sexta-feira, 5 de março de 2021

Às vítimas: ‘para que pânico?’ A médicos: ‘Chega de frescura!’ A parentes: ‘Vão chorar até quando?’

Em vez de pular de palanque em palanque, o presidente Jair Bolsonaro poderia ir ao Rio Grande do Sul e à Bahia, que estão contratando contêineres refrigerados para acomodar corpos

O presidente Jair Bolsonaro disse que não se pode combater o vírus “de forma ignorante, burra, suicida”, mas, um ano e 260 mil mortes depois, não diz como deve ser, não dá nenhuma pista do seu “plano” nem anuncia quando irá de Estado a Estado, para dar uma bronca em pacientes, parentes, médicos, enfermeiras e funcionários de hospitais. “Para que pânico?” “Chega de frescura, de mimimi!” “Vão chorar até quando?” 

Poderia começar pelo Paraná, demonstrando impaciência e pedindo paciência às 800 pessoas com covid-19 que estão à espera de leitos de UTI ou da morte: “Para que pânico?” Depois, dar uma passadinha por Santa Catarina, para reclamar com mães, pais, irmãos, maridos, mulheres e filhos das dezenas de vítimas que morreram sem conseguir vaga na UTI: “Vão chorar até quando?” 

Em vez de pular de palanque em palanque, provocando ilusão e aglomeração, o presidente poderia dar uma esticada ao Rio Grande do Sul e à Bahia, que estão contratando contêineres refrigerados para acomodar corpos. Cara a cara, gritaria para médicos e enfermeiros enfrentarem o problema “de frente” e pararem com esse mimimi, só porque assistem, impotentes, exaustos, a mais e mais pessoas morrendo dia e noite. “Chega de frescura, de mimimi!” 

O presidente Jair Bolsonaro diante de aglomeração na cidade de São Simão, em Goiás, nesta quinta, 4 Foto: Alan Santos/PR

Essa gente não consegue entender que é só uma gripezinha e que está no finalzinho. E daí? Todo mundo vai morrer mesmo. O que o presidente pode fazer, coitado? O STF não deixa, os governadores só falam em isolamento e os idiotas querem vacina. Ele não é coveiro. E tem uma leitoa pururuca deliciosa esperando. Tchau! 

Com recordes diários, sistemas de saúde e funerários à beira do colapso, os governadores enfrentam tanto a pandemia quanto a resistência dos bolsonaristas ao lockdown e às medidas restritivas, enquanto as vacinas não vêm. Bem atrasado, o general da Saúde anuncia a Pfizer e a Janssen, mas a guerra é contra o tempo: quanto mais a vacinação demora, mais o vírus se espalha e gera novas variantes. O risco é se tornarem resistentes às vacinas já disponíveis. 

Não adianta ter restrições em São Paulo e não no Rio, no Paraná, e não em Santa Catarina, só no Ceará e Bahia, no Nordeste, e não no Amazonas, no Norte. E isso vale para o mundo. Se vários países fizerem tudo certo e o Brasil continuar fazendo tudo errado, pode se tornar o celeiro exportador de novas variantes e uma ameaça planetária. Mimimi? 

Se autoridades brasileiras seguiram o “Deus” Donald Trump e acusaram a China de ter intencionalmente criado o vírus e provocado a pandemia, que tal agora Pequim pagar na mesma moeda e acusar o presidente do Brasil de deixar o vírus correr solto, se multiplicar e sofrer mutações para destruir a humanidade? 

Na pandemia, o Brasil vive uma tragédia. Na economia, acaba de sair da lista dos dez países mais ricos do mundo, enquanto o presidente afugenta investimentos ao intervir politicamente na Petrobrás e impor constantes humilhações ao ministro Paulo Guedes e estimula tentativas de furar o teto de gastos. 

Não bastasse, Bolsonaro move mundos e fundos, GSI, AGU e as instâncias do Judiciário para bloquear as investigações que atingem o primogênito Flávio Bolsonaro, que se sente à vontade para comprar uma mansão de R$ 6 milhões em plena capital da República, sem explicar de onde vem a grana. O único cuidado foi buscar um cartoriozinho de Brazlândia, bem longe do centro, para esconder as peraltices. 

E não é que a mídia foi lá e descobriu tudo? Além de gerar pânico no País real pela pandemia, a mídia também gera pânico no mundo imaginário onde papai Jair dá de ombros para 260 mil mortos e só pensa em salvar um único pescoço: o do próprio filhote. O grito do senador Tasso Jereissati ecoa no País: “Tem de parar esse cara!”

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal - Pernambuco e do Telejornal GloboNews "Em Pauta". Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 05.03.2021.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Bolsonaro: 'Tem idiota que pede compra de vacina. Só se for na casa da tua mãe'

Presidente, que já recusou ofertas de farmacêuticas interessadas em vender imunizantes ao Brasil, afirma que não tem produto no mercado

O presidente Jair Bolsonaro demonstrou irritação nesta quinta-feira com aqueles que cobram em redes sociais que o governo federal compre vacinas contra a Covid-19, chamando-os de idiotas e dizendo que só poderia comprar imunizantes "na casa da tua mãe".

— Tem idiota nas redes sociais, na imprensa, 'vai comprar vacina'. Só se for na casa da tua mãe! Não tem para vender no mundo! — disparou o presidente a apoiadores em Uberlândia (MG).

Mais tarde, ao participar de cerimônia em Goiás, Bolsonaro classificou como "mimimi" as medidas adotadas por governadores e prefeitos para tentar frear a disseminação do coronavírus, responsável pela morte de mais de 1.900 pessoas somente entre terça e quarta-feira.

Bolsonaro por diversas vezes minimizou a pandemia, chegando a classificar a Covid-19 de "gripezinha" e afirmando que os brasileiros deveriam enfrentar o vírus "de peito aberto" e que o Brasil deveria deixar de ser um "país de maricas".

Ele também, por várias vezes questionou as vacinas, afirmando que não tomará o imunizante, e chegou a comemorar como uma vitória pessoal a breve interrupção dos testes com a vacina CoronaVac, do laboratório chinês Sinovac, feita pelo Instituto Butantan, determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) após a morte de um voluntário em um suicídio não relacionado à vacina.

Bolsonaro também disse que a CoronaVac não inspirava confiança devido à sua origem chinesa e chegou a garantir que o imunizante não seria adquirido pelo governo federal.

Entretanto, o Ministério da Saúde já fechou contrato com o Instituto Butantan, vinculado ao governo do Estado de São Paulo, por 100 milhões de doses da vacina chinesa e negocia a compra de mais 30 milhões.

Além da CoronaVac, imunizante que deu a largada à vacinação contra Covid-19 no Brasil em 17 de janeiro e que já teve 14,45 milhões de doses entregues ao Programa Nacional de Imunização (PNI), o Brasil conta com 4 milhões de doses da vacina AstraZeneca com Universidade de Oxford importadas prontas da Índia.

Essa vacina foi alvo de acordo formalizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligado ao governo federal, para o envase de doses no Brasil, mas com o atraso na chegada do insumo farmacêutico ativo (IFA) importado da China, nenhuma dose da vacina envasada no país foi aplicada pelo PNI até o momento.

Na quarta-feira, mais de um mês após o início da vacinação no país --que chegou a precisar ser interrompida em alguns locais por falta de doses-- o Ministério da Saúde anunciou que pretende adquirir doses da vacina da Pfizer, já registrada pela Anvisa e que foi oferecida à pasta sem resposta no ano passado, e da Johnson & Johnson, que já tem autorização para uso emergencial nos Estados Unidos.

O  Globo, em 04.03.2021

Brasil tem 1,6 mil mortos por covid-19 em 24 horas e total passa de 260 mil

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país

O Brasil acumula um total de 10.793.732 casos de covid-19 e 260.970 pessoas mortas pela doença, segundo boletim do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) divulgado nesta quinta-feira (4/3).

Nas últimas 24 horas, foram registrados oficialmente 1.699 óbitos e 75.102 novos casos da doença.

O Estado com maior número de vítimas fatais é São Paulo (60.694), seguido de Rio de Janeiro (33.466) e Minas Gerais (19.032).

Pelo 11º dia consecutivo, a média móvel em sete dias de mortes pela doença no país cresceu, atingindo 1.353 nesta quinta.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais mortes pela doença em todo o mundo. Ele está atrás apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 519,3 mil óbitos por covid-19, conforme registro da Universidade Johns Hopkins.

BBC News Brasil, em 4.03.2021

"Chega de mimimi", diz Bolsonaro após novo recorde de mortes

Presidente volta a atacar medidas de isolamento social após país registrar mais de 1.900 mortes por covid-19 em 24 horas. "Vão ficar chorando até quando?" Ele ainda chama de "idiota" quem pressiona por mais vacinas.

"Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando?", disse Bolsonaro em meio ao agravamento da pandemia.

O presidente Jair Bolsonaro afirmou nesta quinta-feira (04/03) que é preciso parar de "frescura" e "mimimi" em meio à pandemia e perguntou até quando as pessoas "vão ficar chorando?". Ele ainda chamou de "idiotas" as pessoas que vêm pedindo que o governo seja mais ágil na compra de vacinas.

As declarações ocorrem um dia depois de o Brasil registrar um novo recorde na contagem diária de mortes por covid-19, com 1.910 óbitos. O total de mortes no país já passa de 259 mil, e vários estados vêm registrando colapso no sistema de saúde.

As declarações foram feitas durante um evento que marcou a assinatura de inauguração de um trecho da ferrovia Norte-Sul em São Simão, em Góias, que contou com a presença de produtores rurais. Como sempre vem fazendo, Bolsonaro provocou aglomerações e não usou máscara.

"Vocês [produtores rurais] não ficaram em casa, não se acovardaram. Temos que enfrentar nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando? Respeitar obviamente os mais idosos, aqueles que têm doenças. Mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?", disse o presidente.

"Até quando vão ficar dentro de casa, até quando vai se fechar tudo? Ninguém aguenta mais isso. Lamentamos as mortes, repito, mas tem que ter uma solução. Tudo tem que ter um responsável."

"Idiota"

Em outra etapa da viagem, em Uberlândia, ao falar com apoiadores, Bolsonaro ainda insultou usuários de redes sociais e jornalistas que questionam a lentidão e desorganização do governo na compra de vacinas.

"Tem idiota que a gente vê nas redes sociais, na imprensa, [dizendo] 'vai comprar vacina'. Só se for na casa da tua mãe. Não tem [vacina] para vender no mundo", disse o presidente. No entanto, seu próprio governo admitiu que rejeitou ao longo do ano passado propostas de laboratórios para a compra de vacinas.

O governo apostou inicialmente todas as suas fichas na vacina da AstraZeneca, que vem sendo marcada por atrasos, e inicialmente esnobou e criticou a vacina chinesa Coronavac, promovida pelo governo de São Paulo, e que no momento é o único imunizante disponível em larga escala no país.

O presidente ainda voltou a reclamar de medidas de isolamento que vêm sendo impostas por prefeituras e governos estaduais para tentar frear o avanço da pandemia e diminuir a pressão sobre o sistema de saúde, que está à beira do colapso em várias regiões do país.

