segunda-feira, 28 de setembro de 2020

20% dos servidores do governo federal têm funções que poderão ser feitas por máquinas, diz estudo

Dos 521,7 mil servidores civis analisados, mais de 100 mil estão em ocupações com alta propensão à automação, segundo pesquisa

Um a cada cinco funcionários públicos civis do Executivo federal têm ocupações com "elevado potencial" de terem tarefas substituídas por máquinas nas próximas décadas.

Essa conclusão é parte de uma pesquisa que está em desenvolvimento a pedido da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e teve resultados divulgados em artigo assinado pelos economistas Willian Adamczyk, Leonardo Monasterio e Adelar Fochezatto.

Eles apontam que se trata do primeiro estudo focado nos possíveis efeitos da automação para o setor público no Brasil.

Mas os resultados não implicam necessariamente na dispensa do trabalho de alguns servidores, esclarece Adamczyk à BBC News Brasil.

O pesquisador diz que identificar tarefas que podem ser substituídas por máquinas podem ajudar o governo a determinar habilidades necessárias para requalificar os servidores atuais e também para futuras contratações.

1,5 milhão de crianças sem creches e 11 milhões de analfabetos: os desafios urgentes para o Brasil 'passar de ano' na educação

Altos salários e 'regalias': por que a reforma administrativa de Bolsonaro é mais branda do que desejava Paulo Guedes

Turnos alternados? As ideias que podem mudar o ambiente de trabalho pós-coronavírus

O estudo é baseado na construção de algoritmos capazes de prever a propensão à automação de cada função e aumentar assim a produtividade e reduzir custos no serviço públic

O ponto de partida dos autores é que o setor público segue, com defasagem, as tendências de automação do setor privado.

Eles analisaram as funções de 521,7 mil servidores civis do Executivo federal. Esse é o total de funcionários do governo federal com carga horária igual ou superior a 40 horas semanais que havia em 2017, segundo os dados do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape).

A pesquisa constatou que mais de 100 mil estão em ocupações com alta propensão à automação — ou seja, pouco mais de 20%.

Considerando todas as cargas horárias, a quantidade de servidores civis do Executivo no fim de 2017 chegava a 634,1 mil. Hoje, com aposentadorias e menos concursos para reposição de funcionários, esse número caiu para 601,9 mil, de acordo com o Painel Estatístico de Pessoal.

Ocupações com mais chances de automação

As ocupações com mais chances de automação têm em comum menores níveis de escolaridade e remunerações mais baixas.

Por isso, a participação desse grupo na folha de pagamento é menor: representam R$ 595 milhões do total de mais de R$ 5 bilhões da folha mensal do Executivo federal referente a 2017. Isso equivale a pouco mais de 11%.

Com maior propensão à automação, aparecem nas primeiras posições técnicos de sistemas audiovisuais, além de servidores da construção civil, como armador, pedreiro, pintor e carpinteiro.

A remuneração média desses profissionais está abaixo da média de R$ 9.913 para o total de ocupações analisadas.

"No caso do  pedreiro, a automação pode se dar por inovações nos processos de construção, como o uso mais intensivo de pré-moldados, ou processos que ainda não são economicamente viáveis, como a impressão 3D em larga escala", diz Adamczyk.

A maioria dos funcionários públicos com cargo de pedreiro já está aposentada, mas hoje existem mais de 200 servidores na ativa com essa função, vinculados principalmente a universidades federais, segundo o Painel Estatístico de Pessoal.

Na outra ponta, com os menores riscos de substituição por inteligência artificial, estão as funções de pesquisadores (em engenharia, saúde, ciências sociais, educação), perito criminal, biólogo, gerente de serviços de saúde e psicólogo clínico.

A maioria dessas funções tem remunerações acima da média de R$ 9.913 para o total de ocupações analisadas.

