a falsa informação de que ele foi impedido a agir por ordem dos magistrados.

Uma outra leitura política pode ser feita sobre o autor da ação. Geralmente, documentos que são enviados pela Presidência da República são assinados pela Advocacia Geral da União. Não foi o que ocorreu no caso. A petição inicial é firmada apenas pelo presidente Bolsonaro, e não por José Levi Mello do Amaral. No documento, o mandatário pede que os decretos emitidos pelos governos do Rio Grande do Sul, da Bahia e do Distrito Federal sejam suspensos. Também solicita “se estabeleça que, mesmo em casos de necessidade sanitária comprovada, medidas de fechamento de serviços não essenciais exigem respaldo legal e devem preservar o mínimo de autonomia econômica das pessoas, possibilitando a subsistência pessoal e familiar”. Na prática, quer proibir o lockdown.

A ação do presidente vai na contramão do que a maioria da população deseja. Pesquisa Datafolha, divulgada na quinta-feira, mostrou que 71% dos brasileiros apoiam a restrição do comércio e serviços como medida de controle da pandemia. Também segue em sentido oposto aos países que tem apresentado melhores resultados no combate à doença, como o Reino Unido.

Os nove governadores da região Nordeste assinaram uma nota que disseram estar surpresos com a ação do presidente. A chamaram de inusitada e o convidaram a participar de uma união de esforços no combate à pandemia. “Fizemos a proposta de um Pacto Nacional pela Vida e pela Saúde e continuamos aguardando a resposta do presidente da República”, diz o documento assinado pelos chefes dos Executivos estaduais nordestinos.

Sem vácuo na política

Os movimentos descoordenados de Bolsonaro tiveram três reações no cenário político. O primeiro foi que, no Senado, tem crescido um movimento para que seja instalada a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19. Já há as assinaturas necessárias para tanto, mas o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), prefere postergar qualquer decisão. A abertura da comissão depende de seu aval.

O segundo movimento foi feito pelo próprio Pacheco. Nesta sexta-feira, ele enviou um ofício à a vice-presidenta dos Estados Unidos, Kamala Harris, pedindo que ela intermedeie a venda de vacinas excedentes em seu país para o Brasil. Harris acumula nos EUA o papel de presidente do Senado. Há ao menos 30 milhões de doses excedentes em território americano, produzidas pela AstraZeneca, que ainda dependem de autorização das agências sanitárias locais para serem usadas lá. A expectativa é que essas vacinas não sejam usadas tão cedo por lá. Enquanto que no Brasil, elas já têm autorização para o uso.

“O Governo não é só Executivo. O Governo é Executivo, é Legislativo e Judiciário. E a questão principal neste momento é unir forças em favor do povo brasileiro. E convém fazer mais do que tem sido feito”, disse a senadora Kátia Abreu (PP-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado que intercedeu no tema. O Senado se viu compelido a agir não só pela inépcia de Bolsonaro, mas também porque o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que não tem cargo algum, tem tentado usar de sua influência política para obter mais vacinas ao país.

O terceiro movimento no xadrez político partiu de um subprocurador da República junto ao TCU (Tribunal de Contas da União). Lucas Furtado pediu a esse tribunal que afaste o presidente Bolsonaro das funções administrativas e hierárquicas sobre os ministérios da Saúde, Economia e Casa Civil e repasse as suas atribuições ao vice-presidente, Hamilton Mourão. Em seu pedido, o procurador argumentou que haverá prejuízo aos cofres públicos se não houver atendimento à população durante a pandemia e se queixa das disputas político-ideológicas.

“Não se discute que toda estrutura federal de atendimento à saúde, com recursos financeiros, patrimoniais e humanos, terá representado inquestionável prejuízo ao erário se não cumprirem sua função de atender à população no momento de maior e mais flagrante necessidade. É inaceitável que toda essa estrutura se mantenha, em razão de disputas e caprichos políticos, inerte diante do padecimento da população em consequência de fatores previsíveis e evitáveis”, diz trecho do documento.

O subprocurador ainda justificou que seu pedido está embasado na lei orgânica do TCU, que prevê o afastamento temporário do responsável caso haja indícios suficientes de que, “prosseguindo no exercício de suas funções, possa retardar ou dificultar a realização de auditoria ou inspeção, causar novos danos ao Erário ou inviabilizar o seu ressarcimento”. Na prática, a tendência é que esse pedido não tenha sucesso. O afastamento de um presidente ocorre por meio de um processo de impeachment tocado no Congresso Nacional ou quando há a cassação da chapa por meio de uma ação no Tribunal Superior Eleitoral. O vácuo de liderança no Palácio do Planalto e os sinais trocados emitidos pelo presidente tem resultado até em ações esdrúxulas de outros atores.

