sábado, 6 de março de 2021

Miguel Reale Júnior: Presidente de cemitério

O Ministério Público, a Câmara e o Senado precisam cumprir o dever de salvar o País

Em que momento a considerável parcela da população que ainda acorre às aglomerações ilícitas provocadas pelo presidente vai se dar conta de estar, em crença fanática, a louvar um perverso para quem o medo da morte por asfixia é “mimimi”? Até quando o Brasil será conduzido pelo quarto cavaleiro do apocalipse?

Bolsonaro não é presidente para administrar o País, mas tão só para se reeleger em 2022, seu único interesse, mesmo que venha a ser apenas presidente do cemitério. Jamais assumiu a liderança do enfrentamento da covid-19, preocupado só em atribuir a crise econômica e a perda de empregos a governadores e prefeitos, para se livrar dessa responsabilidade e angariar votos.

Bolsonaro, absolutamente indiferente ao crescente número de mortos, muitos sem oxigênio ou nos corredores por falta de leitos em UTIs, passeia pelo País sem máscara, promovendo aglomerações, nunca se compungindo diante da dor ou visitando algum hospital. Somente mandou sequazes invadir hospitais para flagrar ser mentira sua superlotação!

Continuamente conspirou contra a importância da vacina, cuja pressa em obtê-la ridicularizou, proclamando mentirosamente haver efeitos colaterais nocivos, desorientando a população.

Os obstáculos ao combate ao vírus não se limitaram aos maus exemplos. Deixou de adquirir, em julho, vacinas Coronavac e da Pfizer, impôs vetos de verbas e ignorou a cooperação com Estados e municípios na precaução e reação contra a doença, como ressalta estudo realizado pela Universidade de São Paulo, por meio do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública, em conjunto com a Conectas Direitos Humanos (Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil, em https://www.conectas.org/publicacoes/download/boletim-direitos-na-pandemia-no-3).

Esse estudo revelou a existência de uma “estratégia institucional de propagação do vírus”, entendendo ser “razoável afirmar que muitas pessoas teriam hoje” a mãe, o pai, irmãos e filhos vivos “caso não houvesse esse projeto institucional”. Conclui-se, então, não haver tão só incompetência e negligência, mas “empenho em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.

A comprovar tal conclusão, verifica-se que, de R$ 24 bilhões disponíveis no Orçamento para compra de vacinas, apenas R$ 2 bilhões foram gastos em 2020 (Folha de S.Paulo, 1.º/3, pág. A13). Tão grave quanto isso foi o corte de financiamento de leitos de UTI nos Estados para atendimento a pacientes com covid-19, que o STF acaba de mandar seja realizado (Estado, 1.º/3, A12).

Ao pôr a ambição política acima da proteção da saúde de seu povo, Bolsonaro revela egocentrismo incompatível com a permanência como primeiro mandatário, pois brasileiros foram lançados, por sua insensibilidade, na tragédia que a OMS reconhece estar instalada entre nós.

Quatro ex-ministros da Saúde clamam por um governo de salvação nacional ou pela criação de um gabinete de crise que dirija e coordene o enfrentamento da pandemia, sob o risco de afundarmos definitivamente na desgraça. Como fazer?

Há meio breve, justo e correto, já aventado antes por vários juristas. Ao Ministério Público, que tem por missão a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais, entre eles o da saúde, cumpre promover, em face desses fatos, ação penal por crimes contra a saúde pública e contra a paz pública, o primeiro previsto no artigo 268 do Código Penal: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.

Ademais, o estimular a população a se aglomerar, não usar máscara e não se vacinar, o presidente incita-a a praticar o crime acima mencionado, configurando-se, então, o delito do artigo 286 do Código Penal: “Incitar, publicamente, a prática de crime”. Ou seja, compele a se infringir determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa.

Há, evidentemente, dois desafios: 1) fazer o procurador Aras sair de seu imobilismo, sendo essencial a pressão da sociedade e de colegas procuradores; e 2) a Câmara dos Deputados, ciente da gravidade do momento, aceitar a denúncia, afastando o presidente, para o vice, em governo de união nacional, atuar em prol da salvação de nossa gente.

Outra forma seria a assunção da condução da área da Saúde pelo Congresso Nacional, via CPI ou promovendo o impeachment do ministro (artigo 14 da Lei n.º 1.079/50), cabendo ao novo titular da pasta atuar em conjugação com secretários de Saúde dos Estados.

A sociedade civil organizada, hoje silente, deve se manifestar por via de suas inúmeras entidades, exigindo que Ministério Público (competente, sim, para processar o presidente, como o fez contra Temer), Câmara dos Deputados e Senado cumpram o dever de salvar o País. Mexa-se, Brasil!

Miguel Reale Júnior é Advogado, Professot Titular Sênior da Faculdade de Direito da ISP, membro da Academia Paulista de Letras. Foi Ministro da Justiça. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 06.03.2021.

Bolívar Lamounier: Temos um governo genocida?

Bolsonaro não tem estatura para isso. Sinais de insanidade já dá – e não são poucos

Disseminar um vocábulo raramente usado no Brasil, como genocídio, é uma proeza. Jair Bolsonaro conseguiu, hoje tal vocábulo aparece nas redes sociais praticamente todo dia.

É certo que o termo é empregado para xingar o próprio Bolsonaro. Muita gente se vale dele para afirmar que o Brasil tem atualmente um presidente genocida. Dito assim, mesmo reconhecendo que algo há de verdade, devemos convir que se trata de um enorme exagero. Bolsonaro não tem estatura para carregar um peso desses. O que ele tem feito, dia sim e outro também, é sabotar o trabalho dos agentes de saúde no combate à covid-19, atrapalhando ação dos governadores e prefeitos, formando aglomerações e até criticando o uso de máscaras.

Lá atrás, em sua fase mais cômica, aventurou-se na charlatanice médica, receitando remédios que liquidariam o coronavírus num abrir e fechar de olhos. Hoje, parece-me inegável que ele é culpado por uma parcela dos 260 mil óbitos já registrados, mas não tenho, e penso que ninguém tem, como estimar a quanto monta tal parcela. Cabe, portanto, a suposição de que ele tem responsabilidade por certo número de mortes, mas daí a designá-lo como genocida vai uma longa distância.

Onde tem fumaça, tem fogo. A questão é séria e deve ser debatida, mas sem partir de cara para o exagero. Genocídio, como já sugeri, é uma coisa muito maior. Briga de cachorro grande. Se nossa intenção é compreendê-la e chegar a uma avaliação plausível do papel de Jair Bolsonaro, é indispensável começar pelo começo. Pelo conceito e por alguns exemplos históricos.

O termo baseia-se em dois componentes fundamentais. O primeiro, uma matança em larga escala, a intenção de exterminar todo um povo ou toda uma etnia, não necessariamente porque ela tenha feito alguma coisa, mas pelo simples fato de que ela existe, extermínio a ser conduzido com o máximo concebível de atrocidade. Segundo, tal matança compõe-se de ações conscientes, uma ordem premeditada e levada a cabo por um governo, um partido ou um órgão qualquer que tenha poder para tanto.

Historicamente, a ideia (mas não necessariamente o termo) genocídio remonta à Revolução Francesa e, especificamente, à guerra da Vendeia. Católica e monarquista, uma parte dos habitantes daquela província francesa reagiu violentamente à execução do rei Luís XVI, em fevereiro de 1793. No transcurso de dois anos, o confronto evoluiu para a guerra civil, levando os comandantes militares da revolução (o chamado Comitê de Salvação Pública, Robespierre à frente) a recorrer indiscriminadamente ao terror. Esse é o tempo das noyades (afogamentos coletivos, principalmente de mulheres e crianças, no rio Loire). O confisco de alimentos, a fim de sujeitar a população à morte pela fome.

Nesse quadro de absoluta insanidade, o nome que logo vem à mente é o de Jean-Baptiste Carrier, organizador do “trabalho de campo”, o mais demente dos dementes que chegaram ao poder com a revolução. A ideia passou a ser aniquilar toda a população daquela região. Gracchus Babeuf, autor da primeira narrativa circunstanciada dos fatos, deu-lhe o expressivo título de A guerra na Vendeia e o sistema de despopulação.

Stalin provavelmente não conhecia os detalhes do que ocorrera na França, mas levou a cabo com intensidade ainda maior o projeto de “matar por inanição”, vale dizer, de fome, como forma sistemática de terror, imposto à Ucrânia no inverno de 1932-33. Confisco geral de todos os alimentos, levando à morte pelo menos 3 milhões de indivíduos, muitos deles até a prática do canibalismo. Em ucraniano, o termo Homolodor significa exatamente isso, matar por inanição, e é o título de um magnífico filme ucraniano disponível no YouTube. Mas, como sabemos, a insanidade sempre pode aumentar.

A partir de 1942, trens lotados de judeus, ciganos e outras etnias começaram a ser descarregados na estação de Birkenau, na Polônia. Os passageiros (se assim os podemos chamar) passavam por uma triagem, sendo os mais fortes mandados para o trabalho forçado e os fracos, doentes, bem como as mulheres e crianças, para as câmaras de gás e os fornos crematórios. O saldo é bem conhecido: o Holocausto, no qual pereceram cerca de 6 milhões de judeus.

Carreguei bastante nas tintas para sublinhar o que afirmei no início: Bolsonaro é, se tanto, uma partícula minúscula na história dos genocídios. Dá-se, entretanto, que os conceitos precisam ser repensados à medida que as instituições humanas e a História avançam.

No século 18, bastava um salto para se passar de A a Z: de uma relativa normalidade para o terror. No século 21, com o País afundando numa pandemia terrível, um presidente que entretém seus convidados do almoço com gracejos e ataca a imprensa no preciso momento em que ela cumpre o seu dever, informando que chegamos aos 260 mil mortos, por certo não chegou ao Z, mas já saiu do A. Quando coloca seu interesse eleitoral a léguas do interesse público, deu mais alguns passos. Sinais de insanidade já está dando – e não são poucos.

Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Augurium Consultoria. Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 06.03.2021.

sexta-feira, 5 de março de 2021

PDT pede ao STF a interdição de Bolsonaro


Carlos Lupi, presidente nacional do PDT, e Ciro Gomes, vice-presidente do partido, vão entrar, no STF, com ação judicial de interdição de Bolsonaro | Aílton de Freitas / Foto de arquivo. 

"O documento mostra a incapacidade de Bolsonaro para seguir como presidente. O objetivo da ação judicial é o de impedir as ações negacionistas, que multiplicam as mortes por Covid-19. Temos inúmeras provas  (entre elas, as declarações "chega de frescura, de mimimi , vão ficar chorando até quando?" e "vai procurar vacina na casa da sua mãe"). Eu acho que ele é louco e precisa ser interditado antes que mais brasileiros morram por sua loucura", diz Carlos Lupi.