Pesquisadores em áreas como engenharia, saúde, ciências sociais e educação estão entre as ocupações com os menores riscos de substituição por inteligência artificial

Os autores apontam que as atividades mais comuns entre esses pesquisadores são as que envolvem desenvolvimento de novos materiais, produtos, processos e métodos.

São funções que "estão na fronteira do conhecimento e longe de possibilitarem uma padronização em seus processos, dada a elevada complexidade das tarefas e necessidade de elementos de criatividade e inovação para que sejam executados."

Também aparecem com baixa propensão à automação profissionais como economistas, sociólogos, geógrafos, biólogos, psicólogos e antropólogos, além de outras funções que "desempenham atividades centrais para o desenvolvimento das próprias tecnologias de automação."

"A tendência é de substituição das tarefas mais repetitivas e que envolvem tomada de decisões mais simples. Por exemplo, calcular e devolver um troco, anotar um pedido, passar informações básicas, preencher formulários e planilhas. Ocupações de maior qualificação serão mais difíceis de automatizar por realizarem tarefas complexas abstratas, não rotineiras, que exigem criatividade, negociação, persuasão e atenção a pessoas ou equipes", diz Adamczyk.

O pesquisador pondera que uma ocupação ser propensa à automação não significa que ela necessariamente deixará de existir.

"Significa que ela poderá se aproveitar da introdução de novas tecnologias, ora para complementar e melhorar a produtividade do trabalhador, ou então para reformular completamente essa ocupação."

'Rigidez' do setor público

Entre os órgãos do Executivo, o Ministério da Educação é o que aparece com maior número de ocupações com alta propensão à automação: 78 das 272 que compõem o órgão.

Entre elas, estão assistente administrativo, auxiliar de escritório, auxiliar de biblioteca. O Ministério da Saúde aparece em segundo, com 26 de suas 129 ocupações com alta propensão à automação.

Os autores destacam que o setor público tem mais rigidez para adaptar a força de trabalho às mudanças na tecnologia e que, portanto, há uma defasagem em relação ao setor privado.

"Enquanto o setor privado tem flexibilidade para ajustar-se às mudanças tecnológicas por meio de contratações, demissões e realocação de funcionários, contando com o mecanismo de preços como sinalizador, o setor público tem possui maior rigidez para ajustar sua força de trabalho frente às mudanças tecnológicas."

Adamczyk aponta que metade dos servidores do governo federal estarão em condições de se aposentar nos próximos 20 anos e que isso representa uma saída massiva de conhecimento de difícil reposição, além de aumento dos gastos com servidores inativos.

Nesse contexto, diz ele, os resultados da pesquisa "podem fomentar a discussão sobre novas habilidades e qualificações necessárias para retreinar os servidores atuais e contratar novos servidores no futuro".

"As tecnologias de automação devem ser vistas como aliadas da sociedade brasileira para a continuidade dos serviços públicos prestados, melhoria na qualidade e redução de gastos — nessa ordem", diz o pesquisador.

Funcionário público pode ser demitido?

Congresso vai analisar a proposta de reforma administrativa enviada pelo governo Bolsonaro

É importante lembrar que os servidores públicos hoje têm estabilidade no cargo garantida pela Constituição — que prevê a perda do cargo só em situações muito específicas, como em caso de condenação sem mais possibilidade de recurso na Justiça.

Em um eventual cenário de extinção do cargo, a Constituição estabelece que o servidor recebe remuneração proporcional ao tempo de serviço até ser aproveitado em outro cargo.

As regras do funcionalismo público, no entanto, estão em discussão e podem ser alteradas pelo Congresso Nacional.

O governo do presidente Jair Bolsonaro enviou ao Legislativo a reforma administrativa, que pretende mudar regras de contratação e progressão na carreira para futuros servidores, inclusive facilitando a demissão, ao propor o fim da estabilidade para servidores que não estejam nas chamadas carreiras típicas de Estado (que ainda seriam definidas, segundo a proposta).