AFONSO BENITES de Brasília para o EL PAÍS, em 19 MAR 2021.

O que é Estado de Sítio e por que não é possível compará-lo com lockdown, como fez Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro entrou nesta sexta (19/3), com uma ação no STF em que compara as medidas criadas pelos governadores para conter a pandemia com estado de sítio, uma situação excepcional prevista pela Constituição.

'Aqui, no Distrito Federal, toma-se medida por decreto, de estado de sítio. Das 22h às 5h, ninguém pode andar', afirmou Bolsonaro na quinta (11) em referência ao toque de recolher no DF. (Crédito da foto: Reuters / Ueslei Marcelino).

Não é a primeira vez que o presidente faz esse tipo de comparação.

"Aqui, no Distrito Federal, toma-se medida por decreto, de estado de sítio. Das 22h às 5h, ninguém pode andar", afirmou Bolsonaro na quinta (11) em referência ao toque de recolher no DF.

Mas segundo a Constituição Federal e juristas ouvidos pela BBC News Brasil, o lockdown e as medidas contra a pandemia não são de forma alguma equiparáveis ao estado de sítio.

"São coisas completamente diferentes, que não têm relação alguma", diz Vera Chemim, especialista em direito constitucional e mestre em administração pública pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo.

O que é estado de sítio

Durante estado de sítio, governo pode estabelecer interceptação de comunicações, controle da imprensa, proibição de reuniões de grupos de pessoas, detenção e busca e apreensão sem autorização judicial. (Crédito da foto: AFP / Getty Images)

O estado de sítio é uma situação excepcional prevista pela Constituição, explica Vera Chemim, para a defesa interna do país em caso de instabilidade institucional devido à crise política, militar ou de calamidade natural, como um desastre ambiental de grandes proporções.

Para que ele seja decretado pelo presidente da República, é preciso que exista uma série de condições específicas e a decretação precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional. Em um estado de sítio, a Constituição prevê a possibilidade uma série de restrições, explica o professor de direito da FGV-Rio Wallace Corbo, especialista em direito público.

Bolsonaro, diz Corbo, tenta comparar as duas situações porque o toque de recolher, ou seja, a restrição de circulação em certos horários, é uma medida que também pode acontecer durante um estado de sítio.

"Mas o estado de sítio não é só a restrição de circulação, ele estabelece uma série de limitações de direito fundamental, uma série de medidas que não se confundem em nada com o combate à pandemia", explica Corbo.

Durante um estado de sítio, o governo pode estabelecer interceptação de comunicações, controle da imprensa, proibição de reuniões de grupos de pessoas, detenção e busca e apreensão sem autorização judicial e requisição de bens de particulares.

"São medidas excepcionais pensadas para situações em que há necessidade de defesa interna, quando há instabilidade institucional por causa de uma crise militar ou política", explica Vera Chemim.

Região central de Porto Alegre vazia em meio ao aumento de casos de covid (Crédito da foto: Reiters / Diego Vara)

Legenda da foto,Região central de Porto Alegre vazia em meio ao aumento de casos de covid (Crédito da foto: Reuters / Diego Vara)

Já as medidas para conter a pandemia decretadas em alguns Estados, como fechamento do comércio e toque de recolher, são uma resposta a uma crise sanitária e de saúde pública.

"Ou seja, são situações de natureza diferente", afirma. "As medidas de um estado de sítio não são adequadas para o combate à pandemia."

Além disso, há uma diferença central entre as medidas de combate à pandemia e um estado de sítio: as consequências para quem desrespeita as determinações do poder público são completamente distintas.

Corbo explica que os decretos que estabelecem medidas de combate à pandemia têm natureza administrativa, ou seja, se alguém desrespeitar o fechamento do comercial ou o toque de recolher, a consequência principal é uma multa.

"Em uma situação de estado de sítio, o desrespeito às regras pode levar inclusive à detenção. Mas ninguém vai ser preso por desrespeitar o horário de fechamento do comércio", explica Corbo.

No estado de sítio, a Constituição prevê inclusive a possibilidade do governo usar as forças de segurança para impor as restrições estabelecidas.

"Isso não vai acontecer nas medidas de isolamento social. Para o lockdown não existe essa previsão", afirma.

Corbo explica que existem algumas situações em que a polícia poderia deter alguém, se suas ações se enquadrassem no art. 268 do código penal, que diz que é crime infringir medida do poder público destinada à proteção da saúde.

"Mas é algo válido para situações pontuais, em que houve um crime, e que não têm nada a ver com a necessidade de proteger o Estado em si, como no caso do estado de sítio", afirma.

Condições para o estado de sítio e para medidas de lockdown

Os juristas explicam que as medidas de combate à pandemia sendo tomadas nos Estados são amparadas pela Constituição em diversos momentos.