"Impuseram estado de sítio no Brasil via prefeituras. Isso está errado. Estamos preocupados com mortes, sim, mas sem pânico. A vida continua. Os problemas a gente tem que enfrentar, não adianta ir para baixo da cama. Se todo mundo for ficar em casa, vai morrer todo mundo de fome", disse o presidente.

Bolsonaro ainda mencionou seu veto a uma medida que permitia que estados comprassem vacinas em caso de omissão do governo federal e posteriormente fossem reembolsados pela União. "Alguns governadores queriam direito a comprar vacina e quem iria pagar? Eu! Onde tiver vacina para comprar, nós vamos comprar", disse Bolsonaro.

Na quarta-feira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que vem sofrendo críticas constantes por causa da inabilidade da pasta em conter a crise, anunciou que pretende comprar vacinas dos laboratórios Pfizer e Janssen. No entanto, apesar da fanfarra usada pelo ministro, nenhum negócio foi efetivamente fechado até agora.

O anúncio de Pazuello também ocorreu um dia após o governador paulista João Doria manifestar interesse na compra de vacinas da Pfizer. Nos últimos meses, vários anúncios similares de Pazuello não se confirmaram, e o país continua a sofrer com a escassez de imunizantes.

Deutsche Welle rasil, em 04.03.2021

Miguel Nicolelis: “Brasil pode cruzar a marca de 3.000 óbitos diários por covid-19 nas próximas semanas”

Cientista defende um ‘lockdown’ nacional para evitar colapso sanitário. “Vamos entrar numa situação de guerra explícita. Podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”

O médico Miguel Nicolelis.São Paulo volta à fase mais restrita da quarentena após internar uma pessoa a cada dois minutos

Médico, neurocientista e professor catedrático da universidade Duke (EUA), Miguel Nicolelis coordenou ao longo da pandemia de coronavírus o Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a covid-19. Deixou o grupo no final de fevereiro após meses traçando previsões e orientando os governadores sobre quais medidas deveriam tomar para conter a curva de contágios e evitar o colapso de hospitais públicos e privados. Uma catástrofe que, afirma em entrevista ao EL PAÍS por telefone nesta quarta-feira, está prestes a ocorrer. “Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos”, afirmou o médico, que também é colunista deste jornal.

Na conversa, ele afirma que, de acordo com seus cálculos, nos próximos dias o país começará a registrar 2.000 mortes diárias. Horas depois, o Ministério da Saúde registrou 1.910 mortes por covid-19, mais um recorde. “A possibilidade de cruzarmos 3.000 nas próximas semanas passou a ser real”, prevê. Ele argumenta que aumentar o número de leitos já não adianta e que a única saída é decretar um lockdown nacional pelas próximas três semanas.

Pergunta. O que esperar para as próximas semanas ou dias?

Resposta. Nós vamos entrar numa situação de guerra explícita. Nós podemos ter a maior catástrofe humanitária do século XXI em nossas mãos. A possibilidade de cruzar 2.000 óbitos diários nos próximos dias é absolutamente real. A possibilidade de cruzarmos 3.000 mortes diárias nas próximas semanas passou a ser real. Se você tiver 2.000 óbitos por dia em 90 dias, ou 3.000 óbitos por 90 dias, estamos falando de 180.000 a 270.000 pessoas mortas em três meses. Nós dobraríamos o número de óbitos. Isso já é um genocídio, só que ninguém ainda usou a palavra. O que são 250.000 mortes sendo que a vasta maioria poderia ter sido evitada?

P. São Paulo voltou para a fase vermelha e fechou comércios e serviços não essenciais. O que pode acontecer com o Estado?

R. Acho que São Paulo vai colapsar. Campinas já colapsou. Rio Preto colapsou. Ribeirão Preto está no mesmo caminho. A cidade de São Paulo não vai aguentar. O Hospital Emilio Ribas já está 100% e com fila de espera. O Hospital das Clínicas, que tem um dos maiores números de leitos de UTI do Brasil, está com 80% de ocupação e vai colapsar.

P. Estados têm apostado na abertura de novos leitos. Abrir novos leitos adianta?

R. Não tem mais médico, não tem mais enfermeiro. Todo mundo sabe, e os políticos sabem também, que a velocidade de crescimento do vírus é exponencialmente mais veloz que a capacidade de criar, equipar e por gente no leito de UTI. Não tem como combater isso criando mais vagas nos hospitais. É a típica estratégia de maquiagem. Aumenta os leitos, mas os leitos às vezes nem funcionais estão, mas vão para a conta e diminui a taxa de ocupação.

P. O que fazer então? Os governadores e secretários da Saúde pressionaram nesta semana o presidente Jair Bolsonaro por medidas.

R. É preciso decretar lockdown de pelo menos 21 dias e pagar um auxílio financeiro para que as pessoas fiquem em casa. Os governadores sabem que o Governo Federal não vai fazer nada, estão querendo empurrar a responsabilidade. Estou sugerindo desde de novembro de criar uma Comissão Nacional com a sociedade civil, governadores e Supremo, que precisa decretar uma tutela judicial no Ministério da Saúde. Uma intervenção. E essa Comissão Nacional ficaria responsável por tomar decisões e supervisionar toda a logística.

P. Mas a população já não respeita as medidas de restrição. Acataria um lockdown?

R. A população nunca teve uma mensagem correta da gravidade da pandemia porque não temos nenhum estadista no país. As pessoas estão falando de sucessão presidencial em 2022 quando o país está morrendo na pandemia. Faltou decisão política e visão estratégica. Faltou as pessoas eleitas pensarem não nos lobbys econômicos e políticos que as sustentam, mas nos cidadãos como prioridade. É preciso bancar uma decisão. John Barry, o maior historiador norte-americano de pandemias, escreveu que, mesmo com a ciência moderna, o que decide o destino de uma sociedade na pandemia é a decisão política, a opção política dos líderes de defender a população. Por isso que você é eleito, para liderar mesmo nos momentos em que a coisa correta a ser feita é impopular. É preciso convencer a população de que aquilo precisa ser feito.

P. Caso não haja lockdown nacional, como tudo indica... O vírus não tem uma dinâmica própria, em que o contágio sobe muito, chega a um pico e depois começa a descer por causa da sazonalidade, entre outras questões?

R. Não quando se tem um vírus mutando fora de controle e se novas variantes são mais letais e mais contagiosas. Cada variante tem sua dinâmica própria. Como você falou, cresce, chega ao pico e cai. Mas se você tem dezenas de variantes superpostas umas nas outras... Acabaram de detectar a variante da Califórnia em Minas Gerais, porque alguém veio de avião dos Estados Unidos e trouxe ela. Nós recomendamos fechar os aeroportos em agosto. Repetimos em setembro. E evidentemente a Infraero não deu bola. Temos no Brasil a reunião de todas as variantes, inclusive as nossas próprias. Essa é a bomba relógio.

P. Sendo assim, quem teve covid-19 meses trás pode acabar se reinfectando?

R. Se você foi contaminado com a variante inicial brasileira, os anticorpos que você desenvolveu são nove vezes menos eficientes para combater a nova variante amazônica. Por que temos que tomar a vacina contra a Influenza a cada ano? Porque as variantes surgem. Mas o que estamos tendo de número de infecctados do coronavírus é muito grave, então a chance do vírus mutar é muito maior.

P. Você mencionou em outra entrevista a possibilidade de colapso funerário. Como isso pode se dar?

R. Porto Alegre já está entrando, um hospital teve de comprar containers para estocar os corpos porque não estava dando conta de manejá-los. Isso é Manaus. A população cidade de São Paulo é nove vezes maior que a de Manaus. A Grande São Paulo é 20 vezes maior. Se a cidade São Paulo cai, todo o Estado de São Paulo cai. É como uma guerra mesmo: quando um batalhão importante cai, todas as forças armadas são comprometidas. É um efeito cascata. Minha metáfora é que somos Stalingrado, estamos cercados neste momento.

FELIPE BETIM, de São Paulo para o EL PAÍS, em 04 MAR 2021

Bolsonaro aparece com aprovação abaixo de 30% e tem evangélicos como principal base. Conheça a pesquisa

Levantamento aponta que 39% avaliam a gestão do presidente como ruim ou péssima

No pior momento da pandemia e ainda sem a retomada do pagamento do auxílio emergencial, a aprovação do presidente Jair Bolsonaro aparece abaixo do patamar de 30% da população, segundo pesquisa do IPEC (Inteligência, Pesquisa e Consultoria). O levantamento, realizado entre 18 e 23 de fevereiro, aponta que 28% dos entrevistados consideram a gestão Bolsonaro ótima ou boa, enquanto 39% avaliam como ruim ou péssima. Segundo os dados do IPEC, o eleitorado evangélico é a principal base de apoio a Bolsonaro, que tem avaliação positiva de 38% neste segmento. A margem de erro é de dois pontos.

Em levantamentos de institutos como Datafolha e Ibope em 2020, o nível de aprovação geral do governo Bolsonaro quase sempre ultrapassava um terço da população. Em dezembro, apesar do aumento de mortes em decorrência da Covid-19 após as eleições municipais, o presidente manteve 37% de aprovação. Já no fim de janeiro, primeiro mês após o fim do pagamento das parcelas de R$ 300 do auxílio emergencial, o Datafolha apontou queda nas avaliações positivas, com 31% considerando o governo ótimo ou bom, e rejeição na casa de 40%. A retomada do auxílio, agora em quatro parcelas de R$ 250 cada, faz parte da PEC Emergencial no Senado.

O IPEC, instituto formado por executivos que deixaram o Ibope após o encerramento das atividades com pesquisas de opinião pública, aponta ainda neste levantamento que, para 87% dos brasileiros, há alguma expectativa de pagamento do auxílio emergencial “até a situação econômica voltar ao normal” — o que pressupõe um prazo maior do que os quatro meses do planejamento do governo federal. Segundo a pesquisa, 72% concordam totalmente com esta visão; 15% concordam em parte.

 91% do nordeste

O maior clamor por uma disponibilização prolongada do auxílio vem do Nordeste, onde 91% concordam total ou parcialmente que o benefício deve ser pago até que o cenário econômico esteja em normalidade. As regiões Norte/Centro-Oeste e Sudeste aparecem com 87% de concordância parcial ou total neste item, enquanto o Sul tem 80%.

No recorte por renda, 93% dos que têm renda mensal de até um salário mínimo — parcela da população à qual o benefício é majoritariamente destinado — concordam, ao menos de forma parcial, que o auxílio deve durar até uma normalidade econômica. Ontem, a divulgação do PIB de 2020 pelo IBGE apontou que o país não se recuperou do impacto da pandemia da Covid-19, fechando o ano com um rombo de 4,1%. Na última semana, Bolsonaro afirmou que o benefício “custa caro” e representa “um endividamento enorme”, ao justificar que a União não poderia pagar o auxílio indefinidamente.