Para Lupi, o volume de mortes de Covid-19, desde o começo de 2020, foi diretamente potencializado por Bolsonaro. O pedetista destaca ainda, como exemplo, o atraso do plano nacional de imunização.

Ana Cláudia Guimarães / O Globo, em 05.03.2021

Guedes diz que, por 'infelicidade', Bolsonaro não deixou claro problema da saúde e vacinação

Ministro defendeu a vacinação em massa ao falar sobre o agravamento da pandemia e disse que governo não pode 'deixar a economia se desorganizar'

Ao defender a vacinação em massa, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o presidente da República Jair Bolsonaro por “infelicidade” não deixou claro sua preocupação com "o problema da saúde e vacinação".

“Nós não podemos deixar a economia se desorganizar, é muito importante isso. Essa mensagem que o tempo inteiro o presidente tem tentado passar também que, talvez, por infelicidade, não deixou claro o problema da saúde, da vacinação em massa”, disse Guedes ao dar entrevista sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) emergencial, que autoriza uma nova rodada do auxílio. O texto foi aprovado pelo Senado esta semana e deve ser analisado na semana que vem pela Câmara.


O presidente sempre falou, a economia e a saúde andam juntas', disse Guedes. Foto: Gabriela Biló/Estadão

“Mas a agonia dele com a economia é a seguinte: se você der o auxílio, chegar lá, a prateleira estiver vazia, todo mundo com dinheiro na mão, a inflação, falta de alimentos… Então temos que manter os sinais vitais da economia funcionando, como fizemos no passado”, disse.

Guedes defendeu a imunização contra a covid-19 para evitar nova queda economia, diante da “tragédia que voltou a nos atingir” ao falar sobre o agravamento da pandemia.

Na quinta-feira, 4, Bolsonaro demonstrou irritação com aqueles que cobram em redes sociais que o governo federal compre vacinas contra a covid-19, chamando-os de idiotas e dizendo que só poderia comprar imunizantes "na casa da tua mãe".

“Isso é a coisa mais importante que nós temos agora. O presidente sempre falou, a economia e a saúde andam juntas. Então, é a vacinação em massa, se não a economia não sustenta, ela volta a cair ali na frente”, disse Guedes, após se reunir com o relator da PEC, deputado Daniel Freitas (PSL-SC).

Sobre a PEC, Guedes afirmou que é o Congresso quem dá o direito do governo gastar. “O programa já estava pronto, já sabemos como tínhamos que agir, mas ao mesmo tempo precisávamos dessa licença”, disse. “Como disse o deputado Daniel Freitas, a coisa está relativamente bem encaminhada”, disse. 

Ele não quis entrar em detalhes sobre quais seriam outros próximos passos, mas disse que a PEC restabelece um protocolo de enfrentamento da crise. “Nós enfrentamos a primeira vez, estamos sendo relativamente bem sucedidos”, afirmou citando que a economia brasileira foi uma das que menos caiu durante a pandemia em comparação a outros países. Para ele, é preciso manter os sinais vitais da economia funcionando.

Guedes fez elogios ao Congresso e citou a aprovação do projeto de autonomia do Banco Central. “Foi aprovado o Banco Central independente para impedir que aumento setoriais e transitórios de preço se transformem em alta generalizada e permanente de preços, que é o que a gente chama de inflação”, disse.

“Eu acho que nós precisamos de um espírito construtivo, nós temos que construir juntos, é um compromisso construir o Brasil, eu tenho dito que essa briga política, essa guerra sem fim, não vai nos ajudar a chegar no melhor lugar”, afirmou. 

Camila Turtelli, Idiana Tomazelli e Matheus de Souza para O Estado de São Paulo, em 05 de março de 2021.

Bolsonaro repete tática da chacota para mobilizar radicais e desviar atenção

Presidente testa de novo estratégia que até agora tem sido eficaz para manter sua popularidade em torno de 25%. A seu favor, Planalto tem ainda cúpula do Congresso. No entanto, atraso na gestão da vacina pode cobrar preço econômico e mudar jogo com empresários e investidores

O presidente Jair Bolsonaro durante inauguração de trecho da ferrovia Norte Sul em São Simão (GO).ALAN SANTOS/PR

O presidente Jair Bolsonaro voltou a investir na sua política de confronto e de discursos diversionistas assim que confrontado com situações incômodas. O mandatário brasileiro dobra a aposta chamando de “frescura” e “mimimi” as práticas de distanciamento social quando há um recrudescimento da pandemia com mais de 1.600 mortos ao dia e após aumentarem as cobranças de governadores e prefeitos por uma coordenação nacional no combate à covid-19. O ultradireitista choca e atrai para si os holofotes na semana em que seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), investigado por lavagem de dinheiro, comprou uma mansão de 6 milhões de reais em Brasília. Nem tudo, porém, cabe no script do ultradireitista. Diante da volta dos panelaços nas grandes cidades contra seu Governo, ele desistiu por dois dias seguidos de fazer um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão. E, apesar de ironizar a vacinação, tenta agora recuperar o tempo perdido para a compra dos fármacos sob a pressão de empresários que contam com imunização em massa para fazer a economia escapar de nova retração.

Nesta quinta-feira, Bolsonaro disse que quem defendia medidas restritivas de circulação de pessoas como uma das principais armas para conter o avanço da pandemia estava de “mimimi”. Na prática, retomou o discurso de um ano atrás, quando tentou emplacar a tese de que um isolamento social vertical, no qual apenas os grupos de risco se trancam em casa, seria o mais adequado para a sociedade brasileira. “Nós temos que enfrentar os nossos problemas, chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos de enfrentar os problemas. Respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades, mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?”, afirmou o presidente Bolsonaro durante um discurso em Goiás. A chacota contra as recomendações sanitárias ignora o sofrimento dos familiares e amigos de 260.970 pessoas que morreram de covid-19 no Brasil nos últimos doze meses.

Desde meados de fevereiro, diversos Municípios e Estados brasileiros passaram a intensificar políticas de distanciamento social, com o fechamento do comércio e escolas para conter a circulação da população e frear a circulação do coronavírus, já que ainda não há vacinas para todos os brasileiros. Menos de 5% da população foi vacinada no país. Com o discurso contrário, Bolsonaro tenta empurrar para prefeitos e governadores o custo político de medidas impopulares, além de atrapalhar as campanhas de conscientização pelo isolamento social.

Para um conjunto de juristas e segundo uma pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da USP e da Conectas Direitos Humanos, Bolsonaro implementa uma política deliberada para sabotar ações contra a pandemia, e deveria ser punido penal e politicamente por isso. O presidente, porém, segue escudado por uma fisiológica base de apoio no Congresso Nacional ―recentemente reforçada por sua bem-sucedida operação ajudar a eleger a nova cúpula do Parlamento― que dificilmente apoiará um dos 60 processos de impeachment. Também conta, até agora, com um Procuradoria-Geral da República que não enxerga irregularidades em seus atos.

Seja como for, o presidente, contudo, tem tomado alguns cuidados. Ao mesmo tempo em agita sua extremista base de apoio, ele libera os seus subordinados a minimamente agirem contra a pandemia, sob pena de ver a economia naufragar e seus adversários políticos surfarem demais. Depois de o presidente e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, criticarem por dois meses as exigências feitas pela farmacêutica Pfizer, o Governo Federal decidiu avançar nas tratativas para a compra de 100 milhões de doses do imunizante dela até dezembro deste ano. O primeiro lote seria entregue em maio. Se aceitasse o contrato no passado, o país já teria recebido 70 milhões de doses em dezembro.

A corrida global pela vacina não é simples e o Planalto começa a colher reveses. Nesta quinta, ao conversar com apoiadores em Uberlândia (MG), ele reclamou das cobranças que recebe para adquirir os imunizantes. “Tem idiota nas redes sociais, na imprensa, [que fala] ‘vai comprar vacina’. Só se for na casa da tua mãe! Não tem para vender no mundo!”. É bem distinto da fala feita em 28 de dezembro do ano passado, quando afirmou que eram os vendedores quem deveriam buscar o governo brasileiro, e não o contrário. “O Brasil tem 210 milhões de habitantes, um mercado consumidor de qualquer coisa enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente? Por que eles não apresentam documentação na Anvisa?”, indagou a um grupo de apoiadores no Palácio da Alvorada. “Pessoal diz que eu tenho que ir atrás. Não, quem quer vender (que tem). Se sou vendedor, eu quero apresentar”, completou.

Jogo até 2022

A fórmula caótica de Bolsonaro tem lhe rendido lucros mínimos. Se ainda não tem ameaças graves no campo político um dos motivos é justamente a sua popularidade, com índices superiores a 25%. Além de ser um patamar considerado alto para que um presidente seja tido como descartável pelo mundo político, isso também quer dizer que, caso a eleição presidencial fosse hoje, muito provavelmente Bolsonaro estaria em um segundo turno. “As variáveis que tornaram possíveis a ascensão do bolsonarismo foram a crise econômica do Governo Dilma Rousseff [PT] combinada com a Operação Lava Jato. Esse movimento não se dissipa de um dia para o outro”, avalia o cientista político Antônio Lavareda, do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (IPESPE), que produz levantamentos frequentes atualmente para a corretora de investimentos XP.

Na visão de Lavareda, no entanto, a disputa eleitoral de 2022 pode mudar a equação porque acabará colocando quatro temas na mesa, todos em que Bolsonaro pouco progrediu: a atuação na pandemia, que tem sido catastrófica; a retomada da economia, ameaçada pela falta de vacinação em massa; o combate à criminalidade violenta; e a redução da corrupção. No mês passado, o levantamento XP-Ipespe mostrou que o presidente patina nos quatro grandes assuntos. Na condução do enfrentamento à pandemia, 53% consideram seu desempenho ruim ou péssimo. Com relação à corrupção, 48% acreditam que há a expectativa de aumentar a prática. Na percepção de 62% a violência e a criminalidade violenta aumentaram. E, para 57%, a economia segue no caminho errado. “A preço de hoje o presidente tem problemas importantes em três desses temas. E perdeu a grande dianteira que tinha no combate à corrupção, por causa de suas alianças atuais, pelo fim da Lava Jato e por causa dos casos mal explicados de seus filhos”, disse Lavareda.

Ao notar esses movimentos, o presidente persiste na radicalização de seu discurso e, como jamais desce do palanque eleitoral, espera confrontar algum adversário do campo da esquerda em um segundo turno. “Ao que parece, o presidente vai precisar ressuscitar os fantasmas de 2018, da corrupção, do descalabro econômico do Governo Dilma e da falsa ameaça comunista”, avaliou o cientista político.