Chemin explica que Constituição determina que cuidar da saúde coletiva da população é uma competência compartilhada por todos os entes federativos - União, Estados e municípios.

"A Constituição determina que o Estado tem o poder e o dever de agir para garantir o direito à saúde. E em uma crise sanitária de grandes proporções como a que vivemos, e com a situação se agravando, ela ampara a restrição de circulação para proteção da saúde", afirma Chemim.

Nenhum direito fundamental é absoluto, explica Chemin, e no caso em questão o direito à saúde se sobrepõe ao direito de livre circulação .

Além disso, a possibilidade de medidas restritivas é também é prevista pela lei 13.979, que trata do combate à pandemia, sancionada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro em 2020.

Estados e municípios têm total competência para adotar medidas restritivas no combate à pandemia, segundo decisão do STF (Crédito da foto: Dorivan Marinho/ SCO/STF)

O Supremo Tribunal Federal também já determinou que Estados e municípios têm total competência para adotar medidas restritivas no combate à pandemia, desde que estejam amparadas por autoridade sanitária e médicas de caráter nacional e internacional e atendam aos princípios de proporcionalidade e razoabilidade.

A OMS e diversas entidades médicas se posicionam, desde o início da pandemia, no sentido de que medidas de isolamento social e quarentena são adequadas e recomendadas para o combate à grave crise sanitária que vivemos.

Já a decretação de um estado de sítio — cujas restrições vão muito além da circulação — exige condições que não estão presentes no momento no país, explica Wallace Corbo.

Uma das condições em que o estado de sítio é previsto é em situação de guerra ou ameaça de um inimigo internacional.

Outra é a existência de uma comoção grave, de repercussão nacional — mas antes do estado de sítio, é preciso que tenha sido decretado um estado de defesa e que ele não tenha sido capaz de resolver o problema.

O estado de defesa é uma etapa anterior ao estado de sítio, e só pode ser decretado em locais restritos e determinados — e não no país todo —, pelo prazo de 30 dias, quando houver ameaça à ordem pública ou paz social "ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional" ou "calamidade de grande proporção".

Em tese, uma pandemia pode se encaixar no conceito de "calamidade de grande proporção", mas apenas se as restrições estabelecidas pelo instrumento tivessem utilidade no combate à pandemia em questão. E o momento atual não é o caso, segundo leitura de Corbo, Chemim e análises já feitas por ministros do STF como Marco Aurélio de Mello e Gilmar Mendes.

"Como o governo já podem decretar medidas de combate à pandemia que já são previstas e muito adequadas, como o fechamento do comércio, o toque de recolher, o auxílio emergencial etc., não há necessidade nem seria justificável a adoção de medidas extremas como um estado de defesa e muito menos um estado de sítio", afirma Chemim.

"Já temos previsão legal de outras medidas mais adequadas para a crise de saúde. Não é preciso chegar em um nível tão grave, com medidas tão extremas, em um momento em que as instituições já estão tão frágeis", defende Corbo.

Para Corbo, é preocupante a tentativa do presidente de comparar as medidas de combate à pandemia decretadas pelos Estados com o estado de sítio.

"Com essa ação no STF o que ele tenta fazer é, por um lado afastar a responsabilidade dele pelo estado de crise e, por outro, legitimar a atuação dele caso queira no futuro decretar um estado de sítio para conter críticas e conter a oposição", afirma. "Por isso é importante que o poder legislativo e o judiciário contenham esse tipo de atitude se ela vier a acontecer."

Letícia Mori, da BBC News Brasil em São Paulo, em 19 março 2021

Lançado há 50 anos, disco 'Construção', de Chico Buarque, poderia não ter existido

Chico Buarque em 1971, quando 'Construção' foi lançado; álbum é considerado um dos mais importantes da carreira do compositor

No início da década de 1970, os estúdios das gravadoras brasileiras passaram por um processo de transformação. Equipamentos importados da Europa e dos Estados Unidos ampliaram a capacidade e a qualidade da produção fonográfica nacional.

O processo, no entanto, não ocorreu sem percalços. Tais contratempos quase impediram a existência do álbum Construção, de Chico Buarque, lançado há 50 anos e um marco na carreira do artista.

O ano de 1971 mal havia começado e Roberto Menescal, então diretor artístico da PolyGram, empresa pertencente a Phillips, recebeu uma missão: viabilizar a feitura de Construção, primeiro álbum de Chico no retorno ao Brasil após quatorze meses de autoexílio na Itália em meio à ditadura militar brasileira. A intenção era fazer um disco que, para além do sucesso entre os críticos musicais e admiradores da MPB, pudesse também alcançar êxito nas vendas.

