segunda-feira, 8 de março de 2021

Dia Internacional da Mulher: Como mulheres brasileiras se desdobram na pandemia

Ainda mais sobrecarregadas por afazeres domésticos e cuidados com os filhos do que antes da crise, mulheres de diferentes classes sociais buscam meios de garantir sustento e manter produtividade no trabalho.

Quase 1,5 milhão de famílias já foram auxiliadas pelo projeto Mães da Favela, da Cufa, desde o início da pandemia

Se a realidade de muitas mulheres brasileiras já era de um acúmulo de responsabilidades, com trabalho fora, afazeres domésticos e cuidados com filhos, a pandemia só aumentou essas dificuldades. Com escolas fechadas, mães precisaram também se tornar "professoras", auxiliando no ensino remoto. Devido ao medo de contágio pelo coronavírus, elas contam também que os cuidados com a limpeza e a lavagem de roupas aumentaram. E muitas passaram a ver a subsistência de suas famílias ameaçada.

Moradora da favela de Paraisópolis, em São Paulo, Vanessa Macedo da Silva teve que encontrar uma maneira de complementar a renda familiar nestes tempos de crise. Mãe de duas filhas, uma menina de 13 anos e outra de 11 meses, ela conta que já estava desempregada quando a covid-19 chegou ao Brasil, e agora orgulha-se de dizer que se tornou empreendedora durante a pandemia.

Quando sua filha mais nova nasceu, em abril do ano passado, palavras como lockdown, quarentena, isolamento social e ensino remoto já estavam incorporadas ao vocabulário. Com a crise, seu marido foi afastado do trabalho.

"As coisas começaram a ficar difíceis, a gente passou a se privar de algumas coisas", conta ela. "O pai da minha filha mais velha não podia mais colaborar com a pensão dela, porque também ficou desempregado. Meu marido ia ao mercado e trazia só as coisas mais necessárias."

Moradora de Paraisópolis, Vanessa Macedo da Silva, mãe de duas filhas, teve que se virar para complementar a renda durante a pandemia

Ela passou a contar com a ajuda do projeto Mães da Favela, da Central Única das Favelas (Cufa). E também do colégio onde sua filha adolescente estuda, como bolsista, que começou a destinar a ela uma cesta básica mensal. "A gente dividia tudo com meus pais, já que meu pai, pedreiro, também perdeu o emprego", relata.

Vanessa conta que a correria doméstica ficou cada vez maior. Dividia-se entre os cuidados com a filha recém-nascida, as eventuais ajudas ao estudo da filha de 13 anos e a limpeza de tudo. Um balde com água sanitária passou a ficar na entrada da casa, para desinfetar tudo o que entrasse. E toda a roupa era lavada sempre que alguém vinha da rua — aumentou muito o trabalho. "Também comecei a limpar várias vezes por dia as maçanetas da porta", diz.

No meio disso tudo, ela arrumou um tempinho para assistir a cursos on-line. Decidiu que iria ter um negócio próprio. "Aí comecei a fazer geladinhos", conta. "Passei a vender pelo WhatsApp, fazendo as entregas com todos os cuidados. Com o dinheiro, dá para comprar fraldas, pagar uma continha."

"A mãe da favela se preocupa com o que o filho vai comer"

Com cestas básicas no valor de R$ 120 viabilizadas por meio de doações financeiras, o projeto Mães da Favela já beneficiou quase 1,5 milhão de famílias desde o início da pandemia. Segundo Cláudia Rafael de Oliveira, vice-presidente da Cufa, a perda de renda dos moradores dessas comunidades pobres é decorrente do fato de que a maior parte dessas mulheres trabalha ou trabalhava como empregadas domésticas.

"E esse setor foi muito afetado por conta do isolamento social, fazendo com que muitas delas ficassem sem renda", diz. "Muitas mulheres, mães, também precisaram ficar em casa por conta de seus filhos, que antes eram cuidados e alimentados nas creches, que também fecharam. Com a perda financeira, essas crianças também estão passando necessidade, não têm fralda, não têm alimentação básica."

Cláudia atenta para o fato de que enquanto a preocupação da classe média é com o fato de os filhos estarem vendo muita televisão e exercitando-se menos, "a mãe da favela se preocupa com o que o filho vai comer ou não naquele dia".

"Ter comida na mesa é uma bênção de Deus", diz a ambulante Aparecida Vieira da Silva, mãe de dois filhos

Moradora da favela Jardim Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, a ambulante Aparecida Vieira da Silva afirma que "ter comida na mesa é uma bênção de Deus". O marido ficou desempregado por conta da pandemia. Ela tem dificuldade para vender seus produtos.

"A renda caiu muito. Deixamos de comer bem, e minhas contas, de água e de luz, estão todas atrasadas", diz. Mãe de dois filhos — de 8 e 21 anos —, ela conta que o mais novo ficou sem estudar durante metade do ano passado. Para o ensino remoto, Aparecida emprestava o celular ao menino.  "Meu telefone quebrou, e ele ficou o resto do ano sem aulas", conta.

Sobrecarga, estresse e depressão

De acordo com uma pesquisa realizada no ano passado pelas organizações Gênero e Número e Sempreviva Organização Feminista, 50% das entrevistadas disseram que passaram a se responsabilizar pelo cuidado de mais alguém depois do advento da covid-19. Quarenta e um por cento das mulheres afirmaram que o trabalho aumentou, e 40% das entrevistadas disseram que o sustento da casa ficou em risco.

Essa sobrecarga tem impactos na saúde. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), publicada mês passado, as mulheres são as que mais sofreram durante a pandemia — foram entrevistados 3 mil voluntárias. Dentre as participantes do sexo feminino, 40,5% apresentaram sintomas de depressão, 34,9%, de ansiedade e 37,3% de estresse.

Cientistas mulheres e o machismo estrutural

O impacto da covid-19 na sobrecarga de trabalho das mulheres não se restringe às classes sociais mais baixas. Criadora do projeto de pesquisa Parent in Science, a bióloga Fernanda Staniscuaski, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) já vivenciava o fato de que a ascensão acadêmica das mulheres é mais difícil do que dos homens. E a pandemia escancarou essa situação.

"Nossos resultados mostram aquilo que sabemos desde sempre. As mulheres são as encarregadas e sobrecarregadas do cuidado. Seja da casa, dos filhos, dos idosos. Cuidar é tido em nossa sociedade como algo feminino. Na pandemia, o cuidado tomou o centro das nossas vidas. E isso impactou a produtividade das cientistas mulheres muito mais do que a dos homens", diz.

"Com mais demandas em casa, as mulheres estão submetendo menos artigos e conseguindo cumprir menos prazos para pedidos de bolsas, financiamento, etc. Para as docentes, isto terá um impacto negativo muito grande na sua competitividade nos próximos anos", comenta.

"A pandemia impactou a produtividade das cientistas mulheres muito mais do que a dos homens", diz a bióloga Fernanda Staniscuaski, na foto com os filhos.

Pessoalmente, sua rotina também foi muito prejudicada. "Mudou tudo. Temos três filhos, meu marido também é docente pesquisador. Então tivemos que nos reorganizar para dar contas das demandas urgentes de trabalho e as urgentes de casa, como o ensino remoto dos filhos. Eles precisam de assistência em tempo integral", conta.

"Conseguimos trabalhar apenas algumas horas por dia — e de madrugada. Muito complicado. Está tudo atrasado, sempre. Mas temos muito privilégios quando pensamos na situação da população do Brasil como um todo. Então, agora, é fazer o que dá dentro da nossa realidade", afirma.

Professora da Faculdade de Ciências da Saúde do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, a fisioterapeuta Louisiana Carolina Ferreira de Meireles Moraes concorda.

"A pandemia piorou algo que já existia antes, que é o machismo estrutural, com a mulher acabando responsável pelo cuidado dos filhos e da casa. Agora o home office é a minha realidade e a da maioria das minhas colegas professoras e pesquisadoras. Mas além do trabalho acadêmico que já é super pesado, temos que lidar com a carga de trabalho doméstico e criação dos filhos que estão sem escola há um ano. Tem sido muito tenso", conta.

Mãe de uma filha de 1 ano e meio, ela conta que tem feito um revezamento com o marido para os cuidados com a menina. Mesmo assim, não consegue dormir mais do que 5 horas por noite e está com artigos acadêmicos atrasados.

A geógrafa Talita Rondam Herechuk, professora da rede pública de ensino em Porto Alegre, vive sozinha com o filho de 6 anos e também se vê mais sobrecarregada do que nunca. 

"A maternidade é vista como uma ‘opção' individual, e geralmente a sobrecarga de trabalho recai sobre as mulheres, que são majoritariamente as responsáveis pelas atividades de cuidado dos filhos e demais membros da família", diz.

"A pandemia, na minha opinião, veio visibilizar a inexistência de suporte institucional, social, político, econômico na vida acadêmica das mães cientistas e intensificou a sobrecarga de trabalho sobre nós", afirma ela, que é doutoranda na UFRGS.

"[Desde que começou a pandemia] todos os dias eu desisto do doutorado e todos os dias eu volto a insistir", resume ela. "Quantas outras mulheres mães que são pesquisadoras no Brasil estão na mesma condição de sobrecarga, colocando em risco a sua saúde mental e física e a de outros para 'dar conta' de coisas que deveriam estar sendo gerenciadas ou resolvidas pelo poder público neste momento da pandemia?", questiona.

