segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O juiz de garantias

Faltam limites a setores da magistratura quando são contrariados seus interesses corporativos

Quase um ano após o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, ter concedido liminar suspendendo por tempo indeterminado a implantação do juiz de garantias, criado pela Lei 13.964/19, um grupo de advogados criminalistas apresentou à Corte um pedido de habeas corpus coletivo pedindo a retomada do julgamento do mérito deste caso.

A Lei 13.964, que altera o antigo Código de Processo Penal de 1941, foi aprovada no final de 2019, depois de tramitar por dez anos no Congresso. Adotado há décadas em vários países europeus, com o objetivo de assegurar a isenção da magistratura criminal, preservar o equilíbrio nas ações penais e garantir a segurança jurídica, o juiz de garantias é o responsável pela condução das diligências e pela salvaguarda dos direitos fundamentais dos presos. Ele atua na fase de produção de provas, de controle da constitucionalidade das investigações e de expedição de mandados de busca e apreensão. Cabe a ele autorizar buscas e apreensões, determinar o trancamento ou a prorrogação do inquérito, adotar medidas cautelares restritivas ao ir e vir do acusado e decidir sobre pedidos de quebra de sigilo bancário e telefônico e de arquivamento. Pela Lei 13.964, uma vez terminada a etapa de instrução e aceita a denúncia do Ministério Público, o processo é transferido para outro juiz, que será responsável pelo julgamento do mérito.

Essa divisão de tarefas sempre causou polêmica nos meios jurídicos. As associações de advogados alegam que, sem essa separação de funções, os juízes criminais têm pouca motivação para revisar eventuais erros cometidos no inquérito e, na maioria das vezes, atribuem excessiva credibilidade aos resultados das investigações em que atuaram. Já a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) defende a tese de que os magistrados que conduzem a fase de instrução devem ser os mesmos que julgam o mérito e prolatam a sentença. Para a entidade, a divisão de tarefas atrasa a tramitação dos processos criminais e acarreta problemas de insegurança jurídica. Também lembra que 40% das comarcas judiciais têm apenas um único magistrado. Por isso, a criação do juiz de garantias exigiria realização de concursos e contratação de serventuários num período em que, por causa da crise fiscal, a Justiça carece de recursos até para pagar despesas de custeio.

Nesse embate, fica evidente que, ao suspender por tempo indeterminado a implantação do juiz de garantias, Fux demonstrou provir dos quadros da magistratura. O argumento que invocou é prova disso – a figura do juiz de garantias foi uma “medida feita para depreciar o juiz da causa”, disse ele. Além disso, sua estratégia foi a mesma que usou quando atuou como relator nas ações que questionavam a constitucionalidade do auxílio-moradia concedido pelas diferentes instâncias e braços especializados do Poder Judiciário aos seus membros, como forma de burlar o teto salarial do funcionalismo. Quando não pedia vista e engavetava as ações em seu gabinete, concedia liminar e deixava para as calendas o julgamento de mérito.

Na realidade, esse confronto entre criminalistas e juízes criminais prima, desde o início, mais por seus aspectos políticos do que jurídicos. Do ponto de vista técnico-legal, por exemplo, o habeas corpus coletivo não é o instrumento processual adequado para pedir ao Supremo Tribunal Federal a retomada do julgamento. Mas foi o meio que os criminalistas utilizaram para pressionar publicamente o presidente da Corte para cassar a liminar ou levar o caso a plenário. Por seu lado, com apoio da Ajufe, Fux vem alegando que, se a liminar for suspensa, ela abrirá brechas legais para a anulação da condenação de presos perigosos, o que não é verdade.

Acima de tudo, o que esse embate revela é a falta de limites de alguns setores da magistratura quando seus interesses corporativos são contrariados. As entidades de juízes foram ouvidas pelo Congresso antes da aprovação da Lei 13.964. Contudo, tendo perdido numa votação inquestionável, elas recorreram a expedientes discutíveis para impedir a entrada em vigor de uma decisão aprovada por um Poder independente. 

Editorial / Notas e Informações - O Estado de São Paulo, edição de 28.12.2020

Coronavírus no Brasil: 331 mortos nas últimas 24 horas

Totais

Mortes: 191.207

Casos: 7.486.094

O país registrou 331 mortes pela Covid-19 nas 24 horas anteriores ao balanço das 20h de domingo (27), chegando ao total de 191.146 óbitos desde o começo da pandemia. Com isso, a média móvel de mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 625. A variação foi de -4% em comparação à média de 14 dias atrás, indicando tendência de estabilidade nos óbitos pela doença.

De acordo com os números levantados até as 20h de domingo (27), 7.481.400 brasileiros têm ou já tiveram o novo coronavírus desde o começo da pandemia; 16.472 desses casos foram confirmados nas 24 horas anteriores. A média móvel nos últimos 7 dias foi de 34.864 novos diagnósticos por dia. Isso representa uma variação de -19% em relação aos casos registrados em duas semanas, o que indica tendência de queda nos diagnósticos.

8 apresentaram alta na média móvel de mortes: MS, MT, AC, AM, PA, RO, AL e SE.


Brasil, 27 de dezembro

Total de mortes: 191.146

Registro de mortes em 24 horas: 331

Média de novas mortes nos últimos 7 dias: 625 (variação em 14 dias: -4%)

Total de casos confirmados: 7.481.400

Registro de casos confirmados em 24 horas: 16.472

Média de novos casos nos últimos 7 dias: 34.864 por dia (variação em 14 dias: -19%)

Estados

Subindo (8 estados): MS, MT, AC, AM, PA, RO, AL e SE

Em estabilidade, ou seja, o número de mortes não caiu nem subiu significativamente (12 estados): PR, RS, SC, ES, GO, AP, BA, MA, PB, PE, PI e RN

Em queda (5 estados + DF): RJ, SP, DF, RR, TO e CE

Não divulgou (1 estado): MG

Essa comparação leva em conta a média de mortes nos últimos 7 dias até a publicação deste balanço em relação à média registrada duas semanas atrás (entenda os critérios usados pelo G1 para analisar as tendências da pandemia).

Vale ressaltar que há estados em que o baixo número médio de óbitos pode levar a grandes variações percentuais. Os dados de médias móveis são, em geral, em números decimais e arredondados para facilitar a apresentação dos dados.

Fonte: G1

Petrobras eleva diesel em 4% e gasolina em 5% a partir de terça-feira

Nova alta no preço dos combustíveis foi a segunda anunciada em duas semanas.

A Petrobras informou nesta segunda-feira (28) que vai elevar em 4% o preço médio do diesel em suas refinarias e em 5% o da gasolina a partir de terça-feira (29), em meio a uma alta do petróleo nas últimas semanas e uma desvalorização do real frente ao dólar nas últimos dias.

A nova alta no preço dos combustíveis foi a segunda anunciada em duas semanas. Em 15 de dezembro, a estatal elevou o preço do diesel e da gasolina.

Com a alta de 4%, o preço médio do combustível mais vendido do Brasil passará a ser de R$ 2,02 por litro. No acumulado do ano, a redução do valor é de 13,2%, segundo informou a Petrobras.

Já o preço médio da gasolina da Petrobras para as distribuidoras será de R$ 1,84 por litro, acumulando no ano redução de 4,1%.

Apesar da alta das cotações dos combustíveis da Petrobras na terça-feira, especialistas apontam a permanência de uma defasagem ante a paridade de importação.

"Faz cerca de três semanas que a Petrobras trabalha com defasagem de mais de 10 centavos em relação ao mercado internacional e segue bem próxima a esse nível mesmo com o ajuste de hoje", afirmou à Reuters o chefe da área de óleo e gás da consultoria INTL FCStone, Thadeu Silva.

"O ajuste atual foi menos da metade do necessário para termos paridade de importação", acrescentou ele, comentando que tem havido atrasos nos repasses da alta do petróleo para os combustíveis da Petrobras.

O presidente da Associação Brasileira de Importadores de Combustíveis (Abicom), Sérgio Araújo, também ressaltou a defasagem nos preços ante ao mercado externo e frisou que "as importações por agentes privados continuam inviabilizadas".

A Petrobras defende que seus preços seguem a chamada paridade de importação, impactada por fatores como as cotações internacionais do petróleo e o câmbio.

O repasse dos reajustes nas refinarias aos consumidores finais nos postos não é garantido, e depende de uma série de questões, como margem da distribuição e revenda, impostos e adição obrigatória de etanol anidro e biodiesel.

Fonte: Reuters / G1

2020: 72% dos brasileiros tiveram um ano ruim, aponta pesquisa

A grande maioria dos brasileiros chega ao fim de 2020 querendo esquecer definitivamente o ano que passou e com a esperança de que 2021 será bem melhor.

É o que aponta uma pesquisa do instituto Ipsos, na qual 72% dos participantes disseram que 2020 foi ruim para si e suas famílias.

O índice teve um aumento de 10 pontos percentuais em relação ao levantamento do ano anterior, quando 62% terminaram o ano insatisfeitos.

Foi um patamar quase igual à da média global — de 70% — da pesquisa, feita com 23 mil pessoas, com idades entre 16 e 74 anos, em 31 países, entre 23 de outubro e 6 de novembro.

Mas o aumento no mundo, na comparação de 2020 com 2019 foi ainda maior, de 20 pontos percentuais.

Otimismo e confiança

Em relação a 2021, 81% dos brasileiros disseram esperar um ano melhor para si e suas famílias.

O otimismo no Brasil ficou acima da média global: 77% do total dos participantes responderam que 2021 vai ser melhor.

Os países mais otimistas foram China (94%), Peru (92%) e México (91%), enquanto o Japão (44%) foi o mais pessimista. Os outros dois menores índices foram os da França (53%) e da Alemanha (63%).

Entre os brasileiros, 60% disseram ainda que o desempenho da economia global será melhor no próximo ano, acima da média mundial, de 54%.

A confiança é maior na China (86%), na Arábia Saudita (76%), na Índia (76%) e no Peru (72%).

França (31%), Bélgica (37%) e Espanha (40%) tiveram os menores índices de confiança em uma desempenho econômico global melhor em 2021.