"Nós não entendíamos como um artista do calibre do Chico vendia 30, 40 mil LPs. A gente queria mudar isso rapidamente", disse Menescal à BBC News Brasil.

Por isso, quando o maestro Rogério Duprat, um dos personagens centrais do movimento tropicalista ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e Torquato Neto, solicitou a Menescal que reunisse uma orquestra com cerca de 60 músicos, o diretor artístico viabilizou o pedido sem objeções.

Figura de relevo na Bossa Nova, que havia sacudido o cenário musical brasileiro na década anterior, ele havia deixado os palcos para se dedicar aos bastidores a convite de André Midani (1932-2019), então diretor da gravadora.

No estúdio, Menescal se deparou com uma mesa de quatro canais, novidade na época.

"Fui misturando e descobrindo a melhor maneira de fazer junto da equipe que me acompanhava", relembra.

A gravação ocorreu sem grandes problemas. Na mixagem, quando são reunidos os áudios captados pelos diferentes canais — a orquestra, a voz de Chico, os instrumentos —, um erro quase colocou tudo a perder.

"Nessa de apertar botão desconhecido, um auxiliar de estúdio deletou toda a gravação da orquestra do Duprat. Eu não sabia o que fazer. Por um momento achei que o disco não fosse sair", conta Menescal.

O diretor artístico, então, mapeou as possibilidades. Não havia chance de recuperação do áudio excluído.

"Precisava gravar com a orquestra outra vez, mas não tínhamos verba suficiente para chamar os músicos novamente. O Midani não ia permitir", conta.

Depois de muito pensar, veio a solução.

"Fiz uma lista de discos que estavam sob minha responsabilidade. Tinha Elis Regina e outros. Tirei um pouco da verba destinada a esses trabalhos e chamei a orquestra de novo para regravar tudo. No fim, deu certo. Nem o Chico sabe dessa história", completa.

De fato, deu certo. Construção alcançou sucesso instantâneo. Mais de 140 mil cópias foram vendidas nas primeiras quatro semanas após o lançamento. Para atender tal demanda, a Phillips precisou contratar duas gravadoras concorrentes para ajudar na prensagem do álbum.

Chico passou a disputar as paradas de sucesso com Roberto Carlos, imbatível naquele período.

"Esse foi o trabalho que transformou Chico em um grande vendedor de discos, algo que se repetiu em outras obras, como Meus Caros Amigos (1978). Não que ele faça algo com esse intuito comercial. Mas a partir daí tudo mudou", ressalta Menescal.

O álbum da maturidade

Construção é descrito por estudiosos e parceiros musicais de Chico como uma das obras mais importantes de sua carreira. Entram nessa análise o contexto político no qual o álbum foi concebido e as composições apresentadas pelo artista. A verve criadora do jovem que ainda não havia sequer completado 27 anos anuncia novos caminhos, menos lírica e mais preocupada com a realidade do país.

Além de Duprat, os arranjos também foram feitos sob a direção musical de Magro (1943-2012), um dos fundadores do MPB4, cuja formação original (Miltinho, Magro, Aquiles e Ruy Faria) acompanhou Chico em gravações de discos e shows no Brasil entre 1966-1974. Nesse período, alguns chamavam o grupo de MPB5, tamanha a simbiose entre eles.

Participam também de Construção o maestro Tom Jobim e Vinícius de Moraes, em um momento de afirmação nas parcerias musicais entre o jovem compositor e os expoentes da Bossa Nova.

Em uma entrevista a Geraldo Leite em 1989, Chico explicou as condições para a elaboração da obra.

"Construção teve uma criação que esteve condicionada ao país em que eu vivi. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto, e eu nem acho que eu faça música de protesto....mas existem músicas que se referem imediatamente à realidade que eu estava vivendo, à realidade política do país. Até o disco da samambaia (Chico Buarque, 1978), que já é o disco que respira, o disco onde as músicas censuradas aparecem de novo. Enfim, a luta contra a censura, pela liberdade de expressão, está muito presente nesses cinco discos dos anos 70."

'Construção' foi primeiro álbum de Chico no retorno ao Brasil, após quatorze meses de autoexílio na Itália em meio à ditadura militar brasileira (crédito foto: arquivo Estadão Conteúdo)

Construção é subsequente a Chico Buarque de Hollanda - Nº4, feito em uma ponte aérea Brasil-Itália, lançado em 1970 e cujo resultado final não agradou Chico.

O LP foi produzido por imposição contratual, já que o compositor havia recebido um adiantamento da Polygram para se manter na Itália em um momento de penúria.

"Tinha que gravar as músicas para pagar o dinheiro que eu tinha pedido emprestado. É um disco feito por necessidade. Eu precisei passar por isso para chegar a Construção, que já é um disco mais maduro como compositor, como homem e ser humano", disse na mesma entrevista.