"Sinto como se eu fosse uma equilibrista de pratos. Tipo aquelas que vemos no circo. No entanto, sinto que estou equilibrando a vida, e os pratos são muitos pesados. Não quero perdê-los, mas as estratégias individuais estão escassas e necessitamos com urgência de estratégias coletivas de amparo às mães, não só as que são pesquisadoras, mas todas as mães brasileiras", afirma.

Publicado originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 08.03.2021

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AS HEROÍNAS DO BRASIL

Anita Garibaldi

Chamada de "heroína dos dois mundos", a catarinense Ana Maria de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi (1824-1849), lutou pelos ideais republicanos ao lado do marido, Giuseppe Garibaldi, tanto no Brasil quanto na Itália, respectivamente, na Guerra dos Farrapos e no movimento pela unificação italiana. Desde 2012, seu nome está inserido no "Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria".

Bárbara de Alencar

O livro no Panteão da Pátria em Brasília também inclui Bárbara de Alencar (1760-1832). A avó do escritor José de Alencar participou da Confederação do Equador, impulsionando o ideal republicano no Ceará no inicio do século 19. Ainda hoje se pode visitar a masmorra em que foi presa e torturada na fortaleza que dá nome à capital alencarina. Ela é considerada a primeira presa política do Brasil.

Ana Néri


Em 2009, a baiana Ana Justina Ferreira Nery (1814-1880) iniciou a lista das Heroínas da Pátria. Depois de viúva, ela partiu com seus três filhos para frente de batalha na Guerra do Paraguai, onde cuidou de feridos, organizou hospitais de campanha e montou uma enfermaria às próprias custas na ocupada capital paraguaia. Ganhou a fama de "Mãe dos Brasileiros" e primeira enfermeira do Brasil.


Jovita Feitosa

Aos 17 anos, a cearense Antônia Alves Feitosa (1848-1867), conhecida como "Jovita", travestiu-se de homem para lutar na Guerra do Paraguai. Mesmo com sua identidade desmascarada, foi aceita no corpo de voluntários e ganhou fama nacional, mas foi impedida de ir ao campo de batalha. Foi incluída no Livro das Heroínas da Pátria em 2017 e hoje dá nome a uma importante avenida da capital do seu estado.

Maria Quitéria

Como "Soldado Medeiros", a baiana Maria Quitéria de Jesus Medeiros (1792-1853) participou ativamente nas lutas pela independência do Brasil em 1822. Sua habilidade com armas e disciplina militar fizeram com que ela permanecesse no exército mesmo depois de sua identidade ter sido revelada. Foi a primeira mulher a entrar em combate pelo Brasil e condecorada pelo próprio imperador Dom Pedro 1°.

Joana Angélica

Se Maria Quitéria foi a guerreira das lutas pela independência na Bahia, a freira Joana Angélica de Jesus (1761 - 1822) é considerada a mártir desse movimento. No ano de sua morte, os saques praticados pelas tropas portuguesas em Salvador também atingiram o Convento da Lapa, no qual era abadessa. Ao tentar impedir que entrassem no convento, Joana Angélica foi esfaqueada por um dos soldados.

Maria Felipa de Oliveira

A luta pela independência na Bahia teve a participação de outra importante personagem: Maria Felipa de Oliveira. A marisqueira e pescadora da ilha de Itaparica liderou um grupo de mulheres e homens de diferentes classes e etnias, combatendo tropas portuguesas e incendiando navios que se preparavam para atacar Salvador. Ela é conhecida como a Heroína Negra da Independência.

Clara Camarão

No século 17, a índia potiguar Clara Camarão participou junto ao marido, Felipe Camarão, também um Herói da Pátria, das lutas de resistência contra as invasões holandesas no Nordeste brasileiro. Para os historiadores, embora pouco se saiba sobre a vida da guerreira potiguar, seu reconhecimento como Heroína da Pátria dá destaque a personagens indígenas pouco prestigiados na história do Brasil.


Zuzu Angel

Zuzu Angel (1921-1976) é a única mulher da recente história brasileira a ser reconhecida como Heroína da Pátria. Segundo a jornalista Hildegard Angel, o nome de sua mãe está junto a todos aqueles que sofreram sob a ditadura. Após a morte de seu filho pelo regime em 1971, a estilista passou a denunciar as arbitrariedades dos militares. Morreu em acidente de carro atribuído aos agentes de repressão.


Heroínas desconhecidas

Em 2019, a Mangueira se tornou campeã do Carnaval carioca com enredo que fala dos heróis e heroínas desconhecidas do Brasil. Uma delas foi Esperança Garcia, reconhecida simbolicamente pela OAB como a primeira advogada do Piauí. Em 1770, ela escreveu uma petição ao presidente da província, denunciando maus- tratos e abusos sofridos por ela e seu filho na fazenda em que eram escravos.

Marias, Mahins, Marielles, malês

Além de Dandara dos Palmares, defensora da liberdade dos negros ao lado do marido, Zumbi, foram lembradas Luísa Mahin, que articulou o levante de escravos na Bahia conhecido como Revolta dos Malês; e Marielle Franco, política e ativista assassinada em 2018 no Rio de Janeiro. "Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês", lembra o samba-enredo da escola vencedora.

Texto e seleção de fotos: Carlos Albuquerque para a Deutsche Welle Brasil, em 08.03.2021. Dia Internacional da Mulher.

Uma transformação muito positiva

Ao diminuir os incentivos a partidos nanicos, a cláusula de barreira é um passo importante para reduzir a atual fragmentação partidária
 
      


O cenário político está tão conturbado que se pode perder de vista uma transformação muito positiva que vem ocorrendo aos poucos. Se de fato for completada, essa mudança pode proporcionar benefícios importantes para a qualidade da representação do regime democrático e para o ambiente de negociação das políticas públicas. Refere-se aqui à diminuição do número de partidos políticos, fruto da cláusula de barreira que começou a ser aplicada em 2019.

Para ter uma ideia da transformação que a cláusula pode gerar, apenas 18 dos 33 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atingiram o patamar mínimo de 2% dos votos válidos com base nas votações em candidatos a vereador em 2020, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).

A taxa de 2% de votos válidos é o limite mínimo fixado pela Emenda Constitucional (EC) 97/2017 para que, na legislatura seguinte às eleições de 2020, partidos políticos tenham acesso aos recursos do Fundo Partidário e à propaganda gratuita de rádio e televisão. Caso não aumentem sua representatividade em 2022, legendas como PV, Pros, PCdoB, Novo, Rede e PSTU não terão direito a recursos públicos e a tempo de rádio e televisão.

Ao diminuir os incentivos a partidos nanicos, a cláusula de barreira é um passo importante para reduzir a atual fragmentação partidária. Um sistema político com 33 partidos é uma aberração disfuncional.

A quantidade atual de legendas não gera melhor representação. Há muitas siglas para o eleitor votar, mas não há um aumento de opções políticas viáveis. Para que sejam minimamente efetivas, propostas políticas demandam um mínimo de representatividade.

Além disso, a diminuição do número de partidos pode contribuir para um ambiente de negociação política menos fisiológico. A fragmentação partidária é um convite à transformação da política em balcão de negócios. No regime vigente, mesmo os poucos eleitores que votam em partidos nanicos saem enfraquecidos, uma vez que seus representantes não dispõem de mínima relevância representativa no Legislativo. Há apenas uma ilusão de representação.

Em razão de seus bons frutos, a cláusula de barreira é adotada em muitos países. Por exemplo, Alemanha, Suécia e Noruega têm porcentuais mínimos acima de 4%. No Brasil, há um bom tempo tenta-se implantar algum limite para as legendas. Aprovada em 1995, uma primeira versão da cláusula de barreira foi declarada inconstitucional pelo Supremo em 2006.

Em 2017, o Congresso aprovou a atual cláusula de barreira, a ser implementada gradativamente. Por exemplo, a partir de 2026, os partidos precisarão alcançar 2,5% dos votos válidos ou eleger 13 deputados federais. Além de ser menos restritiva do que a de 1995, a nova cláusula foi aprovada por meio de uma Emenda Constitucional, o que evita eventuais discussões sobre inconstitucionalidades.

É de justiça reconhecer que a diminuição do número de partidos políticos não é mero resultado de disposições legais. O próprio eleitor concentra o seu voto em alguns partidos. Nas últimas eleições, por exemplo, cinco partidos se destacaram pelo número de prefeitos eleitos: MDB (783), Progressistas (687), PSD (654), PSDB (521) e DEM (466). Depois, com números bem menores, ficaram o PT (182) e o PSL (90).

Essa concentração de votos mostra que, mesmo com muitas legendas, o eleitorado encontra sua representação em alguns poucos partidos. Ou seja, é o próprio eleitor que distribui desigualmente os votos entre as legendas.

Além de evidenciar que a cláusula de barreira não diminui a representatividade política, a concentração de votos em alguns partidos mostra que, no conjunto das 33 legendas, existem realidades muito díspares. Há partidos, por exemplo, com enorme capilaridade, capazes de eleger cinco centenas de prefeitos.

Ao fixar limites mínimos de representatividade, a cláusula de barreira ajuda a diferenciar os partidos das meras siglas. Sua aprovação foi uma vitória importante, que não merece ser desfeita. Seus frutos podem gerar um novo cenário político.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de São Paulo, em 08 de março de 2021. / Assine o Estadão.