BBC News Brasil.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Um ano para não esquecer

2021 há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos

 O ano de 2020 termina com a tragédia instalada: somente no Brasil são quase 8 milhões de infectados, os mortos os mortos se aproximando de 200 mil. A situação calamitosa, que impulsionou as vacinas para o primeiro plano, deixou patente a incompetência generalizada do governo federal, que assistiu com escárnio, indiferença e passividade à disseminação do vírus.

A gestão do general Pazuello no Ministério da Saúde limitou-se a reverberar as posições do presidente. Não se preocupou em elaborar tempestivamente um plano de imunização. Um ministério militarizado, distante dos profissionais da área e de seus conhecimentos, distante até mesmo da capacidade logística sempre lembrada como virtude dos militares.

Somente no final do ano, quando a pandemia repicava com força, o ministério saiu da letargia e apresentou um plano. Elaborado às pressas e repleto de indefinições. O próprio presidente, que ensaiou posar de conciliador, continuou a vociferar contra a vacinação, chegando ao absurdo de sugerir que os vacinados poderiam converter-se em “jacarés”. Liberou seus seguidores para a divulgação de insanidades seriais. Uma enxurrada de boçalidades caiu sobre os brasileiros, minando sua confiança e sua concentração. Como estaremos depois das festas e dos ritos do verão?

Medo, angústia, insegurança infiltraram-se pelos poros da sociedade. O vírus revelou a fragilidade humana perante suas próprias criações, fez o ruim ficar péssimo. Sem instâncias de coordenação, o desentendimento se alastrou, com um cortejo de horrores. O choque de “narrativas” reforçou os polos entre os quais nos agitamos. Demos de cara com nossas chagas sociais, com a marginalização, a segregação, a precariedade existencial de tantos brasileiros.

A pandemia se encontrou com uma sociedade que já sofria com a pauperização, a fragmentação, a perda de direitos, um governo que cria inimigos artificiais, mas se acovarda diante de inimigos reais.

Entraremos em 2021 com dúvidas e indefinições. Não se sabe quantas doses de imunizante estarão à disposição, de que laboratórios virão, quando começará a campanha e até quando ela se estenderá. Não há cronograma nem indícios de planejamento, o que significa que o processo poderá ressentir-se da falta de controles fundamentais quando se mexe com vacinas complexas, a serem aplicadas em duas doses espaçadas no tempo. Desperdiça-se a consagrada expertise brasileira em imunizações.

Enquanto não houver vacinação em massa a vida não voltará ao “normal”, a economia não se recuperará, a desigualdade continuará a se aprofundar, o País irá se inviabilizando, com menos chances de entrar nas cadeias de valor e nos fluxos da inovação tecnológica do nosso tempo.

Um ano de pandemia e confinamento, mesmo que seletivo, marcará a vida dos brasileiros. Mexerá com sua psique, com seu imaginário, com o modo como organizam as atividades, trabalham, consomem e educam os filhos. As crianças e os jovens são um capítulo à parte, alijados da escola, das interações afetivas, das amizades. Que adultos se tornarão depois dessa experiência dolorosa? Com que gap educacional?

Os brasileiros não abraçaram o distanciamento social como deveriam. Não puderam fazê-lo, acossados pelas exigências do emprego, da busca de renda. Muitos não souberam e não aceitaram. Parte da população deixou-se levar pelo discurso presidencial, pela agitação dos bolsonaristas de plantão, pregadores da ignorância. Tudo ajudou a que o povo extravasasse o desejo de se aglomerar. Enquanto os mais pobres foram às ruas para trabalhar, os mais ricos encheram bares, shoppings e restaurantes.

O tamanho da tragédia sanitária corresponde ao tamanho da tragédia política que se abateu sobre os brasileiros. Ausência de governo sempre produz caos. Pior ainda quando um governo que não governa insiste em pregar a desunião, ataca instituições, repete à exaustão uma narrativa doentia, sustentada pela burrice, pela provocação barata, pela agressividade. Os três Poderes da República não se entendem, a Federação não funciona, há pouca coesão, os brasileiros estão desorientados e confusos.

Chegamos ao fim do ano sentindo a falta que faz um governo que garanta vidas, direitos, boas políticas. O ano também foi de ausências: da voz das ruas e dos democratas, da sua capacidade de se opor aos desmandos do poder e de dar um “basta” aos arroubos criminosos do presidente.

Andamos, porém, em pista de mão dupla: as eleições municipais produziram fatos e novas lideranças, um clima de entendimento político emergiu da disputa pela presidência da Câmara dos Deputados, Trump foi derrotado, a ciência está vencendo a covid.

Por certo aprendemos algo em 2020, conhecemos melhor nossos limites e imperfeições. Não vamos recomeçar do zero, nem desprezar o patrimônio que acumulamos à custa do esforço de um povo dedicado, sofrido, que sabe arrancar a vida pela raiz.

Que venha, pois, o ano novo. Ele há de nos ajudar a encontrar a melhor estrada para recuperar o terreno que perdemos nos desvios perversos da História.

Marco Aurélio Nogueira, o autor deste artigo, é Professor Titular de Teoria Poçítica da UNESP / Universidade do Estado de São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 26.12.2020.


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Um Natal diferente

O novo ano se afigura mais promissor, mas é insensato arriscar a alegria do próximo Natal com a falta de cuidado em 2020

 Os brasileiros viverão um Natal atípico pela primeira vez em muitas gerações. O crescimento do número de casos e mortes decorrentes da covid-19 no País impõe a adoção de medidas de proteção individual e coletiva que não combinam com as confraternizações que marcam os festejos de fim de ano, celebrações tão caras às famílias brasileiras.

Em São Paulo, o governador João Doria determinou o retorno de todo o Estado à fase vermelha do Plano São Paulo, a mais restritiva, entre o Natal e o Ano-Novo. Isto significa que apenas os serviços essenciais – supermercados, farmácias, postos de combustíveis, serviços de comunicação – poderão ser prestados à população. Independentemente de quaisquer considerações que possam ser feitas sobre a efetividade da medida, o simples fato de o governo estadual ter de retroceder no plano de flexibilização é um indicativo muito claro de que as coisas não vão bem.

Em todo o País, autoridades têm alertado a população quanto aos riscos envolvidos em viagens, festas com muita gente – algumas clandestinas – e reuniões entre familiares que não residem no mesmo local, entre outras situações, no momento em que a pandemia dá sinais de recrudescimento. Teme-se, com razão, que, uma vez ignoradas as recomendações das autoridades sanitárias, a Nação assista a uma explosão de casos e mortes por covid-19 nos primeiros dias de 2021. Já é muito triste encerrar 2020 com mais de 190 mil brasileiros mortos. Cada cidadão pode contribuir com o seu esforço pessoal para que o novo ano não comece ao som do pranto de ainda mais famílias enlutadas.

Passados longos nove meses de pandemia, todos os cidadãos sabem exatamente o que deve ser feito para evitar o espalhamento descontrolado da doença. Mais importante do que as determinações estatais é, e sempre foi, a responsabilidade individual. Orientações não faltaram, em que pesem as tentativas de desqualificá-las. Deve-se usar corretamente as máscaras de proteção individual – que, ao fim e ao cabo, protegem o coletivo. Deve-se higienizar bem as mãos. E, tão ou mais importante, deve-se evitar quaisquer aglomerações. A preservação de vidas depende fundamentalmente da sobreposição do bem-estar de toda a sociedade à fruição individual.

É mais do que hora de calar fundo nos corações e mentes dos brasileiros um espírito de altruísmo e uma consciência cidadã, sem os quais se põe sob inaceitável risco a capacidade de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e mais vidas de nossos concidadãos.

Os festejos de Natal podem ser diferentes neste 2020 tão marcante, mas seu espírito não. Ao contrário. O amor, a compaixão, a solidariedade e a comunhão fraterna podem, e devem, estar mais vivos do que nunca. Familiares podem estar fisicamente separados em virtude das circunstâncias excepcionais, mas os laços que os unem serão reforçados pela virtude de seu sacrifício e pelo espírito comunitário que ligará milhões de outras famílias estranhas em todo o País que decidiram se unir em prol do interesse coletivo. Poucas coisas traduzem com mais verdade o espírito do Natal – sejam cristãos ou não, ou mesmo crentes – do que o sentimento de irmandade.

O Natal é tempo de alegria, é tempo de gente amada reunida em torno da mesa para partilhar a ceia, umas mais abundantes, outras menos, mas todas imbuídas do mesmo espírito de amor e congregação. Com os necessários cuidados e adaptações, nada impede que assim seja neste ano, apenas envolvendo um número menor de participantes. Os meios de comunicação virtual não substituem a presença física, evidentemente, mas ajudam a aproximar uns aos outros. O ano impôs a todos privações extraordinárias. Quanto maior for o engajamento nas ações de proteção, mais rápido será o retorno à vida como era antes.

O novo ano se afigura mais promissor com a perspectiva do início da vacinação de toda a população contra a covid-19. Prenuncia tempos menos duros. É insensato arriscar a alegria do próximo Natal, sem os entes queridos que terão sucumbido à falta de cuidado dos seus em 2020.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo - 24 de dezembro de 2020


quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

STJ determina que Crivella cumpra prisão domiciliar

Prefeito do Rio será monitorado por tornozeleira eletrônica e segue afastado do cargo. Ele foi preso preventivamente no contexto de investigação sobre esquema de propinas

Ao ser preso, Crivella afirmou que foi o prefeito que mais lutou contra a corrupção no Rio

O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Humberto Martins, concedeu nesta terça-feira (22/12) prisão domiciliar ao prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Ele havia sido afastado do cargo e preso preventivamente na manhã do mesmo dia, em operação conjunta da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro.

Segundo decisão liminar de Martins, Crivella deve ser monitorado por tornozeleira eletrônica, segue afastado do cargo e está proibido de manter contato com terceiros e de falar ao telefone. Ele também deverá entregar aparelhos telefônicos, computadores e tablets às autoridades.

A ação em que Crivella foi preso é um desdobramento de uma investigação que apura, desde 2018, um suposto esquema de propina na prefeitura, com base em delação do doleiro Sérgio Mizrahy. A apuração já havia resultado em ações anteriores da Operação Hades.