Na volta ao Brasil, Chico lançou um compacto simples com duas músicas: Apesar de Você e Desalento. O compacto foi liberado pela censura e fez enorme sucesso, até que a ditadura militar (1964-1985) entendeu o recado disfarçado em uma suposta briga conjugal e decidiu proibir a veiculação da primeira música, que só seria liberada no fim da década de 1970. Desalento, por sua vez, foi liberada e integrou Construção sem problemas.

Outras canções que estão em Construção enfrentaram problemas com a censura. No sistema de informação do Arquivo Nacional, que armazena documentos do regime militar no Brasil, é possível encontrar os vetos para algumas canções. Em Cordão, a censura identificou um "protesto contra a ordem vigente" e alegou que o verso "Nas grades do coração" tinha "sentido dúbio". Chico substituiu o verso por "As portas do coração".

'Deus lhe Pague' foi iniciada e depois liberada sem modificações (Crédito: Acervo Instituto Antonio Carlos Jobim)

Deus lhe Pague, uma crítica ao controle dos militares e à opressão sofrida no país, foi vetada por "parecer um 'recado' com duplicidade de sentido, que tanto pode ser dirigido a alguém ou algo abstrato". Posteriormente, a música foi liberada sem modificações.

"O advogado da Phillips (João Carlos Muller Chaves) vivia em Brasília. Eu mesmo fui falar com os censores para que as músicas fossem liberadas. Era um troço complicado", lembra Menescal.

Veto inicial de 'Deus lhe pague' avaliou letra como parecendo "um 'recado' com duplicidade de sentido, que tanto pode ser dirigido a alguém ou algo abstrato". (Crédito: Arquivo Nacional).

Cotidiano, outro clássico desse LP, tem a rotina conjugal marcada pelos rituais envolvendo a boca - "E me beija com a boca de hortelã(...)/e me beija com a boca de café(...)/e me calo com a boca de feijão". Em Valsinha, Chico convenceu Vinícius de Moraes a abandonar o nome "valsa hippie", filosofia libertária que começava a perder força naquele momento. A troca de cartas entre os dois mostra que Chico, ainda que muito mais jovem, fez alterações significativas na letra do poeta.

"Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão", escreveu Chico.

Samba de Orly foi feita com Toquinho e Vinícius. Apesar de incluído na tríade, os versos de Vinícius, adicionados quando a letra já estava praticamente pronta, foram censurados. "Pela omissão" deu lugar a "Pela duração". "Um tanto forçada" foi substituída por "Dessa temporada".

"Vinícius teve a letra tesourada, mas ganhou a parceria eterna", disse à BBC Brasil Wagner Homem, autor do livro História das Canções, sobre a obra de Chico.

Em 'Cordão', Chico substituiu verso 'Nas grades do coração' por 'As portas do coração' após censura (Crédito: Arquivo Nacional).

Outra curiosidade é que Toquinho entregou a música a Chico quando estava voltando da Itália, em fins de 1969. Mas o aeroporto de Fiumicino, em Roma, era desconhecido dos brasileiros, diferente de Orly, na capital francesa, povoada por exilados brasileiros.

Fecham o disco Olha Maria, com o piano marcante de Tom Jobim e parceria com Vinicius, Minha História (versão da música italiana Gesù Bambino) e Acalanto, feita para a filha Helena Buarque.

"Nós éramos muito jovens, não havia muita responsabilidade. Mas o Chico já sabia o que fazer, o que dizer e esse álbum é prova disso. É genial e inesquecível, tanto que estamos aqui falando dele", disse Miltinho, do MPB4, à BBC News Brasil.

As vozes do conjunto aparecem nas músicas Deus lhe Pague, Desalento, Construção, Samba de Orly e Minha História.

Esteticamente, a foto de capa também já foi fruto de análise. Nela, Chico aparece com uma expressão séria, como se quisesse mostrar feição distante do jovem de A Banda. Autor da imagem, o fotógrafo Carlos Leonam afirma que o retrato foi feito sem essa intenção.

"Adoram conjecturar sobre tudo que envolve o Chico. Fiz essa foto enquanto jogávamos futebol de botão em seu apartamento na Lagoa (Rodrigo de Freitas): eu, ele, o (ator) Hugo Carvana... Eu andava com uma câmera e fazia retratos sem compromisso. Quando a Polygram me pediu para fazer uma foto do Chico, mostrei algumas opções. Menescal e Aldo Luiz gostaram dessa. Mas não tinha nenhuma mensagem subliminar", disse o fotógrafo à BBC News Brasil.

Aldo Luiz foi responsável pelo design gráfico do LP. Ele conta que estava desempregado no início de 1971 e que Construção foi o seu primeiro trabalho na Polygram.