Trumpista venceu licitação para blindagem na PRF

Dias após garantir contrato com corporação subordinada ao governo federal, Daniel Beck foi à marcha que terminou na invasão do Capitólio

A empresa Combat Armor Defense do Brasil, cujo presidente é o americano Daniel Beck, conhecido militante trumpista participante da marcha em Washington que terminou no dia 6 de janeiro na invasão do Capitólio, ganhou em dezembro uma licitação de R$ 11,7 milhões para blindar veículos da Polícia Rodoviária Federal (PRF). A contratação ocorreu por pregão eletrônico, para transformações de viaturas da Superintendência da PFR do Rio. A PRF é subordinada ao Ministério da Justiça.

A Combat Armor Defense também venceu uma segunda licitação, no Ministério da Defesa, em 24 de novembro de 2020 para a compra de uma caminhonete blindada no valor de R$ 273 mil, mas a reportagem não encontrou no Portal da Transparência informações sobre a assinatura desse contrato. A empresa se instalou no Brasil em 2019, em Vinhedo (SP), após a eleição de Jair Bolsonaro. 


Viaturas blindadas pela Combat Armor Defense, empresa presidida por Daniel Beck Foto: COMBATARMORDEFENSE.COM

Beck fez campanha para a reeleição de Donald Trump. Ele é adepto de teorias da conspiração que, sem apresentar provas, alegam que a eleição de Joe Biden foi fraudada. Também afirmava em janeiro que Trump teria um segundo mandato, apesar de ter sido derrotado nas eleições de 2020. Defendia ainda o uso da ivermectina contra a covid-19 e dizia que a maior epidemia do mundo hoje é a de pedofilia e não a causada pelo Sars-Cov-2.

O empresário é filho do fundador da empresa, Doyle Beck. Dan Beck esteve presente em Washington, no Trump International Hotel, no dia 5 de janeiro deste ano (véspera da invasão ao Congresso dos EUA) e postou vídeo em suas redes sociais dizendo que havia se encontrado com Rudolph Giuliani, então advogado de Trump, e com Michael Lindell, CEO da empresa Mypillow, conselheiro de Trump. Lindell mantém contatos com o filho do presidente Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) pelo menos desde 2018. Eduardo estava em Washington naquele dia.

Em seu site, a Combat Armor informa estar presente em 30 países. No Brasil, pretende vender veículos blindados e blindagens para as polícias estaduais e para o Exército. Um de seus principais produtos é uma versão do caveirão, feita por meio da adaptação de um picape. Ela foi testada pelas polícias do Rio, Espírito Santo e Minas. A direção da empresa demonstra ter interesse nos Bolsonaros - entre as 17 pessoas que o perfil dela segue nas redes sociais estão os de toda a família Bolsonaro.

A licitação da PRF que deu origem ao contrato com a empresa dos aliados de Trump foi lançada em dezembro passado e finalizada no mesmo mês. Era na modalidade "Pregão Eletrônico", em que o governo apresenta um preço de referência e sai vencedora a empresa que dá o maior desconto em relação a esse preço. No caso desta compra, não houve desconto.

Segundo dados do Portal da Transparência, a Combat Armor Defense venceu dois itens da disputa (que tinha cinco itens) apresentando o mesmo preço de referência, uma vez que teve adversários. Ela levou o principal item, que consistia na adaptação de 30 Viaturas Blindadas de Operações Táticas (VBOTs), enquanto os demais itens tinham uma viatura cada. Esse lote estava orçado em R$ 11,5 milhões - o outro item incluía a reforma de uma viatura com caçamba por R$ 200 mil.

A outra empresa na disputa - Linkway Importação e Exportação - venceu três itens, num valor total de R$ 610 mil. Até 31 de dezembro, a PRF já havia empenhado R$ 11,1 milhões. Foi a primeira vez que a Combat, criada segundo a Junta Comercial paulista em março de 2019, fez negócios com o governo brasileiro. O Estadão procurou representantes da Combat Armor Defense na sede da empresa. Mas ninguém atendeu. Também procurou ontem a PRF e o Ministério da Defesa.

Bruno Ribeiro e Marcelo Godoy, O Estado de São Paulo, em 08 de março de 2021. / Contribua com a resistência em favor das liberdades democráticas - assine o Estadão.

Para os EUA, descontrole da pandemia no Brasil e variante ameaçam o mundo

Autoridades da saúde e do governo americano estão em estado de alerta e afirmam que nenhum país estará seguro enquanto a disseminação do coronavírus continuar a crescer, pelo risco de surgirem novas variantes, mais transmissíveis e também agressivas

 Uma ameaça para o mundo. É assim que a imprensa americana retrata a atual situação da pandemia de coronavírus no Brasil, ecoando a preocupação de cientistas, autoridades da área de saúde e do governo americano sobre os efeitos do descontrole da propagação de uma nova variante do Sars-CoV-2 no País.

País tem falta de ações nacionais e baixa adesão a medidas restritivas: bloqueio a brasileiros deve se intensificar para barrar variante Foto: Felipe Rau/Estadão

Nos EUA, a população já discute quando a vida poderá voltar ao normal, diante da aceleração do ritmo de vacinação e da indicação de que até o fim de maio o país terá doses de imunizante para todos. Depois de um ano como epicentro da pandemia, os EUA agora veem uma luz no fim do túnel e a ameaça do lado de fora. Mais especificamente no Brasil.

“Há uma sensação de alarme sobre a natureza não controlada da pandemia no Brasil e o ritmo lento da vacinação – especialmente agora que o Brasil é a fonte de uma nova e preocupante variante da covid-19”, afirma Anya Prusia, do Brazil Institute do Centro de Estudos Wilson Center, em Washington. “A atenção aqui está voltada para a disseminação dessa cepa mais contagiosa, a P.1, que se originou em Manaus.” 

Os primeiros dois casos da variante P.1 foram registrados nos EUA em janeiro, horas depois de o presidente Joe Biden revogar uma decisão de Donald Trump e recolocar a restrição de viagens do Brasil aos EUA.

Duas pessoas que estiveram no Brasil foram diagnosticadas com a nova cepa em Minnesota. Até agora, os EUA registraram 13 casos da mutação, em ao menos sete Estados. Mas ainda não há transmissão comunitária, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Mas não foi a chegada nos EUA da cepa de Manaus que alarmou os americanos e sim a recente situação da pandemia no Brasil, que tem batido recorde de mortes. “Enquanto a pandemia continuar a crescer, ninguém estará a salvo”, disse o porta-voz do Departamento de Estado americano, Ned Price, em coletiva de imprensa.

Em pronunciamentos e entrevistas recentes, o principal infectologista do governo americano, Anthony Fauci, tem ressaltado que a cepa P.1 está associada a uma maior transmissibilidade e à preocupação de que a mutação possa interromper a imunidade induzida naturalmente e pela vacina.

Há cerca de um mês, Fauci afirmou que isso preocupa os americanos, que não devem derrubar tão cedo o bloqueio de passageiros que estiveram no Brasil. Nesta semana, ele voltou ao tema. “O Brasil está numa situação muito difícil. A melhor coisa é vacinar o maior número de pessoas o mais rápido possível”, disse Fauci, que chegou a dizer que os EUA poderiam ajudar os brasileiros.

O ritmo de vacinação nacional, porém, não anima. O Washington Post descreveu a vacinação brasileira como um processo de “escassez e atrasos”, enquanto o The New York Times reporta uma vacinação lenta e sem sinalização de melhora.

“O país atingiu o pior momento. Surgiram variantes que parecem mais mortais para pessoas saudáveis, e os cientistas documentaram coinfecção por múltiplas variantes”, escreveu Kevin Ivers, vice-presidente da consultoria americana DCI Group, em relatório. “A preocupação é que a disseminação acelere essas coinfecções no Brasil e leve a uma explosão de novas variantes mais agressivas.”

A situação brasileira foi definida pelo Washington Post, no dia 4, como “terreno fértil” para outras variantes. O risco foi mencionado também por cientistas, como Bill Hanage, epidemiologista da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Harvard (leia a entrevista aqui).

Nas redes sociais, o também epidemiologista e economista da área da saúde Eric Feigl-Ding, membro da Federação de Cientistas Americanos, postou que o Brasil precisa da ajuda de líderes estrangeiros. “A epidemia descontrolada do Brasil será uma ameaça ao mundo, mas ainda não é muito tarde”, disse ao Estadão. “Mas é preciso ter sequenciamento genético, controle de fronteiras, quarentenas e testagem em massa.”

Para a epidemiologista brasileira Denise Garrett, vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, com base em Washington, se o Brasil não for capaz de controlar a situação, os bloqueios de viajantes devem se intensificar. 

O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, pesquisador da Universidade Duke, que nos últimos dias ganhou espaço em jornais estrangeiros pedindo uma pressão de outras nações sobre o Brasil, chama a atenção para a “geopolítica da pandemia”. “É a diplomacia do século 21. Já tem países trocando mercadorias por vacinas”, afirmou. “Se o fluxo ficar desimpedido, a doença desse país vai migrar para os outros.”