Para a cientista política Luciana Veiga, professora da Unirio, o cenário atual de baixa aprovação, na medida em que traz preocupações para Bolsonaro em seu projeto de reeleição em 2022, pode estimular o presidente a tentar um prolongamento do benefício, contrariando suas próprias declarações e as projeções da área econômica, comandada pelo ministro Paulo Guedes. A especialista observa que, segundo a pesquisa do IPEC, nos estratos de menor remuneração e no Nordeste a avaliação do governo como regular fica acima da média nacional.

— O que Bolsonaro faz com o auxílio não é conquistar eleitores que não gostam dele, mas sim trazer o que está nesse bloco do regular. É um eleitor muito prático, menos apegado a questões ideológicas, e que pode oscilar a depender do impacto do governo federal em sua vida. É aí que entra o auxílio. Por outro lado, este eleitor também é mais pressionado pelo cenário da Saúde, já que depende da rede pública — avaliou Veiga.

A CEO do IPEC, Márcia Cavalari, afirma que a análise dos resultados deve levar em consideração o contexto à época da realização das pesquisas. O levantamento do IPEC, que ouviu 2.002 pessoas presencialmente em 143 municípios, ocorreu nos dias que se seguiram à primeira ameaça de Bolsonaro de trocar o comando da Petrobras por insatisfação com aumentos nos preços de combustíveis, o que gerou reação negativa do mercado, com forte queda no valor das ações da empresa. O anúncio da demissão de Roberto Castelo Branco da presidência da petroleira ocorreu no dia 19, durante a realização da pesquisa.

— Esta é uma das possíveis hipóteses para que a rejeição ao governo seja mais alta entre os eleitores com maior remuneração do que entre os mais pobres. Para o segmento de menor renda, a troca pode não ter soado tão ruim, por conta do discurso de baratear o combustível — afirmou Márcia.

Capitais registram panelaços em protesto contra Bolsonaro após novo recorde de mortes por covid

Entre os eleitores que declaram renda mensal superior a cinco salários mínimos, 47% disseram considerar o governo ruim ou péssimo, enquanto 24% consideram ótimo ou bom. Entre os mais pobres, com renda de até um salário mínimo, o nível de aprovação é semelhante (26%), mas o percentual dos que rejeitam o governo é bem menor: 38%.

Acenos conservadores

A parcela evangélica do eleitorado apresenta, na pesquisa do IPEC, um desenho inverso em relação à avaliação geral do governo. Neste segmento, é o percentual de avaliações como ótimo ou bom que se aproxima da faixa de 40% dos entrevistados — e não a rejeição, como ocorre no recorte mais amplo da pesquisa. Entre os evangélicos, 27% consideram o governo ruim ou péssimo. É a menor taxa de rejeição registrada em todo o levantamento.

Para a cientista política Luciana Veiga, a situação se explica pelo fato de Bolsonaro se manter “sem inconsistências” na defesa da chamada pauta de costumes ao longo do mandato — o que difere, segundo a especialista, do comportamento oscilante em outras bandeiras, como a agenda econômica liberal e a pauta anticorrupção. Nos dois primeiros anos de governo, Bolsonaro procurou fazer acenos recorrentes a lideranças evangélicas que atuam em igrejas espalhadas pelo país, e que já o haviam apoiado durante as eleições de 2018. O presidente tem prometido que indicará um evangélico para a próxima vaga que se abrirá no Supremo Tribunal Federal (STF), em julho, com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello.

Bernardo Mello, O Globo, em 04/03/2021 

Editorial do Estadão: Investimento no caos

 É na confusão que Bolsonaro prospera e, com ele, oportunistas de diversos quilates

O presidente Jair Bolsonaro não governa; afronta. 

Já chamou de “maricas” seus concidadãos que respeitam as medidas de isolamento social para se proteger da covid-19; já sugeriu que os brasileiros forçados a trabalhar em home office, como o presidente da Petrobrás que ele demitiu, são ociosos; já se disse favorável a “retirar de circulação” os veículos de imprensa que não o bajulam, pois são “fábricas de fake news”. 

A lista de ofensas está longe de se esgotar aí: o presidente vive de inventar inimigos, aos quais atribui todos os problemas que lhe cabe administrar.

Nos últimos dias, em meio ao recrudescimento da pandemia e seu consequente ônus político, Bolsonaro apontou seus canhões contra os governadores de Estado. Não é de hoje que os governadores são tratados a pontapés pelo presidente, ávido por lhes transferir a culpa por tudo de ruim que acontece no Brasil – do aumento dos preços dos combustíveis à decepcionante recuperação da economia. Agora, diante da catástrofe econômica e social da pandemia, Bolsonaro dobrou a aposta nesse confronto.

Usando dados distorcidos ou simplesmente inventados, o presidente acusou os governadores de desperdiçar recursos repassados pela União aos Estados. Tratou esse dinheiro como se fosse um favor seu, pessoal, aos governadores, e não fruto de obrigações previstas na Constituição. E ainda insinuou que o dinheiro foi mal aproveitado pelos governadores, o que teria colaborado para o colapso do sistema de saúde em vários Estados.

Os governadores reagiram com uma nota dura, assinada por 16 deles, em que rebatem ponto por ponto as patranhas do presidente. Acusam Bolsonaro de investir na “má informação” e na “promoção do conflito”. O fato de alguns dos signatários serem alinhados ao presidente é bastante significativo – pode indicar que, mesmo para seus aliados, Bolsonaro passou dos limites.

Bolsonaro, contudo, está em seu hábitat. O presidente partiu para mais um confronto não por seu tino estratégico, mas sim por sua natureza. Em toda a sua trajetória política, Bolsonaro jamais se apresentou como conciliador ou sequer interessado em dialogar. Sempre ganhou votos dos ressentidos ao regurgitar rancor contra a democracia – e é sintomático que nem partido tenha, depois de ter passado por quase uma dezena deles.

Bolsonaro, bem como seus seguidores extremistas, despreza profundamente a política, que é a conciliação de pontos de vista divergentes em favor dos interesses abrangentes da sociedade. 

A própria ideia de coletividade e de cooperação – com seus desdobramentos constitucionais, como o princípio federativo – inexiste no bolsonarismo.

Ao contrário, o bolsonarismo é a expressão mais estridente do progressivo esgarçamento dos laços de solidariedade que sustentam a vida em sociedade e que são fundamentais especialmente em tempos de crise aguda, como a que ora atravessamos. Caso não seja derrotada, essa ideologia deletéria tornará muito mais difícil encontrar soluções duradouras para os grandes problemas da sociedade – que, assim sendo, continuará a se consumir em conflitos pelos mais banais motivos, tornando-se praticamente impossível alcançar consenso mesmo para questões comezinhas.

É nesse caos que Bolsonaro prospera – e, com ele, oportunistas de diversos quilates. Se é cada um por si, então não surpreende que, em vez de procurarem meios de viabilizar alguma forma de auxílio emergencial para quem perdeu renda na pandemia, os deputados estejam empenhados em aumentar em R$ 18,4 bilhões as emendas orçamentárias a que têm direito para asfaltar ruas e inaugurar pontes em seus currais eleitorais. Farinha pouca, o pirão de sempre primeiro.

Enquanto o presidente e seus aprendizes vivem no conforto da delirante mitologia bolsonarista, os gestores de saúde, obrigados a lidar com a realidade da pandemia, já informaram que é urgente ampliar as medidas de restrição para evitar uma tragédia ainda maior. Em seu apelo desesperado, propuseram um “pacto nacional pela vida” – que, no entanto, só será possível se o País superar o bolsonarismo, condição indispensável para recuperar o sentido de nação.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 04 de março de 2021 

Waack: Cada um por si

A pandemia acelerou a já existente perda de autoridade do governo 

Já é lugar comum afirmar que o maior efeito da pandemia ao redor do mundo foi o de acelerar ou agravar problemas já existentes. No caso do Brasil, ela escancarou a falta de governo, além da desigualdade, miséria e ignorância, mazelas bem antigas. No Brasil, a pandemia não “inventou” a má gestão pública nem o desperdício de recursos. Ela ensinou que não há governo efetivo sem capacidade de liderança política – outro problema do qual padecemos há tempos. 

A extraordinária incapacidade de Jair Bolsonaro para liderar e coordenar criou com a pandemia um fenômeno novo na política brasileira. É o cada um por si dos entes da Federação, e a instituição da dupla de primeiros ministros nas figuras dos presidentes das casas legislativas. Em linguagem militar, talvez ainda familiar a alguns ocupantes do Planalto, o Estado Maior da crise não está como deveria estar na Casa Civil e no Ministério da Saúde (instâncias do Executivo sob o comando nominal de generais) mas, na prática, foi para o Congresso. 

Jair Bolsonaro (centro), ladeado pelos presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO (23/2/2021)

É nas casas legislativas que se decide agora o essencial para se tentar minorar os devastadores efeitos da maior tragédia da nossa história recente. É para lá que correm prefeitos e governadores na linha de frente do combate ao vírus. É lá que se negocia a aprovação de um mínimo de ajuda que impeça pessoas de morrer de fome. É lá que existe pressa e urgência para flexibilizar e acelerar a aquisição de imunizantes por quem quer que seja, incluindo empresas privadas. O arcabouço jurídico foi criado pelo STF, que transformou um de seus integrantes em virtual ministro da Saúde. 

Um resultado evidente dessa situação cujo alcance Bolsonaro não parece ter percebido ainda é a profunda desmoralização política associada a um governo visto como incompetente. Presidentes anteriores já foram desmoralizados por eventos abrangentes em parte piorados por eles mesmos, como ocorreu com Sarney/Collor (hiperinflação) e Dilma (recessão). No caso de Bolsonaro, além do estelionato econômico eleitoral do qual Paulo Guedes está se tornando cúmplice, é a pandemia que acelera perigosa desmoralização. 

A confluência de crise econômica, tragédia de saúde pública e incapacidade de liderança política (com seus graves riscos de populismo fiscal) compõe a “tempestade perfeita” mencionada por agências de classificação de risco ao publicarem no começo da semana cenários a curto prazo para o Brasil. O agravamento da crise de saúde pública faria as demandas sociais crescerem em ritmo mais rápido do que o “tempo político” necessário para a aprovação de medidas de contrapartida à continuidade da ajuda emergencial, trazendo ainda mais insegurança aos agentes na economia. 

Bolsonaro está no modo de sempre, dedicado a buscar culpados e livrar-se de responsabilidades. A aparente tranquilidade com que enfrenta um quadro que se agrava nitidamente vem de dois fatores proporcionados por sua estreita visão da realidade. O primeiro é a percepção de garantia política dada pela dupla de primeiros ministros – que, na verdade, mal controlam as próprias casas, como ficou demonstrado no episódio da PEC da imunidade ou impunidade dos parlamentares. 

O segundo é o aparente conforto trazido pelo aparelhamento das instâncias superiores do Judiciário – nomeações “casadas” para o STJ e STF, em estreito entendimento com os movimentos políticos evangélicos. Percalços jurídicos policiais de curto prazo em relação à família do presidente estão afastados, ao mesmo tempo em que não existe nada remotamente parecido à presença de uma Lava Jato para criar dificuldades políticas agudas para o atual governo (como aconteceu com Dilma). 