Laís Alegretti - @laisalegretti, da BBC News Brasil em Londres

domingo, 27 de setembro de 2020

Brasil registra mais 335 mortes ligadas à covid-19

Ao todo, mais de 141 mil pessoas morreram em decorrência da doença no país. Autoridades relatam ainda mais de 14 mil casos de coronavírus em 24 horas, elevando o total de infectados para 4,73 milhões.


Pessoas sem máscara em comércio em São Paulo

São Paulo é o estado brasileiro mais atingido pela epidemia, com 972.237 casos e 35.108 mortes

Mais 335 mortes ligadas à covid-19 foram registradas oficialmente no Brasil nas últimas 24 horas, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e do Ministério da Saúde divulgados neste domingo (27/09).

Com o novo balanço, o total de óbitos pela doença chega a 141.741. O país ainda reportou mais 14.318 casos de coronavírus, elevando o total de infectados para 4.732.309.

Ao todo, 4.060.088 pessoas se recuperaram da doença, segundo o ministério. O Conass não divulga número de recuperados.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais de casos e mortes devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

São Paulo é o estado brasileiro mais atingido pela epidemia, com 972.237 casos e 35.108 mortes. O total de infectados no território paulista supera os registrados em praticamente todos os países do mundo, exceto Estados Unidos (7,1 milhões), Índia (5,9 milhões) e Rússia (1,1 milhão).

A Bahia é o segundo estado brasileiro com maior número de casos, somando 306.036, seguida de Minas Gerais (288.619), Rio de Janeiro (261.860), Ceará (238.935) e Pará (227.756).

Já em número de mortos, o Rio é o segundo estado com mais vítimas, somando 18.278 óbitos. Em seguida vêm Ceará (8.919), Pernambuco (8.174), Minas Gerais (7.228), Bahia (6.599) e Pará (6.546).

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 67,4 no Brasil, uma das mais altas do mundo. A cifra fica bem acima da registrada em países vizinhos como Argentina (34,93) e Uruguai (1,36), e também supera a dos EUA (62,50), nação mais atingida pela pandemia no planeta, e a do Reino Unido (63,26), país europeu com mais mortes.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam 7,1 milhões de casos, e da Índia, com 5,99 milhões.

Mas é o segundo em número de mortos, depois dos EUA, que na semana passada superaram a marca trágica de 200 mil vidas perdidas – já são agora 204,6 mil óbitos no país.

A Índia, que chegou a impor uma das maiores quarentenas do mundo no início da pandemia e depois flexibilizou as restrições, é a terceira nação com mais mortos, somando 94,5 mil.

Ao todo, o mundo já registrou mais de 32,9 milhões de pessoas infectadas pelo coronavírus e se aproxima de 1 milhão de mortes ligadas à doença, ao acumular 995 mil óbitos, segundo contagem mantida pela Universidade Johns Hopkins.

Publicado originalmente por Deutsch Welle, edição de 27.09.2020.

As caretas da censura judicial

Juiz despreza o cidadão comum. O costume de violar a Constituição perpassa o Judiciário

O Estado moderno firma-se desde os séculos 15 e 16. Contra o feudalismo o rei instaura novos modos de administração, das fronteiras aos impostos, da justiça à polícia, dos campi aos arquivos, das coleções incoerentes de livros às bibliotecas. A racionalidade, no entanto, é paga com preço alto. Nobres e clero devem ser comprados com favores, isenção de taxas, privilégios. Até a cor das roupas exibe a “superioridade” dos barões e cardeais. A “gente ordinária de veste” (expressão ainda usada na Corte carioca de João VI) usa o negro com colarinho branco. Quem não pertence à burguesia rica ostenta andrajos.

Analista do poder, o matemático e filósofo Blaise Pascal comenta as roupas e os acessórios para intimidar os “homens comuns”. Existe o costume de ver os reis seguidos de guardas, tambores, serviçais e tudo o que inclina a espinha humana pelo medo e terror. Daí a bajulação: “O caráter da divindade está impresso na face real”.