Falta de liderança

Na imprensa e entre analistas americanos, Jair Bolsonaro é o presidente que propaga desinformação, é cético sobre a vacina e está em choque com governadores. “Como aconteceu com Trump, o vácuo de liderança de Bolsonaro deu ao vírus abertura para se espalhar”, disse o Washington Post. Um dia antes, o The New York Times colocou a preocupação com o Brasil em sua capa.

A crise no País já chamou a atenção no ano passado, com as imagens de cemitérios lotados em Manaus e São Paulo. Desta vez, a preocupação é diferente, porque o que acontece no Brasil, segundo os americanos, pode colocar em xeque os avanços do resto do mundo.

Beatriz Bulla, correspondente d'O Estado de São Paulo em Washington, DC e Giovana Girardi, da redaçao no Brasil. Em 08.03.21.

domingo, 7 de março de 2021

Brasil registra 1.086 mortes em 24 horas

Total de óbitos associados à covid-19 supera 265 mil, segundo números do Conass. São identificados mais de 80 mil novos casos da doença.



Hospital de campanha em Santo André, no estado de São Paulo

O Brasil registrou neste domingo (07/03) 1.086 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Foram identificados 80.508 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções contabilizadas no país subiu para 11.019.344, enquanto os óbitos chegam a 265.411.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 9.704.351 pacientes haviam se recuperado até este sábado.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 126,3 no Brasil, a 21ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 28,9 milhões de casos, e da Índia, com 11,2 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 524 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 116,7 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e mais de 2,59 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, e 07.03.2021

Bolsonaro abre novo confronto com governadores

No auge da pandemia no Brasil, presidente reforça críticas a medidas de isolamento social adotadas por estados e municípios e resiste a que governos locais possam comprar vacinas diretamente.

Bolsonaro cancelou dois pronunciamentos em rede nacional, nos quais atacaria políticas dos estados

O choque entre o presidente Jair Bolsonaro e governadores e prefeitos sobre as medidas de combate à pandemia de covid-19 se acentua enquanto o país bate recordes de mortes diárias e de ocupação de UTIs, com perspectiva de piora nas próximas semanas. Além de discordância sobre normas que restringem a movimentação de pessoas, o embate se dá sobre iniciativas para que os governos locais possam comprar vacinas diretamente dos produtores.

São Paulo, estado mais populoso do país, está na fase vermelha de restrições desde sábado (06/03), que permite apenas o funcionamento de atividades essenciais. Na cidade do Rio de Janeiro, bares e restaurantes devem fechar às 17h desde sexta-feira. Em Santa Catarina, um decreto proibiu serviços não essenciais neste sábado e domingo. Decisões semelhantes foram tomadas em outras regiões do país.

No nível federal, Bolsonaro insiste em uma postura contrária ao isolamento social e negacionista em relação à gravidade da pandemia. Na quinta-feira, um dia após o país bater seu recorde de mortes diárias, com 1.910 óbitos, o presidente disse que fechar o comércio seria "frescura". "Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando?", afirmou.

Na sexta-feira, o presidente anunciou que havia pedido a auxiliares que preparassem um projeto de lei para ampliar a lista de atividades essenciais que poderiam seguir abertas durante as restrições aplicadas por municípios e estados. "Atividade essencial é toda aquela necessária para o chefe de família levar o pão para casa", afirmou Bolsonaro.

O presidente também cogita fazer um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão para, entre outros pontos, criticar os prefeitos e governadores que restringiram a circulação de pessoas. O discurso seria transmitido inicialmente na terça-feira, foi postergado para quarta-feira e, depois, adiado novamente por sugestão de seus assessores próximos.

Federalismo de confronto

A estratégia de Bolsonaro de confrontar os prefeitos e governadores é vista como um cálculo político para se isentar da responsabilidade pela gestão da pandemia, e ameaça desestruturar o sistema federativo brasileiro, que deveria se basear na coordenação entre os diferentes níveis de governo.

Já em março de 2020, no início da pandemia, quando o Brasil se preparava para a primeira onda da covid-19 e alguns prefeitos e governadores anunciavam medidas restritivas, Bolsonaro editou uma medida provisória concentrando no governo federal o poder de determinar as regras sobre a movimentação de pessoas.

A iniciativa do presidente não prosperou. Em abril, o Supremo Tribunal Federal derrubou a medida e autorizou governadores e prefeitos a regulamentarem o tema, em decisão recebida de forma indignada por Bolsonaro. Em maio, o presidente editou um decreto incluindo salões de beleza, barbearias e academias no rol de serviços essenciais, mas foi ignorado por parte dos estados e municípios.

O comportamento do governo federal como um todo, porém, tem uma lógica dúbia. Ao mesmo tempo em que Bolsonaro questiona a eficácia dos imunizantes e critica as medidas de restrição, para mobilizar sua base de apoiadores, o Ministério da Saúde faz divulgações pontuais de que vai comprar mais vacinas, como a indiana Covaxin ou a da Pfizer/Biontech. Os anúncios e estimativas da pasta, contudo, costumam ser inflados e os acordos ainda dependem de outros passos para se efetivarem. A Covaxin, por exemplo, ainda não teve aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e o contrato com a Pfizer ainda não foi fechado.

Reação dos estados e municípios

As críticas do presidente às medidas de isolamento social têm efeito negativo na eficácia das decisões de prefeitos e governadores, pois confundem a população e quebram a unidade necessária para o sucesso das regras de isolamento. Mas os governos locais já estão respaldados pela decisão do Supremo para seguir com essas medidas.

O que preocupa os governadores neste momento é a compra de vacinas, que está centralizada no Ministério da Saúde e tem um fornecimento lento, restrito a poucos fornecedores e inconstante. Na quinta-feira, 14 governadores enviaram uma carta a Bolsonaro pedindo providências para aquisição de mais doses. No texto, eles argumentam estarem "no limite de suas forças e possibilidades" e que "nas próximas semanas, talvez meses, a pandemia seguirá ceifando vidas, ameaçando, desafiando e entristecendo todos nós".

Alguns líderes estaduais se preparam para buscar fontes alternativas. Um deles é o governador de São Paulo, João Doria, que já impôs uma derrota ao presidente ao trazer a Coronavac ao país por meio de uma parceria com o Instituto Butantan. Bolsonaro inicialmente havia dito que não compraria o imunizante, mas depois cedeu e o Ministério da Saúde adquiriu toda a produção da vacina pelo Butantan. Na terça-feira (02/03), em reunião virtual com 617 prefeitos do estado de São Paulo, Doria prometeu ir além da Coronavac e comprar 20 milhões de doses da vacina da Pfizer/Biontech e já aprovada pela Anvisa, e outras 20 milhões de doses do imunizante russo Sputnik V, ainda não liberado pela agência, para serem aplicadas em moradores de São Paulo.

Outros governadores também negociam a compra direta de vacinas. No final de fevereiro, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou o remanejamento de verbas para comprar vacinas e o governo local negocia a compra de doses da Pfizer e da Sputnik V. Há iniciativas semelhantes no Espírito Santo e em Santa Catarina, entre outros estados.

O Consórcio Nordeste, composto por nove governadores da região, tem um pré-contrato para comprar 50 milhões de doses da Sputnik V, e entrou com ação no Supremo para poder adquirir e aplicar o imunizante sem a necessidade de aprovação da Anvisa, ainda não julgada pela Corte.

Na sexta-feira, governadores do Consórcio da Amazônia, composto por nove estados, reuniram-se com o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Todd Chapman, para pedir ajuda aos norte-americanos para viabilizar a compra de 10 milhões de doses de vacinas para os moradores da região.

Os municípios têm menos capacidade financeira para negociar a aquisição de imunizantes com os laboratórios, mas também entraram no circuito. A Frente Nacional de Prefeitos lidera um consórcio de cidades para comprar vacinas, que já tem mais de 100 municípios participantes. E a Confederação Nacional dos Municípios divulgou nota na quinta-feira na qual defende que, na ausência de liderança do governo federal, estados e municípios passem a comprar vacinas.

Essas iniciativas de compra descentralizada desagradam o governo federal, que não quer repartir a responsabilidade pela aquisição dos imunizantes com os governos locais e perder o protagonismo na vacinação, como ocorreu no episódio com Doria, fotografado ao lado da primeira pessoa vacinada no país. Segundo o jornal Valor, o Ministério da Saúde informou os laboratórios que negociações para a venda de vacinas diretamente aos governadores, individualmente ou em grupo, não seriam bem recebidas pelo governo federal, que tem os recursos para fazer as compras em maior escala.

Compra descentralizada de imunizantes

Apesar da crescente mobilização, o plano de governadores e prefeitos para comprar vacinas diretamente tem alguns obstáculos. O primeiro é a escassez global do insumo em todo o mundo, que não impede a aquisição, mas pode atrasar as entregas.

Além disso, há o gargalo da aprovação pela Anvisa, que até o momento concedeu registro definitivo apenas para a vacina da Pfizer/Biontech e autorização para uso emergencial para a Coronavac e a vacina de Oxford/AstraZeneca, distribuída no país em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Por fim, há dúvidas sobre a legalidade de os governos assinarem contratos com fornecedores que os isentem de responsabilidade por eventuais efeitos colaterais dos imunizantes.