Ao solicitar o habeas corpus, a defesa de Crivella afirmou que a prisão preventiva fora "decretada com base em presunções genéricas e abstratas, desamparadas de qualquer base legal". "O prefeito terá sua inocência demonstrada no curso do processo", declararam os advogados.

O ministro Martins, do STJ, justificou a prisão domiciliar por Crivella ter 63 anos e pertencer ao grupo de risco da covid-19, mas argumentou que a medida era necessária para "evitar a prática de novas infrações penais, tendo em conta que o mandato de prefeito do município do Rio de Janeiro expira em 1º de janeiro de 2021”.

Apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, Crivella disputou neste ano a reeleição contra Eduardo Paes (DEM) e perdeu no segundo turno, por 64% a 36% dos votos válidos.

"QG da propina"

O Ministério Público acusa Crivella e outras 25 pessoas de organização criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva. Crivella seria o líder de um "QG da propina" existente na prefeitura.

O esquema seria comandado pelo empresário Rafael Alves, apontado como amigo íntimo de Crivella e que também foi preso nesta terça. Para o MP, Crivella sabia das propinas e autorizava as ilegalidades.

Segundo os investigadores, o "QG da propina" se aproveitou das dificuldades financeiras da prefeitura desde 2018, que obrigou o poder público a escolher quais fornecedores seriam pagos, para cobrar suborno de empresários de serviços não essenciais que quisessem receber os valores devidos. 

O valor arrecadado pela organização criminosa foi de pelo menos R$ 50 milhões, segundo o MP, que ainda desconhece como o valor teria sido dividido entre os envolvidos.

"Apesar de toda a situação de penúria [da Prefeitura], que não tem dinheiro nem para o pagamento do décimo terceiro, muitos pagamentos eram feitos em razão por conta da propina”, disse o subprocurador-geral Ricardo Ribeiro Martins em entrevista coletiva na terça-feira (22/12).

Segundo ele, os pedidos de prisão foram solicitados pois havia indícios de que o esquema não seria interrompido ao final do mandato de Crivella

Em sua delação, segundo o Ministério Público, o doleiro Mizrahy afirmou que Rafael Alves se referia a Crivella como "01 [zero um]". Mizrahy também teria declarado que "em determinada transação financeira realizada em março de 2018, restou explícito em mensagens trocadas pelo aplicativo Whatsapp que certa quantia em dinheiro seria destinada ao prefeito". 

Para os promotores, Crivella seria o "vértice da organização criminosa" e Rafael Alves, Mauro Macedo, ex-tesoureiro da campanha de Crivella, e Eduardo Benedito Lopes estariam no "primeiro escalão" da quadrilha.

A investigação analisou quase 2 mil mensagens trocadas entre Crivella e Rafael Alves. A análise mostrou, segundo os investigadores, que os dois eram próximos e que Alves interferia na escolha de empresas que prestariam serviços ao poder público, sugeria nomes para ocupar cargos de confiança e solicitava a anulação de atos administrativos. 

Ao chegar à Cidade da Polícia terça-feira, Crivella atribuiu a sua prisão a uma perseguição política. "Lutei contra o pedágio ilegal, tirei recursos do Carnaval, negociei o VLT, fui o governo que mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro", afirmou. Ele disse esperar por justiça.

Após ser preso, fazer exames no IML e participar de audiência de custódia, Crivella foi levado ao presídio de triagem de Benfica, na zona norte do Rio.

Os seus advogados afirmaram que não havia provas de que Crivella se beneficiava com a propina ou que a autorizava e que o prefeito está a dias do fim do mandato e não oferece risco à ordem pública. 

João Francisco Neto, advogado de Rafael Alves, afirmou que a prisão de seu cliente era "espalhafatosa e desnecessária". 

Deutsche Welle, 23.12.2020

Democracia desmoralizada

Mundo da irresponsabilidade generalizada gestou a catastrófica presidência de Jair Bolsonaro e a eleição do prefeito Marcelo Crivella

E eis que mais um governante do Rio de Janeiro foi preso. Muito ainda se falará sobre o rumoroso caso do prefeito Marcelo Crivella, detido a nove dias do final de seu desastroso mandato, sob acusação de chefiar organização criminosa movida a propinas. Mas nem é preciso esperar o desfecho do caso para que se constate a incrível frequência com que o eleitor fluminense escolhe mal seus dirigentes.

Recorde-se que o agora fichado Crivella conseguiu a proeza de ir para o segundo turno na eleição passada mesmo tendo legado à cidade que governava a pior administração de que se tem notícia. Ou seja: não contentes em terem jogado fora seu voto há quatro anos, quando Crivella foi eleito a despeito de ser quem é, muitos eleitores do Rio de Janeiro tornaram a fazê-lo quando já deveria estar clara para todos a sua inépcia.

Se a prisão do prefeito do Rio de Janeiro ainda no exercício do cargo, por incrível que pareça, já não tem tanta importância, pois se trata de evento tristemente corriqueiro na vida política fluminense, a notícia deve servir para que os eleitores brasileiros reflitam sobre como têm exercido seu direito de voto.

A escolha de governantes e representantes no Legislativo por meio do voto livre e direto não é algo trivial. Ao exercer esse direito, o eleitor assume a corresponsabilidade pelos destinos de sua cidade, de seu Estado e do País, razão pela qual deve fazê-lo de maneira consciente e ponderada.

Sabe-se, contudo, que isso nem sempre acontece, por uma série de razões – a começar pela desinformação e pela falta de educação cívica de parte considerável dos eleitores, que ou tomam seus desejos particulares como se fossem os interesses da coletividade na hora de decidir o voto ou fazem sua opção sem qualquer reflexão. Esse processo medíocre de escolha, quando generalizado, raramente deixa de resultar em desastre.

É evidente que o eleitor pode ser induzido a tomar decisões equivocadas por uma propaganda eleitoral eficiente ou pelo carisma do candidato, que com isso consegue esconder seus defeitos de caráter ou de formação. Mas é difícil entender como o mesmo eleitor que se queixa da corrupção e da inaptidão dos políticos é capaz de eleger, sem pestanejar e em sequência, candidatos tão flagrantemente desonestos e despreparados para a administração pública.

Era preciso uma dose cavalar de ingenuidade para acreditar, por exemplo, que Jair Bolsonaro, cujo único feito relevante até se tornar presidente foi ter transformado sua família numa holding parlamentar, seria mesmo o líder que moralizaria a política. Ou então que esse mesmo Jair Bolsonaro seria capaz de governar o País tendo se notabilizado em toda a sua vida política por sua gritaria reacionária, e não pelo par de projetos irrelevantes que apresentou no Congresso. No entanto, Bolsonaro venceu – e, mesmo sendo o pior presidente da história nacional, ainda vai razoavelmente bem nas pesquisas de opinião.

Diz-se que demagogos ganham eleições e mantêm alguma popularidade como consequência do cansaço dos cidadãos, desencantados com a política em geral. Por essa perspectiva, pode-se argumentar que o voto representa uma forma de protesto, mas também, e isso é mais grave, pode ser uma maneira de sabotar o processo eleitoral em si mesmo, desmoralizando a democracia – regime que, para muitos eleitores, infelizmente nada diz.

É como se os eleitores estivessem a declarar que o desfecho da eleição, qualquer que seja, não lhes diz respeito, renunciando liminarmente à responsabilidade que cabe a cada um dos cidadãos. E o eleito, nesse espírito, também assume pronto a repelir qualquer responsabilidade, que é sempre dos outros – sejam aqueles que lhe deixaram uma “herança maldita”, sejam aqueles que, segundo diz, não o deixam governar.

Tem-se então o mundo da irresponsabilidade generalizada, que gestou a catastrófica Presidência de Jair Bolsonaro, bem como a eleição do prefeito Crivella e de outros tantos picaretas – todos empenhados em alimentar a avacalhação da democracia, pois disso depende sua manutenção no poder.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, 23 de dezembro de 2020 


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Entenda por que Marcelo Crivella está preso; Leia a decisão da Justiça que põe o prefeito do Rio no topo do ‘QG da Propina’

Desembargadora Rosa Guita apontou a existência de esquema de corrupção dentro da Prefeitura envolvendo servidores, empresários e 'laranjas' que interferiam em licitações e em tomadas de decisões em troca de propinas

O prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella (Republicanos-RJ) foi afastado do cargo e preso nesta terça, 22, sob acusações de integrar ‘intrincado esquema criminoso’ para interferir em licitações para beneficiar empresários em troca de propina. As investigações começaram com a delação do doleiro Sérgio Mizrahy, que relatou como funcionava o ‘QG da Propina’ dentro da Prefeitura carioca.

A prisão de Crivella foi determinada pela desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita, e atingiu outras seis pessoas: o empresário Rafael Alves, o delegado aposentado José Fernando Moraes Alves, o ex-tesoureiro de Crivella Mauro Macedo, o ex-senador Eduardo Benedito Lopes (ainda não localizado e considerado foragido), Christiano Borges Sotckler Campos e Adenor Gonçalves.

Segundo a magistrada, o Ministério Público do Rio relatou a existência de esquema de corrupção dentro da Prefeitura envolvendo servidores, empresários e ‘laranjas’ que ‘interfeririam nas tomadas de decisão, agilizando pagamentos a empresas específicas e interferindo nos processos de licitação’ para beneficiar empresas que consentiam em pagar propinas a agentes públicos, como o homem de confiança do Prefeito Marcelo Crivella, Rafael Alves, que, por sua vez, contava com o doleiro Sérgio Mizrahy para ‘branquear os valores recebidos’.

Na delação, Mizrahy afirma que o esquema criminoso teria se intensificado na campanha de Crivella à Prefeitura do Rio em 2016, ocasião em que Rafael Alves teria lhe solicitado contas bancárias para receber quantias em espécie a serem utilizadas na campanha.

“Uma vez eleito, Marcelo Crivella, o denunciado Rafael Alves passou a ocupar uma sala na sede da Riotur, mesmo sem exercer qualquer cargo público, local onde o colaborador esteve por diversas vezes para lhe entregar valores em espécie provenientes das operações de troca de cheques mediante cobrança de ‘taxa de serviço'”, detalha a desembargadora. “Relatou ainda o colaborador Sérgio Mizrahy que Rafael Alves cobrava propina para autorizar o pagamento de faturas atrasadas a empresas credoras, destinando o percentual de 20% a 30% a Marcelo Alves, seu irmão, então presidente da Riotur, e outro percentual ao prefeito Marcelo Crivella”.