De momento, o custo Bolsonaro não parece incomodar a Câmara dos Deputados, atualmente presidida pelo líder do Centrão e neobolsonarista Arthur Lira (PP-AL). Até agora poucos são os deputados fora do campo da oposição que defendem qualquer tipo de enfrentamento contra o presidente. A nova tentativa de atingir o Governo vem do pedido de criação da CPI do Auxílio Emergencial, que ainda colhe assinaturas para investigar fraudes que atingem o montante de 50 bilhões de reais na concessão do benefício.

Já no Senado, passaram a circular nos últimos dias conversas para que o presidente da Casa, Rodrigo Pachedo (DEM-MG), outro aliado tático de Bolsonaro, autorize a abertura da CPI da Saúde, que tem como objetivo investigar toda a atuação do Governo federal. Pacheco tem buscado argumentos para impedir a abertura desse grupo por entender que a apuração seria contraproducente no momento. Por ora, essa parede ainda protege Bolsonaro.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 04.03.2021

Brasil registra mais 1.800 mortes por covid-19

País também registrou mais 75 mil casos da doença - segunda pior marca desde o início da pandemia. Total de mortes passa de 262 mil

O Brasil ultrapassou registrou nesta sexta-feira (05/03) 1.800 mortes associadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). É a segunda pior marca diária desde o ínicio da pandemia, ficando apenas atrás do recorde de 1.910 mortes registrado na quarta-feira. Também é o quarto dia consecutivo em que a marca fica acima de 1.500 óbitos.

Também foram identificados  75.495 novos casos da doença - segunda pior marca já registrada desde o início da pandemia, só superada pelo registro de 7 de janeiro, quando foram contabilizados mais de 87 mil casos. Outros dias desta semana já haviam registrados marcas acima de 70 mil novos casos.

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 10.869.227, enquanto os óbitos chegam a 262.770.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 9.637.020 pacientes haviam se recuperado até quinta-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 125,0 no Brasil, a 21ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 28,8 milhões de casos, e da Índia, com 11,1 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 522 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 115,9 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,57 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 05.03.2021

Como a pandemia testou as instituições brasileiras

Inércia do governo federal forçou outros pilares da democracia a agirem - e também os colocou à prova como nunca antes. Em livro, especialistas refletem sobre esse legado ainda em construção.


Protesto contra o governo Bolsonaro em Brasília

A postura negacionista e a inação do governo federal no Brasil em relação à covid-19 gerou consequências ímpares na organização do Estado, na burocracia, nas instituições, nas políticas públicas e na comunicação. O Supremo Tribunal Federal (STF) agiu diante da omissão do governo central e mudou jurisprudências sobre o federalismo. Agentes de saúde, médicos e enfermeiros foram forçados a fazer escolhas de maneira autônoma diante de protocolos sanitários distintos e embates entre governadores, prefeitos e um presidente que ignora a ciência. Servidores públicos estão exaustos, com a saúde mental comprometida, e um ano sem férias. A desigualdade social foi escancarada, a disfuncionalidade das instituições reconhecida.

Um ano após o início da pandemia, o Brasil tem o maior número de óbitos por habitantes do mundo, fase aguda de transmissão e risco iminente de colapso da saúde generalizado em todos os estados. Lições desta realidade foram abordadas no livro Legado de uma pandemia: 26 vozes conversam sobre os aprendizados para política, com apoio do Insper (Instituto de Pesquisa e Ensino e da Fundação Brava. Organizado pela economista Laura Muller Machado, professora do Insper, a obra é uma reflexão de pesquisadores do instituto, de Stanford, Harvard e Fundação Getúlio Vargas.

"Havia uma angústia forte e a vontade acadêmica de contribuir", diz Laura Muller à DW Brasil. Segundo ela, o livro, cuja versão digital pode ser acessada gratuitamente no formato e-book, tem como público alvo gestores públicos e políticos.

"Espero que inspire a todos que estão fazendo políticas publicas, nos três Poderes, para que elas funcionem e sejam eficientes", afirma. Muller assina dois capítulos, com o economista Ricardo Paes de Barros, idealizador do Bolsa Família, que refletem sobre os aprendizados com as desigualdades social e intergeracional (investimento público infinitamente superior em idosos do que em crianças).

"A pandemia não acabou, o mundo não resolveu [os desafios] e todos nós estamos sentindo muito por esse número elevado de mortes. Mas tudo o que está escrito ali já serve sim de legado", justifica, ao ser questionada sobre o nome da obra.

Segundo a professora, há aprendizados que se tornaram sólidos, como a obviedade de se ter, no Brasil, um cadastro social ampliado, "com todas as pessoas, nome, endereço, telefone, o que fazem e o que precisam, é difícil que isso não seja um legado". Sessenta e seis milhões de brasileiros se cadastraram para receber o benefício pago a famílias carentes e profissionais informais que ficaram sem renda na pandemia. "É preciso um cadastro para dar luz aos invisíveis."

Os efeitos na burocracia brasileira
Especialistas em gestão pública, os professores Marcelo Marchesini, do Insper, e Gabriela Lotta, da FGV, analisam os efeitos da covid-19 na burocracia brasileira. "A pandemia exacerba problemas estruturais do Brasil que já existiam e estavam escondidos. Neste sentido, não dá para esperar que a pandemia transforme esses processos estruturais. Mas é um legado que  a pandemia conseguiu nos mostrar. Exemplo: nossos profissionais da linha de frente são muito abandonados. Piorou a situação, mas não foi a pandemia que construiu isso", argumenta Lotta, da FGV, em entrevista à DW.

Ao discutirem os efeitos de uma "gestão pública vigilante", Marchesini e Lotta mostram exemplos de como os servidores públicos tomaram decisões solitárias. "A burocracia assume protagonismo diante da disfuncionalidade dos agentes políticos, da falta de capacidade de respostas, da perda de legitimidade do governo no momento em que respostas de políticas públicas se faziam tão necessárias. É um caráter de burocracia vigilante, muitas vezes exercendo a discricionariedade para fazer escolhas que limitam ou contradizem as escolhas formais e oficiais dos agentes políticos", explica Marchesini.

E como saber se a decisão discricionária do servidor é a melhor para a sociedade? De acordo com Gabriela Lotta, é preciso ter os resultados como métrica. Sempre que há esse conflito, "do governante querendo governar, e o burocrata querendo ser autônomo, defendendo as suas próprias ideias", instituições funcionais encontram uma solução, "em democracias mais fortes e estáveis". "Mas quando você tem um governante que não governa com normalidade democrática e com instituições que não funcionam bem, se perde esse equilíbrio. Ou a burocracia se autonomiza excessivamente e perde sua capacidade de controle, ou você tem um governante que muda as instituições a seu bel prazer e não é responsivo, e a burocracia não consegue impor a legalidade", explica a pesquisadora.

Os dois professores sugerem, ainda, que os gestores públicos olhem para a saúde mental dos profissionais que estão na linha de frente de combate à covid-19. Uma das recomendações é que profissionais do setor de saúde mental sejam deslocados para dar suporte terapêutico a médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem.

O papel do Supremo

Outro efeito analisado no livro aborda o papel do Supremo. No capítulo "Covid-19, federalismo e descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual?", os professores de direito do Insper Natalia Pires de Vasconcelos e Diego Werneck Arguelhes pontuam que "a covid-19 provocou uma ampliação do espaço de atuação de estados e municípios", pois o Supremo, ao julgar conflitos federativos, "não seguiu a tendência de centralização e uniformização, característica de sua jurisprudência".

Sem planejamento nacional e de engajamento do governo federal no combate à pandemia, o STF agiu para que decisões de governadores e prefeitos pudessem proteger a população. "O que a pandemia ensina para a gente é que o contexto importa. Embora a Constituição dê esse poder forte nas mãos da União, se trata de um poder-dever. A União pode agir, mas ela tem que agir. O contexto da pandemia foi isso: se você não age, e se você não deixa agir, aí o Supremo vai mexer nessas válvulas e garantir mais espaço para a atuação dos Estados e municípios”, afirma Werneck à DW.

Segundo ele, se Jair Bolsonaro tivesse adotado medidas restritivas, seguindo orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e respeitando protocolos sanitários internacionais, "talvez o STF tivesse reconhecido mais espaço para a União". O Supremo entendeu, na visão de Werneck, que o presidente do Brasil se coloca numa posição radical, "fora da divergência razoável". "A linguagem da ciência, da expertise técnica, vem com muitas força nessas decisões dos ministros do STF."

O Supremo jamais impediu o governo federal de agir, enfatiza ele, mas Bolsonaro se apropria desta narrativa desfavorável à corte. E, nesta guerra de narrativas, o presidente tem muito mais poder do que os ministros do STF. "O presidente diz isso o tempo inteiro, que o Supremo o impediu de agir, mas nós mostramos exatamente o contrário: o Supremo empoderou outros atores por falta de medidas compatíveis com o que o tribunal considerava o mínimo necessário contra a doença", afirma Werneck.

Deutsche Welle Brasil, em 05.03.2021

"Brasil precisa levar pandemia a sério", diz OMS

Organização da Mundial da Saúde - OMS diz que situação  no Brasil é "muito preocupante" e pede que governo tome medidas "agressivas". Do contrário, país vai afetar vizinhos e até nações fora da América Latina.

Praia lotada no Rio de Janeiro. Parte significativa da população não tem seguido medidas de distanciamento - muitas vezes com incentivo do governo federal

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou nesta sexta-feira (05/03) que o avanço da pandemia de covid-19 no Brasil é "muito preocupante" e instou o governo federal a tomar medidas "agressivas". "O Brasil deve levar esta luta muito a sério", disse Ghebreyesus, acrescentando que são fundamentais medidas para interromper a transmissão.

"Se o Brasil não agir de forma forte vai afetar todos os vizinhos e além. Não é sobre o Brasil. Medidas de saúde sérias são muito importantes", disse, citando o "aumento contínuo" de casos em fevereiro, mas também do número de mortes. Nesta semana, o Brasil registrou um novo recorde diário de mortes por covid-19 e seguidas marcas de mais de 1.500 óbitos por dia. Também registrou um novo recorde de novos casos da doença nesta sexta-feira. A rede de saúde de vários estados está à beira do colapso.

Na mesma linha de Tedros, Mike Ryan, principal especialista em emergências da OMS, disse que "agora não é hora de o Brasil ou qualquer outro lugar relaxar".