Os juízes, continua Pascal, “conhecem tal mistério. Suas vestes vermelhas, seus enfeites e arminhos, os palácios onde julgam, as flores-de-lis (nada que ver com o Brasil de hoje), todo um aparato augusto é para eles necessário. Se os médicos não tivessem sotainas e mulas e os doutores não tivessem bonés quadrados e vestes amplas (...) eles jamais teriam engambelado quem não pode resistir. Se tivessem a justiça verdadeira e os médicos a arte verdadeira de curar seriam inúteis os bonés quadrados. A majestade das ciências seria venerável o bastante. Mas eles só têm ciências imaginárias, sendo preciso que as usem tais instrumentos inúteis que ferem a imaginação, com a qual lidam e conseguem respeito”. Termina o pensador: “Os soldados não se fantasiam porque sua parte é mais essencial. Eles se impõem pela força, os demais pelas caretas”. 

Juízes, a exemplo do presidente Schreber – delirante interlocutor de Deus –, desprezam o cidadão comum. O termo usado para designar quem não é juiz é claro: “leigo”, a pessoa “ordinária de vestes” que não pode intimidar com caretas e palácios. Mas as togas se curvam – como nas ditaduras que atormentaram o Brasil – diante das fardas.

O vezo de insultar os não iniciados nos mistérios “da justiça” tem origem teológico-política. Na Igreja primitiva a hierarquia era tênue. Eram valorizados, conforme indica Max Weber, os que se moviam para recordar a iminente volta do Senhor, praticando pobreza, obediência, castidade. Quem não praticava tais virtudes à espera do Juízo Final e não imitava monges e ermitãos integrava a vida cristã conforme seu estado no mundo. Os cidadãos, na Igreja, recebem o título de Christifideles laici: povo fiel a Cristo. Com a burocracia eclesiástica, simultânea à centralização do Estado, o poder hierárquico ficou mais rígido e exclusivo. Se no Estado apenas os dirigentes têm voz, na Igreja só os sacerdotes, bispos e papa merecem acatamento.

O tratado atribuído a Dionísio, o suposto Areopagita – A Hierarquia Eclesiástica –, desenha o cosmos no qual os anjos, arcanjos, padres, nobres e reis estão próximos da Luz Divina. Os leigos, imersos na escuridão, devem calar e obedecer. Daí o costume, hoje abusado por médicos e juristas (bom Pascal!), de aplicar o nome de “leigo” a quem não é iluminado pelo saber sagrado das respectivas corporações. 

Quando o Terceiro Estado (os leigos) exigiu de um monarca francês a prestação de contas sobre as finanças públicas, o clero deu o seguinte parecer: “As finanças reais são como o Santíssimo Sacramento no altar. Só podem conhecê-las os que para tal fim são ordenados”. Com a Reforma luterana a hierarquia eclesiástica desabou, restaurando-se o sacerdócio comum dos fiéis. E como fruto vem a Revolução Puritana inglesa, que institui a accountability, obrigação de governantes, parlamentares, funcionários e... juízes prestarem contas de seus atos ao povo soberano. 

Tal princípio, criado pelos gregos antigos, medra nas Revoluções Americana e Francesa. Aqui, no entanto, dom João VI instaura um poder contra a accountability. Não por acaso, o imperador é dito irresponsável. 

A responsabilidade nos cargos públicos é ignorada no Brasil. A quem respondem os juízes do STF, do STJ e outras Cortes “excelsas”? O costume de violar a Constituição perpassa o Judiciário. O trejeito atual de nossos magistrados é censurar a imprensa, mesmo contra decisões tomadas pelo Supremo Tribunal. O caso Boi Barrica amordaçou o jornal O Estado de S. Paulo. O jornalista Luis Nassif e a Rede Globo são calados por juízes. Ganha quem deveria prestar contas ao contribuinte. Mas os contribuintes são “leigos”, “gente ordinária de vestes”.