Além das confissões, o doleiro entregou mensagens de WhatsApp trocadas com os envolvidos no esquema envolvendo a cobrança de recebimento de determinadas quantias em espécie a pedido do ‘Zero Um’, codinome atribuído a Crivella. Segundo a magistrada, as conversas entre investigadores demonstram a ciência e participação do prefeito no esquema de desvios.

“Algumas bem explícitas, sobre a ‘roubalheira’ no seu governo e a sobre a exigência de ‘retorno financeiro’ no ‘investimento’ que nele (leia-se, Crivella) havia sido feito”, detalhou a magistrada. “Ora, em assim sendo, é evidente que o prefeito se locupletava dos ganhos ilícitos auferidos pela organização criminosa, que, na realidade, se instalara no município já com tal propósito, pois, do contrário, não colocaria o futuro político em risco apenas para favorecer terceiros, como mera ‘dívida de campanha’.

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Foto: Gabriela Biló / Estadão

Para a desembargadora Rosa Guita, Rafael Alves, mesmo sem ocupar qualquer cargo na Prefeitura, ‘influía diretamente nas mais variadas tomadas de decisões’ de Crivella, incluindo na escolha de empresas para prestar serviços para a administração carioca.

“Tudo a firmar a imagem de que realmente era o homem de confiança do Prefeito Marcelo Crivella, de modo a sugerir que este não só anuía com os esquemas criminosos, mas deles também participava, chegando, inclusive, a assinar pessoalmente documentos a fim de viabilizar os negócios do grupo criminoso”.

Crivella foi detido em casa na manhã desta terça e levado à Cidade da Polícia, onde passará por exame de corpo de delito às 15h. No local, declarou à imprensa que é vítima de ‘perseguição política’ e disse que foi o governo que ‘mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro’.

O Republicanos, partido do prefeito, divulgou nota afirmando que aguarda ‘detalhes e os desdobramentos’ da prisão. “O partido acredita na idoneidade de Crivella e vê com grande preocupação a judicialização da política”, afirmou a legenda.

Investigações avançam, empresários confessam. As investigações contra Crivella avançaram em setembro, com buscas contra o prefeito e a apresentação voluntária de quatro empresários que decidiram fechar acordos de delação premiada: João Alberto Felippo Barreto, Ricardo Siqueira Rodrigues, Carlos Eduardo Rocha Leão e João Carlos Gonçalves Regalo.

João Felippo Barreto relatou à Promotoria que pagou propinas a Rafael Alves por meio de cheques emitidos por suas empresas, administradas por ‘laranjas’. Segundo o Ministério Público do Rio, os repasses alcançaram a cifra de R$ 1,3 milhão entre julho de 2017 e janeiro de 2019.

“No ponto, este colaborador esclareceu que pagava 2% de propina sobre o valor de todas as faturas que viesse a receber do Tesouro Municipal, e relatou que, a partir do momento em que firmou o acordo com Rafael Alves, jamais teve problemas para receber os seus créditos”, anotou a desembargadora.

Os empresários João Carlos Gonçalves Regado e Carlos Eduardo Rocha Leão, do setor da saúde, afirmaram ao investigadores que pagavam 3% de propina sobre o que receberiam dos contratos firmados para a prestação de serviços da Prefeitura do Rio. Os repasses eram feitos mensalmente por contratos fictícios e notas frias, variavam entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões e foram registradas em planilhas levadas às autoridades.

“Ou seja, há nos autos prova documental em abundância apta a demonstrar a verossimilhança dos depoimentos prestados pelos colaboradores João Carlos Gonçalves Regado e Carlos Eduardo Rocha Leão”, apontou a desembargadora.

O empresário Ricardo Siqueira Rodrigues confessou ter adiantado R$ 1 milhão em propinas à organização criminosa para ‘adiantar’ benefícios com a Prefeitura. O repasse ocorreu após encontro com Rafael Alves intermediado por Arthur Cesar Menezes Soares, o ‘Rei Arthur’, em 2016.

Em outro episódio, envolvendo a empresa Mktplus, é frisado que Crivella ‘abdicou de sua usual cautela, tratando pessoalmente do pagamento dos créditos da citada empresa’ e pressionou Paulo Messina, então chefe da Casa Civil da Prefeitura, a efetuar os repasses.

Paulo Roberto Netto, de O Estado de São Paulo, em 22 de dezembro de 2020 | 11h49

Desembargadora disse que Crivella tinha ‘voraz apetite pelo dinheiro público’ e cita delações sobre propinas da Fetranspor

Doleiro Álvaro Novis e seu funcionário Edmar Moreira Dantas delataram repasses ao ex-tesoureiro de Crivella, Mauro Macedo, também denunciado nesta terça, 22

 A desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, afirmou que o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), tinha um ‘voraz apetite pelo dinheiro público’ que não se limitou à sua gestão no comando da administração municipal. A magistrada relembrou delações do doleiro Álvaro Novis e seu funcionário, Edmar Moreira Dantas, que delataram repasses de propinas a Crivella em 2010 e 2012.

As acusações contra o prefeito foram reforçadas na delação do ex-presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), Lélis Teixeira, que o Estadão teve acesso em dezembro de 2019. Segundo ele, o ex-tesoureiro da campanha de Crivella, Mauro Macedo, procurou os empresários do transporte em 2010 pedindo ajuda para quitar dívidas de campanha de Crivella ao Senado. A solicitação foi levada a José Carlos Lavoura, presidente da Fetranspor, e João Monteiro, da Rio ônibus.

Macedo solicitou R$ 450 mil para pagamento de gastos. O valor foi aprovado por Lavouras, que combinou o repasse por meio do doleiro Álvaro Novis, também delator da Lava Jato, no escritório de Macedo, na rua da Candelária. A versão de Lélis bateu o que foi relatado por Noves e Edmar Dantas – ambas as delações foram citadas nesta terça, 22, na ordem de prisão contra Crivella.

“Este voraz apetite pelo dinheiro público não se limitou à atual gestão do prefeito Marcelo Crivella”, apontou a juíza. “O então colaborador Edmar M. Dantas afirmou que, por determinação de José Carlos Lavouras, da Fetranspor, efetuou, nos anos de 2010 e 2012, pagamento de propinas ao atual prefeito Marcelo Crivella, então senador, totalizando, à época, R$ 450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil reais), pagamentos estes que eram entregues ao também denunciado Mauro Macedo, um dos seus operadores financeiros, em uma sala comercial na Rua da Candelária, alugada por Marcelo Crivella. Ou seja, há muito o atual prefeito recebe propinas”.

Quando a delação de Lélis Teixeira foi divulgada, a assessoria de imprensa da Prefeitura do Rio de Janeiro negou as acusações, afirmou que a imprensa estava ‘ sendo usada como massa de manobra para atender a interesses claramente eleitorais’ e que ‘se existe um político que não poderia ter se beneficiado de algum esquema com os empresários de ônibus, este político é Marcelo Crivella’.

Ao ser conduzido à Cidade da Polícia nesta terça, Crivella declarou que é vítima de ‘perseguição política’ e disse que foi o governo que ‘mais atuou contra a corrupção no Rio de Janeiro’.

O Republicanos, partido do prefeito, divulgou nota afirmando que aguarda ‘detalhes e os desdobramentos’ da prisão. “O partido acredita na idoneidade de Crivella e vê com grande preocupação a judicialização da política”, afirmou a legenda.

O prefeito do Rio Marcelo Crivella é preso em casa na manhã desta terça, 22. Foto: Wilton Júnior / Estadão

Crivella é acusado de integrar organização criminosa que instaurou um ‘QG da Propina’ dentro da Prefeitura do Rio. O esquema consistia em pagamento de vantagens indevidas para favorecimento de empresários, como contratos com a administração pública e repasse de verbas. A intermediação ficava com o empresário Rafael Alves, homem de confiança de Crivella.

As investigações tiveram início com a delação do doleiro Sérgio Mizrahy, que era acionado por Alves para ‘branquear os valores recebidos’. Segundo ele, as propinas eram pagas para garantir o pagamento de faturas atrasadas a empresas credoras. Em troca, Alves recebia entre 20% a 30% do valor junto a seu irmão, Marcelo Alves, então presidente da Riotur, e outro percentual era destinado a Crivella.

A desembargadora afirmou que Rafael Alves, como gestor da campanha eleitoral do prefeito em 2016, ‘abordou diversos empresários oferecendo-lhes vantagens em contratações junto à futura administração’, mesmo sem ter um cargo oficial na Prefeitura.

“Após a eleição, o prefeito Marcelo Crivella fortaleceu a posição de Rafael Alves na administração, dando-lhe trânsito livre para negociar com empresários a venda de vantagens junto à Prefeitura, sempre mediante pagamento de vultosas quantias a título de propina”, frisou a magistrada.

Para Rosa Guita, o envolvimento de Rafael Alves no caso ‘salta aos olhos’ e Crivella tinha ciência do esquema de corrupção na Prefeitura. Conversas levadas por Mizrahy e quatro empresários que delataram as propinas apontam a cobrança de recebimento de determinadas quantias em espécie a pedido do ‘Zero Um’, codinome atribuído a Crivella.

“É evidente que o prefeito se locupletava dos ganhos ilícitos auferidos pela organização criminosa, que, na realidade, se instalara no município já com tal propósito, pois, do contrário, não colocaria o seu futuro político em risco apenas para favorecer terceiros, como merca ‘dívida de campanha’, destacou a juíza, relembrando que Crivella declarou ter intenção de disputar o governo do Estado em 2022. “É possível afirmar, portanto, diante do seu propósito de permanecer na vida pública, que tal prática perdurará”.