Desmoralização é um fenômeno político forte e de difícil reversão, que costuma nascer e se propagar primeiro nos vários componentes de elites (administração pública, setores empresariais e financeiros, profissionais liberais, elites culturais em sentido amplo). A perda de autoridade de Bolsonaro já se fazia sentir antes da pandemia, fato demonstrado pela maneira como o Legislativo e o STF encurtaram seu poder. A pandemia, como se diz, acelerou o que já existia. 

William Waack é Jornlista. Apresentador do Jornal da CNN Brasil. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 04.03.2021.

Transmissão descontrolada do vírus da covid-19 pode fazer do Brasil 'celeiro' de variantes

Quanto mais o Sars-CoV-2 circula, e se replica dentro dos seres humanos, maior a chance de ele acumular mutações e gerar novas cepas


Paciente com covid-19 internado no Hospital Emilio Ribas. Foto: Tiago Queiroz| Estadão

Cientistas brasileiros comprovam infecção simultânea por duas variantes do coronavírus

'É surpreendente ver que tantas mutações estão aparecendo ao mesmo tempo em tantos lugares'

A disseminação sem controle do novo coronavírus no Brasil está deixando cientistas nacionais e estrangeiros em alerta sobre o impacto que isso pode ter sobre a pandemia como um todo, em especial no surgimento de novas variantes do Sars-CoV-2. Uma preocupação é que o País se torne uma espécie de "celeiro" de mutações, dificultando ainda mais o combate à covid-19.

Quanto mais o vírus circula, e se replica dentro dos seres humanos, maior a chance de ele acumular mutações e gerar novas variantes. É um processo que faz parte da natureza desse organismo, mas é favorecido em cenários de descontrole como o que vemos no Brasil, que enfrenta o pior momento da pandemia em um ano em meio a um relaxamento das medidas de segurança. Enquanto o número de casos e de mortes vem caindo em várias partes do mundo, aqui só tem subido.

Somente nesta quarta-feira, 3, foram registrados mais de 74 mil novos casos, o  maior valor em todo o mundo, e 1.840 mortes, recorde desde o início da pandemia no País. Os Estados Unidos tiveram cerca de 60 mil novas infecções.

Nesse movimento de evolução do vírus, de vez em quando podem aparecer variantes muito diferentes, como é o caso da P.1, que surgiu em Manaus, e também das originadas no Reino Unido e na África do Sul. Por causa disso elas são chamadas de VOCs (variantes de preocupação, na sigla em inglês). Em geral, sabe-se que vírus, no decorrer de uma epidemia, podem apresentar de uma a duas mutações por mês. No caso da P.1 e das demais, foram cerca de 20 de uma tacada só. Por isso elas preocupam.

O motivo para isso ocorrer ainda não é bem compreendido pela ciência. São como os acidentes de avião, compara a imunologista Ester Sabino, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical da USP. “É uma sucessão de eventos raros. Há milhares de aviões no ar e uma hora ocorrem vários erros e um cai. Mas quanto mais aviões estiverem no ar, maior a chance. Ter 20 mutações em um mês é inesperado. Alguma coisa aconteceu e a gente não entende bem”, afirma.

A cientista - que está colaborando com estudos que buscam entender a transmissibilidade da P.1 e como ela pode escapar de anticorpos, permitindo assim a reinfecção - pondera, no entanto, que a variante só se torna um problema quando, além de adquirir muitas mutações, ganha espaço para infectar muitas pessoas.  “A P.1 é realmente mais transmissível. Se não tomar cuidado, a chance é maior de se contaminar com ela”, diz.

Ainda não há evidências para dizer se esta variante tomou conta da epidemia no Brasil nem se é a responsável pela explosão de novos casos observada na maior parte do País. Sabe-se que a P.1 é a principal linhagem em Araraquara (interior de São Paulo) e em Porto Alegre - cidades que viram seus sistemas de saúde lotarem -, e em Manaus, onde o colapso dos hospitais levou pacientes a morrerem por falta de oxigênio. Apesar do avanço das variantes, o Brasil reduziu no começo do ano o número de sequenciamentos genéticos, essencial para rastrear as cepas. 

O virologista Mauricio Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, reforça a ressalva feita por Ester de que o simples fato de a variante com mais mutações surgir não pode ser considerada a única explicação para o cenário de caos que se instalou no País.“Estamos dando oportunidade para esse acaso acontecer”, afirma ele.

“É muito conveniente para a sociedade, políticos e autoridades afirmarem que a culpa é da variante mais transmissível. Como se tivessem feito tudo para conter o problema, mas a variante tomou conta da cidade. Se tivéssemos tomado as medidas de segurança, não teria acontecido. A forma de prevenir é a mesma: distanciamento social e uso de máscara. O fato é que damos toda a oportunidade do mundo para que o vírus gere a maior quantidade do mundo de mutações”, diz.

Ele explica que o surgimento das variantes é matemático. “A cada X multiplicações, vai ter mutação. Quanto mais multiplicar, mais variantes vai gerar. Agora no Brasil é onde o vírus mais está se multiplicando, é onde já há o maior número de novos casos por dia. Se essa variante tem a oportunidade de ser transmitida quando a pessoa onde a mutação surgiu pega um avião lotado, vai ao cinema, ao restaurante... aí estamos nos tornando um celeiro de variantes e distribuindo-as à vontade dentro do País”, alerta.

Para o virologista Felipe Naveca, pesquisador da Fiocruz Amazônia à frente dos estudos que mostraram a prevalência da P.1 em Manaus e como a linhagem é mais transmissível, esse é um risco que pode ocorrer onde houver o descontrole. “O Brasil e todos os países que deixaram o vírus correr solto estão sendo incubadoras de novas variantes. Relatos nesta semana apontam para mais duas prováveis novas variantes de preocupação nos Estados Unidos: na Califórnia e em Nova York. Em todos os países com esse discurso de que devemos deixar o vírus circular para dar imunidade (de rebanho), a gente está vendo o que está acontecendo”, comenta.

De acordo com o pesquisador, nos últimos três ou quatro meses houve aceleração da evolução do vírus. “Isso está claro. Não somos só nós, todos os grupos de pesquisa estão mostrando isso. O surgimento da linhagem do Reino Unido, da África do Sul e do Brasil - com algumas mutações em comum relacionadas ao escape de anticorpos e a maior transmissão - mostram que o vírus deu um salto de evolução", diz Naveca. "Então, a chance de termos novas variantes cada vez mais adaptadas ao ser humano é muito grande se a gente continuar dando essa liberdade para o vírus. A gente precisa urgentemente diminuir a transmissão do vírus”, frisa.

Giovana Girardi e Fabiana Cambricoli , O Estado de São Paulo, em 04 de março de 2021 

Agora governo e Congresso estão passando a boiada de verdade

Bolsonaro e seus aliados usam a situação dramática da pandemia para fazer avançar medidas controversas. Em jogo estão vários ganhos democráticos recentes, escreve Alexander Busch.    

Arthur Lira, novo presidente da Câmara: PECs polêmicas estão avançando rápido na Casa

Em abril passado, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu em uma reunião de gabinete que a pandemia deveria ser usada pelo governo para mudar o maior número possível de leis ambientais, enquanto o país estivesse distraído com a crise em torno do coronavírus.

É exatamente isso que está sendo feito agora no Congresso, onde, há três semanas, foram instalados dois presidentes alinhados ao governo.

Enquanto o Brasil vive um novo pico no número de infectados e mortos pelo coronavírus, projetos de lei complicados, preparados durante muito tempo, aparecem de repente, do nada. E o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, quer agora submetê-los a uma votação rápida – antes mesmo que tenham sido instaladas as comissões que deveriam debatê-los primeiro.

Trata-se de decisões fundamentais para a política e a economia do Brasil.

A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) Emergencial visa emendar a Constituição para que os gastos sociais possam ser elevados acima do teto para uma emergência como a pandemia. Isso sem que o governo seja responsabilizado posteriormente, como foi o caso recentemente da ex-presidente Dilma Rousseff em seu impeachment.

A PEC não terá qualquer concessão ao Legislativo: ela vai avançar aparentemente sem nenhuma mudança no campo dos gastos. Os cortes planejados nos salários dos funcionários públicos não aparecem mais. O governo quer eliminar os gastos mínimos estabelecidos para educação e saúde nos três níveis federais, para que governo federal, governador e prefeito possam usar o dinheiro como acharem melhor.

Já com a chamada "PEC da Impunidade", os deputados querem acima de tudo se proteger do Judiciário. Por exemplo, no futuro, eles devem decidir por si mesmos se um de seus próprios deve permanecer em prisão preventiva, mesmo que o STF  tenha assim ordenado.

Além disso, um grande número de delitos não deve mais ser passível de punição: no futuro, deverá ser possível novamente empregar parentes, e quem não prestar contas de suas campanhas eleitorais com transparência não estará mais em risco. O ônus da prova é invertido: qualquer pessoa que trapacear em licitações públicas ou obtiver privilégios como deputado só poderá ser processada se houver "prejuízo ao erário" ou "dolo".

Também deve ser abolida a lei da Ficha Limpa, segundo a qual os deputados com antecedentes criminais não podem mais concorrer em eleições. Isso após a Lava Jato ter sido recentemente desmantelada pelo Ministério Público.

Mesmo que a PEC da Impunidade vá agora ser discutida por uma comissão, a tendência é clara: governo e Congresso querem se livrar rapidamente de uma maior transparência e dos controles democráticos e de corrupção cuidadosamente incorporados ao sistema legal nos últimos dez anos.

Para garantir o bom funcionamento de tudo isso, o presidente Bolsonaro colocou a Petrobras como isca para os deputados e senadores, instalando ali um general que cumprirá suas ordens. O mesmo acontecerá no Banco do Brasil.

O cálculo de Bolsonaro provavelmente vai funcionar: dentro de um ano e meio, a campanha eleitoral terá início. Os deputados e senadores vão querer subsídios, contratos e cargos para aliados. Eles votarão esmagadoramente a favor dos projetos de lei. Se não for agora, vai ser dentro de algumas semanas.

Para a democracia brasileira, este é um amargo passo para trás

Há mais de 25 anos, o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul do grupo editorial Handelsblatt (que publica o semanário Wirtschaftswoche e o diário Handelsblatt) e do jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em São Paulo e Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil. Clique aqui para ler suas colunas. 

'Foi horrível, não tem explicação', diz filha de paciente que morreu antes de ser transferido para a UTI


Sobrecarga das unidades hospitalares de Santa Catarina teve início em meados de fevereiro (Crédito foto: Corpo de Biombeiros - SC)

O aposentado Dirceu Luiz Fava, 66 anos, morador de Xanxerê, no interior de Santa Catarina, parecia estar respondendo bem ao tratamento repassado pelo médico do plano de saúde nos primeiros dias de sintomas da covid-19. A partir do quinto dia, porém, a situação começou a se agravar.