Há um livro de jovem, mas erudito, magistrado eleitoral, Marcelo Ramos Peregrino Ferreira, com título exato: Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial (Habitus Ed. 2020). Ele denuncia a vontade de poder dos juízes brasileiros que mudam o sentido da Constituição, legislam usurpando prerrogativas do Congresso e, gradativamente, se imiscuem no Executivo. Haja boné quadrado e caretas!

Roberto Romano, o autor deste artigo, é Professor da Unicamp. Autor de "Razões de Estado e outros Estados da Razão". (Editora Perspectiva). Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, ediçao de 27.09.2020.

Elogio à irresponsabilidade

Por enquanto, Bolsonaro se sustenta graças a uma combinação de populismo barato com capacidade de fingir que é presidente

O governo de Jair Bolsonaro atingiu o maior patamar de aprovação desde sua posse, mostra pesquisa do Ibope recentemente divulgada. No levantamento, 40% dos entrevistados disseram considerar o governo “ótimo” ou “bom”, 11 pontos porcentuais acima do verificado em dezembro do ano passado – antes, portanto, da pandemia de covid-19. A avaliação negativa caiu de 38% para 29% no mesmo período.

Bolsonaro obviamente não atingiu esse nível de aprovação em razão do modo destrambelhado como está lidando com a pandemia. Sua gestão da crise é um desastre em todos os aspectos – e os quase 140 mil mortos falam por si. O mais provável é que, ao contrário, o presidente, ao isentar-se sistematicamente de qualquer responsabilidade no que diz respeito à doença e a seus efeitos sociais e econômicos, terceirizou a impopularidade, sentida muito mais pelo Congresso e, principalmente, por governadores e prefeitos – obrigados, estes sim, a enfrentar o desafio da pandemia, contando com escassa ajuda federal e em muitos momentos sendo hostilizados pelo próprio presidente.

Pode-se especular que, para parte significativa dos entrevistados, a covid-19 não passava mesmo de uma “gripezinha”, como a ela jocosamente se referiu Bolsonaro, que a todo momento estimulou aglomerações e a “volta à normalidade”, como se isso fosse possível. As imagens de praias lotadas mesmo diante das evidências de que o pior ainda não passou são mais eloquentes do que qualquer pesquisa.

Assim, o crescimento da popularidade de Bolsonaro, a despeito de tudo, é uma espécie de elogio à irresponsabilidade, traduzida não somente em sua infame campanha a favor do uso da cloroquina, espécie de elixir bolsonarista, mas principalmente na conclusão do presidente segundo a qual quem ficou em isolamento na pandemia é “fraco” e se “acovardou”.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro segue colhendo os frutos eleitorais do auxílio emergencial para os mais necessitados. Entre os entrevistados com renda familiar de até um salário mínimo, a popularidade presidencial saltou de 19% para 35% desde dezembro. Entre os que estudaram até a 8.ª série, a aprovação de Bolsonaro passou de 25% para 44%. Nada semelhante a isso se verificou nas faixas socioeconômicas intermediárias e superiores da população.

O governo provavelmente vai explorar a pesquisa como prova de que o presidente sempre esteve certo e o resto do mundo, errado. É preciso deixar claro, contudo, que popularidade nem sempre é sinônimo de bom governo – que o diga Dilma Rousseff, que na metade de seu primeiro mandato tinha aprovação superior a 60% e que conseguiu se reeleger em 2014 a despeito de seu desempenho calamitoso na Presidência.

Como mostra o caso de Dilma Rousseff, a propósito, nenhum governo se sustenta somente com base na mistificação e na embromação. A popularidade da presidente petista, que era de 63% em março de 2013, caiu para 31% em julho daquele ano, em meio a grandes protestos, e estava em 10% um mês antes da admissão de seu processo de impeachment pela Câmara, em abril de 2016. 