"O Chico é muito simples e tentei reproduzir isso. De alguma maneira, a ditadura também nos impelia algo mais sóbrio, por isso aquele tom acinzentado no fundo do retrato e o marrom como cor preponderante. A verdade é que eu acabei pegando carona em um álbum fundamental para a nossa música", conta Aldo à BBC News Brasil.

Nos anos seguintes, ele assinou outras capas icônicas, como Krig-ha, Bandolo (Raul Seixas), A Tábua de Esmeralda (Jorge Ben) e Cinema Transcendental (Caetano Veloso).

O 'jabá' por 'Construção' nas rádios

Construção foi liberada sem qualquer restrição da censura. Wagner Homem conta que o advogado da Philips pediu para que a música fosse vetada como forma de provocação. A estratégia deu certo e a canção passou sem problemas, para a surpresa de todos.

A música, apontada pela revista Rolling Stone como a melhor já feita no país em uma eleição de 2009, após análise de comissão com 92 pessoas, entre críticos, pesquisadores e produtores, é composta de versos dodecassílabos e terminados em proparoxítonas.

O roteiro é conhecido: o operário, sujeito-máquina, nos momentos que antecedem sua morte trágica. Como pano de fundo, a canção aborda o suposto milagre econômico brasileiro do período, os edifícios que eram erguidos desenfreadamente pelas cidades do país. Chico faz um amálgama desses elementos para construir uma narrativa densa e crítica, em forma de canção, sem parâmetros no cancioneiro nacional.

Em uma entrevista publicada em 1973 na revista Status, Chico explica como se deu a elaboração da música.

"Em Construção, a emoção estava no jogo de palavras. Agora, se você coloca um ser humano dentro de um jogo de palavras, como se fosse um tijolo, acaba mexendo com a emoção das pessoas. Mas há diferença entre fazer a coisa com intenção ou — no meu caso — fazer sem a preocupação do significado", disse.

Ele prossegue.

"Se eu vivesse numa torre de marfim, isolado, talvez saísse um jogo de palavras com algo etéreo no meio, a Patagônia, talvez, que não tem nada a ver com nada. Em resumo, eu não colocaria na letra um ser humano. Mas eu não vivo isolado. Gosto de entrar no botequim, jogar sinuca, ouvir conversa de rua, ir ao futebol. Tudo entra na cabeça em tumulto e sai em silêncio. Porém, resultado de uma vivência não solitária, que contrabalança o jogo mental e garante o pé no chão. A vivência dá a carga oposta à solidão, e vem da solidariedade — é o conteúdo social."

A canção de quase sete minutos fez enorme sucesso, inclusive no rádio.

"Era algo inédito, porque as rádios só tocavam músicas de até três minutos, algo que se mantém até hoje. As pessoas queriam cortar um pedaço e eu precisava explicar que aquilo não era possível", conta Menescal.

Guilherme Henrique, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 20.03,2021

Gaudêncio Torquato: Porandubas Políticas

Como os leitores sabem, abro a coluna com uma historinha engraçada e pitoresca, antes de fazer a leitura da política, do clima social e das circunstâncias. Um aperitivo.

Vi, segunda-feira, a entrevista do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que tinha ao lado o assessor Airton Soligo, mais conhecido como Cascavel. Paranaense de Capanema/PR, em 1985 estabeleceu-se em Roraima, em virtude da expansão das linhas de ônibus da empresa paranaense União Cascavel de Transporte e Turismo (Eucatur), na qual trabalhava como assessor da direção. Conheci Cascavel em Boa Vista/Roraima, onde coordenei o marketing de quatro campanhas eleitorais. Cascavel foi eleito vice-governador na chapa de Neudo Campos. Foi também prefeito de Mucajaí e presidiu a Assembleia Legislativa.

Agora, a historinha relembrada por um jornalista amigo.

Povo de Roraima

Comício no bairro popular, zona do meretrício. Chegara a vez de Cascavel dar seu recado.

- Povo de 13 de setembro.

Olhou para o lado, olhou para o outro, encarou a multidão e tascou:

- Meu povo de 13 de setembro.

- Heróis de 13 de setembro.

Não satisfeito, continuou:

- Meu povão de 13 de setembro.

Parou. Faltava verbo. Na fila da frente do palanque, um bebum gritou:

- Desembucha, Cascavel. Que danado de cobra você é. Foi você que pegou minha 86?

Cascavel não perdeu a deixa:

-Tá aí esse filho de uma égua que prova o próprio veneno. Vá se lascar, desgraçado.