O médico tentou trocar a medicação, sem sucesso. Um kit de oxigênio foi providenciado e serviu para mantê-lo em atendimento domiciliar por mais quatro dias. Fava tinha comorbidades, era obeso e estava com pneumonia. No nono dia da doença, na última segunda-feira (1/3), o profissional de saúde que o atendia em casa constatou que ele precisava de um leito de UTI para sobreviver.

Após contato com o único hospital da cidade, o Hospital Regional São Paulo, a família conseguiu um leito improvisado na emergência, que é a porta de entrada da unidade. O espaço, hoje com 30 pessoas, foi reorganizado para atender os pacientes graves da covid-19, mas não corresponde às necessidades de uma UTI.

Fava foi atendido pela equipe médica de plantão e foi intubado ali na emergência mesmo. Horas mais tarde, a filha Rosemeri Fava recebeu a notícia de que o pai não havia resistido.

"Veio a médica conversar, disse que não tinha leito [de UTI] e que tinha mais de 20 [pacientes] na frente dele. Foi horrível. Não tem explicação, não tenho palavras", lamentou Rosemeri.

Dirceu Fava deixou quatro filhos e esposa. Ele é um entre pelo menos 43 pacientes que morreram enquanto aguardavam leitos de UTI em Santa Catarina de fevereiro para cá.

A reportagem confirmou pelo menos 15 óbitos no Hospital Regional São Paulo, em Xanxerê; 14 na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Chapecó; uma no Pronto Atendimento da Epafi, em Chapecó; 12 no Hospital Regional de São Miguel do Oeste; e uma no Hospital Municipal Santo Antônio, em Itapema.

Todos esses pacientes receberam atendimento em unidades de saúde, inclusive em leitos improvisados, mas não conseguiram transferência para UTI.

O governo de Santa Catarina não se pronunciou sobre os números, mas confirmou que havia 251 pacientes aguardando leitos de UTI até a tarde desta quarta-feira (3/3).

Entre os pacientes que morreram na fila de espera estão duas técnicas de enfermagem que atuavam na linha de frente da covid-19, conforme as informações divulgadas pelo Conselho Regional de Enfermagem.

Uma delas é Zeni Buenos Pereira, de 53 anos, que trabalhava no Centro Integrado de Saúde de Itajaí.

A profissional sentiu os sintomas no dia 23 de fevereiro e foi atendida no Hospital Municipal Santo Antônio, em Itapema. Ela já estava fazendo uso de máscara de oxigênio e precisava de um leito de UTI. No dia 25, conseguiu uma vaga no Hospital Marieta Konder Bornhausen, em Itajaí, mas morreu antes de ser transferida.

Eliandre Boscato, de 43 anos, que atuava na Associação Hospitalar Padre João Berthier, em São Carlos, passou por situação parecida.

Foi internada no dia 20 de fevereiro na unidade em que trabalhava, mas precisou ser transferida para o Hospital Regional São Miguel do Oeste. Quando chegou à unidade, ficou mais um dia em um leito improvisado e não resistiu, morreu no dia seguinte, em 28 de fevereiro.

Cassio de Nakano, diretor clínico do Hospital Regional de São Miguel do Oeste, fez um desabafo na última coletiva de imprensa que ocorreu na terça-feira (2/3) e apontou a situação crítica da unidade de saúde.

"De todos os doentes que estão entrando na UTI hoje, 60% vão morrer. Dos 40 que estão aqui, 25% estão entrando em insuficiência renal aguda, o que é um péssimo prognóstico, é assustador".

E alertou: "Parem de achar que não tem nada, que porque é jovem não vai morrer. Pacientes com menos de 50 anos, atletas, estão morrendo. O pessoal tem que acordar. Aqui no hospital estamos fazendo tudo o que dá, mas a gravidade da doença está muito pior do que antes, nunca esteve tão ruim", completou o diretor.

A lotação das unidades hospitalares de Santa Catarina começou em meados de fevereiro, logo após o Carnaval e a retomada das aulas. Os primeiros meses do ano também foram marcados por grandes aglomerações no litoral catarinense.


Diante de falta de UTIs, Santa Catarina transferiu pacientes internados em decorrência da covid-19 (Crédito foto: Corpo de Bombeiros de SC).

Pacientes começam a ser transferidos para o ES

A primeira transferência de paciente para outro Estado ocorreu nesta quarta-feira. Santa Catarina chegou a abrir suas portas para doentes vindos de Manaus em janeiro, mas agora pede socorro.

Um homem de 34 anos que estava intubado e sendo atendido de forma improvisada na UPA de Chapecó foi transportado pelo Batalhão de Operações Aéreas do Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina para o Hospital Doutor Jayme Santos Neves, no município da Serra (ES), região da Grande Vitória.

Apenas um paciente foi levado na aeronave por causa da gravidade de seu quadro de saúde. A rede hospitalar do Espírito Santo ofertou 16 leitos para Santa Catarina. Outros pacientes devem ser transferidos nos próximos dias. A preferência é para os internados nos hospitais da região Oeste que estão superlotados (Xanxerê, Chapecó e São Miguel do Oeste).

A triagem dos pacientes que serão transportados leva em conta as condições clínicas para enfrentar a viagem de três horas e meia. A expectativa é que ocorram pelo menos duas viagens por dia.

"O transporte desses pacientes é complexo por conta da situação deles. Os pacientes que recebemos de Manaus, por exemplo, transportados por aviões da FAB, estavam conscientes e vieram sentados na aeronave. Os nossos são mais graves, embora ainda estejam dentro dos critérios de possibilidade para transporte aéreo. Mas eles precisam ir deitados em maca e acompanhados de equipe médica", explicou o superintendente de Urgência e Emergência da Secretaria de Estado da Saúde, Diogo Bahia Losso.

A taxa de ocupação de leitos reservados para atendimento da covid-19 é de 99,88%. Dos 806 leitos ativos para adultos, 805 estão ocupados. A informação consta no painel de leitos de UTI disponibilizado pela Secretaria de Estado da Saúde. O único leito que aparece disponível estava na verdade sendo preparado para receber uma transferência durante a atualização dos dados.

Santa Catarina tem 688.600 casos acumulados de covid-19, 643.910 recuperados e 7.618 mortes. Todas as regiões do Estado estão dentro da classificação de risco potencial gravíssimo.

Schirlei Alves, de Florianópolis para a BBC News Brasil, em 03.03.2021

quarta-feira, 3 de março de 2021

Ascânio Saleme: Bolsonaro pode ser tão perigoso quanto o coronavírus

Observando com cuidado as ações do presidente durante a pandemia, deve-se considerar a hipótese

A imprensa nunca disse que Bolsonaro é o vírus, como afirmou o presidente. A imprensa errou. Achou que o vírus era muito sofisticado para Bolsonaro. Imaginou que no máximo ele conseguiria ser uma bacteriazinha qualquer, dada suas reconhecidas limitações. 

Mas, observando com cuidado as ações do presidente durante a pandemia, deve-se considerar a hipótese de Bolsonaro ser tão perigoso quanto o coronavírus. Alguns poucos cálculos simples ajudam a comprovar esta tese.

Segundo o Datafolha de 25 de janeiro, 31% dos 210 milhões de brasileiros aprovam Bolsonaro. Tirando os anti-petistas, os conservadores não radicais, os tolos que sempre apoiam qualquer governante, vamos imaginar que sobrem 10%, ou uns 21 milhões que fecham os olhos, seguem e repetem todas as barbaridades ditas ou feitas pelo presidente.

Como 10 milhões de brasileiros foram contaminados durante um ano de pandemia, é correto afirmar que entre os cegos bolsonaristas foram quase um milhão de infectados. Usando a mesma proporcionalidade, dentre os 257 mil mortos em todo o país, 25,7 mil eram negacionistas convictos, daqueles que chamam o capitão de mito.

Estes, deliberadamente não usaram máscaras. Fizeram propaganda da cloroquina, se aglomeraram e morreram porque foram tão ignorantes quanto o seu líder. A estupidez do mito matou pelo menos 25,7 mil bolsonaristas, ou 70 a cada dia. Claro que o número é muito maior, já que os cegos contaminaram e mataram outras pessoas nos ônibus, nas ruas, nas praias, nos restaurantes, nas escolas e nas suas próprias casas. 

Portanto, não há o que discutir, Bolsonaro é mesmo um vírus violento e letal.

Ascânio Saleme é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 03.03.2021.

Brasil avança na epidemia do autoritarismo

Estudo em parceria com a Conectas antecipado pelo EL PAÍS em janeiro revelava como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas à pandemia. Operação de sabotagem segue sendo realizada por Bolsonaro mesmo diante de colapso da rede de saúde

Dois familiares participam do enterro de uma vítima da covid-19 no Cemitério de Nossa Senhora Aparecida em Manaus. (Crédito foto: Raphael Alves / EFE)

A defesa primordial da vida deveria ser o direito mais básico a ser tutelado pelo Estado, mas a resposta brasileira ao enfrentamento da covid-19 não tem priorizado a proteção da vida e da saúde dos brasileiros. Um recente estudo realizado pelo Cepedisa (Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário) da USP, em parceria com a Conectas, com base em mais de 3.000 normas produzidas pela União desde o início da pandemia, revela como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia. O levantamento foi obtido com exclusividade pelo EL PAÍS no fim de janeiro.

Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”

'Brasil é motivo de escárnio do mundo com sua política desastrosa sobre a vacina', por JUAN ARIAS

A mesma pesquisa avaliou a propaganda contra a saúde pública, como o discurso político que mobilizou argumentos econômicos, ideológicos e morais com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas e promover o ativismo político contra as medidas necessárias para conter o avanço da doença.

Mesmo diante do colapso iminente do sistema público e privado de saúde em diferentes estados, o presidente Jair Bolsonaro segue atacando os gestores públicos que optam por adotar as necessárias―e impopulares ― medidas de distanciamento social. Enquanto as campanhas de vacinação não decolam, o distanciamento social e o uso da máscara são as medidas mais eficazes apontadas por autoridades sanitárias de todo o mundo para reduzir a rapidez do contágio do novo coronavírus e de suas novas variantes.

Ao ir na contramão da ciência, aprofundando a negligência e o negacionismo, temos observado uma estratégia de uso da pandemia para implementar a agenda Bolsonaro de retrocessos sociais e de retirada de direitos. O próprio ministro Ricardo Salles acabou por nos alertar quando, em reunião ministerial de abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado após determinação do Supremo, declarou a intenção de aproveitar os holofotes direcionados à cobertura da covid-19 para “passar a boiada” do desmonte da proteção ambiental.

A pandemia foi usada como justificativa, por exemplo, para restringir direitos trabalhistas, alterar a Lei de Acesso à Informação, intervir na escolha de reitores das universidades federais e até para tentar mudar o rito de aprovação de medidas provisórias e, com isso, oferecer poderes plenos ao presidente de legislar sem intervenção de outros poderes. Muitas dessas medidas foram revertidas pelo Supremo ou pelo Congresso, impondo derrotas ao governo, mas intensificando os desgastes das instituições democráticas.