"Achamos que já saímos disto. Não saímos", disse Ryan. "Países regredirão para um terceiro e um quarto surto se não tomarmos cuidado. A chegada da vacina traz esperança, mas não devemos achar que o pior já passou. Isso só faz o vírus se espalhar mais", disse.

Mesmo diante desse quadro, o governo de Jair Bolsonaro tem agido para enfraquecer medidas de isolamento impostas por estados e municipios, alegando que isso prejudica a economia. Nesta semana de recordes de mortes, Bolsonaro afirmou que é preciso parar de "frescura" e "mimimi" em meio à pandemia e perguntou até quando as pessoas "vão ficar chorando?". Ele ainda chamou de "idiotas" as pessoas que vêm pedindo que o governo seja mais ágil na compra de vacinas.

Ao longo da pandemia, Bolsonaro minimizou frequentemente os riscos do coronavírus, além de promover curas sem efiácia e tentar sabotar iniciativas paralelas de vacinação lançadas em resposta à inércia do seu governo na área.

Deutsche Welle Brasil, em 05.03.2021

Às vítimas: ‘para que pânico?’ A médicos: ‘Chega de frescura!’ A parentes: ‘Vão chorar até quando?’

Em vez de pular de palanque em palanque, o presidente Jair Bolsonaro poderia ir ao Rio Grande do Sul e à Bahia, que estão contratando contêineres refrigerados para acomodar corpos

O presidente Jair Bolsonaro disse que não se pode combater o vírus “de forma ignorante, burra, suicida”, mas, um ano e 260 mil mortes depois, não diz como deve ser, não dá nenhuma pista do seu “plano” nem anuncia quando irá de Estado a Estado, para dar uma bronca em pacientes, parentes, médicos, enfermeiras e funcionários de hospitais. “Para que pânico?” “Chega de frescura, de mimimi!” “Vão chorar até quando?” 

Poderia começar pelo Paraná, demonstrando impaciência e pedindo paciência às 800 pessoas com covid-19 que estão à espera de leitos de UTI ou da morte: “Para que pânico?” Depois, dar uma passadinha por Santa Catarina, para reclamar com mães, pais, irmãos, maridos, mulheres e filhos das dezenas de vítimas que morreram sem conseguir vaga na UTI: “Vão chorar até quando?” 

Em vez de pular de palanque em palanque, provocando ilusão e aglomeração, o presidente poderia dar uma esticada ao Rio Grande do Sul e à Bahia, que estão contratando contêineres refrigerados para acomodar corpos. Cara a cara, gritaria para médicos e enfermeiros enfrentarem o problema “de frente” e pararem com esse mimimi, só porque assistem, impotentes, exaustos, a mais e mais pessoas morrendo dia e noite. “Chega de frescura, de mimimi!” 

O presidente Jair Bolsonaro diante de aglomeração na cidade de São Simão, em Goiás, nesta quinta, 4 Foto: Alan Santos/PR

Essa gente não consegue entender que é só uma gripezinha e que está no finalzinho. E daí? Todo mundo vai morrer mesmo. O que o presidente pode fazer, coitado? O STF não deixa, os governadores só falam em isolamento e os idiotas querem vacina. Ele não é coveiro. E tem uma leitoa pururuca deliciosa esperando. Tchau! 

Com recordes diários, sistemas de saúde e funerários à beira do colapso, os governadores enfrentam tanto a pandemia quanto a resistência dos bolsonaristas ao lockdown e às medidas restritivas, enquanto as vacinas não vêm. Bem atrasado, o general da Saúde anuncia a Pfizer e a Janssen, mas a guerra é contra o tempo: quanto mais a vacinação demora, mais o vírus se espalha e gera novas variantes. O risco é se tornarem resistentes às vacinas já disponíveis. 

Não adianta ter restrições em São Paulo e não no Rio, no Paraná, e não em Santa Catarina, só no Ceará e Bahia, no Nordeste, e não no Amazonas, no Norte. E isso vale para o mundo. Se vários países fizerem tudo certo e o Brasil continuar fazendo tudo errado, pode se tornar o celeiro exportador de novas variantes e uma ameaça planetária. Mimimi? 

Se autoridades brasileiras seguiram o “Deus” Donald Trump e acusaram a China de ter intencionalmente criado o vírus e provocado a pandemia, que tal agora Pequim pagar na mesma moeda e acusar o presidente do Brasil de deixar o vírus correr solto, se multiplicar e sofrer mutações para destruir a humanidade? 

Na pandemia, o Brasil vive uma tragédia. Na economia, acaba de sair da lista dos dez países mais ricos do mundo, enquanto o presidente afugenta investimentos ao intervir politicamente na Petrobrás e impor constantes humilhações ao ministro Paulo Guedes e estimula tentativas de furar o teto de gastos. 

Não bastasse, Bolsonaro move mundos e fundos, GSI, AGU e as instâncias do Judiciário para bloquear as investigações que atingem o primogênito Flávio Bolsonaro, que se sente à vontade para comprar uma mansão de R$ 6 milhões em plena capital da República, sem explicar de onde vem a grana. O único cuidado foi buscar um cartoriozinho de Brazlândia, bem longe do centro, para esconder as peraltices. 

E não é que a mídia foi lá e descobriu tudo? Além de gerar pânico no País real pela pandemia, a mídia também gera pânico no mundo imaginário onde papai Jair dá de ombros para 260 mil mortos e só pensa em salvar um único pescoço: o do próprio filhote. O grito do senador Tasso Jereissati ecoa no País: “Tem de parar esse cara!”

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal - Pernambuco e do Telejornal GloboNews "Em Pauta". Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 05.03.2021.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Bolsonaro: 'Tem idiota que pede compra de vacina. Só se for na casa da tua mãe'

Presidente, que já recusou ofertas de farmacêuticas interessadas em vender imunizantes ao Brasil, afirma que não tem produto no mercado

O presidente Jair Bolsonaro demonstrou irritação nesta quinta-feira com aqueles que cobram em redes sociais que o governo federal compre vacinas contra a Covid-19, chamando-os de idiotas e dizendo que só poderia comprar imunizantes "na casa da tua mãe".

— Tem idiota nas redes sociais, na imprensa, 'vai comprar vacina'. Só se for na casa da tua mãe! Não tem para vender no mundo! — disparou o presidente a apoiadores em Uberlândia (MG).

Mais tarde, ao participar de cerimônia em Goiás, Bolsonaro classificou como "mimimi" as medidas adotadas por governadores e prefeitos para tentar frear a disseminação do coronavírus, responsável pela morte de mais de 1.900 pessoas somente entre terça e quarta-feira.

Bolsonaro por diversas vezes minimizou a pandemia, chegando a classificar a Covid-19 de "gripezinha" e afirmando que os brasileiros deveriam enfrentar o vírus "de peito aberto" e que o Brasil deveria deixar de ser um "país de maricas".

Ele também, por várias vezes questionou as vacinas, afirmando que não tomará o imunizante, e chegou a comemorar como uma vitória pessoal a breve interrupção dos testes com a vacina CoronaVac, do laboratório chinês Sinovac, feita pelo Instituto Butantan, determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) após a morte de um voluntário em um suicídio não relacionado à vacina.

Bolsonaro também disse que a CoronaVac não inspirava confiança devido à sua origem chinesa e chegou a garantir que o imunizante não seria adquirido pelo governo federal.

Entretanto, o Ministério da Saúde já fechou contrato com o Instituto Butantan, vinculado ao governo do Estado de São Paulo, por 100 milhões de doses da vacina chinesa e negocia a compra de mais 30 milhões.

Além da CoronaVac, imunizante que deu a largada à vacinação contra Covid-19 no Brasil em 17 de janeiro e que já teve 14,45 milhões de doses entregues ao Programa Nacional de Imunização (PNI), o Brasil conta com 4 milhões de doses da vacina AstraZeneca com Universidade de Oxford importadas prontas da Índia.

Essa vacina foi alvo de acordo formalizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligado ao governo federal, para o envase de doses no Brasil, mas com o atraso na chegada do insumo farmacêutico ativo (IFA) importado da China, nenhuma dose da vacina envasada no país foi aplicada pelo PNI até o momento.

Na quarta-feira, mais de um mês após o início da vacinação no país --que chegou a precisar ser interrompida em alguns locais por falta de doses-- o Ministério da Saúde anunciou que pretende adquirir doses da vacina da Pfizer, já registrada pela Anvisa e que foi oferecida à pasta sem resposta no ano passado, e da Johnson & Johnson, que já tem autorização para uso emergencial nos Estados Unidos.

O  Globo, em 04.03.2021

Brasil tem 1,6 mil mortos por covid-19 em 24 horas e total passa de 260 mil

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país

O Brasil acumula um total de 10.793.732 casos de covid-19 e 260.970 pessoas mortas pela doença, segundo boletim do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) divulgado nesta quinta-feira (4/3).

Nas últimas 24 horas, foram registrados oficialmente 1.699 óbitos e 75.102 novos casos da doença.

O Estado com maior número de vítimas fatais é São Paulo (60.694), seguido de Rio de Janeiro (33.466) e Minas Gerais (19.032).

Pelo 11º dia consecutivo, a média móvel em sete dias de mortes pela doença no país cresceu, atingindo 1.353 nesta quinta.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais mortes pela doença em todo o mundo. Ele está atrás apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 519,3 mil óbitos por covid-19, conforme registro da Universidade Johns Hopkins.

BBC News Brasil, em 4.03.2021

"Chega de mimimi", diz Bolsonaro após novo recorde de mortes

Presidente volta a atacar medidas de isolamento social após país registrar mais de 1.900 mortes por covid-19 em 24 horas. "Vão ficar chorando até quando?" Ele ainda chama de "idiota" quem pressiona por mais vacinas.

"Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando?", disse Bolsonaro em meio ao agravamento da pandemia.

O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta quinta-feira (04/03) que é preciso parar de "frescura" e "mimimi" em meio à pandemia e perguntou até quando as pessoas "vão ficar chorando?". Ele ainda chamou de "idiotas" as pessoas que vêm pedindo que o governo seja mais ágil na compra de vacinas.

As declarações ocorrem um dia depois de o Brasil registrar um novo recorde na contagem diária de mortes por covid-19, com 1.910 óbitos. O total de mortes no país já passa de 259 mil, e vários estados vêm registrando colapso no sistema de saúde.

As declarações foram feitas durante um evento que marcou a assinatura de inauguração de um trecho da ferrovia Norte-Sul em São Simão, em Góias, que contou com a presença de produtores rurais. Como sempre vem fazendo, Bolsonaro provocou aglomerações e não usou máscara.