Há soluções para esses entraves sendo construídas em Brasília. Em 23 de fevereiro, o Supremo autorizou estados e municípios a comprarem e distribuírem vacinas se o governo federal não cumprir o Plano Nacional de Imunização contra a covid-19 ou se as doses forem insuficientes. Na mesma decisão, a corte definiu que a Anvisa tem um prazo de 72 horas para avaliar pedidos de registro de vacinas que governos locais queiram comprar. Após esse prazo, a importação seria liberada se o imunizante já tiver sido aprovado por agências reguladoras da Europa, dos Estados Unidos, do Japão ou da China.

Regra semelhante foi introduzida pelo Congresso em uma medida provisória sobre a adesão do Brasil ao consórcio internacional de vacinas Covax Facility. A norma deu cinco dias para a Anvisa aprovar o uso emergencial de vacinas que já tivessem recebido o aval de pelo menos uma de oito autoridades sanitárias estrangeiras. Esse trecho, porém, foi vetado por Bolsonaro na segunda-feira (1º/03), e cabe ao Congresso manter ou derrubar o veto do presidente.

Outro caminho para a descentralização da compra de vacinas está em um projeto de lei aprovado na terça-feira pelo Congresso. O texto autoriza a aquisição das vacinas por estados e municípios, desde que aprovadas pela Anvisa, e permite que União, estados e municípios assumam a responsabilidade de indenizar cidadãos por efeitos colaterais e contratem seguros para eventuais riscos ligados aos imunizantes. O projeto aguarda a sanção ou veto de Bolsonaro.

Deutsche Welle Brasil, em 07.03.2021

Fernando Henrique Cardoso: A epidemia e a política

Como disse o senador Jereissati, é preciso gritar alto um ‘basta’ e dar nome aos bois

Primeiro é bom ressaltar que a “crise” (usa-se tão amiúde o vocábulo que ele acaba por perder o significado) começou a se manifestar antes do maldito vírus ter sido percebido entre nós. Nisso me refiro à “crise econômica”, não à política, que parece ser permanente em nosso caso. Mas o certo é que o mar tranquilo em que navegaram os governos de Lula e, parcialmente, de Dilma perdeu-se no passado, antes da pandemia, apesar dos esforços corretos do governo Temer.

Com isso não quero dizer que o governo Bolsonaro seja “o” responsável pelos descaminhos por que passa a economia brasileira. A questão é mais complicada, depende de vários fatores, alguns internacionais. Tampouco seria correto imaginar que a pandemia seja “a causa” do fraco desempenho da economia. Este a antecedeu.

Mas, convenhamos, é muita má sorte do País ter de enfrentar, além da epidemia, uma economia trôpega, com exceção apenas do setor agrícola. Este já ia bem e assim continua, ao menos quanto às exportações. Pior, aos maus ventos anteriores somou-se o apego popular a um líder que não chega a ser populista, mas parece haver-se sentado numa cadeira na qual não se sente bem, ou não foi preparado para ela, apesar dos anos de Câmara. Os tempos de “baixo clero” fazem custar-lhe a se adaptar a situações novas. Coisas da democracia.

Os mais inquietos só veem uma saída, o impeachment. Eu, que já vi de perto dois, sou cauteloso: é alto o custo político de uma intervenção congressual no que foi popularmente decidido. Às vezes não há outro jeito. Mas tal desiderato depende mais das ações (ou inações) de quem foi eleito do que, como comumente se diz, da “vontade política”. É melhor ir devagar com o andor

Melhor aguentar quem hoje manda – o quanto seja possível – e preparar candidatos para as próximas eleições que possam bem desempenhar a função presidencial. Enquanto isso não ocorre, aproveitemos o tempo para treinar civicamente o eleitorado. Ingenuidade? Talvez. Mas sem certa dose de otimismo corre-se o risco de jogar fora não só a água do banho, mas a criança, a democracia.

Quousque tandem?, perguntava Cícero na antiga Roma. Vale repetir a pergunta: até que ponto os “mimimis” de Bolsonaro serão suportáveis? Ninguém sabe ao certo, e ele pode dar a volta por cima. Em larga medida depende não só da paciência do povo, mas dele próprio, Bolsonaro, manter seus “fiéis” e também conter seus impulsos de franqueza autoritária. Do ponto de vista político, mais que tudo depende de quem vocalize o “outro lado”. Por enquanto o que se vê é uma mídia quase unânime na crítica à falta de condições de quem nos governa para manter um mínimo de coerência na ação. É muito, mas é pouco. Enquanto não aparecer alguém com força para expressar outro caminho viável, o presidente leva vantagem.

A verdade é que os partidos ou não são capazes de se opor, ou quando o fazem não convencem os seguidores de forma a abalar quem está no poder. Será sempre assim? Depende, por exemplo, dos trejeitos do presidente, que costuma jogar a culpa nos outros, ou, em outro exemplo, menosprezar o sofrimento das vítimas da pandemia. Mas depende, sobretudo, do surgimento de quem encarne “o novo”. Como disse o senador Jereissati, é preciso gritar bem alto um “basta” e dar nome aos bois.

Não é novidade que o sistema de partidos, por si, perdeu a capacidade de guiar as escolhas populares. Daí que o que aparece como “personalismo” acaba por ser condição necessária para sair da paralisia em que nos encontramos. E enquanto houver democracia e liberdade de opinião, o verbo conta. As falas, por enquanto não chegam a ser ouvidas pelos eleitores. Há, sim, murmúrios no povo, mas não ainda contra quem governa, e sim contra a difícil situação de vida.

De imediato, o que interessa é a saúde. Logo depois será o emprego. Os dados recentes mostrando um encolhimento de 4,1% do PIB somam-se ao aumento consequente do desemprego, que vinha de antes. Se já havia 12% de desempregados, agora não se trata apenas de serem 13% ou 14%, mas de a economia não dar sinais de vida para absorver cerca de 25 milhões de pessoas, somando-se aos que procuram trabalho, os “inimpregáveis”. É muita gente. Terminada a pandemia (oxalá!), daremos com a insuficiência da economia para abrigar tantos, principalmente os de menor qualificação.

O panorama é desanimador. Para quem governa e para quem está contra os governantes. Só há um jeito: buscar uma trilha de maior prosperidade e alento. Recordo-me dos tempos de JK: ele “inventou” um país. Abriu a economia a capitais de fora, ampliou a produção de automóveis, expandiu a indústria naval, etc. E ainda por cima “inventou” Brasília. Reatou um sonho antigo num horizonte de esperanças. Não me esquecerei jamais da conferência que André Malraux fez na FFCL da USP, na qual mostrava a nós, críticos de tudo, o significado simbólico de transcendência da capital imaginada por Niemeyer e Lúcio Costa.

É disso que precisamos: de alguém que indique um caminho de superação e permita voltarmos a acreditar em nós próprios. E cujas palavras e ação não se percam na retórica chinfrim, mas animem muitos outros mais a dar vida ao que se propõe. Que se reinvente nosso futuro.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi Presidente da República. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 07.03.202

sábado, 6 de março de 2021

Brasil registra mais 1.555 mortes por covid-19

Número de óbitos diários em decorrência do coronavírus supera os 1,5 mil pelo quinto dia consecutivo, segundo dados do Conass. Total de mortos passa dos 264 mil. São identificados quase 70 mil novos casos da doença.


O Brasil registrou neste sábado (06/03) 1.555 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), no quinto dia consecutivo em que a marca fica acima de 1.500 óbitos.

Foram identificados 69.609 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 10.938.836, enquanto os óbitos chegam a 264.325.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 9.704.351 pacientes haviam se recuperado até este sábado.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 125,8 no Brasil, a 21ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 28,9 milhões de casos, e da Índia, com 11,1 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 524 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 116,3 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,58 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 06.03.2021

Governo confirma nova redução, de 8 milhões de doses, na previsão de entrega de vacinas em março

Novo cronograma divulgado neste sábado reduziu estimativa para 30 milhões de doses, descartando a distribuição de 8 milhões de doses da Covaxin

Governo divulgou novo cronograma de distribuição de imunizantes Foto: Michael Weber / Agência O Globo

O Ministério da Saúde divulgou neste sábado um novo cronograma de entrega de doses de vacinas e confirmou uma nova redução na expectativa de entrega de imunizantes neste mês de março. A nova previsão é de apenas 30 milhões de doses, descartando a distribuição de 8 milhões de doses da Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech, que nem sequer pediu ainda autorização para uso emergencial à Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Na quarta-feira, a pasta ainda previa distribuir esse imunizante e já tinha reduzido a estimativa de doses entregues de 46 milhões de doses para 38 milhões.

O governo federal vem sendo pressionado a adquirir mais imunizantes, mas encontra dificuldades para dar ritmo à campanha de vacinação, iniciada em fevereiro. Atrasos na importação de Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), matéria-prima para a confecção de vacinas, já provocou postergação de entrega de doses da Coronavac, desenvolvida pelo instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, e da Covishield, desenvolvida pela Fiocruz junto com a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca. Estas são as únicas vacinas já disponíveis no Brasil até agora.

Reportagem do GLOBO mostrou que o país contratou até agora doses que seriam suficientes para imunizar somente 65% da população e que se o ritmo lento da vacinação persistir somente em abril de 2022 seria atingido o índice de 70% da população vacinada, considerado um limiar mínimo para garantir a imunidade de rebanho contra o vírus.