Houve ainda outros episódios que atacaram frontalmente os princípios do estado democrático, como quando se tirou do ar os dados epidemiológicos da covid-19, incentivou a invasão de hospitais de campanha ou promoveu aglomerações em protestos que pediam intervenção no STF (Supremo Tribunal Federal).

O Governo Bolsonaro também usou a pandemia como forma de atacar ou retirar direitos de minorias, como indígenas e quilombolas, migrantes e refugiados e a população carcerária ― todos grupos altamente vulneráveis aos efeitos do coronavírus e que antes mesmo da pandemia vinham sofrendo retiradas de direitos pelo Governo Bolsonaro.

Os indígenas e quilombolas precisaram recorrer ao STF para obrigar a União a elaborar um plano de contingência contra a pandemia que respeitasse suas necessidades. O Executivo Federal chegou a vetar, de um projeto de lei aprovado pelo Congresso de proteção às populações indígenas no contexto da covid-19, itens tão básicos como garantir o suprimento de água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.

No que se refere aos direitos dos refugiados, desde março de 2020 o governo promove restrições seletivas a pessoas provenientes da Venezuela, país assolado por grave e generalizada crise de direitos humanos. Sob a justificativa de conter a pandemia, refugiados que consigam chegar na fronteira são impedidos de pedir proteção no Brasil e são sumariamente deportados, ainda que turistas sejam permitidos de entrar por via aérea e a fronteira com Paraguai seja a única terrestre aberta, e a despeito de a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) não apresentar uma recomendação neste sentido.

Por fim, a população carcerária, altamente exposta a infecções em razão das condições insalubres e de superlotação dos presídios brasileiros, não foi nem ao menos considerada como grupo prioritário da campanha de vacinação elaborada pelo Ministério da Saúde. As audiências de custódia, aquelas em que a pessoa presa em flagrante deve passar diante de um juiz no prazo de 24 horas para verificar a legalidade da prisão, seguem sendo realizadas por videoconferência na maioria dos estados ― algo que limita a capacidade de identificar indícios de tortura.

Se ainda não sabemos como, por quanto tempo e em quais circunstâncias teremos que conviver com a pandemia, podemos assegurar que os estragos do autoritarismo e conservadorismo que assolou o Brasil levarão anos para serem superados. Enquanto a maior pandemia da história recente já cobrou mais de 255 mil vidas no Brasil, experimentamos o avanço acelerado da epidemia do autoritarismo que corrói as instituições democráticas e ataca o pacto social estabelecido pela Constituição de 1988.

Marcos Fuchs, o autor deste artigo, é diretor da ONG Conectas Direitos Humanos. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 03.03.2017.


Eliane Brum, do EL PAÍS: A covid-19 está sob o controle de Bolsonaro

A população brasileira se tornou —e grande parte se submeteu— a ser cobaia de um experimento de perversão inédito na história

Manifestantes protestam, em Brasília, contra Jair Bolsonaro e a forma em que o presidente tem lidado com pandemia. (Crédito foto: Ueslei Marcelino / Reuters).

Afirmar que a covid-19 está fora de controle no Brasil por incompetência de Jair Bolsonaro é um erro. É o mesmo erro de chamar o Governo de Bolsonaro de “desgoverno”. Bolsonaro governa e a disseminação da covid-19 está, em grande parte, sob o seu controle. 

Se o que vive o Brasil é caos, é um caos planejado. É necessário compreender a diferença para ter alguma chance de enfrentar a política de morte de Bolsonaro. Se existe alguma experiência semelhante na história, eu a desconheço. No Brasil, certamente nunca aconteceu antes. Estamos subjugados a um experimento, como cobaias humanas. 

A premissa da pesquisa desenvolvida no laboratório de perversão de Bolsonaro é: o que acontece quando, durante uma pandemia, uma população é deixada exposta ao vírus e a maior autoridade do país dá informações falsas, se recusa a adotar as normas sanitárias e também a tomar as medidas que poderiam reduzir a contaminação.

O resultado, em perdas de vidas humanas, conhecemos: o Brasil ultrapassará os 260 mil mortos até o final dessa semana e aumenta velozmente suas chances de se tornar em breve o país com o maior número de vítimas fatais da história da pandemia de covid-19 no século 21. 

Enquanto vários países do mundo terão sua população inteiramente vacinada nos próximos meses e começam a vislumbrar a possibilidade de superar a covid-19, o Brasil enfrenta uma escalada.

Os cúmplices

Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”

Em 2020, Estados Unidos e Reino Unido se alinhavam ao lado do Brasil entre os piores desempenhos relacionados à covid-19. Hoje, com o democrata Joe Biden na presidência, os Estados Unidos dão sinais de que vão deixar essa posição em breve e o Reino Unido do direitista Boris Johnson dá exemplo na campanha de vacinação, com o número de mortes baixando dia a dia.

O Brasil se isola no horror da covid-19, como contraexemplo e pária global. Dados da Organização Mundial da Saúde mostram que, enquanto a média de mortes no mundo recua em torno de 6%, no Brasil cresce 11%. Essa consequência é mais visível. Afinal, nesse crime há corpos, nesse momento em número suficiente para povoar somente com cadáveres uma cidade de porte médio. E crescendo à média atual de quase 1.300 mortos por dia.

Outro efeito é menos óbvio: o que descobrimos sobre nós, como sociedade, quando submetidos a essa violência, e o que cada um descobre sobre si quando as escolhas sanitárias, em vez de determinadas pela autoridade de saúde pública, dependem da sua própria decisão. Essa segunda parte do experimento tem se demonstrado bastante perturbadora e poderá minar os laços sociais ao longo de anos e até décadas, como aconteceu com países submetidos à perversão de Estado no passado.

Seguir alegando incompetência do governo Bolsonaro na condução da covid-19 ou é sintoma ou é má fé. Sintoma porque, para uma parte da população, pode ser demasiado assustador aceitar a realidade de que o presidente escolheu disseminar o vírus. A mente encontra um caminho de negação para que a pessoa não colapse. É um processo semelhante ao sequestrado que encontra pontos de empatia com o sequestrador para ser capaz de sobreviver ao horror de estar totalmente a mercê da vontade absoluta de um perverso.

Já má fé é compreender o que está acontecendo e, mesmo assim, seguir negando porque convém aos seus interesses, sejam eles quais forem. A pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Conectas Direitos Humanos provou que o governo federal executou um plano de disseminação do vírus. A análise de 3.049 normas federais mostrou que Bolsonaro e seus ministros tinham —e ainda têm— o objetivo de infectar o maior número de pessoas, o mais rapidamente possível, para a retomada total das atividades econômicas.

As provas estão lá, em documentos assinados pelo presidente e por alguns de seus ministros. O estudo comprova o que qualquer pessoa com capacidade cognitiva média pode verificar no seu cotidiano, a partir dos atos e das falas do presidente. A ação deliberada de disseminação do vírus não é apenas uma percepção, é também um fato. O que faltava era a documentação do fato, já que não basta perceber, é preciso demonstrar e documentar. E hoje está documentado e essa documentação tem se tornado base para novos pedidos de impeachment e comunicações no Tribunal Penal Internacional.

Em carta pública, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde reivindicou nessa semana a determinação de um toque de recolher para todo o território brasileiro e o fechamento de bares e praias, entre outras medidas. Os secretários afirmaram que o país vive o pior momento da pandemia e exigiram “condução nacional unificada e coerente”. Também pediram a suspensão das aulas presenciais e de eventos, incluindo atividades religiosas. “A ausência de uma condução nacional unificada e coerente dificultou a adoção e implementação de medidas qualificadas para reduzir as interações sociais”, declararam. “Entendemos que o conjunto de medidas propostas somente poderá ser executado pelos governadores e prefeitos se for estabelecido no Brasil um ‘Pacto Nacional pela Vida’ que reúna todos os poderes, a sociedade civil, representantes da indústria e do comércio, das grandes instituições religiosas e acadêmicas do País, mediante explícita autorização e determinação legislativa do Congresso Nacional”. Bolsonaro, porém, obviamente não quer. E, como a imprensa noticiou, seus subordinados, muitos deles generais de quatro estrelas, avisaram que não fará.

Bolsonaro se recusa. Porque há condução do governo e seus atos estão focados na disseminação do vírus. Esse é o equívoco de quem acredita que é necessário convencer Bolsonaro a liderar um pacto nacional pela vida. Ele já executa um pacto nacional, mas pela morte, e não estou usando uma metáfora. Ele já fez várias declarações públicas e explícitas para que o povo deixe de ser “maricas”, afinal “mortes acontecem”, “todos nós morreremos um dia” e “toca o barco”. Por isso, mesmo no pior momento da pandemia, o presidente segue fiel e dedicado à sua política, estimulando aglomerações e comércio aberto, além de atacar o uso de máscaras.

Em Porto Alegre, um de seus apoiadores, o prefeito Sebastião Melo (MDB), ecoa o chefe: “Contribua com sua família, sua cidade, sua vida, para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre”. Percebam que estamos diante de uma completa inversão: ao longo da história, autoridades públicas das mais variadas geografias e línguas pediram sacrifícios econômicos para salvar vidas. O bolsonarismo inverteu essa lógica: exige o sacrifício da vida —dos outros, bem entendido— para salvar a economia. E assim o Brasil de Bolsonaro e do sacrifício da vida supostamente em nome da economia exibiu em 2020 o pior PIB dos últimos 24 anos. Enquanto países que fizeram lockdown já começam sua recuperação também econômica, o Brasil descarrilha.

Diante da abundância de provas sobre a política de disseminação do vírus, é preciso olhar com atenção para aqueles que seguem apoiando Bolsonaro, em público ou nos bastidores. As razões para a má fé são várias, a depender do indivíduo e do grupo. Uma parte dessa entidade que chamam “mercado” ainda aposta que Bolsonaro seja capaz de continuar fazendo as “reformas” neoliberais que deseja que sejam feitas. Uma parte do que chamam de “agronegócio” também aposta na destruição da Amazônia para aumentar o estoque do mercado de terras para especulação e ampliar a fronteira agropecuária. O mesmo vale para a mineração.

Se é fato que uma parcela já recuou por conta do impacto cada vez maior do desmatamento na recusa de produtos brasileiros na Europa, parte espera que Bolsonaro consiga avançar com mais algumas maldades antes de retirar seu apoio, seja ele à luz do dia ou nas sombras. Só então se escandalizará ao subitamente descobrir a intenção de Bolsonaro de enfraquecer a legislação ambiental e abrir as terras indígenas para exploração predatória. Em algum momento, essas cândidas criaturas do mercado vão retirar seu apoio enojadas, em entrevistas ponderadas e pontuadas por jargões econômicos na imprensa liberal. Afinal, como poderiam esses inocentes imaginar que Bolsonaro não era um estadista, justo Bolsonaro, um homem tão elegante e contido? Para alguns, finalmente, ainda há algo a ganhar com Bolsonaro e Paulo Guedes e, para isso, não importa quantos morram, desde que os enterros não sejam na sua família ou no seu seleto clube de amigos.