Por enquanto, Bolsonaro se sustenta graças a uma combinação de populismo barato com uma assombrosa capacidade de fingir que é presidente sem exercer o cargo. Mais cedo ou mais tarde, contudo, a ausência de um plano claro de governo, fruto da patente inaptidão de Bolsonaro para desempenhar a função para a qual foi eleito, será percebida pela população.

Até lá, a única pesquisa de opinião que realmente importa, e que projeta um futuro nada glorioso, é a que se dá entre investidores, especialmente os estrangeiros. E a opinião destes parece clara: neste ano, até agosto, US$ 15,2 bilhões deixaram o País, o maior montante no período desde 1982, quando o Banco Central começou a fazer esse levantamento.

A irresponsabilidade de Bolsonaro pode até lhe render algum apoio entre os brasileiros incapazes, por diversas razões, de enxergar além de seus estreitos horizontes pessoais. Já para aqueles que dependem de confiança e racionalidade para investir, o presidente não engana mais ninguém.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, edição de 27 de setembro de 2020 | 03h00

sábado, 26 de setembro de 2020

Artigo: Uma abordagem stalinista da ciência

Trumpismo parece inspirar um desprezo pela perícia e uma predileção por charlatães

Por Paul Krugman*

Trofim Lysenko. Quem? Lysenko foi um agrônomo soviético que decidiu que a genética moderna estava errada, que era contrária ao princípio marxista-leninista. Ele negou que os genes existissem, enquanto insistia que as opiniões há muito desacreditadas sobre evolução estavam certas

Cientistas de verdade ficaram maravilhados com sua ignorância. Mas Joseph Stalin gostava dele e os pontos de vista de Lysenko tornaram-se doutrina oficial. Os cientistas que se recusaram a endossá-los foram enviados a campos de trabalho forçado ou executados. O lysenkoismo se tornou a base de grande parte da política agrícola da URSS, contribuindo para a desastrosa fome dos anos 30. Tudo isso soa familiar?

Aqueles que estão preocupados com uma crise da democracia nos EUA comparam Donald Trump a homens fortes, como Viktor Orban, da Hungria, e Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, não a Stalin. Embora ninguém acuse Trump de ser esquerdista, seu estilo político sempre me lembra o stalinismo. Como Stalin, ele vê conspirações implausíveis em todos os lugares: anarquistas controlam as cidades, esquerdistas radicais controlam Joe Biden, cabalas anti-Trump secretas em todo o governo federal. Também é notável que aqueles que trabalham para Trump, assim como os funcionários stalinistas, acabam se dando mal – embora não sejam enviados para gulags, pelo menos não ainda.

O trumpismo, como o stalinismo, parece inspirar um desprezo pela perícia e uma predileção por charlatães. Na quarta-feira, Trump disse duas coisas que mereciam manchetes. A mais alarmante é que ele se recusou a se comprometer com uma transição pacífica de poder se perder a eleição. Mas ele também indicou que pode rejeitar novas diretrizes da FDA para a aprovação de uma vacina contra o coronavírus, dizendo que essas diretrizes “soam como um movimento político”. Hã? 

Muitos observadores temem que Trump, em um esforço para influenciar a eleição, anuncie uma vacina segura e eficaz, mesmo que não tenha sido testada. No mês passado, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) divulgou uma nova orientação para que pessoas contaminadas, mas sem sintomas de covid-19, não façam o teste – ao contrário das recomendações de quase todos os epidemiologistas.

Relatórios revelaram que a orientação foi preparada por nomeados políticos e ignorou o processo de revisão científica.

Recentemente, o CDC alertou sobre a transmissão aérea do coronavírus, refletindo o que os especialistas dizem, mas voltou atrás dias depois.

Não sabemos o que aconteceu, mas é difícil não notar que a orientação deixava claro que os comícios de Trump, com multidões em ambientes fechados e sem máscaras, criavam riscos à saúde pública.

Se burocratas políticos estão dando as cartas no CDC e na FDA, seguindo a linha do partido, quem está aconselhando Trump sobre a pandemia? Entram os charlatães. O impulso desastroso de Trump, em abril, para a reabrir a economia foi influenciado pelos escritos de Richard Epstein, professor de Direito que decidiu bancar o especialista em epidemiologia.