Covid-19: Estudo sugere que vacina da AstraZeneca pode ser adequada contra variante brasileira

A distribuição das doses previstas para março será iniciada na próxima semana. Segundo nota do Ministério da Saúde, “as previsões de entrega são enviadas à pasta pelos fornecedores dos imunizantes e estão sujeitas a alterações, de acordo com a disponibilidade dos laboratórios e a real quantidade de doses entregues, que pode variar conforme o ritmo de produção dos insumos”.

O governo federal prevê distribuir durante o mês 23,3 milhões de doses do Instituto Butantan, enviadas em remessas semanais. Outras 3,8 milhões da vacina da AstraZeneca/Oxford, previstas para a segunda quinzena do mês, provenientes do primeiro lote produzido no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com matéria-prima importada. Também são esperadas mais 2,9 milhões de doses do mesmo imunizante, adquiridos via consórcio Covax Facility.

A partir de recebidas as doses, o Ministério da Saúde informou que organizará a divisão de forma proporcional e igualitária aos estados e Distrito Federal. Posteriormente, a doses são enviadas aos estados, responsáveis pela distribuição dos imunizantes a todos os municípios brasileiros, que aplicarão as vacinas em 38 mil salas de vacinação.

Imunização: Mais de 1.700 municípios se juntam a consórcio para comprar vacinas cotntra Covid e repudiam fala de Bolsonaro sobre 'idiotas'

A lentidão nas negociações da pasta para a compra de vacinas emperra ainda a aquisição de 161 milhões de doses pelo governo federal. A pasta está em tratativas, mas ainda sem fechar contrato, com quatro laboratórios: União Química, Pfizer, Janssen e Moderna.

Segundo a pasta, das vacinas contratadas, devem ser entegues 112 milhões de doses pela Fiocruz até julho, enquanto o Instituto Butantan forneceria 100 milhões de doses até setembro. Pelo consórcio da Covax Facility, viriam mais 6,1 milhões de doses até maio e a previsão é de 42,5 milhões de unidades no total, até dezembro. Em relação à Covaxin, a estimativa é de entrega de 20 milhões de doses no primeiro semestre.

Carolina Brígido e Eduardo Bresciani, O Globo, em 06/03/2021

Ascânio Saleme: Na casa da tua mãe

A frase foi usada por Bolsonaro, em agenda em Uberlândia (MG), para falar sobre "idiota que pede compra de vacina"

Jair, onde você absorveu tanta arrogância? Onde você iniciou o processo involutivo que o transformou no indivíduo tosco que deixa o Brasil atônito? Foi na casa da tua mãe.

Onde você emburreceu tanto e virou esse indivíduo desconectado do mundo civilizado? Onde você encontrou tanta gente obtusa como você para reunir ao seu redor? Foi na casa da tua mãe.

Onde você teve seu caráter desviado de forma tão radical que alcança até mesmo todos os zeros que você criou? Foi na casa da tua mãe.

Capitão, onde você construiu toda a perversidade que escorre em suas veias e baba da sua boca? Onde você foi encontrar tanto ódio que se percebe claramente no seu olhar e na sua risada sádica? Foi na casa da tua mãe.

Onde foi concebido este espírito antidemocrático que o domina de maneira irrevogável e que ameaça um país inteiro? Foi na casa da tua mãe.

Onde o seu coração de pedra foi lapidado, ou dilapidado? Onde foi que o endureceram de tal forma que a empatia não consegue penetrar? Foi na casa da tua mãe.

Diga, onde talharam e envernizaram esta sua lustrosa cara de pau? Onde você aprendeu a mentir tanto, Jair? Foi na casa da tua mãe.

Onde mesmo foi que te ensinaram que chorar por seus mortos é frescura e mimimi?

Onde foi que você descobriu que os corajosos enfrentam o vírus e saem às ruas? Na casa da tua mãe.

Onde você aprendeu a roubar, a desviar dinheiro público para comer gente? Teria sido no mesmo lugar em que você ensinou seus filhos a fazer rachadinhas? Foi na casa da tua mãe.

Jair, onde você se tornou homofóbico e misógino? Onde começou a entender que mulher é filha da fraqueza e gay deve levar porrada? Foi na casa da tua mãe.

Conte onde foi que você descobriu que o Brasil é um país de maricas? Foi na casa da tua mãe.

E onde você percebeu que há excessos de direitos no Brasil? Foi na casa da tua mãe.

Capitão, onde você se afastou da luz e mergulhou nas trevas? Onde você aprendeu que torturar e matar fazem parte da vida? Foi na casa da tua mãe.

Onde te ensinaram que a ditadura errou por torturar e não matar? Aposto que foi no mesmo lugar onde você ouviu que os porões deveriam ter fuzilado 30 mil corruptos e erraram por não matar Fernando Henrique Cardoso. Foi na casa da tua mãe.

Diga, onde você entendeu que Pinochet, o mais sanguinário ditador latino americano, devia ter matado mais gente? Foi no mesmo lugar em que você passou a idolatrar o torturador Brilhante Ustra? Foi na casa da tua mãe.

Onde foi, Jair, que você descobriu que fazer cocô dia sim, dia não, melhora o meio ambiente? Que comer menos resolve o problema das queimadas? Foi na casa da tua mãe.

Explique, onde você percebeu que trabalho infantil, de meninos e meninas com menos de dez anos de idade, não prejudica em nada as crianças? Foi na casa da tua mãe.

Conte, onde foi mesmo que te disseram que é uma grande mentira falar que tem gente passando fome 

Onde te ensinaram que é correto beneficiar filhos, como os zeros que você tem, quando se exerce cargo público, capitão? Foi na casa da tua mãe.

Finalmente, onde foi mesmo que você virou este monstro que assombra o país e espanta o mundo? Foi na casa da tua mãe.

Nosso Rio 1

Para conseguir fazer algumas poucas restrições na cidade contra o coronavírus, o prefeito Eduardo Paes teve de enfrentar os membros do comitê científico que ele mesmo montou quando tomou posse e do qual participam os ex-ministros da Saúde José Gomes Temporão e José Agenor Álvares da Silva. “O comitê mandou manter tudo do jeito que está”, disse o prefeito um dia antes de anunciar as novas medidas. “Estou enfrentando os cientistas”, explicou Paes, referindo-se ao comitê, no dia em que saíram as medidas.

Nosso Rio 2

De acordo com o prefeito, o comitê só recomendaria medidas se houvesse “alguma tendência de alta” de episódios, o que não era o caso, segundo Paes. O secretário de Saúde, Daniel Soranz, garantiu que 15 dias antes de qualquer medida se saberia que os casos estariam aumentando em razão de eventos de gripe verificados nas UPAs. Disse também que não havia razão para fechar ou reduzir o tempo de funcionamento de estabelecimentos comerciais porque “o Rio é a cidade com a segunda menor taxa de ocupação hospitalar do país, atrás apenas de Aracaju”.

Nosso Rio 3

Aliás, alguém consegue explicar por que bares e restaurantes podem ficar abertos até às 17h? Significa que o cidadão pode se contaminar à vontade de dia, mas de noite não? E as praias, por que ambulantes e quiosqueiros estão proibidos e os bacanas não? Não vale dizer que sem ambulantes vendendo água de coco os bacanas saem logo da areia. Se for essa a explicação, significa que a estes é dada a chance de se infectar por uma ou duas horas, e nada mais?

Nosso Rio 4

O secretário Soranz disse que o número de infectados no Rio não aumentou tanto nos dois primeiros meses do ano, que os registros do Consórcio de Veículos de Imprensa não refletem a realidade. “Os números foram represados na gestão de Marcelo Crivella”, afirmou o secretário. E mais. Ele acrescentou que o ex-prefeito fechou praias e parques, como o Campo de Santana, para economizar com gastos de manutenção.

Ah, Bittar

O senador Márcio Bittar (MDB-AC) lamentou muito não ter conseguido garfar dinheiro de Saúde e Educação no seu texto da PEC Emergencial. Ele foi obrigado a desistir de acabar com as vinculações obrigatórias das duas áreas por falta de apoio da maioria dos senadores. Bittar disse que queria uma PEC “mais robusta, com mais itens”, mas se viu forçado a desidratar a proposta. Sorte do Brasil e dos brasileiros.

Conta outra

Querem criminalizar a política, dizem os que tentam defender deputados e senadores de malfeitos. Estes normalmente ganham as causas nos tribunais superiores quase sempre por tecnicalidades. Não estamos defendendo a corrupção, mas a legalidade. Porque hoje é o parlamentar que está sendo condenado com estes erros processuais, amanhã pode ser você.

Casa do zero

Você conhece alguém que tenha 39 anos, que trabalha há apenas 20 anos com remuneração mensal variando de R$ 15 mil a R$ 28 mil ao longo dos anos, que tem dois filhos em idade escolar e que conseguiu reunir dinheiro suficiente para comprar uma casa de R$ 6 milhões? Pois é. Eu também não.

Faz sentido

O nome do condomínio da nova mansão do Zero das Rachadinhas em Brasília é perfeito. Chama-se “Ouro Branco”, que pode significar tanto riqueza quanto chocolate. Nas duas modalidades o Zerinho abunda.

Custo zero

“Geralmente quando se fala em famílias na política, são famílias enroladas em atos de corrupção. A minha família é limpa na política”. A frase é de Jair Bolsonaro, pronunciada na entrevista que deu na bancada do Jornal Nacional na campanha eleitoral de 2018. A imagem mostra o cara de pau com um ar de seriedade que nunca mais se viu. Lembrar não custa nada.