O mesmo vale para algumas lideranças do pentecostalismo e do neopentecostalismo evangélico, que também ainda acreditam ter bastante a ganhar, mesmo que parte da sua base de fiéis morra de covid-19. O desespero crescente lhes trará outros clientes para compensar sua má fé. Como é claríssimo, os pastores de mercado apostam em manter seu poder agora e nas próximas eleições. Com o sistema hospitalar dando sinais de colapso, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), considerou cultos religiosos “atividades essenciais”. Para agradar aos pastores, que andavam publicamente reclamando de sua atuação, as aglomerações para o benefício da igreja-empresa estão permitidas.

O fervor pela ciência demonstrado por Doria, em nome do qual consolidou-se como o principal opositor de Bolsonaro no primeiro ano de pandemia, foi substituído pelo novo mote anunciado por ele na segunda-feira: “esperança, fé e oração”. Diante da pressão dos vendilhões dos templos e sua ameaça de retirar apoio na disputa presidencial, rifa-se mais uma vez a vida. E segue aquilo que consideram prioritário: a eleição presidencial de 2022. Afinal, há de sobrar um número suficiente de eleitores vivos até lá.

E o que dizer dos políticos, o Centrão puxando o cortejo de corruptos de bolso e de alma, mas longe de estar sozinho? Todas as violações de Bolsonaro não são suficientes para fazer andar a fila de mais de 70 pedidos de impeachment e sempre aumentando. Afinal, o que vale é garantir a impunidade dos próprios parlamentares, essa sim considerada emergencial por aqueles escolhidos para representar os interesses de uma população que hoje morre de covid-19.

Ainda que os fatos sejam conhecidos, é necessário enfileirá-los para compreender que essa é a realidade: há um presidente executando uma política de morte. Não é histrionismo, não é força de expressão, não é hipérbole. É a realidade e muito mais brasileiros morrerão por causa das ações de Bolsonaro.

Nos deixaremos matar?

Em 2021, a conjuntura do Brasil para enfrentar a política de morte de Bolsonaro é muito pior do que em 2020. E isso já se reflete no número de vítimas. Diante disso, nos deixaremos matar? Porque é basicamente essa a questão. Nesta quarta-feira, atingimos o maior número de mortos em um dia desde o início da pandemia: 1.910 pessoas, 1.910 pais, mãe, filhas, filhos, irmãos, irmãs, avôs, avós perdidos, 1.910 famílias despedaçadas. E isso num país com sistema público de saúde, centros de pesquisa respeitáveis e invejável capacidade de vacinação em massa.

O Congresso, que no primeiro ano da pandemia foi importante para estabelecer o auxílio emergencial de 600 reais e para derrubar os vetos mais monstruosos de Bolsonaro, como o de negar água potável aos indígenas, com Arthur Lira (PP) não fará nada para impedir nem as maldades nem o próprio Bolsonaro. Pelo contrário. O judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, conseguiu barrar vários horrores desde o início da crise sanitária, mas nem de longe é suficiente para impedir a monstruosidade do que o Brasil enfrenta. Sem contar que há grande disputa ideológica dentro do judiciário.

O tal do mercado eventualmente em algum momento retirará seu apoio, caso Bolsonaro faça os setores mais poderosos do empresariado perder mais dinheiro do que ganhar, o que já está acontecendo em várias áreas. Mas não dá para contar com as elites econômicas que, se algum dia tiveram alguns expoentes genuinamente preocupados com o país, hoje claramente se lixam para a população. As elites intelectuais têm mostrado que estão pouco dispostas a fazer mais do que protestar em sua bolha como faz qualquer um nas redes sociais. É claro que há exceções em todas as áreas, mas a profunda crise do Brasil mostra que as elites brasileiras são ainda piores do que se supunha.

As periferias que reivindicam seu legítimo lugar de centro gritam: “é nós por nós”. E é. A questão, quando o “nós” é ampliado, é quem são o nós?

A complexidade do “nós” é que Bolsonaro foi eleito pela maioria dos que foram às urnas. Bolsonaro disse exatamente o que faria. E quem votou nele sabia exatamente quem ele era. E mesmo assim ele venceu, o que fala muito desse “nós”. Apesar de executar uma política de morte e converter o Brasil num pária do mundo, as pesquisas mostram que Bolsonaro ainda tem uma aprovação significativa. Caso a eleição fosse hoje, teria chance real de ser reeleito. Isso também fala do “nós”.

Talvez quem tenha melhor expressado o drama do “nós” seja o governador da Bahia, Rui Costa (PT). Ao ser entrevistado ao vivo pela TV Globo, ele chorou. Porque é difícil de entender o “nós”. E, diante do “nós”, a impotência aumenta. “É duro você receber mensagens com as pessoas perguntando: ‘E meu negócio? E a minha loja?’ O que é mais importante: 48 horas de uma loja funcionando ou vidas humanas?”, desabafou Costa. “Não gostaria de estar tomando decisões como esta. Gostaria que todas as pessoas estivessem usando máscaras. Mesmo aquelas que se consideram super-homens, se consideram jovens. Se não é por ele, pelo menos pela mãe, pelo pai, pela avó, pelo parente, pelo vizinho. Essas pessoas, sozinhas, decretaram o fim da pandemia.”


“Essas pessoas”, as quais o governador se refere, é o “nós”. É o “nós” que lotou as praias, é o “nós” que fez Carnaval, é o “nós” que faz festas, obrigando policiais a arriscarem sua vida para impedir que continuem, é o “nós” que resolveu reunir a família no Natal e os amigos no Réveillon, porque afinal de contas “ninguém aguenta mais”. É o “nós” que lota as igrejas porque sua fé, que precisa daquelas quatro paredes para existir, é mais importante do que a vida do seu irmão. É o “nós” que se acha mais esperto porque segue enchendo a cara nos bares com os parças. É o “nós” que anda sem máscara por todos os lugares. E é também o “nós” que já anunciou que tomar vacina é para otário.

O “nós” é um nó

Nessa altura, alguém pode dizer que esse nós não é “nós”, mas “eles”, o outro lado. Ouso dizer que, se a realidade fosse tão simples como “nós” e “eles”, Bolsonaro já teria sido submetido ao impeachment e já estaria sendo investigado pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade. O “nós” é um nó. E vamos precisar desatá-lo para enfrentar a política de morte de Bolsonaro.

A parte mais perversa da execução do projeto de Bolsonaro é justamente revelar o bolsonarismo mesmo de quem odeia Bolsonaro. Essa é a parte mais demoníaca do experimento do qual somos todos cobaias. Sim, a orientação do presidente é matar e morrer: não use máscaras, aglomere-se, abra seu negócio, vá trabalhar, mande as crianças para a escola, use medicamentos sem eficácia, se tomar vacina pode virar jacaré. Diante do conjunto de orientações para disseminar o vírus, o que resta é cada um tomar decisões individuais que, poderia se esperar, contemplassem em primeiro lugar o bem-estar do outro, mais desprotegido, e o bem-estar coletivo, o do conjunto da comunidade.

Quando na segunda-feira o governador Rui Costa chorou, ao vivo, na TV, diante de milhões de telespectadores, é por sua incompreensão e impotência diante de gente que o ataca por ter que fechar seu negócio por 48 horas para que vidas possam ser salvas. Dois dias. Dois. No Reino Unido, por exemplo, as lojas, as academias, os salões de beleza, os cinemas, os bares e restaurantes etc estão fechados desde novembro e não é permitido ver outra pessoa que não more na mesma casa nem mesmo no parque. Os britânicos passaram o Natal, o Réveillon e os feriados sob essas normas. Uso o exemplo do Reino Unido porque Boris Johnson, o primeiro-ministro, não é um “esquerdopata”, mas um dos expoentes da safra de populistas de direita do mundo. E mesmo assim. Os britânicos podem reclamar, mas dentro de suas casas, porque essas são as regras e quem determina as regras numa pandemia são as autoridades sanitárias. Ponto final.

Bolsonaro também determina as regras sanitárias na pandemia. Mas, como já foi amplamente demonstrado, escolheu a disseminação do vírus. E então, para salvar a própria vida e não colocar a do outro em risco, cada um precisa estabelecer suas próprias regras sanitárias. É nessa volta do parafuso que o “nós” se complica. O “nós” então precisa responder a perguntas bem difíceis. Nós todos precisamos. O que o cotidiano está mostrando é que, eventualmente e às vezes até com frequência, “nós” também somos “eles”.

Lidamos muito mal com limites. Não há problema nenhum em ter limites quando não se perde nada ou quando se perde pouco. Mas, quando precisa perder algo que realmente custa, aí complica. A justificativa do “nós” para quebrar regras da Organização Mundial da Saúde é sempre legítima porque supostamente é em nome de um bem maior.

Nosso cérebro encontra as mais elevadas justificativas para recusar limites que nos obrigam a perder muito. E, quando confrontados, achamos que é o outro que não entende a conjuntura ou que está numa posição mais protegida para tomar decisões. O “nós”, quando pode, raramente se pergunta se deve. O “nós” sempre tem melhores justificativas do que o “eles” para fazer o que quer e o que acha importante. E que muitas vezes é mesmo muito importante. Mas, atenção, estamos numa pandemia que já matou quase 260 mil pessoas no Brasil e mais de 2,5 milhões no mundo. O aumento da contaminação significa não apenas mortes, mas novas mutações do vírus que podem ser imunes às vacinas existentes e comprometer as medidas globais de enfrentamento do vírus.

Quando se toma uma decisão numa pandemia nunca é apenas sobre a nossa própria vida. Só quem quer disseminar a morte, como Bolsonaro, diz que cada um tem o direito de fazer o que quer porque se trata apenas de si. Quando o presidente declara que não tomará vacina porque essa decisão supostamente só diria respeito a ele, Bolsonaro faz esse anúncio exatamente porque tem certeza do contrário. Ele sabe que essa declaração vai muito além da sua própria vida. Qualquer decisão numa pandemia vai impactar muito além da vida de qualquer um. Se é um presidente, autoridade pública máxima, torna-se uma orientação à população.

É muito difícil lutar contra o governo federal, que tem a máquina do Estado na mão e a capacidade de amplificar suas orientações a toda a população. É imensamente mais difícil lutar contra um presidente da República em meio a uma crise sanitária. Em vez de seguirmos normas federais que protegem a todos os brasileiros e especialmente os mais vulneráveis, normas determinadas pelo Estado, fomos submetidos a ter que tomar nossas próprias decisões sanitárias e, ao mesmo tempo, sermos atropelados pelas dos outros.

Há quem não esteja nem aí, claro que há. Mas há muitos que querem tomar as melhores decisões e realmente acreditam que tomam, mas não são sanitaristas, não foram formados para ser, não têm obrigação de ser. É também a esse experimento que Bolsonaro submeteu os brasileiros. Essa experiência está deixando marcas em cada um e está corroendo ainda mais relações que já estavam difíceis. Está corroendo uma sociedade já bastante dividida, cujos laços estão cada vez mais esgarçados.