Mas o charlatão do momento é Scott Atlas, um radiologista sem experiência em doenças infecciosas que impressionou Trump com suas aparições na Fox News. A oposição de Atlas às máscaras e sua defesa da imunidade de rebanho divergem da opinião dos epidemiologistas. No entanto, é o que Trump quer ouvir.

Isso é o que me fez pensar em Lysenko. Como Stalin, Trump intimida especialistas e recebe conselhos sobre questões científicas de pessoas que não sabem do que estão falando, mas dizem a ele o que ele quer ouvir. Sabe o que acontece quando um líder faz isso? Pessoas morrem.

* É COLUNISTA, PROFESSOR DO CITY  UNIVERSITY OF NEW YORK E VENCEDOR DO PRÊMIO NOBEL DE ECONOMIA EM 2008. Publicado no Brasil por O Estado de São Paulo, edição de 26.09.2020.

Já são 140.783 mortes por coronavírus confirmadas até as 13h deste sábado (26), segundo levantamento do consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde.

Desde o balanço das 20h de sexta-feira (25), 6 estados atualizaram seus dados: BA, CE, GO, MG, MS, RN e RR.

Veja os números consolidados:

140.783 mortes confirmadas

4.694.648 casos confirmados

Às 8h, (de hoje) o consórcio publicou a primeira atualização do dia com 140.735 mortes e 4.692.923 casos.

Na sexta-feira, às 20h, o balanço indicou: 140.709 mortes, 826 em 24 horas. Com isso, a média móvel de novas mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 693 óbitos, uma variação de -4% em relação aos dados registrados em 14 dias. 

Até a noite de ontem, sexta-feira, eram 4.692.579 brasileiros com o novo coronavírus desde o começo da pandemia, 32.670 desses confirmados no último dia. A média móvel de casos foi de 27.878 por dia, uma variação de 0% em relação aos casos registrados em 14 dias.

Progressão até 25 de setembro

No total, 3 estados apresentaram alta de mortes: RJ, AP e RR.

Há estados, porém, em que o baixo número médio de óbitos pode levar a grandes variações percentuais. É o caso de Roraima: em 14 duas semanas, a média de mortes por dia passou de 2 para 3.

Já a situação no Rio de Janeiro é diferente: o estado vem apresentando alta há 8 dias consecutivos, com médias que variam entre 80 e 103 mortes diárias.

Estados

Subindo (3 estados): RJ, AP e RR

Em estabilidade, ou seja, o número de mortes não caiu nem subiu significativamente (14 estados): PR, MG, SP, GO, AM, PA, TO, BA, CE, MA, PB, PE, PI e RN

Em queda (9 estados + DF): RS, SC, ES, DF, MS, MT, AC, RO, AL e SE

Essa comparação leva em conta a média de mortes nos últimos 7 dias até a publicação deste balanço em relação à média registrada duas semanas atrás (entenda os critérios usados pelo G1 para analisar as tendências da pandemia).

Por G1, em 26/09/2020 08h00  Atualizado há 4 hora

Banco Mundial aponta crescimento da pobreza e desigualdade no Brasil

Estudo analisa situação dos 40% mais pobres desde crise de 2014 e revela que, enquanto renda média dos brasileiros cresceu, a dos mais carentes caiu 1,4% por ano. País registrou o pior desempenho da América Latina.

Favela da Rocinha no Rio de Janeiro / De 2014 a 2019, a renda dos 40% mais pobres caiu, em média, 1,4% por ano

Os brasileiros na faixa dos 40% mais pobres, população equivalente a 85 milhões de pessoas, começaram este ano de pandemia da covid-19 sem terem recuperado a renda que tinham antes da recessão iniciada em 2014, no final do governo Dilma Rousseff. O mesmo não ocorreu com a outra parcela da população, que no início do ano já recebia uma renda superior à do período pré-crise.