Paulo Roberto Netto e Fausto Macedo, de O Estado de São Paulo, em 22 de dezembro de 2020 | 18h27

Prisão de Crivella afasta Republicanos como alternativa para Bolsonaros

Partido era uma atraente opção de refúgio para o presidente Jair Bolsonaro, que apoiou o prefeito do Rio na eleição municipal; sigla já abriga os filhos Flávio (senador) e Carlos (vereador)

O encarceramento preventivo por corrupção do prefeito do Rio, Marcelo Crivella,  nesta terça, 22, tende a afastar definitivamente o Republicanos como alternativa partidária para Jair Bolsonaro em 2022. A legenda, que neste ano cresceu em número de prefeituras,  era uma atraente opção de refúgio para o ocupante do Planalto. Acolhera seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro,  denunciado pela suposta prática de “rachadinha”,  e o vereador Carlos Bolsonaro, gladiador do clã nas redes sociais. Assim, Bolsonaro apoiou a candidatura do mandatário local à reeleição.  Mas não deu certo. Colheu mais uma derrota eleitoral e uma proximidade incômoda para quem tem o discurso moralista como peça de propaganda. Resta-lhe agora buscar o maior distanciamento possível do alcaide enrolado com a Justiça, buscar novo pouso em terras fluminenses e apostar na má memória do eleitor.

Crivella até fez a parte dele. Depois de mais de uma década aliado ao PT – foi até ministro da Pesca, durante o comissariado petista – trocou a esquerda pela direita, ainda no segundo turno da campanha de 2016.  Na prefeitura, radicalizou na agenda de costumes, mandando apreender uma revista na Bienal do Livro em 2019.  Nela, dois personagens masculinos se beijavam. Também caprichou no populismo que brilha nas redes sociais. Destruiu cabines de pedágio da Linha Amarela,  injustamente cobrados, afirmava. Na campanha à reeleição, prometeu até redução  de IPTU, em uma cidade de obras paradas e serviços públicos deteriorados, segundo ele por falta de dinheiro. Também denunciou, delirantemente, a possibilidade de “pedofilia nas escolas”, se perdesse a eleição.  Não funcionou. No segundo turno, foi surrado pelo ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) em todas as zonas eleitorais.

O prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicano), é levado ao IML para fazer exame de corpo de delito Foto: Wilton Junior/Estadão

Mesmo com a resistência do comando do Republicanos à sua eventual filiação,  o presidente investiu, na campanha de 2020, no namoro com o prefeito carioca. Sem partido desde que brigou com o PSL, no fim de 2019, Bolsonaro sabia onde se metia. Tinha consciência de que Crivella foi eleito, em 2016, em uma derrota da esquerda, de caráter nacional, que reduziu drasticamente o número de prefeituras do PT, em meio à ressaca do impeachment da presidente Dilma Rousseff .  No Rio, esse recuo atingiu o candidato do PSOL, Marcelo Freixo, cuja eventual eleição à prefeitura, pregava a direita, seria “o caos”. Mas também não ignorava que os anos da administração do Republicanos no Rio revelaram um gestor que parecia desinteressado da cidade. Viu que o aliado era  um prefeito de crescente impopularidade,  que enfrentava escândalos como  o da reunião do “fala com a Márcia” – funcionária que facilitaria atendimento médico a apadrinhados do prefeito – e o dos “Guardiões do Crivella”, capangas encarregados de intimidar parentes de pacientes que reclamassem do atendimento na saúde pública e os repórteres que tentassem entrevistá-los.  E que derrotou, com verbas e cargos,  pedidos de impeachment na Câmara dos Vereadores,  chegando à campanha de 2020 muito questionado.

Ainda assim, a máquina oficial e o apoio de Bolsonaro parecem ter ajudado Crivella a ir ao segundo turno. O discurso de ultradireita, no campo dos costumes,  e uma campanha centrada na proximidade com o presidente – às vezes, na propaganda de TV, parecia que era ele, e não Crivella, o candidato  – agruparam o eleitorado conservador. Mas não foram suficientes para lhes dar a vitória – 2020 não é 2018. O próprio Bolsonaro percebeu o que ocorria. No segundo turno, negou-se a gravar vídeo de apoio e circunscreveu a aliança a elogios – tímidos – na internet.  Parecia tentar reduzir o impacto da derrota arrasadora que se aproximava. O resultado apenas confirmou o que as pesquisas apontavam.

Se para Crivella a derrota foi um revés relevante na carreira política, para Bolsonaro foi mais um “preste atenção” emitido pelo eleitorado dos grandes centros  – como o de São Paulo, que barrou a extrema direita do segundo turno. A prisão desta terça praticamente encerra a carreira do prefeito – que tende a virar a ex-grande aposta da Igreja Universal do Reino de Deus, patrocinadora do Republicanos, na qual o mandatário municipal é bispo licenciado. A operação do MP do Rio dá ainda a Bolsonaro a companhia de um preso por corrupção, cuja reeleição (fracassada) recomendou aos cariocas e com quem, mesmo antes da campanha eleitoral, apareceu dançando e rindo.


O prefeito do Rio, Marcelo Crivella, e o presidente Jair Bolsonaro, durante evento com líderes evangélicos no Rio em fevereiro Foto: Reprodução

Mesmo para os mais devotos,  é algo difícil de explicar – como é para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva justificar a proximidade que teve com outro preso do Rio, o ex-governador Sérgio Cabral Filho, condenado a perto de 300 anos de cadeia.  Em cenário tão conturbado, a permanência dos primeiros filhos na legenda do prefeito preso, em tese, fica mais difícil, e a transferência do presidente, impossível.

Wilson Tosta, Chefe de Reportagem da Sucursal de O Estado de São Paulo do Rio de Janeiro.

Graduado em Jornalismo pela UFRJ em 1984, sou mestre em História Comparada pela mesma universidade e trabalho no Estado desde 1998. Acompanhei profissionalmente a política brasileira a partir da primeira eleição presidencial pós-redemocratização, em 1989 – e ainda hoje me surpreendo diariamente.

O papel de Crivella no 'QG da Propina', segundo as investigações que levaram à prisão do prefeito do Rio

 O papel de Crivella no 'QG da Propina', segundo as investigações que levaram à prisão do prefeito do Rio

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, é escoltado por policiais após ser detido, em 22 de dezembro de 2020. /   Ele foi preso em casa, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, por volta das 6h. / CRÉDITO,REUTERS

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos), foi preso na manhã de terça-feira (22/12) em uma ação conjunta entre a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro, a apenas nove dias de encerrar seu mandato.

Derrotado por Eduardo Paes (DEM) nas eleições municipais realizadas em novembro, Crivella foi apoiado em sua tentativa fracassada de reeleição pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Com a prisão, Crivella se torna o primeiro prefeito a se juntar a uma longa lista de políticos do Rio de Janeiro presos, que inclui os ex-governadores Moreira Franco, Luiz Fernando Pezão, Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho e Sérgio Cabral.

Crivella foi preso em casa, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, por volta das 6h. Segundo o advogado de defesa Alberto Sampaio, o prefeito foi pego ainda de pijamas em casa, conforme informações do portal G1.

Operação Hades

O empresário Rafael Alves (de costas, de branco) é apontado como operador do esquema de pagamento de propina da Prefeitura do Rio de Janeiro. / CRÉDITO,GETTY IMAGES

A ação desta terça-feira é um desdobramento da Operação Hades, que foi deflagrada em março e investiga um suposto "Quartel General da Propina" na Prefeitura do Rio de Janeiro.

Além de Crivella, foram presos nesta manhã o empresário Rafael Alves, apontado como operador do esquema; Fernando Moraes, delegado aposentado; Mauro Macedo, ex-tesoureiro da campanha de Crivella; além dos empresários Adenor Gonçalves dos Santos e Cristiano Stockler Campos.

O ex-senador Eduardo Lopes (Republicanos-RJ) também é alvo da operação, mas não foi encontrado.

Todos eles foram denunciados pelo Ministério Público pelos crimes de organização criminosa, lavagem de dinheiro, corrupção ativa e corrupção passiva.

O MP disse que o valor arrecadado pela organização criminosa chega a R$ 50 milhões.

Como funcionava o 'QG da Propina', segundo o MP

Conforme o Ministério Público, empresas que tinham interesse em fechar contratos ou tinham dinheiro para receber do município entregavam cheques a Rafael Alves. A partir do pagamento, o empresário facilitaria a assinatura de contratos e pagamento das dívidas.

O MP diz que Crivella liderava a organização criminosa e orquestrou sua operação.

"Relatórios de inteligência financeira, depoimento de colaboradores e de testemunhas revelaram a existência de uma bem estruturada e complexa organização criminosa liderada por Crivella e que atuava na Prefeitura desde 2017", diz o órgão, em comunicado oficial.

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, na inauguração da obra "Cuentos", no Rio de Janeiro, Brasil, 19 de junho de 2017. CRÉDITO,EPA

O MP diz que Crivella liderava a organização criminosa e orquestrou sua operação.  

Segundo o MP, o prefeito era assessorado por Rafael Alves, Mauro Macedo e Eduardo Lopes.

"Os três, dentro da ideia de divisão de trabalho orquestrada por Crivella e sob a sua liderança, exerciam a função de aliciadores de empresários para participação em esquemas de corrupção, voltados para a arrecadação de vantagens indevidas mediante promessas de contrapartidas que seriam viabilizadas pelo prefeito."

Mensagens de celular

Ainda conforme o Ministério Público, mensagens armazenadas nos celulares de Rafael Alves e outros investigados revelaram indícios de fraudes e pagamentos milionários de propina na contratação do grupo Assim Saúde pelo Previ-Rio (Instituto de Previdência e Assistência do Município do Rio de Janeiro).

"Por meio de Christiano Stockler Campos, a organização realizou contato com os executivos do grupo e deixou claro que, sem que se chegasse a um acordo de propina, a Assim teria grandes dificuldades em novas contratações com a Prefeitura do Rio de Janeiro", informa o MP.

O então presidente do conselho de administração do grupo, Aziz Chidid Neto, teria sido convidado pelo delegado aposentado José Fernando Moraes Alves para um almoço com pessoas "que poderiam lhe ajudar com as renovações dos seus contratos", entre eles o empresário Adenor Gonçalves, diz ainda o MP, com base no relato de João Carlos Gonçalves Regado, presidente do grupo Assim.

Aliado de Bolsonaro

O Presidente do Brasil Jair Bolsonaro e o Prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella durante execução do hino nacional durante a inauguração da Escola Civico-Militar General Abreu em 14 de agosto de 2020 no Rio de Janeiro, Brasil

Mesmo com o apoio de Bolsonaro, Crivella não se reelegeu. / CRÉDITO,GETTY IMAGES

Crivella foi apoiado por Bolsonaro em sua tentativa de reeleição para prefeito. O presidente chegou a gravar um vídeo de campanha ao lado do correligionário.