"Vocês [produtores rurais] não ficaram em casa, não se acovardaram. Temos que enfrentar nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando? Respeitar obviamente os mais idosos, aqueles que têm doenças. Mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?", disse o presidente.

"Até quando vão ficar dentro de casa, até quando vai se fechar tudo? Ninguém aguenta mais isso. Lamentamos as mortes, repito, mas tem que ter uma solução. Tudo tem que ter um responsável."

"Idiota"

Em outra etapa da viagem, em Uberlândia, ao falar com apoiadores, Bolsonaro ainda insultou usuários de redes sociais e jornalistas que questionam a lentidão e desorganização do governo na compra de vacinas.

"Tem idiota que a gente vê nas redes sociais, na imprensa, [dizendo] 'vai comprar vacina'. Só se for na casa da tua mãe. Não tem [vacina] para vender no mundo", disse o presidente. No entanto, seu próprio governo admitiu que rejeitou ao longo do ano passado propostas de laboratórios para a compra de vacinas.

O governo apostou inicialmente todas as suas fichas na vacina da AstraZeneca, que vem sendo marcada por atrasos, e inicialmente esnobou e criticou a vacina chinesa Coronavac, promovida pelo governo de São Paulo, e que no momento é o único imunizante disponível em larga escala no país.

O presidente ainda voltou a reclamar de medidas de isolamento que vêm sendo impostas por prefeituras e governos estaduais para tentar frear o avanço da pandemia e diminuir a pressão sobre o sistema de saúde, que está à beira do colapso em várias regiões do país.

"Impuseram estado de sítio no Brasil via prefeituras. Isso está errado. Estamos preocupados com mortes, sim, mas sem pânico. A vida continua. Os problemas a gente tem que enfrentar, não adianta ir para baixo da cama. Se todo mundo for ficar em casa, vai morrer todo mundo de fome", disse o presidente.

Bolsonaro ainda mencionou seu veto a uma medida que permitia que estados comprassem vacinas em caso de omissão do governo federal e posteriormente fossem reembolsados pela União. "Alguns governadores queriam direito a comprar vacina e quem iria pagar? Eu! Onde tiver vacina para comprar, nós vamos comprar", disse Bolsonaro.

Na quarta-feira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que vem sofrendo críticas constantes por causa da inabilidade da pasta em conter a crise, anunciou que pretende comprar vacinas dos laboratórios Pfizer e Janssen. No entanto, apesar da fanfarra usada pelo ministro, nenhum negócio foi efetivamente fechado até agora.

O anúncio de Pazuello também ocorreu um dia após o governador paulista João Doria manifestar interesse na compra de vacinas da Pfizer. Nos últimos meses, vários anúncios similares de Pazuello não se confirmaram, e o país continua a sofrer com a escassez de imunizantes.

Deutsche Welle rasil, em 04.03.2021

Miguel Nicolelis: “Brasil pode cruzar a marca de 3.000 óbitos diários por covid-19 nas próximas semanas”

Cientista defende um ‘lockdown’ nacional para evitar colapso sanitário. “Vamos entrar numa situação de guerra explícita. Podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”

O médico Miguel Nicolelis.São Paulo volta à fase mais restrita da quarentena após internar uma pessoa a cada dois minutos

Médico, neurocientista e professor catedrático da universidade Duke (EUA), Miguel Nicolelis coordenou ao longo da pandemia de coronavírus o Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a covid-19. Deixou o grupo no final de fevereiro após meses traçando previsões e orientando os governadores sobre quais medidas deveriam tomar para conter a curva de contágios e evitar o colapso de hospitais públicos e privados. Uma catástrofe que, afirma em entrevista ao EL PAÍS por telefone nesta quarta-feira, está prestes a ocorrer. “Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”, afirmou o médico, que também é colunista deste jornal.

Na conversa, ele afirma que, de acordo com seus cálculos, nos próximos dias o país começará a registrar 2.000 mortes diárias. Horas depois, o Ministério da Saúde registrou 1.910 mortes por covid-19, mais um recorde. “A possibilidade de cruzarmos 3.000 nas próximas semanas passou a ser real”, prevê. Ele argumenta que aumentar o número de leitos já não adianta e que a única saída é decretar um lockdown nacional pelas próximas três semanas.

Pergunta. O que esperar para as próximas semanas ou dias?

Resposta. Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos. A possibilidade de cruzar 2.000 óbitos diários nos próximos dias é absolutamente real. A possibilidade de cruzarmos 3.000 mortes diárias nas próximas semanas passou a ser real. Se você tiver 2.000 óbitos por dia em 90 dias, ou 3.000 óbitos por 90 dias, estamos falando de 180.000 a 270.000 pessoas mortas em três meses. Nós dobraríamos o número de óbitos. Isso já é um genocídio, só que ninguém ainda usou a palavra. O que são 250.000 mortes sendo que a vasta maioria poderia ter sido evitada?

P. São Paulo voltou para a fase vermelha e fechou comércios e serviços não essenciais. O que pode acontecer com o Estado?

R. Acho que São Paulo vai colapsar. Campinas já colapsou. Rio Preto colapsou. Ribeirão Preto está no mesmo caminho. A cidade de São Paulo não vai aguentar. O Hospital Emilio Ribas já está 100% e com fila de espera. O Hospital das Clínicas, que tem um dos maiores números de leitos de UTI do Brasil, está com 80% de ocupação e vai colapsar.

P. Estados têm apostado na abertura de novos leitos. Abrir novos leitos adianta?

R. Não tem mais médico, não tem mais enfermeiro. Todo mundo sabe, e os políticos sabem também, que a velocidade de crescimento do vírus é exponencialmente mais veloz que a capacidade de criar, equipar e por gente no leito de UTI. Não tem como combater isso criando mais vagas nos hospitais. É a típica estratégia de maquiagem. Aumenta os leitos, mas os leitos às vezes nem funcionais estão, mas vão para a conta e diminui a taxa de ocupação.

P. O que fazer então? Os governadores e secretários da Saúde pressionaram nesta semana o presidente Jair Bolsonaro por medidas.

R. É preciso decretar lockdown de pelo menos 21 dias e pagar um auxílio financeiro para que as pessoas fiquem em casa. Os governadores sabem que o Governo Federal não vai fazer nada, estão querendo empurrar a responsabilidade. Estou sugerindo desde de novembro de criar uma Comissão Nacional com a sociedade civil, governadores e Supremo, que precisa decretar uma tutela judicial no Ministério da Saúde. Uma intervenção. E essa Comissão Nacional ficaria responsável por tomar decisões e supervisionar toda a logística.

P. Mas a população já não respeita as medidas de restrição. Acataria um lockdown?

R. A população nunca teve uma mensagem correta da gravidade da pandemia porque não temos nenhum estadista no país. As pessoas estão falando de sucessão presidencial em 2022 quando o país está morrendo na pandemia. Faltou decisão política e visão estratégica. Faltou as pessoas eleitas pensarem não nos lobbys econômicos e políticos que as sustentam, mas nos cidadãos como prioridade. É preciso bancar uma decisão. John Barry, o maior historiador norte-americano de pandemias, escreveu que, mesmo com a ciência moderna, o que decide o destino de uma sociedade na pandemia é a decisão política, a opção política dos líderes de defender a população. Por isso que você é eleito, para liderar mesmo nos momentos em que a coisa correta a ser feita é impopular. É preciso convencer a população de que aquilo precisa ser feito.

P. Caso não haja lockdown nacional, como tudo indica... O vírus não tem uma dinâmica própria, em que o contágio sobe muito, chega a um pico e depois começa a descer por causa da sazonalidade, entre outras questões?

R. Não quando se tem um vírus mutando fora de controle e se novas variantes são mais letais e mais contagiosas. Cada variante tem sua dinâmica própria. Como você falou, cresce, chega ao pico e cai. Mas se você tem dezenas de variantes superpostas umas nas outras... Acabaram de detectar a variante da Califórnia em Minas Gerais, porque alguém veio de avião dos Estados Unidos e trouxe ela. Nós recomendamos fechar os aeroportos em agosto. Repetimos em setembro. E evidentemente a Infraero não deu bola. Temos no Brasil a reunião de todas as variantes, inclusive as nossas próprias. Essa é a bomba relógio.

P. Sendo assim, quem teve covid-19 meses trás pode acabar se reinfectando?

R. Se você foi contaminado com a variante inicial brasileira, os anticorpos que você desenvolveu são nove vezes menos eficientes para combater a nova variante amazônica. Por que temos que tomar a vacina contra a Influenza a cada ano? Porque as variantes surgem. Mas o que estamos tendo de número de infecctados do coronavírus é muito grave, então a chance do vírus mutar é muito maior.

P. Você mencionou em outra entrevista a possibilidade de colapso funerário. Como isso pode se dar?

R. Porto Alegre já está entrando, um hospital teve de comprar containers para estocar os corpos porque não estava dando conta de manejá-los. Isso é Manaus. A população cidade de São Paulo é nove vezes maior que a de Manaus. A Grande São Paulo é 20 vezes maior. Se a cidade São Paulo cai, todo o Estado de São Paulo cai. É como uma guerra mesmo: quando um batalhão importante cai, todas as forças armadas são comprometidas. É um efeito cascata. Minha metáfora é que somos Stalingrado, estamos cercados neste momento.

FELIPE BETIM, de São Paulo para o EL PAÍS, em 04 MAR 2021

Bolsonaro aparece com aprovação abaixo de 30% e tem evangélicos como principal base. Conheça a pesquisa

Levantamento aponta que 39% avaliam a gestão do presidente como ruim ou péssima

No pior momento da pandemia e ainda sem a retomada do pagamento do auxílio emergencial, a aprovação do presidente Jair Bolsonaro aparece abaixo do patamar de 30% da população, segundo pesquisa do IPEC (Inteligência, Pesquisa e Consultoria). O levantamento, realizado entre 18 e 23 de fevereiro, aponta que 28% dos entrevistados consideram a gestão Bolsonaro ótima ou boa, enquanto 39% avaliam como ruim ou péssima. Segundo os dados do IPEC, o eleitorado evangélico é a principal base de apoio a Bolsonaro, que tem avaliação positiva de 38% neste segmento. A margem de erro é de dois pontos.

Em levantamentos de institutos como Datafolha e Ibope em 2020, o nível de aprovação geral do governo Bolsonaro quase sempre ultrapassava um terço da população. Em dezembro, apesar do aumento de mortes em decorrência da Covid-19 após as eleições municipais, o presidente manteve 37% de aprovação. Já no fim de janeiro, primeiro mês após o fim do pagamento das parcelas de R$ 300 do auxílio emergencial, o Datafolha apontou queda nas avaliações positivas, com 31% considerando o governo ótimo ou bom, e rejeição na casa de 40%. A retomada do auxílio, agora em quatro parcelas de R$ 250 cada, faz parte da PEC Emergencial no Senado.