Ao deslocar a responsabilidade para o indivíduo, Bolsonaro está perversamente nos tornando cúmplices de seu projeto de morte. Quando ele invoca o direito individual de não usar máscara e de não tomar vacina, ele está maliciosamente dizendo também o seguinte: se é cada um que decide e faz o que quer e você está reclamando de mim, por que você não decide se proteger e proteger os outros? Simples assim, ele poderia dizer. Ou “talquei?” É diabólico, porque ele faz isso parecer trivial, como se fosse possível numa pandemia que as decisões sanitárias dependam da escolha individual.

E se decidirmos lutar contra quem nos mata?

A história nos conta que, na ditadura civil-militar (1964-1985), apenas uma minoria se insurgiu contra o regime de exceção. A maioria dos brasileiros preferiu fingir não ouvir os gritos dos torturados, centenas deles até a morte, ou dos mais de 8.000 indígenas assassinados junto com a floresta amazônica. Ainda assim, tudo indica que foi uma reação mais forte e expressiva do que essa que testemunhamos e protagonizamos como sociedade agora, diante de um projeto de extermínio.

O processo da retomada da democracia, com todas as suas falhas, a maior delas a impunidade dos assassinos de Estado, foi capaz de criar a avançada Constituição de 1988. É a chamada “constituição cidadã”, que ainda sustenta o que resta de democracia hoje, apesar de todos os ataques do bolsonarismo. O que essa sociedade fraca, corrompida, individualista e pouco disposta a se olhar no espelho será capaz de criar se não for capaz de se insurgir contra mortes que seriam evitáveis?

Se dermos por perdido, se nos dermos por perdidos, se dermos por impossível, se nos dermos por vencidos, aí já está dado. Completaremos o caminho rumo ao matadouro. Obedientes à política de morte de Bolsonaro, porque gritar nas redes e no whatsapp não é desobedecer a absolutamente nada. É pouco mais do que dissipar energia se autoiludindo que é ação. Para sermos nós, independentemente de quantos nós exista dentro desses nós, precisamos nos unir num objetivo comum: interromper a política de morte de Bolsonaro.

Em 2020, escrevi nesse mesmo espaço: como um povo acostumado a morrer (ou acostumado a normalizar a morte dos outros) será capaz de barrar seu próprio genocídio? Essa pergunta é hoje, quase 260 mil mortos depois, muito mais crucial do que antes. Nossa única chance é fazer o que não sabemos, ser melhores do que somos, e obrigar o Congresso a cumprir a Constituição e fazer o impeachment. E, lá fora, pressionar os organismos internacionais a responsabilizar Bolsonaro por seus crimes.

A cada dia cada um precisa se somar a todos os outros para esse projeto comum. E, talvez, ainda possamos nos descobrir capazes de nos tornarmos “nós”, o que significa ser capaz de fazer comunidade. A primeira pergunta da manhã deve ser: o que faremos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando? E a última pergunta deve ser: o que fizemos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando?

O que mais falta acontecer, ver e provar para compreender que estamos submetidos a um projeto de extermínio? Primeiro vimos pessoas morrerem em agonia por falta de oxigênio nos hospitais. Depois assistimos às cenas de pessoas intubadas que, por escassez de sedativos, tiveram que ser amarradas em macas para não arrancarem tudo por dor e desespero. O que mais falta? Qual é o próximo horror? De qual imagem necessitamos para entender o que Bolsonaro está fazendo? Precisamos compreender por que estamos nos deixando matar, subvertendo o instinto primal de defender a vida, que mesmo o organismo mais primário possui. Mas precisamos entender enquanto agimos, porque não há tempo. A alternativa é seguir assistindo Bolsonaro executar sua política de morte até não podermos mais assistir porque também estaremos mortos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de "Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro" (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum. Este artigo foi publicado originalmente n'EL PAÍS, em 03.03.2021

Variante brasileira pode reinfectar até 61% dos recuperados, diz estudo

Pesquisa do Imperial College indica que, além de ser mais transmissível, cepa P1 do coronavírus pode driblar sistema imunológico. Cientista afirma ser cedo para dizer se variante é resistente a vacinas.

Enfermeiros empurram maca com paciente de covid-19 na entrada de hospital

Manaus vivenciou explosão de casos no início deste ano. Nova cepa teria surgido em novembro

A variante do coronavírus detectada pela primeira vez no Amazonas tem potencial de driblar o sistema imunológico e causar reinfecções pelo novo coronavírus, afirmaram cientistas nesta terça-feira (02/03) com base no resultado de um estudo preliminar.

De acordo com pesquisadores do Reino Unido e do Brasil, a variante brasileira, chamada de P1, possui uma "constelação única de mutações" e se tornou rapidamente a variante dominante na região.

De um total de 100 infectados em Manaus que já haviam se recuperado de uma infecção pelo coronavírus, "entre 25 e 61 estão suscetíveis a uma reinfecção com a P1", afirmou o especialista Nuno Faria, do Imperial College London, que é coautor do estudo preliminar.

Faria ressaltou, no entanto, ser ainda muito cedo para afirmar se a variante seria resistente às vacinas desenvolvidas até o momento contra a covid-19. "Não há nenhuma evidência conclusiva que sugere que os imunizantes atuais não funcionam contra a P1. Acredito que as vacinas nos protegerão pelo menos contra a doença e possivelmente contra a infecção", acrescentou.

A variante do Amazonas já foi detectada em ao menos 20 países. Cientistas do mundo todo estão preocupados com a possibilidade de a cepa ser resistente às vacinas.

Detalhes do estudo

Realizado pelo Imperial College London em parceria com pesquisadores da Universidade de Oxford e da Universidade de São Paulo (USP), o estudo indica que a P1 surgiu provavelmente em Manaus no início de novembro. A primeira infecção com a cepa foi identificada em 6 de dezembro.

"Vimos então a rapidez com que a P1 ultrapassou outras linhagens e descobrimos que a proporção da cepa passou de zero a 87% em cerca de oito semanas", afirmou Faria.

O estudo preliminar, que ainda não foi revisado por outros pesquisadores, sugere ainda que a cepa do Amazonas seja entre 1,4 e 2,2 vezes mais transmissível do que outras variantes, e esse seria provavelmente um dos fatores responsáveis pela segunda onda da pandemia no Brasil.

"Provavelmente faz as três coisas ao mesmo tempo: é mais transmissível, invade mais o sistema imunológico, e, provavelmente, deve ser mais patogênica", afirmou Ester Sabino, professora da Faculdade de Medicina da USP e coordenadora do grupo da universidade que participou do estudo. "Não se podem explicar tantos casos a não ser pela perda de imunidade", acrescentou.

Baseado num modelo matemático realizado pelo Imperial College London, o estudo analisou genomas de 184 amostras de secreção nasofaríngea de pacientes diagnosticados com covid-19 em laboratórios de Manaus entre novembro de 2020 e janeiro de 2021.

A cidade foi palco de um piores momentos da pandemia no país. A explosão de casos levou à escassez de oxigênio e a um colapso do sistema de saúde no início deste ano.

Deutsche Welle Brasil, em 03.03.2021

Brasil tem 1,9 mil óbitos por covid-19 em 24 horas e total passa de 259,2 mil

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país

O Brasil acumula um total de 10.718.630 casos de covid-19 e 259.271 pessoas mortas pela doença, segundo boletim do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) divulgado nesta quarta-feira (3/3).

Nas últimas 24 horas, foram registrados oficialmente 1.910 óbitos e 71.704 novos casos da doença.

O Estado com maior número de vítimas fatais é São Paulo (60.381), seguido de Rio de Janeiro (33.362) e Minas Gerais (18.872).

Pelo décimo dia consecutivo, a média móvel em sete dias de mortes pela doença no país cresceu, atingindo 1.331 nesta quarta.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais mortes pela doença em todo o mundo. Ele está atrás apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 518,4 mil óbitos por covid-19, conforme registro da Universidade Johns Hopkins.

BBC News Brasil, em 03.03.2021

Alemanha vai ajudar Brasil com unidades de saúde móveis

Postos de saúde sobre rodas deverão atuar no combate à covid-19 em regiões afastadas do país. Projeto é parceria de ministério alemão com montadora Mercedes-Benz.

Ministro alemão Gerd Müller afirmou que combate ao coronavírus deve ser global

O Ministério para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico da Alemanha anunciou nesta quarta-feira (03/03) uma parceria com a montadora Mercedes-Benz do Brasil para a adaptação de unidades de saúde móveis, que atenderão pacientes de covid-19 em regiões isoladas do país.

O atendimento oferecido nesses postos de saúde puxados por caminhões será gratuito e voltado a ajudar os esforços brasileiros no combate à pandemia de covid-19, informou a pasta.

"O coronavírus atinge mais duramente os mais pobres dos pobres. O Brasil é o terceiro país do mundo em número de casos, e a covid-19 deixou mais de 250 mil mortos por lá", afirmou o ministro alemão para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Gerd Müller, na assinatura do acordo com a fabricante de caminhões e ônibus.

"Temos que ser claros: só podemos derrotar o coronavírus globalmente. Caso contrário, ele voltará para a Europa e, talvez, ainda mais perigoso. A Alemanha não deixará seus parceiros e amigos brasileiros sozinhos nessa crise", acrescentou Müller.

Segundo ele, as unidades móveis ajudarão no diagnóstico da doença, mas também poderão ser utilizadas para outras emergências médicas. Além do tratamento da covid-19, a estação é equipada para a realização de exames de ressonância magnética e também de pequenas operações.

O governo alemão investirá 4,5 milhões de euros (quase R$ 31 milhões) no projeto, enquanto a Mercedes-Benz do Brasil disponibilizou cerca de 1 milhão de euros. Os recursos serão destinados para a produção das unidades e a compra dos equipamentos necessários.

As unidades móveis serão administradas por organizações não governamentais locais, que também oferecerão as equipes médicas para atuar nessas estações. O projeto tem previsão de duração até 2024. Após essa data, as unidades serão entregues às ONGs para uso posterior.

Segundo o presidente da Mercedes-Benz do Brasil, Karl Deppen, o valor destinado pela montadora ao projeto será utilizado para o pagamento de funcionários e motoristas e para o empréstimo dos caminhões Novo Actros, que puxarão as unidades de saúde, além de combustível e seguros para as oito estações.

Estima-se que em três anos as unidades disponibilizem atendimentos para cerca de 250 mil brasileiros.

Pior momento da epidemia

O anúncio alemão chega um dia após o Brasil registrar o maior número de mortos em 24 horas desde o início da pandemia. O país vive ainda o pior momento da crise, com o número de casos aumentando e sistemas de saúde à beira do colapso em diversos estados.

Nesta terça-feira, o Brasil registrou oficialmente 1.641 mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). É a pior marca já registrada desde o início da pandemia, superando o recorde de 29 de julho, quando haviam sido contabilizados 1.595 óbitos. Com isso, o total de óbitos no país associados à doença chega a 257.361.

Deutsche Welle Brasil, em 03.03.2021