"A esquerda tenta, a todo custo, voltar de todas as maneiras", dizia a propaganda.

"Quem tem essa tendência de pintar de vermelho. Essa ideologia nefasta que não deu certo em lugar nenhum do mundo. É mais um motivo para eu pedir ao eleitor: vote no Crivella 10 para prefeito do Rio de Janeiro", dizia Bolsonaro no vídeo.

Crivella então respondia: "O presidente da República do Brasil me chama ao dever, me dá uma missão, e eu vou cumprir, presidente."

Conforme a jornalista Andréia Sadi, da GloboNews e do portal G1, pessoas próximas ao governo agora temem que a prisão de Crivella seja associada a Bolsonaro.

"Fontes afirmam que, por um erro de estratégia do presidente na campanha, o Planalto deu de 'bandeja' à oposição a possibilidade de exploração da prisão de Crivella — e vão colar o episódio à imagem do governo federal", escreve.

'Perseguição política' e 'injustiça'

"Isso é uma perseguição política. Lutei contra todas as empreiteiras, tirei recursos do pedágio, do carnaval, e isso é perseguição. Quero que se faça justiça", disse Crivella após sua prisão, segundo o jornal O Globo.

O advogado de Crivella, Alberto Sampaio, considerou a prisão uma "injustiça" e disse que vai solicitar a revogação da prisão preventiva, conforme o mesmo jornal.

A defesa do ex-senador Eduardo Lopes informou que o político está morando em Belém, no Pará, onde deve se apresentar à polícia.

As defesas dos outros denunciados ainda não haviam se pronunciado.

Fonte: BBC NEWS BRASIL, em 22.12.2020

Por que Bolsonaro pode sofrer uma 'tempestade perfeita' na política e na economia em 2021


O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, antes da cerimônia do Dia da Bandeira no Palácio do Planalto, em Brasília, em 19 de novembro de 2020. / CRÉDITO,REUTERS

Presidente terá de lidar com testes a seu governo em diferentes áreas no próximo ano

Quando o calendário virar de 2020 para 2021, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) terá de lidar com uma conjunção de problemas em várias frentes: na economia, na política interna e na relação com os outros países.

A série de fatores negativos pode ser lida como uma espécie de "tempestade perfeita", um período que testará a resiliência da gestão de Bolsonaro, segundo especialistas de várias áreas.

Nas relações internacionais, o governo do capitão reformado do Exército sofrerá um abalo com a chegada ao poder do democrata Joe Biden, que assumirá como o 46º presidente dos Estados Unidos em 20 de janeiro. Bolsonaro foi um dos últimos líderes mundiais a reconhecer a vitória eleitoral do futuro mandatário americano.

Na economia, Bolsonaro terá de lidar com o fim do auxílio emergencial e dos demais programas de socorro financeiro criados durante a pandemia do novo coronavírus — e com os efeitos da interrupção dos pagamentos sobre sua popularidade.

Segundo projeção de um sociólogo ouvido pela BBC News Brasil, cerca de um terço da população brasileira estaria hoje vivendo abaixo da linha da pobreza definida pelo Banco Mundial (R$ 434 por pessoa por mês), se não fosse pelo auxílio.

No xadrez político em Brasília, o presidente enfrentará um período de incertezas: Câmara e Senado definirão no dia 1º de fevereiro seus presidentes para os próximos dois anos, o que obrigará Bolsonaro a fazer novas concessões e acordos para tentar emplacar aliados no comando das duas casas legislativas.

Três focos de tensão para Bolsonaro em 2021

Para complicar, o Congresso entrará 2021 sem a Lei Orçamentária Anual (LOA) do ano que vem aprovada, o que limitará a capacidade de gastos do governo ao mínimo, pelo menos nos primeiros meses.

Finalmente, há a pandemia do novo coronavírus: no fim de 2020, o país voltou a registrar um novo aumento no número de casos e de mortes, depois de meses de declínio. Segundo pesquisadores que acompanham os números da pandemia, a situação configura uma segunda onda do vírus, que voltará a tensionar os serviços de saúde e pode comprometer a retomada da economia.

"A verdade é que todo presidente, da metade para a frente do governo, o cenário começa a mudar. Aquela lua-de-mel (do começo do mandato) já passou, e as articulações (para a eleição seguinte) começam a ser feitas. A gente sabe também que o ambiente político é muito guiado pela circunstância econômica. Então, se a gente enfrentar uma crise econômica mais forte (...), pode ser que ele enfrente bem mais dificuldades", diz o cientista político Bruno Carazza.

"Bolsonaro vai ser realmente testado no ano que vem (2021). Este ano (2020) foi um ano atípico, em que ele não conviveu com restrições fiscais (graças ao 'orçamento de guerra' aprovado pelo Congresso), e 2019 foi o ano do início do governo, quando ele tinha a popularidade da eleição a favor dele e conseguiu aprovar a reforma da previdência. Então, ele navegou bem em 2019, e 2020 foi um ano super atípico. Agora, ele vai ser realmente testado em 2021", disse Carazza, que é professor do Ibmec e da Fundação Dom Cabral.

A seguir, a BBC News Brasil detalha cada uma dessas fontes de tensão para o ocupante do Planalto.

Um adversário ideológico na Casa Branca

O presidente eleito dos EUA, Joe Biden, faz um discurso antes do Dia de Ação de Graças em Wilmington, em 25 de novembro de 2020. / CRÉDITO,REUTERS

No dia 20 de janeiro, o democrata Joe Biden tomará posse como o 46º presidente dos Estados Unidos.

Para o governo brasileiro, esse cenário está longe de ser o ideal. Jair Bolsonaro e seus filhos nunca esconderam que tinham lado na disputa presidencial americana: o lado do atual presidente, o republicano Donald Trump, derrotado nas urnas.

Bolsonaro foi o último líder de um país do G20, o grupo das 20 maiores economias do mundo, a reconhecer a vitória de Biden.

Além disso, o presidente brasileiro chegou a dizer, sem apresentar provas, que houve fraude na eleição dos EUA.

Segundo telegramas diplomáticos obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro recebeu do embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, análises baseadas em notícias falsas — o material enviado por Washington questionava a lisura do pleito.

Enquanto a maioria dos chefes de Estado e de governo parabenizou o democrata em 7 de novembro, quando a contabilização de votos permitiu que se projetasse sua vitória, Bolsonaro aguardou até 15 de dezembro, depois que o resultado foi confirmado pelo Colégio Eleitoral.

Ao reconhecer a vitória de Biden, Bolsonaro disse que estará "pronto a trabalhar com o novo governo e dar continuidade à construção de uma aliança Brasil-EUA".

Fernanda Magnotta é coordenadora do curso de relações internacionais da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Segundo ela, o Brasil sempre viu os Estados Unidos como um parceiro prioritário — o que é novo, no governo Bolsonaro, é o alinhamento "ideológico" a Donald Trump.

"O que a gente vê no governo Bolsonaro até agora é mais que um alinhamento automático desses que a gente já conhecia. O que a gente assistiu foi um alinhamento ideológico. Só que não é um alinhamento ideológico com os Estados Unidos, é um alinhamento ideológico com o 'trumpismo', em particular", diz ela.

"O risco de estabelecer uma política de governo, e não de Estado, é que os governos vão e vêm. E na medida em que os governos vão, a gente se torna vulnerável", diz ela.

Segundo Magnotta, o governo brasileiro enfrentará dificuldades de três tipos num governo Biden.

O primeiro é de agenda: o próximo mandatário norte-americano estará focado em temas domésticos, como o enfrentamento à pandemia de covid-19.

"Isso já é ruim para o Brasil, porque, querendo ou não, o país vai estar no final da fila para apresentar suas credenciais e suas demandas para o governo americano. Não vai ser visto como um parceiro que merece atenção imediata", diz ela.

Depois, há a divergência em termos de valores: Biden foi eleito defendendo pontos de vista opostos aos de Bolsonaro e de Donald Trump em várias áreas — inclusive na chamada "agenda de costumes".

"Então, quando uma nova narrativa chega à Casa Branca, e a narrativa anterior é incompatível, vai haver a necessidade do governo brasileiro de tomar medidas para se desvencilhar da narrativa anterior. Se não fizer, vai sofrer as consequências do isolamento", diz Magnotta.

Por fim, há a relação comercial entre Brasil e Estados Unidos: o Brasil é um país agroexportador, cuja imagem na área ambiental se tornou muito ruim nos últimos anos. Se não agir para mudar esta percepção, pode acabar sendo escanteado pela administração Biden, que elegeu o meio ambiente como uma de suas prioridades.

"Caso o governo brasileiro não tome as medidas para lidar com isto com uma certa celeridade, pode acabar se tornando 'útil' para os Estados Unidos, em certa medida, escolher o Brasil como uma espécie de mau exemplo a ser combatido", diz ela.

Na economia, o fim do auxílio emergencial

O Ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes, fala durante um seminário sobre a retomada da economia brasileira, em Brasília, em 8 de dezembro de 2020

Equipe de Guedes vinha tentando, sem sucesso, criar alternativas para financiar programa que substituiria Bolsa Família. / CRÉDITO,REUTERS

Nos últimos meses, a equipe econômica do governo apresentou várias ideias para financiar a chamada "Renda Cidadã", um programa cujo objetivo era substituir e ampliar o atual Bolsa Família, de modo a amenizar o choque provocado pelo fim do auxílio emergencial.

Foram várias as sugestões do time de Paulo Guedes para conseguir dinheiro: uma nova CPMF, o congelamento do valor das aposentadorias e até o uso do dinheiro de emendas parlamentares. Mas, ao fim, estas ideias fracassaram, e o Bolsa Família deve continuar como está.

Junto com o auxílio emergencial, que chegou a atingir mais de 66,2 milhões de brasileiros, também devem acabar em janeiro outras iniciativas criadas para minimizar a destruição econômica provocada pelo vírus.