O fato é que a cachaça 86 era considerada a pior cachaça do mundo. Hoje, Cascavel é um próspero empresário do norte do país. Assessorava o então ministro Pazuello, a quem ajudou na tarefa de administrar a imigração de venezuelanos em RR. É simpático e tem veia política.

A vida política

A vida de um governo é uma gangorra. Vai ao alto e desce. Chega ao pico da montanha e ao fundo do poço. Lá e cá. Os ciclos obedecem ao espírito do tempo. Em início de gestão, os governantes estão no alto. Vivem a ressaca da vitória, as placas tectônicas da política vão se acomodando com a composição de ministérios e autarquias, o cobertor social é estendido para acolher as margens sociais e a locomotiva do governo - a economia - ajusta seus eixos. Noutra simbologia, podemos dizer que o carro dá partida. Ou, ainda, é a fase do lançamento do governo, quando todos os olhos se voltam para o protagonista principal do jogo.

As visões se clareando

Geraldo Vandré compôs Disparada, sua mais famosa música, que diz: "E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando, as visões se clareando, até que um dia acordei". Pois bem, ao completar um ano de administração, as visões começam a se clarear. E o eleitor a acordar. O carro está na segunda marcha, esperando a terceira, mas já dá para perceber como o motorista dirige, seu jeito, a maneira como pega a direção e avança na estrada. Percebe-se a identidade do governo. Identidade significa a coluna vertebral, o estilo, a substância governativa - programas, ações, fraseado, como se comporta ante elogios e críticas. É a etapa de crescimento.

A terceira marcha

O carro roda e ronca, pedindo mais velocidade. Terceira marcha, que permite saber a real performance do automóvel. Bom de subida, estável em descida e em curvas, respondendo bem ao que dele se espera. Essa fase abre oportunidade para que os consumidores, conhecendo as condições do carro, possam ou não comprá-lo ou recomendá-lo a um amigo. O carro ganha a chance de ser bem ou mal avaliado. Estamos no ciclo da maturidade. A opinião pública forma a imagem do governo, a percepção cognitiva do eleitorado. Imagem, portanto, é projeção da identidade, desenvolvida pela bateria de comunicação.

O clímax

A última fase é a do clímax, quando o carro, em quarta ou quinta marcha (se tiver), chega ao ápice da montanha, demonstrando todo o seu potencial e avançando terreno de maneira rápida e segura. Paremos, aqui, e puxemos essas fases para o governo Bolsonaro.

O lançamento

O governo saiu-se bem no lançamento, na esteira de amplo apoio social, depois de vencer uma guerra contra o PT, seu adversário, e em atendimento a uma poderosa visão crítica da sociedade, saturada com o lema "nós e eles". Esse fraseado foi martelado durante muito tempo, em clara divisão do Brasil em duas alas, a dos mocinhos e a dos bandidos. Ante os estrondosos escândalos que arrebentaram com a imagem do petismo-lulismo e que desbocaram na operação Lava Jato, o "nós e eles" perdeu sentido, até porque as tão combatidas elites, execradas por Lula e o PT, acabaram inseridas nos dutos da corrupção. Juntas com o PT.

O crescimento

O governo Bolsonaro, eleito com o apoio de milhões de brasileiros, de todas as classes, prometia renovação da política. Não fez e não faz isso. A decepção passou a forjar o espírito nacional. O presidente, confiante no antipetismo que se alastrou pelo território, passou a fazer um governo com as mesmas ferramentas que lapidaram os governos petistas, instalando um "eles e nós", eles, os bandidos, nós, os mocinhos. E passou a jogar no prato de suas bases simpatizantes o caldo apimentado de ódio, da vingança e da ferocidade. A identidade - conservadora nos costumes, dúbia no liberalismo, franciscana na política ("é dando que se recebe") - plasmou uma imagem desgastada, tosca, plena de versões e desmentidos.

A pandemia

Para coroar esse leque de situações desencontradas, apareceu a Covid-19, com seu poder mortífero, porém, desacreditada pelo presidente e seus ministros, abrindo a maior crise sanitária vivida pelo país em toda a sua história. A má gestão do governo na pandemia disparou gigantesca teia de críticas, deixando perplexa a comunidade internacional. A indecisão e a má vontade para a aquisição de vacinas se mostraram por meio de uma embalagem ideológica, como se vacina tivesse ideologia, religião, cor. O país está doente, sai mais um ministro da Saúde, a vacinação é lenta e o governo, mesmo a contragosto, teve de encarar a realidade, topando comprar vacinas antes rejeitadas e a apertar, repito, mesmo a contragosto, as mãos da ciência. Mudança de ministro sem mudança de comportamento de Bolsonaro é o mesmo que trocar seis por meia dúzia.

E agora, José?