No crea em brujas

A fabulosa Bia Kicis tem prometido miragens aos deputados. Na tentativa de viabilizar sua candidatura para presidir a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, diz que vai ser democrática e respeitará as diferenças. Tem bobo que acredita. Como se ela fosse de fato capaz de cumprir a promessa, apesar de democracia não ser parte da sua natureza. Há também os aliados de Artur Lira que defendem a candidatura de Kicis para não atrapalhar outros entendimentos partidários. Bobagem. O que se quer é controlar toda a agenda da Casa.

Enquanto isso

E a oposição por onde anda? Por que não vemos mobilização articulada contra o monstro. Na quinta-feira, enquanto Jair Bolsonaro falava em chororô e mimimi, os próceres deputados Paulo Pimenta e Paulo Teixeira, do PT, convocaram a imprensa para uma importante comunicação: denunciaram a Lava Jata e pediram a punição do procurador Deltan Dallagnol.

Lula e FHC

E por que não vemos uma ação coordenada dos ex-presidentes? Tirando Collor, que já se aliou ao capitão, claro, caberia muito bem uma manifestação dos demais em favor da vida e da democracia, sugere o autor e roteirista George Moura. Uma ação conjunta de Sarney, Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer pode não dar em nada, mas mostraria que os ex-líderes do país repudiam esse amontoado de agressões de Bolsonaro.

Intervenção

Os bolsonaristas mais atrasados, Jair em primeiríssimo lugar, que imaginavam que o Brasil sofreria uma ocupação de países ricos em razão das riquezas da Amazônia, podem acabar surpreendidos com uma intervenção global para sanear o país e salvar o mundo.

Ascânio Saleme é colunista de O Globo. Publicado originalmente na edição de 06.03.2021

Paraguaios levam às ruas indignação com gestão da pandemia

Leitos de UTI lotados, sistema de saúde à beira do colapso, falta de remédios e vacinas: crise da covid-19 atinge seu auge no país sul-americano. 

Após protestos, presidente pede que ministros ponham cargos à disposição.

Noite de confrontos entre polícia e manifestantes no Paraguai

A ira dos paraguaios contra o que consideram uma gestão deficitária do governo da pandemia de covid-19 chegou às ruas. Os protestos, que atingiram seu auge nesta sexta-feira com confrontos com a polícia, já levaram à queda do ministro da Saúde. Os manifestantes agora pedem o afastamento do presidente, o conservador Mario Abdo Benítez.

Neste sábado (03/06), Abdo Benítez pediu a renúncia de todos os ministros de seu governo, durante reunião com seus colaboradores mais próximos na residência presidencial de Mburuvicha Roga, para "avaliar as situações de ontem" e preparar um pronunciamento público, como informou o ministro das Tecnologias de Informação e Comunicação, Juan Manuel Brunetti.

"A mensagem concreta é esta: o presidente ouviu os cidadãos, convocou seu gabinete e pediu que eles ponham seus cargos à disposição", disse Brunetti.

O porta-voz insistiu que Abdo Benítez tinha recebido "a mensagem dos cidadãos", apesar de os manifestantes exigirem a saída de todo o Executivo, a começar pelo próprio presidente, e não mudanças de ministros.

Brunetti adiantou ainda que será o chefe de Estado quem vai anunciar as saídas ministeriais no momento em que "tiver fatos concretos para comunicar aos cidadãos".

Com recorde de infecções, leitos de UTI lotados e um sistema de saúde à beira do colapso, o Paraguai, que chegou a ser elogiado por sua gestão da crise, também enfrenta falta de medicamentos para tratar pacientes de covid-19. A vacinação, além disso, avança lentamente: estima-se que apenas 0,1% da população foi imunizada.

Batalha campal em Assunção

Nesta sexta, os protestos começaram de forma pacífica, mas logo transformaram o centro histórico da capital Assunção em um campo de batalha. Pelo menos uma pessoa morreu e outras 18 ficaram feridas.

Policiais agridem manifestante: houve um morto e 18 feridos nos confrontos

As forças de segurança dispararam balas de borracha e gás lacrimogêneo nos arredores do Congresso, enquanto os manifestantes tentavam romper barricadas e jogavam pedras na polícia.

Imagens exibidas pela imprensa local mostraram várias pessoas feridas por balas de borracha disparadas por policiais, e agentes das forças de segurança atingidos por pedras lançadas por alguns manifestantes.

O núcleo dos distúrbios foi uma área que inclui a sede da Polícia Nacional, a sede do Congresso e o Palácio do Governo. Depois do confronto, a multidão se dispersou por várias ruas do centro, gritando palavras de ordem contra o governo de Abdo Benítez.

O ministro do Interior, Arnaldo Giuzzio, disse a jornalistas que os incidentes foram provocados por pessoas que se infiltraram na manifestação para gerar tumulto.

Um grupo de manifestantes, calculado em cerca de 100 pela imprensa paraguaia, pretende fazer uma vigília diante do Congresso para exigir a renúncia de Abdo Benítez.

Escassez de remédios e vacinas

A convocação para o protesto desta sexta foi feita após o sindicato de enfermeiras e familiares de pacientes realizar nesta semana outras manifestações para denunciar a falta de suprimentos e materiais médicos nos hospitais públicos, especialmente entre os mais afetados pelo coronavírus.

"Fora rato assassino": manifestantes querem a renúncia do presidente

Na manhã de sexta, o ministro da Saúde, Julio Mazzoleni, renunciou após se reunir com Abdo Benítez, mas isso não serviu para aplacar a ira dos manifestantes.

"Combinamos em conjunto que eu deixo o cargo do Ministério da Saúde Pública para que possamos gerar a paz necessária para enfrentar este desafio", disse Mazzoleni, em declarações à televisão estatal.

Outra decepção entre os cidadãos do Paraguai é o atraso na chegada das vacinas, que por enquanto estão limitadas às 4 mil doses do imunizante russo Sputnik V que já foram administradas - apenas a profissionais da saúde.

Com uma população de 7 milhões de habitantes, o Paraguai registrou mais de 160 mil casos de covid-19 e 3.200 mortes em decorrência da doença desde o início da pandemia do novo coronavírus.

Filho do braço-direito do ditador Alfredo Stroessner, Abdo Benítez foi eleito presidente em 2018, com uma campanha marcada pela defesa do liberalismo econômico e de valores conservadores. Pesquisas colocam a popularidade do ex-paraquedista das Forças Armadas entre 20% e 35%.

Deutsche Welle Brasil, em 06.03.2021

Juan Arias: As palavras que Bolsonaro nunca pronunciará, porque lhe queimam a língua

Em seu vocabulário não cabem as palavras que constroem pontes de esperança, e sim as que buscam escavar trincheiras de guerra. Odeia falar de democracia e de respeito à natureza. A morte é o seu lema

Jair Bolsonaro participa de cerimônia de lançamento de programa de qualificação do atendimento de agentes comunitários de saúde, o "Saúde com Agente", em dezembro de 2020.MARCELO CAMARGO / AGÊNCIA BRASIL

O vocabulário do presidente Jair Bolsonaro é muito restrito, talvez porque ele nunca tenha lido. Em seu dicionário pessoal só existem insultos, palavras obscenas, ameaças, zombarias. E as pronuncia sempre gritando, irritado, insultando, ameaçando. Seu vocabulário é o das armas, da guerra, do ódio e da morte.

Em seus discursos e arroubos de loucura não existem palavras de vida, de esperança, de alento, de compaixão. Ou ele desconhece essas palavras com as quais se constrói o mundo, ou elas queimam a sua língua.

Suas palavras, sempre burlescas ou ameaçadoras, evocam mais a linguagem atemorizante das armas que a alegria da vida. Não são palavras que convidem a compartilhar com o próximo seu pedaço de pão, e sim a desprezar a dor e a fragilidade.

Para ele, a vida é um direito apenas dos fortes, dos impassíveis perante a dor alheia. Zomba dos que choram e têm medo da morte. Onde pisa, por onde passa, deixa os rastros da indiferença para com os fracos.

Em seu vocabulário não cabem as palavras que constroem pontes de esperança, e sim as que buscam escavar trincheiras de guerra. Odeia falar de democracia e de respeito à natureza. A morte é o seu lema.

Não entende a política do diálogo e do respeito às diferenças, que são os ingredientes com os quais se constrói a paz. Quem, como ele, exalta a tortura e as armas e é incapaz de pronunciar palavras como diálogo, liberdade ou harmonia é porque nunca saboreou o pão quente do encontro, do convívio pacífico, da compaixão com a dor alheia e da alegria compartilhada.

Quem zomba da morte e aboliu do seu dicionário a empatia pelos que sofrem é porque renunciou a saborear o melhor da vida, que é a paz. Para isso, entretanto, é necessário ser um homem de verdade, que não teme a fraqueza e nem os limites impostos pela realidade da vida, e que acredita ser onipotente.

Bolsonaro me lembra aquele militar espanhol, Millán Astray, que em plena guerra civil gritou na Universidade de Salamanca, em 1936: “Morte à inteligência, viva a morte!”.

E, no entanto, as sociedades são construídas com o grito de “viva a vida”. Um grito que surge das profundezas do amor e da esperança, e que por isso Bolsonaro nunca conseguirá entender. Ele se alimenta com as palavras de morte.