Um deles é o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que permitiu às empresas reduzir a jornada de trabalho e os salários dos funcionários, que passaram a ser complementados por recursos públicos. Sem a medida, há a expectativa de mais demissões.

Além disso, linhas de crédito criadas para auxiliar as empresas durante a pandemia também devem se encerrar neste fim de 2020.

O sociólogo Rogério Barbosa, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), afirma que, sem o auxílio emergencial, quase um terço da população brasileira pode cair abaixo da linha da pobreza definida pelo Banco Mundial, de R$ 434 por pessoa por mês.

Sem o benefício, a pobreza teria chegado a 35% dos brasileiros já em maio de 2020, no auge das medidas de restrição contra o novo coronavírus, acrescenta o pesquisador, que se concentrou em estudar os efeitos da pandemia sobre a pobreza no Brasil nos últimos meses. Ao longo do ano de 2020, porém, o índice foi diminuindo, graças às pessoas que voltaram a trabalhar.

"O problema é que isso tem um teto. Quando os negócios fecham, eles acumulam dívidas, eles acumulam uma série de custos, e não conseguem simplesmente abrir depois. Você vai ter custos com contador; custos com fornecedores (...). Negócios pequenos que fecham não reabrem imediatamente depois que a economia puder funcionar, depois da vacina."

"O fim da calamidade pública, nominalmente, não vai ser o fim da calamidade econômica", afirma o sociólogo, que é também pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da Universidade de São Paulo (USP).

"Em julho (de 2020), 7% da população vivia exclusivamente de auxílio emergencial. São 14 milhões de pessoas. São pessoas que não têm emprego, não tem nada."

"O risco disso é muito grande. Tem um risco de curto prazo, que é a pobreza absoluta, pessoas morrendo de fome. Isso pode gerar uma fratura social importante, uma crise de legitimidade do sistema político. A pressão social sobre a política pode aumentar, em momentos assim", afirma.

Em Brasília, incertezas na relação com o Congresso


Líder do Partido Progressista (PP), deputado Arthur Lira, fala à imprensa, após reunião com Jair Bolsonaro, em Brasília. É o nome apoiado pelo Planalto para o comando da Câmara

Um terceiro foco de tensão para Bolsonaro em 2021 é a relação com o Congresso.

No dia 1º de fevereiro, Câmara e Senado elegerão seus presidentes para os próximos dois anos — e, desde o fim das eleições municipais, esta é a principal disputa de poder em Brasília.

Para Bolsonaro, é vital conseguir emplacar um aliado no comando das duas casas do Legislativo, especialmente da Câmara. Além de decidir quais projetos serão pautados, é o presidente da Casa Baixa que decide sobre aceitar ou não um pedido de impeachment — atualmente, há quase 60 demandas do tipo aguardando na fila.

No momento, a eleição mais tensa, do ponto de vista do governo, é justamente a do comando da Câmara: o deputado Arthur Lira (PP-AL) é o postulante apoiado pelo Planalto. Ele deve concorrer contra o nome a ser escolhido pelo grupo do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), o atual presidente da Câmara.

No começo de dezembro, Lira lançou sua candidatura à presidência com o apoio de cinco partidos do Centrão: PP, PL, PSD, Solidariedade e Avante. As legendas somam 135 nomes.

Já o grupo reunido em torno de Rodrigo Maia conseguiu atrair os partidos de oposição e soma hoje 11 siglas: DEM, MDB, PSL, PSDB, Cidadania, PV, PT, PSB, PCdoB, Rede e PDT. São 281 deputados nestes partidos.

Apesar disso, os apoios das legendas raramente se traduzem diretamente em votos, porque o escrutínio é secreto. Além disso, o grupo de Rodrigo Maia ainda não escolheu um candidato, e a demora favorece o Arthur Lira.

Para tentar ganhar apoios para o deputado do PP alagoano, o Planalto tem negociado com os parlamentares.

Recentemente, o governo liberou R$ 1,9 bilhão para obras de infraestrutura a serem indicadas pelos deputados; e em Brasília já se fala na realização de uma reforma administrativa para liberar espaços para políticos que venham a apoiar Arthur Lira.

Um dos parlamentares a ser acomodados é o atual vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos-SP), que deixou o grupo de Maia para apoiar o candidato do Planalto.

Finalmente, quando o calendário virar de 2020 para 2021, Bolsonaro precisará da boa vontade dos congressistas para votar duas medidas extremamente importantes, que não foram apreciadas este ano.

A primeira é a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021. Sem a aprovação do Orçamento, o governo seguirá funcionando à base dos chamados Duodécimos — o que impede gastos novos ou investimentos.

A segunda medida a ser aprovada é a chamada PEC Emergencial, uma proposta que traz mecanismos para tentar controlar a trajetória da dívida pública, impedindo que o governo fure o chamado teto de gastos.

André Shalders - @andreshalders, da BBC News Brasil em Brasília /22.12.2020

Coronavírus: Brasil tem 968 mortos e 55,2 mil novos casos de covid-19 em 24h

Foto à noite, mostra mulher parada em ponto de ônibus com máscara e, ao fundo, uma projeção de luz no prédio do Congresso dizendo: Luto 100 milCRÉDITO,REUTERS/ADRIANO MACHADO

O Brasil teve 968 mortos e 55,2 mil novos casos de coronavírus registrados nas últimas 24h, segundo o boletim mais recente do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), desta terça (22/12).

Com isso, desde o início da pandemia, o total de casos do país chegou a 7.318.821 e o de óbitos, a 188.259. Na sexta, o país havia ultrapassado novamente a marca de mil mortes de covid-19 registradas em apenas um dia.

O Estado com o maior número de vítimas fatais é São Paulo (45.395), seguido do Rio de Janeiro (24.594) e Minas Gerais (11.258).

O Brasil continua como o segundo país com maior número de mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 321,3 mil óbitos por covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

O país foi superado em número de casos, entretanto, pela Índia (10,1 milhões), agora em segundo lugar depois dos Estados Unidos (18,1 milhões).

Fonte: BBC News Brasil

Olha aí, Presidente Bolsonaro! O Presidente Putin assina leis para se tornar "intocável" após deixar o poder

Presidente russo sanciona legislação que garante cargo de senador vitalício e imunidade judicial para ex-mandatários e suas famílias. De agora em diante, ex-presidentes não poderão ser presos ou interrogados. 

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, em coletiva de imprensa

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, sancionou nesta terça-feira (22/12) duas leis que terão impacto no seu próprio futuro caso ele venha a deixar o poder. Uma delas prevê que ex-presidentes se tornem senadores vitalícios na câmara alta do Parlamento após deixarem o Kremlin. Outra envolve a concessão de imunidade e impede que ex-mandatários e seus parentes se tornem alvo da Justiça.

A nova legislação vem na esteira de mudanças abrangentes iniciadas por Putin no sistema político russo neste ano. Elas incluíram emendas constitucionais que permitem que o presidente tenha a opção de concorrer a mais dois mandatos presidenciais de seis anos – originalmente, Putin teria que deixar o poder em 2024. Ele está em seu segundo mandato consecutivo e no quarto no total.

As leis sancionadas agora estão sendo encaradas como uma salvaguarda para um futuro em que ele não estiver mais no poder – seja a partir de 2036 ou antes. No Chile, por exemplo, o cargo de senador vitalício foi usado pelo ex-ditador Augusto Pinochet para se proteger da Justiça – a posição foi abolida em 2005. 

Já a lei que garante imunidade – promovida pelo partido governista Rússia Unida – prevê que ex-presidentes não poderão ser perseguidos administrativamente nem penalmente, nem detidos, presos ou interrogados. Ela ainda inclui proteção para os familiares de ex-presidentes.

Até agora, ex-presidentes russos só tinham imunidade em relação aos atos cometidos durante o mandato presidencial ou relacionados ao exercício do cargo, mas não estavam protegidos de causas penais ou administrativamente vinculadas a fatos anteriores ou posteriores.

Essa regalia só beneficiará o atual presidente e seu antecessor, Dimitri Medvedev, que exerceu o cargo entre 2008 e 2012.

A partir de agora, um ex-presidente só poderá ser privado de imunidade pelo Senado com base em uma acusação de alta traição feita no Parlamento ou por cometer um crime grave, acusações que devem ser corroboradas pela Suprema Corte.

A acusação contra um presidente deve receber o respaldo de dois terços das duas câmaras do Parlamento russo. O Senado terá três meses para tomar uma decisão, prazo para que a acusação não seja considerada rejeitada. Mas, para dificultar ainda mais que isso aconteça, a legislação aprovada nesta terça-feira também prevê que presidentes em exercício indiquem até 30 senadores ao Conselho da Federação.

Deutsche Welle, 22.12.2020

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Vacina contra covid-19: como os países estão usando militares para planejar logística


Ministro de Saúde, Eduardo Pazuello
CRÉDITO,MARCELO CAMARGO/AG. BRASIL

General Pazuello chegou ao Ministério da Saúde em abril, quando a pasta era comandada por Nelson Teich, na posição de secretário-executivo

"Nesses poucos dias que eu estou aqui, a impressão que eu tenho é que a gente precisa ser muito mais eficiente do que a gente é hoje. A gente está falando de logística, de compra, de distribuição, e ele é uma pessoa muito experiente nisso, vem trazer uma contribuição no momento que a gente corre contra o tempo."

Foi assim que o então ministro da Saúde, Nelson Teich, anunciou em abril o novo secretário-executivo da pasta, general Eduardo Pazuello, quando este assumiu a vaga deixada por João Gabbardo.

Oito meses depois, o "especialista em logística" é agora ministro da Saúde e as primeiras vacinas contra a covid-19 começam a ser aplicadas em alguns países.

No Brasil, o programa de imunização divulgado no fim de semana pelo governo e reapresentado nesta quarta-feira (16/12) tem uma série de lacunas.

Não há um cronograma concreto de vacinação — segundo Pazuello, porque nenhuma vacina foi aprovada ainda pela Anvisa — e, até o momento, a previsão é de cobertura de 25% da população do país, cerca de 50 milhões de brasileiros, incluídos na primeira fase.

Há também um temor de que possam faltar insumos como agulhas e seringas — o processo de licitação para compra desses materiais foi aberto apenas nesta quarta.