Estamos, ainda, na fase três. A quarta marcha só será usada em 2022. Temos, agora, uma triste paisagem dos corpos político, econômico e social. Na política, fez-se um arranjo com o Centrão. Na economia, as interrogações aumentam: o bolso do consumidor continuará a esvaziar? A inflação sobe. Os preços dos alimentos, idem. Paulo Guedes engole sapos. O programa de privatizações emperra. Brasil é visto com desconfiança pelo mercado internacional. O pacote social será apertado ou suficiente? E agora, José? O Produto Nacional Bruto da Felicidade baixa, continuará na mesma ou sobe?

Saúde

O Ministério da Saúde é o calcanhar-de-Aquiles do governo. O general da área de logística que sai não mostrou competência para gerir a bagunça que toma conta da saúde no país. O general deveria ter pedido o boné bem antes. O que dizem seus companheiros? A médica Ludhmila Abrahão Hajjar, convidada, declinou do convite. Foi ameaçada de morte. Um grupo de ódio teria ameaçado, até, invadir o hotel onde se hospedou em Brasília. Milícias? De onde vêm ameaças desse tipo? Ao que se infere, o novo ministro Marcelo Queiroga, respeitado, já deu o aviso: governo define a política e Ministério da Saúde executa. Péssimo começo. A lógica recomenda que a Pasta especializada em saúde deve definir a política sobre saúde.

Alternativa

Os governadores e os líderes do Congresso podem avocar a gestão do combate à epidemia e constituir um grupo de comando. Chegou-se ao limite. Sob essa tempestade, aparece Lula como a bonança. Após seus processos terem sido anulados na vara de Curitiba pelo ministro Edson Fachin fez um grande discurso moderado e se posicionando como a virtude para esses tempos nebulosos. Lula prega uma frente ampla. Na visão deste analista, não será candidato, mas protagonista de proa na batalha eleitoral de 2022.

Mais fogo

A quebra de sigilos bancário e fiscal de pessoas e empresas ligadas ao senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) revela indícios de que o esquema da rachadinha também ocorria nos gabinetes do pai, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), quando este era deputado Federal, e do irmão, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). A Ordem no Planalto é tratar rachadinhas como assunto "de fora do governo. O tema continua na mídia.

O custo da descontinuidade

Fecho a coluna com um alerta sobre o custo da descontinuidade administrativa. No Brasil, o custo atinge bilhões e bilhões de reais. Os sucessores na administração pública costumam apagar as ideias, mesmo ótimos programas, de seus antecessores. Dou um exemplo: o caso da EMPARN, dirigida no início dos anos 80 pelo prof. Benedito Vasconcelos Mendes. Ali, ele fez extraordinário trabalho de inovação da pesquisa agropecuária no Nordeste. Hoje, o professor Benedito dirige o Museu do Sertão, empreendimento exemplar, em Mossoró/RN.

Importação de animais

Na época, criou o Projeto de Introdução de Animais de Desertos, financiado pela FINEP e EMBRAPA e, na época, o mais arrojado para a ser implantado nos Estados nordestinos. Era proibido importar animais da África em razão de uma endemia, a doença do sono, transmitida pela mosca tsé-tsé. Daí ter se decidido pela compra junto a criadores americanos. O mestre conta: "tivemos de pagar ao Departamento de Agricultura Americano para fazer a quarentena e todas as imunizações necessárias para evitar introduzir novas doenças no Brasil. Foram 60 dias de quarentena nos Estados Unidos. Os 12 Elandes (10 fêmeas e 2 machos) e os 12 Órix-de-cimitarra vieram em avião fretado de Dallas para o aeroporto de Natal. Eu mesmo fui escolher os animais nos EUA, mas toda a transação comercial foi feita pela EMBRAPA".

Adaptação

Os animais foram introduzidos para pesquisa de adaptação, para saber se eles iriam se adaptar as condições edafoclimáticas do semiárido nordestino. Mas as pesquisas foram interrompidas depois que o professor deixou de dirigir a empresa. Tudo foi por água abaixo. Um desmonte. Inveja, despeito, apagar o sucesso da administração. Ora, seria muito útil ao semiárido se soubéssemos como estes animais se comportam nas condições do Nordeste. Curiosidades: o elande consome ramas espinhentas (como a rama da jurema), característica que lhe garantiria sobrevivência por ocasião das secas. Benedito arremata: "a jurema não é caducifólia e sim perenifólia, ou seja, não perde as folhas no segundo semestre do ano, nem durante as secas. Um copo de leite de elande seria suficiente para manter uma criança no que diz respeito à proteína e gordura".

Gaudêncio Torquato, Professor Titular na USP, é cientista político e consultor de marketing político.

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Livro Porandubas Políticas

A partir das colunas recheadas de humor para uma obra consagrada com a experiência do jornalista Gaudêncio Torquato.

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