O IPEC, instituto formado por executivos que deixaram o Ibope após o encerramento das atividades com pesquisas de opinião pública, aponta ainda neste levantamento que, para 87% dos brasileiros, há alguma expectativa de pagamento do auxílio emergencial “até a situação econômica voltar ao normal” — o que pressupõe um prazo maior do que os quatro meses do planejamento do governo federal. Segundo a pesquisa, 72% concordam totalmente com esta visão; 15% concordam em parte.

 91% do nordeste

O maior clamor por uma disponibilização prolongada do auxílio vem do Nordeste, onde 91% concordam total ou parcialmente que o benefício deve ser pago até que o cenário econômico esteja em normalidade. As regiões Norte/Centro-Oeste e Sudeste aparecem com 87% de concordância parcial ou total neste item, enquanto o Sul tem 80%.

No recorte por renda, 93% dos que têm renda mensal de até um salário mínimo — parcela da população à qual o benefício é majoritariamente destinado — concordam, ao menos de forma parcial, que o auxílio deve durar até uma normalidade econômica. Ontem, a divulgação do PIB de 2020 pelo IBGE apontou que o país não se recuperou do impacto da pandemia da Covid-19, fechando o ano com um rombo de 4,1%. Na última semana, Bolsonaro afirmou que o benefício “custa caro” e representa “um endividamento enorme”, ao justificar que a União não poderia pagar o auxílio indefinidamente.

Para a cientista política Luciana Veiga, professora da Unirio, o cenário atual de baixa aprovação, na medida em que traz preocupações para Bolsonaro em seu projeto de reeleição em 2022, pode estimular o presidente a tentar um prolongamento do benefício, contrariando suas próprias declarações e as projeções da área econômica, comandada pelo ministro Paulo Guedes. A especialista observa que, segundo a pesquisa do IPEC, nos estratos de menor remuneração e no Nordeste a avaliação do governo como regular fica acima da média nacional.

— O que Bolsonaro faz com o auxílio não é conquistar eleitores que não gostam dele, mas sim trazer o que está nesse bloco do regular. É um eleitor muito prático, menos apegado a questões ideológicas, e que pode oscilar a depender do impacto do governo federal em sua vida. É aí que entra o auxílio. Por outro lado, este eleitor também é mais pressionado pelo cenário da Saúde, já que depende da rede pública — avaliou Veiga.

A CEO do IPEC, Márcia Cavalari, afirma que a análise dos resultados deve levar em consideração o contexto à época da realização das pesquisas. O levantamento do IPEC, que ouviu 2.002 pessoas presencialmente em 143 municípios, ocorreu nos dias que se seguiram à primeira ameaça de Bolsonaro de trocar o comando da Petrobras por insatisfação com aumentos nos preços de combustíveis, o que gerou reação negativa do mercado, com forte queda no valor das ações da empresa. O anúncio da demissão de Roberto Castelo Branco da presidência da petroleira ocorreu no dia 19, durante a realização da pesquisa.

— Esta é uma das possíveis hipóteses para que a rejeição ao governo seja mais alta entre os eleitores com maior remuneração do que entre os mais pobres. Para o segmento de menor renda, a troca pode não ter soado tão ruim, por conta do discurso de baratear o combustível — afirmou Márcia.

Capitais registram panelaços em protesto contra Bolsonaro após novo recorde de mortes por covid

Entre os eleitores que declaram renda mensal superior a cinco salários mínimos, 47% disseram considerar o governo ruim ou péssimo, enquanto 24% consideram ótimo ou bom. Entre os mais pobres, com renda de até um salário mínimo, o nível de aprovação é semelhante (26%), mas o percentual dos que rejeitam o governo é bem menor: 38%.

Acenos conservadores

A parcela evangélica do eleitorado apresenta, na pesquisa do IPEC, um desenho inverso em relação à avaliação geral do governo. Neste segmento, é o percentual de avaliações como ótimo ou bom que se aproxima da faixa de 40% dos entrevistados — e não a rejeição, como ocorre no recorte mais amplo da pesquisa. Entre os evangélicos, 27% consideram o governo ruim ou péssimo. É a menor taxa de rejeição registrada em todo o levantamento.

Para a cientista política Luciana Veiga, a situação se explica pelo fato de Bolsonaro se manter “sem inconsistências” na defesa da chamada pauta de costumes ao longo do mandato — o que difere, segundo a especialista, do comportamento oscilante em outras bandeiras, como a agenda econômica liberal e a pauta anticorrupção. Nos dois primeiros anos de governo, Bolsonaro procurou fazer acenos recorrentes a lideranças evangélicas que atuam em igrejas espalhadas pelo país, e que já o haviam apoiado durante as eleições de 2018. O presidente tem prometido que indicará um evangélico para a próxima vaga que se abrirá no Supremo Tribunal Federal (STF), em julho, com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello.

Bernardo Mello, O Globo, em 04/03/2021 

Editorial do Estadão: Investimento no caos

 É na confusão que Bolsonaro prospera e, com ele, oportunistas de diversos quilates

O presidente Jair Bolsonaro não governa; afronta. 

Já chamou de “maricas” seus concidadãos que respeitam as medidas de isolamento social para se proteger da covid-19; já sugeriu que os brasileiros forçados a trabalhar em home office, como o presidente da Petrobrás que ele demitiu, são ociosos; já se disse favorável a “retirar de circulação” os veículos de imprensa que não o bajulam, pois são “fábricas de fake news”. 

A lista de ofensas está longe de se esgotar aí: o presidente vive de inventar inimigos, aos quais atribui todos os problemas que lhe cabe administrar.

Nos últimos dias, em meio ao recrudescimento da pandemia e seu consequente ônus político, Bolsonaro apontou seus canhões contra os governadores de Estado. Não é de hoje que os governadores são tratados a pontapés pelo presidente, ávido por lhes transferir a culpa por tudo de ruim que acontece no Brasil – do aumento dos preços dos combustíveis à decepcionante recuperação da economia. Agora, diante da catástrofe econômica e social da pandemia, Bolsonaro dobrou a aposta nesse confronto.

Usando dados distorcidos ou simplesmente inventados, o presidente acusou os governadores de desperdiçar recursos repassados pela União aos Estados. Tratou esse dinheiro como se fosse um favor seu, pessoal, aos governadores, e não fruto de obrigações previstas na Constituição. E ainda insinuou que o dinheiro foi mal aproveitado pelos governadores, o que teria colaborado para o colapso do sistema de saúde em vários Estados.

Os governadores reagiram com uma nota dura, assinada por 16 deles, em que rebatem ponto por ponto as patranhas do presidente. Acusam Bolsonaro de investir na “má informação” e na “promoção do conflito”. O fato de alguns dos signatários serem alinhados ao presidente é bastante significativo – pode indicar que, mesmo para seus aliados, Bolsonaro passou dos limites.

Bolsonaro, contudo, está em seu hábitat. O presidente partiu para mais um confronto não por seu tino estratégico, mas sim por sua natureza. Em toda a sua trajetória política, Bolsonaro jamais se apresentou como conciliador ou sequer interessado em dialogar. Sempre ganhou votos dos ressentidos ao regurgitar rancor contra a democracia – e é sintomático que nem partido tenha, depois de ter passado por quase uma dezena deles.

Bolsonaro, bem como seus seguidores extremistas, despreza profundamente a política, que é a conciliação de pontos de vista divergentes em favor dos interesses abrangentes da sociedade. 

A própria ideia de coletividade e de cooperação – com seus desdobramentos constitucionais, como o princípio federativo – inexiste no bolsonarismo.

Ao contrário, o bolsonarismo é a expressão mais estridente do progressivo esgarçamento dos laços de solidariedade que sustentam a vida em sociedade e que são fundamentais especialmente em tempos de crise aguda, como a que ora atravessamos. Caso não seja derrotada, essa ideologia deletéria tornará muito mais difícil encontrar soluções duradouras para os grandes problemas da sociedade – que, assim sendo, continuará a se consumir em conflitos pelos mais banais motivos, tornando-se praticamente impossível alcançar consenso mesmo para questões comezinhas.

É nesse caos que Bolsonaro prospera – e, com ele, oportunistas de diversos quilates. Se é cada um por si, então não surpreende que, em vez de procurarem meios de viabilizar alguma forma de auxílio emergencial para quem perdeu renda na pandemia, os deputados estejam empenhados em aumentar em R$ 18,4 bilhões as emendas orçamentárias a que têm direito para asfaltar ruas e inaugurar pontes em seus currais eleitorais. Farinha pouca, o pirão de sempre primeiro.

Enquanto o presidente e seus aprendizes vivem no conforto da delirante mitologia bolsonarista, os gestores de saúde, obrigados a lidar com a realidade da pandemia, já informaram que é urgente ampliar as medidas de restrição para evitar uma tragédia ainda maior. Em seu apelo desesperado, propuseram um “pacto nacional pela vida” – que, no entanto, só será possível se o País superar o bolsonarismo, condição indispensável para recuperar o sentido de nação.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 04 de março de 2021 

Waack: Cada um por si

A pandemia acelerou a já existente perda de autoridade do governo 

Já é lugar comum afirmar que o maior efeito da pandemia ao redor do mundo foi o de acelerar ou agravar problemas já existentes. No caso do Brasil, ela escancarou a falta de governo, além da desigualdade, miséria e ignorância, mazelas bem antigas. No Brasil, a pandemia não “inventou” a má gestão pública nem o desperdício de recursos. Ela ensinou que não há governo efetivo sem capacidade de liderança política – outro problema do qual padecemos há tempos. 

A extraordinária incapacidade de Jair Bolsonaro para liderar e coordenar criou com a pandemia um fenômeno novo na política brasileira. É o cada um por si dos entes da Federação, e a instituição da dupla de primeiros ministros nas figuras dos presidentes das casas legislativas. Em linguagem militar, talvez ainda familiar a alguns ocupantes do Planalto, o Estado Maior da crise não está como deveria estar na Casa Civil e no Ministério da Saúde (instâncias do Executivo sob o comando nominal de generais) mas, na prática, foi para o Congresso. 

Jair Bolsonaro (centro), ladeado pelos presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO (23/2/2021)

É nas casas legislativas que se decide agora o essencial para se tentar minorar os devastadores efeitos da maior tragédia da nossa história recente. É para lá que correm prefeitos e governadores na linha de frente do combate ao vírus. É lá que se negocia a aprovação de um mínimo de ajuda que impeça pessoas de morrer de fome. É lá que existe pressa e urgência para flexibilizar e acelerar a aquisição de imunizantes por quem quer que seja, incluindo empresas privadas. O arcabouço jurídico foi criado pelo STF, que transformou um de seus integrantes em virtual ministro da Saúde. 