Mundo afora, dezenas de países vinham há meses se preparando para o momento em que as vacinas fossem de fato aprovadas. Alguns deles, inclusive, contam com a experiência dos militares na área de logística para planejar a distribuição — é o caso de Estados Unidos, Alemanha, Portugal e Suíça, entre outros.

Soldados também ajudam a rastrear contatos e realizar testes

Nos EUA, o chefe de operações da força-tarefa lançada em maio para desenvolver, produzir e distribuir a vacina — a Operação Warp Speed — é um general: Gustave Perna.

O diretor de Suprimentos, Produção e Distribuição, por sua vez, é um tenente-general aposentado, Paul Ostrowski.

Os militares têm trabalhado nos bastidores, a partir das diretrizes apontadas pelas autoridades de saúde, especialmente na aquisição de insumos — agulhas, seringas, swabs, curativos, gelo seco — e no planejamento da distribuição, conforme detalhou o vice-chefe de gabinete para políticas do departamento de Saúde e Serviços Humanos, Paulo Mango, em uma teleconferência em outubro.

"Nós temos os maiores especialistas em logística no Departamento de Defesa trabalhando em conjunto com o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) para dar as diretrizes de todo detalhe logístico que você possa imaginar", disse, conforme noticiado pela pasta.

Os EUA, país com maior número de mortos por covid-19 no mundo, começaram a vacinar sua população nesta semana.


General Gustave Perna, à frente da Operation Warp Speed: Defesa trabalha em conjunto com o CDC, agência americana de pesquisa em saúde pública

Na Alemanha, os militares estão envolvidos na força-tarefa para tentar conter a pandemia desde o início e, de acordo com o governo, também devem participar do planejamento do programa de vacinação, que começa no próximo dia 27 de dezembro.

Hoje, cerca de 6 mil soldados têm auxiliado em tarefas administrativas, trabalhado no rastreamento de contatos, realizado testes diagnósticos em aeroportos.

Em Portugal, militares também têm sido usados para reforçar o rastreamento de contatos — uma das estratégias apontadas pela OMS (Organização Mundial de Saúde) como fundamentais para desacelerar a curva de infecção.

Como a covid-19 é transmissível mesmo por aqueles que não apresentam sintomas — ou seja, quem nem sabe que está doente pode estar contaminando outras pessoas —, uma política de testagem em massa e rastreamento dos casos positivos, para que estes sejam isolados, é fundamental para dificultar a disseminação do novo coronavírus.

Conforme o plano divulgado pelo governo português no dia 4 de dezembro, as Forças Armadas também auxiliarão no desenvolvimento da operação logística que distribuirá as vacinas.

Militares brasileiros

Os militares brasileiros também têm sido usados nas ações do governo de combate à pandemia. Segundo um balanço divulgado em junho pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo, a atuação teve início com a operação que repatriou em fevereiro os brasileiros de Wuhan, na China.

Segundo ele, até o meio do ano haviam sido mobilizados 34 mil homens e mulheres das Forças Armadas em ações que envolveram a entrega de material e de cestas de mantimentos em áreas remotas, transporte de insumos, campanhas de conscientização e desinfecção de locais públicos.

Ainda conforme o balanço, a Operação Covid-19 conta com um centro de operações conjuntas para coordenar e planejar o emprego das Forças Armadas no combate à pandemia.

O uso dos militares, entretanto, não impediu que o país chegasse à posição de segundo país com maior número de mortes, superior a 182 mil.


Eduardo Pazuello e Jair Bolsonaro
CRÉDITO,ISAC NÓBREGA/PR

Previsão para início da vacinação no Brasil é fevereiro de 2021

Desafio logístico global

Na solenidade em que divulgou o programa, na quarta, o ministro Pazuello pediu que os brasileiros não se preocupassem com a questão logística.

"A logística é simples. Apesar de o nosso país ser deste tamanho, temos estrutura, temos companhias aéreas, Força Aérea Brasileira, temos toda a estrutura já planejada e pronta."

O professor Hani Mahmassani, diretor do Transportation Center da Northwestern University, pondera, contudo, que a vacinação contra a covid-19 é um grande desafio logístico em todo o planeta.

"Ao contrário de outros episódios, em que houve desenvolvimento da vacina primeiro e sua administração depois, desta vez tudo acontece ao mesmo tempo, as etapas se sobrepõem", destaca.

Além disso, acrescenta, alguns imunizantes requerem condições especiais de armazenamento. A vacina da Pfizer, por exemplo, são conservadas a 70ºC negativos, o que requer um planejamento minucioso de seu transporte e estoque.

"Gelo seco virou uma commodity valorizada", brinca.

No caso específico dos EUA, que não conta com um sistema público de saúde como o Brasil, uma parte do processo está sob responsabilidade dos Estados e municípios, que estão usando de hospitais e farmácias a centros comunitários e tendas improvisadas como locais de vacinação.

A distribuição pelo país, também de proporções continentais, está sendo feita em parceria com empresas como UPS e Fedex.

Para o especialista em logística, um bom indicador de como o programa de imunização vai se desenrolar é a forma como o país lidou com a questão dos testes diagnósticos ou mesmo os equipamentos de proteção individual.

No início, eles eram escassos em todo o planeta. À medida que o tempo foi passando, alguns países conseguiram encontrar caminhos para solucionar esses gargalos.

É o caso dos EUA, diz ele. A restrição na capacidade de processamento dos testes, contudo, segue sendo um problema e mantém o ritmo de novos diagnósticos aquém do desejável.

No Brasil, que segue testando menos que o recomendável pela OMS, soube-se em novembro que 6,8 milhões de testes diagnósticos para covid-19 com vencimento em dezembro não haviam sido distribuídos, estavam estocados no Ministério da Saúde. Alguns dias depois, a Anvisa estendeu por quatro meses o prazo de validade.


Farmacêutico enche seringa com vacina da Pfizer-BioNTech no Estado americano de Indianapolis
CRÉDITO,BRYAN WOOLSTON/REUTERS

'Seleção de craques sem técnico'

O médico sanitarista Adriano Massuda, professor da FGV-Saúde, um centro de estudos em planejamento e gestão de saúde, acrescenta ainda como um precedente negativo a ineficiência do governo federal na centralização da compra de produtos essenciais, como respiradores.

"O Brasil tem um poder de compra enorme (a nível federal), que não foi usado."

Como resultado, muitos Estados e municípios tentaram negociar por conta própria, alguns ensaiando consórcios regionais, como no caso do Nordeste.

"Isso provoca inflação a nível local, municípios competindo entre si", acrescenta.

Uma das razões para os problemas de gestão no Ministério da Saúde, em sua avaliação, é o processo de "militarização" pelo qual a pasta vem passando, com a substituição de quadros técnicos por militares sem experiência no planejamento ou execução de políticas públicas de saúde.

"Isso tem afetado vários programas, inclusive o Programa Nacional de Imunização. Os programas estão perdendo capacidade operacional", diz ele, relembrando o caso recente envolvendo testes para diagnóstico de HIV.

O Ministério da Saúde deixou vencer o contrato da empresa que realizava exames de genotipagem no SUS, usados em diagnósticos de HIV e hepatites virais, e os procedimentos na rede pública foram suspensos, com expectativa de retomada em janeiro, após conclusão da nova licitação.

Massuda, que foi secretário-executivo substituto no Ministério da Saúde entre 2011 e 2012 e secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em 2015, ressalta que os militares foram usados recorrentemente no passado em campanhas de imunização no país, mas como um "braço operacional", atendendo áreas de difícil acesso, por exemplo.

Agora, assumiram a coordenação, sem, entretanto, terem dimensão da complexidade do sistema de saúde. A logística à qual estão habituados, ele acrescenta, é bem diferente.

O especialista lembra que o Brasil tem a vantagem de ter um sistema de saúde descentralizado, no nível dos municípios, que permitiu uma "enorme capilarização da infraestrutura assistencial" e abriu espaço para o país atingisse uma ampla cobertura vacinal, uma das maiores do mundo.

"A gente tem uma infraestrutura que já deveria ter sido utilizada para ações preventivas (para evitar o aumento exponencial de casos)", afirma.

"São 260 mil agentes comunitários de saúde, mais de 40 mil equipes de saúde da família. É como se fosse uma seleção com os melhores craques, mas com técnicos que não sabem organizar o time", compara.

Para além do desafio logístico, há uma última — porém imprescindível — etapa em que a atuação do ministério também deixa a desejar: convencer as pessoas da importância da vacina. Nesse caso, diz ele, o governo erra ao dar ênfase a supostos tratamentos precoces sem evidência científica de eficácia; ao não passar uma mensagem clara à população sobre a imunização.


Agente de saúde vacina criança em Manaus
CRÉDITO,ALTEMAR ALCANTARA/SEMCOM

Vantagens que o SUS confere ao Brasil não foram bem aproveitadas pelo governo no combate à pandemia, diz especialista

Um governo de militares

O antropólogo Piero Leirner, que estuda os militares desde os anos 1990, concorda que a logística dos quartéis é bastante diferente daquela necessária para coordenar um sistema de saúde.

Durante a formação, de maneira geral, os militares brasileiros aprendem sobre a logística aplicada a fins militares, "voltada para ideia do que deveria ser a proteção do território", por exemplo.

Para ele, parte da resposta ineficiente do governo à pandemia se deve também à crença entre a alta cúpula do Exército de que o uso da cloroquina seria de fato um caminho para a solução.

"Eles estavam apostando as fichas nisso, tanto que o Exército começou a produzir cloroquina em massa", diz o professor UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e autor de O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida, lançado em setembro, que analisa a relação dos militares com a política nos últimos anos.

O pesquisador chama atenção ainda para o fato de que a "militarização" do ministério da Saúde não é um caso isolado no governo. Conforme o TCU (Tribunal de Contas da União), o total de militares da ativa e da reserva em cargos civis no governo dobrou na gestão Bolsonaro — até julho, eram mais de 6 mil, segundo a instituição.

Segundo Leirner, os militares aos poucos ganham "controle das informações do Estado e dos orçamentos", e o fazem por meio de uma "abordagem indireta", que tenta preservar a imagem das Forças Armadas e poupá-las de críticas.

Camilla Veras Mota - @cavmota, da BBC News Brasil em São Paulo - 18 dezembro 2020