Por isso, a esperança para o Brasil que não renunciou às palavras que geram harmonia em vez de ódios é que Bolsonaro acabe apagado do dicionário para voltar ao esquecimento, e que um dia seja recordado apenas como um pesadelo que turvou nossos sonhos.

A esperança é que o parêntese de negacionismo do capitão e seu desprezo pela vida sejam, na expressão do Quixote, apenas “uma noite ruim passada em uma estalagem ruim”.

Depois das tempestades e dos trovões costuma aparecer o sorriso de um arco-íris, essa beleza que é incapaz de agradar ao capitão que, no dia em que o Brasil registrou o maior número de mortes da pandemia, um dia de luto nacional, foi saborear um banquete com direito a leitão, cerveja e gargalhadas.

Pelo amor que tenho a este país, prefiro pensar que os raios e ameaças do militar frustrado sejam apenas um sinal de sua fragilidade, que acabará se desmanchando como uma bolha de sabão. Só então o Brasil voltará a respirar o ar puro de sua natureza, hoje martirizada e desprezada por ele.

Quando cruzo com um brasileiro, prefiro ver no fundo de seus olhos as imagens de suas origens povoadas pelas belezas naturais de suas florestas e o reflexo de seus mares e rios cristalinos.

O Brasil leva o nome de uma árvore da selva, essa que hoje Bolsonaro tenta transformar em um deserto perante o espanto do mundo. Quem rege os destinos deste país parece, mais que um brasileiro, alguém chegado de um planeta de espinhos e pedras.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente. / Artigo publicado originalmente no EL PAÍS, em 06.003.2021.

Em entrevista em inglês à BBC, Doria diz que Bolsonaro é 'um cara louco' e não comenta eleição de 2022

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou que o presidente Jair Bolsonaro é "um cara louco" durante entrevista em inglês ao BBC World News, canal internacional de notícias da BBC, na noite de quinta-feira (4/3).


Doria falou de um palanque com a hashtag em inglês WeNeedVaccines, ou PrecisamosDeVacinas.

"Ele é um cara louco. Hoje mais cedo, Bolsonaro atacou governadores e prefeitos que foram comprar vacinas e ajudar o país a acabar com essa pandemia. Ele disse que temos de ser fortes, que deveríamos parar de chorar e enfrentar o problema. Como podemos enfrentar o problema vendo pessoas morrerem todos os dias?", disse Doria ao apresentador Lewis Vaughan Jones.

‘Dói demais ver as crianças morrendo sem poder ver os pais’, diz pediatra de UTI de covid-19

Cresceu muito o número de jovens em estado grave, e temos de escolher quem vai pra UTI, diz diretor da Santa Casa de Porto Alegre

"O negacionismo do presidente Jair Bolsonaro contribui para isso", continuou, afirmando que o sistema de saúde brasileiro está à beira do colapso.

De máscara, Doria falou de um palanque com a hashtag em inglês WeNeedVaccines, ou PrecisamosDeVacinas.

"Faltam vacinas, seringas e leitos de UTI. Não há coordenação nacional para combater a pandemia no Brasil. O sr. Bolsonaro continua enfraquecendo os protocolos de saúde, tornando mais difícil acabar com essa pandemia. Na verdade, só está piorando."

Bolsonaro continua tornando mais difícil acabar com pandemia, disse Doria

O governador continuou: "Infelizmente, o Brasil tem de enfrentar dois vírus no momento: o coronavírus e o 'Bolsonarovírus'. Uma tristeza para os brasileiros".

Confrontado com a posição do presidente, verbalizada pelo apresentador, de que as medidas de prevenção contra o coronavírus podem cobrar um preço da economia e da saúde mental da população, Doria respondeu que "antes de salvar a economia, temos que salvar vidas".

O governador se esquivou quando o apresentador perguntou se ele não estaria "jogando o jogo de Bolsonaro" ao fazer da crise algo político, e passou a exaltar as medidas tomadas por seu governo durante a pandemia.

O governador também não respondeu se concorrerá contra Bolsonaro em 2022: "Precisamos salvar vidas, não é hora de discutir eleições no Brasil".

BBC News Brasil, em 06.03.2021

Cartório oculta dados de Flávio Bolsonaro em escritura pública da casa de R$ 6 milhões

 Titular do estabelecimento admite ao ‘Estadão’ ser a primeira vez que esconde informações que deveriam ser públicas; advogada afirma que ato descumpre a lei

 O cartório onde o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) registrou a compra de uma casa de R$ 6 milhões em Brasília escondeu informações da escritura pública do imóvel, documento com os dados do negócio que deveria ser acessível a qualquer pessoa que o solicitar. O ato, do 4.º Ofício de Notas do Distrito Federal, contraria a prática adotada em todo o País e representa tratamento diferenciado ao filho do presidente Jair Bolsonaro, segundo especialistas consultados pelo Estadão. As leis que tratam da atividade cartorial não preveem o sigilo. 

Na cópia da escritura obtida pela reportagem no cartório, que fica em Brazlândia, região administrativa a 45 km de Brasília, há 18 trechos com tarjas na cor preta. Foram omitidas informações como os números dos documentos de identidade, CPF e CNPJ de partes envolvidas, bem como a renda de Flávio e da mulher, a dentista Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro. 

Para comprar o imóvel, o filho “01” de Bolsonaro financiou R$ 3,1 milhões no Banco de Brasília (BRB), com parcelas mensais de R$ 18,7 mil. Como revelou o Estadão, as prestações representam 70% do salário líquido de Flávio como senador – R$ 24,7 mil. Outras duas escrituras de imóveis em nome da família Bolsonaro obtidas pela reportagem no mesmo dia, mas em cartórios distintos, foram fornecidas sem qualquer tarja. Uma delas do próprio presidente da República. 

Procurado, o titular do cartório, Allan Guerra Nunes, disse ao Estadão que tomou a medida para preservar dados pessoais do casal. Em um primeiro contato, ele não soube explicar em qual norma embasou sua decisão. Mais tarde, em nota, Nunes afirmou que as informações são protegidas pela Lei 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras. A regra, porém, não se aplica a cartórios de notas. “Ele (Flávio) não me pediu nada. Quem decidiu colocar a tarja fui eu. Quando eu fui analisar o conteúdo da escritura, acidentalmente tem essa informação da renda”, disse Nunes. 

Presidente da Associação dos Notários e Registradores do Distrito Federal (Anoreg-DF), ele não explicou a razão de também ter omitido números de documentos de identificação pessoal. “Se hoje me pedirem cópia de escritura com financiamento bancário eu vou omitir os dados da pessoa”, afirmou o cartorário, que admitiu nunca ter incluído tarja em escrituras públicas antes. “Não há nenhum tratamento privilegiado, de maneira alguma.” 

Nos 299 artigos da Lei de Registro Público, não há previsão de sigilo de informação, seja pessoal, bancária ou fiscal. A advogada Ana Carolina Osório, especialista em direito imobiliário, vê tratamento privilegiado a Flávio neste caso. “Não existe embasamento para se colocar tarja nessas informações. A publicidade é um dos princípios basilares do direito registral. O cartório tem o objetivo claro de proteger, digamos assim, os dados do Flávio Bolsonaro, porque é um documento público e as informações ali são de interesse de quaisquer interessados”, avaliou. “Diferente seria se estivéssemos divulgando a informação de renda prevista no Imposto de Renda, por exemplo.” 

O tabelião Ivanildo Figueiredo, titular do 8º Tabelionato de Notas do Recife e professor de Direito Notarial na Faculdade de Direito do Recife, disse ao Estadão que a Lei nº 6.015, de 1973, que trata dos registros públicos, prevê a publicidade de todos os atos, como escrituras. "O tabelião  não tem nenhuma função de censura", afirmou Figueiredo ao Estadão.

O senador Flavio Bolsonaro (Republicanos-RJ) Foto: Dida Sampaio/Estadão (24/2/2021)

"Se a parte vai ao cartório e faz um ato público, esse ato é público. Qualquer pessoa pode pedir cópia desse documento. Qualquer pessoa pode ter acesso ao conteúdo desses atos. O dever é entregar a certidão como está no livro, não pode censurar", disse ao Estadão. "O único ato que tem alguma restrição são testamentos", ressalvou. Ainda segundo o tabelião, deixar de prestar as informações integrais pode configurar violação aos deveres funcionais dos notários e dos oficiais de registro. Pela lei, entre as punições para violação ao dever funcional estão a aplicação de multa, suspensão, e até a perda da delegação, nos casos mais graves.

Em outra medida que contraria a norma vigente, o 4.º Ofício de Notas ainda requisitou que o pedido da cópia da escritura fosse formalizado por e-mail com a informação sobre o motivo da solicitação do documento. Pela Lei de Registros Públicos, isso não é necessário. “Qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido”, diz o trecho da lei. 

Questionado sobre a omissão das informações, a corregedoria do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, a quem cabe fiscalizar a atividade dos cartórios, não se manifestou. Em nota, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil afirmou ser “responsabilidade do notário/registrador avaliar no caso concreto os preceitos legais de acesso à informação”. 

Nesta semana, Flávio disse que o negócio foi “transparente” e que usou “recursos próprios” e um financiamento para comprar a casa. 

Breno Pires e Rafael Moraes Moura, O Estado de São Paulo, em 05.03.2021