Um resultado evidente dessa situação cujo alcance Bolsonaro não parece ter percebido ainda é a profunda desmoralização política associada a um governo visto como incompetente. Presidentes anteriores já foram desmoralizados por eventos abrangentes em parte piorados por eles mesmos, como ocorreu com Sarney/Collor (hiperinflação) e Dilma (recessão). No caso de Bolsonaro, além do estelionato econômico eleitoral do qual Paulo Guedes está se tornando cúmplice, é a pandemia que acelera perigosa desmoralização. 

A confluência de crise econômica, tragédia de saúde pública e incapacidade de liderança política (com seus graves riscos de populismo fiscal) compõe a “tempestade perfeita” mencionada por agências de classificação de risco ao publicarem no começo da semana cenários a curto prazo para o Brasil. O agravamento da crise de saúde pública faria as demandas sociais crescerem em ritmo mais rápido do que o “tempo político” necessário para a aprovação de medidas de contrapartida à continuidade da ajuda emergencial, trazendo ainda mais insegurança aos agentes na economia. 

Bolsonaro está no modo de sempre, dedicado a buscar culpados e livrar-se de responsabilidades. A aparente tranquilidade com que enfrenta um quadro que se agrava nitidamente vem de dois fatores proporcionados por sua estreita visão da realidade. O primeiro é a percepção de garantia política dada pela dupla de primeiros ministros – que, na verdade, mal controlam as próprias casas, como ficou demonstrado no episódio da PEC da imunidade ou impunidade dos parlamentares. 

O segundo é o aparente conforto trazido pelo aparelhamento das instâncias superiores do Judiciário – nomeações “casadas” para o STJ e STF, em estreito entendimento com os movimentos políticos evangélicos. Percalços jurídicos policiais de curto prazo em relação à família do presidente estão afastados, ao mesmo tempo em que não existe nada remotamente parecido à presença de uma Lava Jato para criar dificuldades políticas agudas para o atual governo (como aconteceu com Dilma). 

Desmoralização é um fenômeno político forte e de difícil reversão, que costuma nascer e se propagar primeiro nos vários componentes de elites (administração pública, setores empresariais e financeiros, profissionais liberais, elites culturais em sentido amplo). A perda de autoridade de Bolsonaro já se fazia sentir antes da pandemia, fato demonstrado pela maneira como o Legislativo e o STF encurtaram seu poder. A pandemia, como se diz, acelerou o que já existia. 

William Waack é Jornlista. Apresentador do Jornal da CNN Brasil. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 04.03.2021.

Transmissão descontrolada do vírus da covid-19 pode fazer do Brasil 'celeiro' de variantes

Quanto mais o Sars-CoV-2 circula, e se replica dentro dos seres humanos, maior a chance de ele acumular mutações e gerar novas cepas


Paciente com covid-19 internado no Hospital Emilio Ribas. Foto: Tiago Queiroz| Estadão

Cientistas brasileiros comprovam infecção simultânea por duas variantes do coronavírus

'É surpreendente ver que tantas mutações estão aparecendo ao mesmo tempo em tantos lugares'

A disseminação sem controle do novo coronavírus no Brasil está deixando cientistas nacionais e estrangeiros em alerta sobre o impacto que isso pode ter sobre a pandemia como um todo, em especial no surgimento de novas variantes do Sars-CoV-2. Uma preocupação é que o País se torne uma espécie de "celeiro" de mutações, dificultando ainda mais o combate à covid-19.

Quanto mais o vírus circula, e se replica dentro dos seres humanos, maior a chance de ele acumular mutações e gerar novas variantes. É um processo que faz parte da natureza desse organismo, mas é favorecido em cenários de descontrole como o que vemos no Brasil, que enfrenta o pior momento da pandemia em um ano em meio a um relaxamento das medidas de segurança. Enquanto o número de casos e de mortes vem caindo em várias partes do mundo, aqui só tem subido.

Somente nesta quarta-feira, 3, foram registrados mais de 74 mil novos casos, o  maior valor em todo o mundo, e 1.840 mortes, recorde desde o início da pandemia no País. Os Estados Unidos tiveram cerca de 60 mil novas infecções.

Nesse movimento de evolução do vírus, de vez em quando podem aparecer variantes muito diferentes, como é o caso da P.1, que surgiu em Manaus, e também das originadas no Reino Unido e na África do Sul. Por causa disso elas são chamadas de VOCs (variantes de preocupação, na sigla em inglês). Em geral, sabe-se que vírus, no decorrer de uma epidemia, podem apresentar de uma a duas mutações por mês. No caso da P.1 e das demais, foram cerca de 20 de uma tacada só. Por isso elas preocupam.

O motivo para isso ocorrer ainda não é bem compreendido pela ciência. São como os acidentes de avião, compara a imunologista Ester Sabino, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical da USP. “É uma sucessão de eventos raros. Há milhares de aviões no ar e uma hora ocorrem vários erros e um cai. Mas quanto mais aviões estiverem no ar, maior a chance. Ter 20 mutações em um mês é inesperado. Alguma coisa aconteceu e a gente não entende bem”, afirma.

A cientista - que está colaborando com estudos que buscam entender a transmissibilidade da P.1 e como ela pode escapar de anticorpos, permitindo assim a reinfecção - pondera, no entanto, que a variante só se torna um problema quando, além de adquirir muitas mutações, ganha espaço para infectar muitas pessoas.  “A P.1 é realmente mais transmissível. Se não tomar cuidado, a chance é maior de se contaminar com ela”, diz.

Ainda não há evidências para dizer se esta variante tomou conta da epidemia no Brasil nem se é a responsável pela explosão de novos casos observada na maior parte do País. Sabe-se que a P.1 é a principal linhagem em Araraquara (interior de São Paulo) e em Porto Alegre - cidades que viram seus sistemas de saúde lotarem -, e em Manaus, onde o colapso dos hospitais levou pacientes a morrerem por falta de oxigênio. Apesar do avanço das variantes, o Brasil reduziu no começo do ano o número de sequenciamentos genéticos, essencial para rastrear as cepas. 

O virologista Mauricio Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, reforça a ressalva feita por Ester de que o simples fato de a variante com mais mutações surgir não pode ser considerada a única explicação para o cenário de caos que se instalou no País.“Estamos dando oportunidade para esse acaso acontecer”, afirma ele.

“É muito conveniente para a sociedade, políticos e autoridades afirmarem que a culpa é da variante mais transmissível. Como se tivessem feito tudo para conter o problema, mas a variante tomou conta da cidade. Se tivéssemos tomado as medidas de segurança, não teria acontecido. A forma de prevenir é a mesma: distanciamento social e uso de máscara. O fato é que damos toda a oportunidade do mundo para que o vírus gere a maior quantidade do mundo de mutações”, diz.

Ele explica que o surgimento das variantes é matemático. “A cada X multiplicações, vai ter mutação. Quanto mais multiplicar, mais variantes vai gerar. Agora no Brasil é onde o vírus mais está se multiplicando, é onde já há o maior número de novos casos por dia. Se essa variante tem a oportunidade de ser transmitida quando a pessoa onde a mutação surgiu pega um avião lotado, vai ao cinema, ao restaurante... aí estamos nos tornando um celeiro de variantes e distribuindo-as à vontade dentro do País”, alerta.

Para o virologista Felipe Naveca, pesquisador da Fiocruz Amazônia à frente dos estudos que mostraram a prevalência da P.1 em Manaus e como a linhagem é mais transmissível, esse é um risco que pode ocorrer onde houver o descontrole. “O Brasil e todos os países que deixaram o vírus correr solto estão sendo incubadoras de novas variantes. Relatos nesta semana apontam para mais duas prováveis novas variantes de preocupação nos Estados Unidos: na Califórnia e em Nova York. Em todos os países com esse discurso de que devemos deixar o vírus circular para dar imunidade (de rebanho), a gente está vendo o que está acontecendo”, comenta.

De acordo com o pesquisador, nos últimos três ou quatro meses houve aceleração da evolução do vírus. “Isso está claro. Não somos só nós, todos os grupos de pesquisa estão mostrando isso. O surgimento da linhagem do Reino Unido, da África do Sul e do Brasil - com algumas mutações em comum relacionadas ao escape de anticorpos e a maior transmissão - mostram que o vírus deu um salto de evolução", diz Naveca. "Então, a chance de termos novas variantes cada vez mais adaptadas ao ser humano é muito grande se a gente continuar dando essa liberdade para o vírus. A gente precisa urgentemente diminuir a transmissão do vírus”, frisa.

Giovana Girardi e Fabiana Cambricoli , O Estado de São Paulo, em 04 de março de 2021 

Agora governo e Congresso estão passando a boiada de verdade

Bolsonaro e seus aliados usam a situação dramática da pandemia para fazer avançar medidas controversas. Em jogo estão vários ganhos democráticos recentes, escreve Alexander Busch.    

Arthur Lira, novo presidente da Câmara: PECs polêmicas estão avançando rápido na Casa

Em abril passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu em uma reunião de gabinete que a pandemia deveria ser usada pelo governo para mudar o maior número possível de leis ambientais, enquanto o país estivesse distraído com a crise em torno do coronavírus.

É exatamente isso que está sendo feito agora no Congresso, onde, há três semanas, foram instalados dois presidentes alinhados ao governo.

Enquanto o Brasil vive um novo pico no número de infectados e mortos pelo coronavírus, projetos de lei complicados, preparados durante muito tempo, aparecem de repente, do nada. E o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, quer agora submetê-los a uma votação rápida – antes mesmo que tenham sido instaladas as comissões que deveriam debatê-los primeiro.

Trata-se de decisões fundamentais para a política e a economia do Brasil.

A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) Emergencial visa emendar a Constituição para que os gastos sociais possam ser elevados acima do teto para uma emergência como a pandemia. Isso sem que o governo seja responsabilizado posteriormente, como foi o caso recentemente da ex-presidente Dilma Rousseff em seu impeachment.

A PEC não terá qualquer concessão ao Legislativo: ela vai avançar aparentemente sem nenhuma mudança no campo dos gastos. Os cortes planejados nos salários dos funcionários públicos não aparecem mais. O governo quer eliminar os gastos mínimos estabelecidos para educação e saúde nos três níveis federais, para que governo federal, governador e prefeito possam usar o dinheiro como acharem melhor.

Já com a chamada "PEC da Impunidade", os deputados querem acima de tudo se proteger do Judiciário. Por exemplo, no futuro, eles devem decidir por si mesmos se um de seus próprios deve permanecer em prisão preventiva, mesmo que o STF  tenha assim ordenado.

Além disso, um grande número de delitos não deve mais ser passível de punição: no futuro, deverá ser possível novamente empregar parentes, e quem não prestar contas de suas campanhas eleitorais com transparência não estará mais em risco. O ônus da prova é invertido: qualquer pessoa que trapacear em licitações públicas ou obtiver privilégios como deputado só poderá ser processada se houver "prejuízo ao erário" ou "dolo".

Também deve ser abolida a lei da Ficha Limpa, segundo a qual os deputados com antecedentes criminais não podem mais concorrer em eleições. Isso após a Lava Jato ter sido recentemente desmantelada pelo Ministério Público.

Mesmo que a PEC da Impunidade vá agora ser discutida por uma comissão, a tendência é clara: governo e Congresso querem se livrar rapidamente de uma maior transparência e dos controles democráticos e de corrupção cuidadosamente incorporados ao sistema legal nos últimos dez anos.

Para garantir o bom funcionamento de tudo isso, o presidente Bolsonaro colocou a Petrobras como isca para os deputados e senadores, instalando ali um general que cumprirá suas ordens. O mesmo acontecerá no Banco do Brasil.

O cálculo de Bolsonaro provavelmente vai funcionar: dentro de um ano e meio, a campanha eleitoral terá início. Os deputados e senadores vão querer subsídios, contratos e cargos para aliados. Eles votarão esmagadoramente a favor dos projetos de lei. Se não for agora, vai ser dentro de algumas semanas.

Para a democracia brasileira, este é um amargo passo para trás

Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Clique aqui para ler suas colunas. 

'Foi horrível, não tem explicação', diz filha de paciente que morreu antes de ser transferido para a UTI


Sobrecarga das unidades hospitalares de Santa Catarina teve início em meados de fevereiro (Crédito foto: Corpo de Biombeiros - SC)

O aposentado Dirceu Luiz Fava, 66 anos, morador de Xanxerê, no interior de Santa Catarina, parecia estar respondendo bem ao tratamento repassado pelo médico do plano de saúde nos primeiros dias de sintomas da covid-19. A partir do quinto dia, porém, a situação começou a se agravar.

O médico tentou trocar a medicação, sem sucesso. Um kit de oxigênio foi providenciado e serviu para mantê-lo em atendimento domiciliar por mais quatro dias. Fava tinha comorbidades, era obeso e estava com pneumonia. No nono dia da doença, na última segunda-feira (1/3), o profissional de saúde que o atendia em casa constatou que ele precisava de um leito de UTI para sobreviver.

Após contato com o único hospital da cidade, o Hospital Regional São Paulo, a família conseguiu um leito improvisado na emergência, que é a porta de entrada da unidade. O espaço, hoje com 30 pessoas, foi reorganizado para atender os pacientes graves da covid-19, mas não corresponde às necessidades de uma UTI.

Fava foi atendido pela equipe médica de plantão e foi intubado ali na emergência mesmo. Horas mais tarde, a filha Rosemeri Fava recebeu a notícia de que o pai não havia resistido.

"Veio a médica conversar, disse que não tinha leito [de UTI] e que tinha mais de 20 [pacientes] na frente dele. Foi horrível. Não tem explicação, não tenho palavras", lamentou Rosemeri.

Dirceu Fava deixou quatro filhos e esposa. Ele é um entre pelo menos 43 pacientes que morreram enquanto aguardavam leitos de UTI em Santa Catarina de fevereiro para cá.

A reportagem confirmou pelo menos 15 óbitos no Hospital Regional São Paulo, em Xanxerê; 14 na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Chapecó; uma no Pronto Atendimento da Epafi, em Chapecó; 12 no Hospital Regional de São Miguel do Oeste; e uma no Hospital Municipal Santo Antônio, em Itapema.

Todos esses pacientes receberam atendimento em unidades de saúde, inclusive em leitos improvisados, mas não conseguiram transferência para UTI.

O governo de Santa Catarina não se pronunciou sobre os números, mas confirmou que havia 251 pacientes aguardando leitos de UTI até a tarde desta quarta-feira (3/3).

Entre os pacientes que morreram na fila de espera estão duas técnicas de enfermagem que atuavam na linha de frente da covid-19, conforme as informações divulgadas pelo Conselho Regional de Enfermagem.

Uma delas é Zeni Buenos Pereira, de 53 anos, que trabalhava no Centro Integrado de Saúde de Itajaí.

A profissional sentiu os sintomas no dia 23 de fevereiro e foi atendida no Hospital Municipal Santo Antônio, em Itapema. Ela já estava fazendo uso de máscara de oxigênio e precisava de um leito de UTI. No dia 25, conseguiu uma vaga no Hospital Marieta Konder Bornhausen, em Itajaí, mas morreu antes de ser transferida.

Eliandre Boscato, de 43 anos, que atuava na Associação Hospitalar Padre João Berthier, em São Carlos, passou por situação parecida.

Foi internada no dia 20 de fevereiro na unidade em que trabalhava, mas precisou ser transferida para o Hospital Regional São Miguel do Oeste. Quando chegou à unidade, ficou mais um dia em um leito improvisado e não resistiu, morreu no dia seguinte, em 28 de fevereiro.

Cassio de Nakano, diretor clínico do Hospital Regional de São Miguel do Oeste, fez um desabafo na última coletiva de imprensa que ocorreu na terça-feira (2/3) e apontou a situação crítica da unidade de saúde.

"De todos os doentes que estão entrando na UTI hoje, 60% vão morrer. Dos 40 que estão aqui, 25% estão entrando em insuficiência renal aguda, o que é um péssimo prognóstico, é assustador".

E alertou: "Parem de achar que não tem nada, que porque é jovem não vai morrer. Pacientes com menos de 50 anos, atletas, estão morrendo. O pessoal tem que acordar. Aqui no hospital estamos fazendo tudo o que dá, mas a gravidade da doença está muito pior do que antes, nunca esteve tão ruim", completou o diretor.

A lotação das unidades hospitalares de Santa Catarina começou em meados de fevereiro, logo após o Carnaval e a retomada das aulas. Os primeiros meses do ano também foram marcados por grandes aglomerações no litoral catarinense.


Diante de falta de UTIs, Santa Catarina transferiu pacientes internados em decorrência da covid-19 (Crédito foto: Corpo de Bombeiros de SC).

Pacientes começam a ser transferidos para o ES

A primeira transferência de paciente para outro Estado ocorreu nesta quarta-feira. Santa Catarina chegou a abrir suas portas para doentes vindos de Manaus em janeiro, mas agora pede socorro.

Um homem de 34 anos que estava intubado e sendo atendido de forma improvisada na UPA de Chapecó foi transportado pelo Batalhão de Operações Aéreas do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina para o Hospital Doutor Jayme Santos Neves, no município da Serra (ES), região da Grande Vitória.

Apenas um paciente foi levado na aeronave por causa da gravidade de seu quadro de saúde. A rede hospitalar do Espírito Santo ofertou 16 leitos para Santa Catarina. Outros pacientes devem ser transferidos nos próximos dias. A preferência é para os internados nos hospitais da região Oeste que estão superlotados (Xanxerê, Chapecó e São Miguel do Oeste).

A triagem dos pacientes que serão transportados leva em conta as condições clínicas para enfrentar a viagem de três horas e meia. A expectativa é que ocorram pelo menos duas viagens por dia.

"O transporte desses pacientes é complexo por conta da situação deles. Os pacientes que recebemos de Manaus, por exemplo, transportados por aviões da FAB, estavam conscientes e vieram sentados na aeronave. Os nossos são mais graves, embora ainda estejam dentro dos critérios de possibilidade para transporte aéreo. Mas eles precisam ir deitados em maca e acompanhados de equipe médica", explicou o superintendente de Urgência e Emergência da Secretaria de Estado da Saúde, Diogo Bahia Losso.

A taxa de ocupação de leitos reservados para atendimento da covid-19 é de 99,88%. Dos 806 leitos ativos para adultos, 805 estão ocupados. A informação consta no painel de leitos de UTI disponibilizado pela Secretaria de Estado da Saúde. O único leito que aparece disponível estava na verdade sendo preparado para receber uma transferência durante a atualização dos dados.

Santa Catarina tem 688.600 casos acumulados de covid-19, 643.910 recuperados e 7.618 mortes. Todas as regiões do Estado estão dentro da classificação de risco potencial gravíssimo.

Schirlei Alves, de Florianópolis para a BBC News Brasil, em 03.03.2021

quarta-feira, 3 de março de 2021

Ascânio Saleme: Bolsonaro pode ser tão perigoso quanto o coronavírus

Observando com cuidado as ações do presidente durante a pandemia, deve-se considerar a hipótese

A imprensa nunca disse que Bolsonaro é o vírus, como afirmou o presidente. A imprensa errou. Achou que o vírus era muito sofisticado para Bolsonaro. Imaginou que no máximo ele conseguiria ser uma bacteriazinha qualquer, dada suas reconhecidas limitações. 

Mas, observando com cuidado as ações do presidente durante a pandemia, deve-se considerar a hipótese de Bolsonaro ser tão perigoso quanto o coronavírus. Alguns poucos cálculos simples ajudam a comprovar esta tese.

Segundo o Datafolha de 25 de janeiro, 31% dos 210 milhões de brasileiros aprovam Bolsonaro. Tirando os anti-petistas, os conservadores não radicais, os tolos que sempre apoiam qualquer governante, vamos imaginar que sobrem 10%, ou uns 21 milhões que fecham os olhos, seguem e repetem todas as barbaridades ditas ou feitas pelo presidente.

Como 10 milhões de brasileiros foram contaminados durante um ano de pandemia, é correto afirmar que entre os cegos bolsonaristas foram quase um milhão de infectados. Usando a mesma proporcionalidade, dentre os 257 mil mortos em todo o país, 25,7 mil eram negacionistas convictos, daqueles que chamam o capitão de mito.

Estes, deliberadamente não usaram máscaras. Fizeram propaganda da cloroquina, se aglomeraram e morreram porque foram tão ignorantes quanto o seu líder. A estupidez do mito matou pelo menos 25,7 mil bolsonaristas, ou 70 a cada dia. Claro que o número é muito maior, já que os cegos contaminaram e mataram outras pessoas nos ônibus, nas ruas, nas praias, nos restaurantes, nas escolas e nas suas próprias casas. 

Portanto, não há o que discutir, Bolsonaro é mesmo um vírus violento e letal.

Ascânio Saleme é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 03.03.2021.