Os cálculos são de estudo do Banco Mundial realizado a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). A parte mais pobre da população teve alívio temporário ao longo de 2020 com a renda emergencial, mas muitos voltarão à situação anterior após o fim do benefício, em dezembro.

De 2014 a 2019, a renda dos 40% mais pobres caiu, em média, 1,4% por ano. No mesmo período, a renda média dos brasileiros como um todo cresceu 0,3% ao ano. Se a evolução da renda nesse período tivesse beneficiado igualmente todas as faixas da população, haveria no começo deste ano 13 milhões de brasileiros a menos vivendo em pobreza e 9 milhões a menos na pobreza extrema. O Banco Mundial considera que quem tem uma renda per capita menor que 499 reais por mês vive na pobreza, e a pobreza extrema atinge quem tem menos de 178 reais per capita por mês.

Como consequência da recuperação desigual, houve aumento da desigualdade de renda. Medida pelo índice de Gini, ela estava em 0,525 em 2015 — a menor da história do país — e alcançou 0,550 em 2018. No ano seguinte, houve uma leve queda, para 0,547. Quando mais próximo de 1, mais desigual é a renda.

O principal motivo para a perda de renda dos 40% mais pobres nesse período foi a queda da renda do trabalho dos homens, responsáveis pela maior parte da renda na maioria dos lares brasileiros. Esse fator foi responsável por três quartos da alta da pobreza e da pobreza extrema e por três quartos da alta da desigualdade de 2014 a 2019.

"Os empregos perdidos na crise se recuperaram de forma muita lenta, e a uma velocidade ainda menor para quem está na base da pirâmide. Além disso, a renda de quem conseguiu retomar o trabalho em muitos casos não voltou ao nível anterior da crise", afirma à DW Brasil Gabriel Ibarra, economista sênior do Banco Mundial especialista em pobreza no Brasil.

A distribuição desigual da recuperação, que penaliza duplamente os mais pobres, está relacionada à natureza do trabalho que essa faixa da população desempenha, em geral informal e exposto a vulnerabilidades.

"O tipo de trabalho normalmente disponível para quem está na base da distribuição são os trabalhos informais, com menos proteção, mais voláteis. É diverso dos trabalhos disponíveis para as parcelas mais ricas e mais educadas, que têm acesso a empregos formais e mais conectados à economia, comparado a quando você é um autônomo que trabalha vendendo algo na informalidade", afirma Ibarra.

Pior desempenho na América Latina

O Banco Mundial desenvolveu um quadro comparativo da evolução da pobreza extrema, da pobreza e da desigualdade entre os países da América Latina no período de 2014 a 2018, fazendo ajustes nas pesquisas nacionais de cada um deles.

Apesar de o fim do superciclo de commodities de 2011 ter afetado todos os países da região, o Brasil foi um dos poucos que viu sua pobreza e desigualdade crescerem nesse período. E, entre os que tiveram essa reversão, o Brasil lidera nos três índices.

Além do Brasil, apenas Honduras e Equador também tiveram aumento de desigualdade no período; Argentina e Equador registraram aumento da pobreza; e Argentina, Equador e Honduras tiveram alta da pobreza extrema — todos em menor grau do que o Brasil.

Esse cenário trágico é resultado, segundo Ibarra, de uma conjunção de fatores, como o nível de endividamento das famílias, a mudança excessivamente abrupta de uma política fiscal expansionista para contracionista no segundo governo Dilma, a queda geral do consumo e a fuga de divisas após o país perder o selo de bom pagador, conhecido como grau de investimento, em 2015.

O relatório também aponta outros motivos "que estavam acumulando problemas para o futuro", como baixo ganho de produtividade, custo crescente do trabalho, demanda baseada mais em consumo do que investimento e alta constante dos gastos correntes do governo, em especial na Previdência Social.

Como resultado, a crise fez o Brasil perder parte dos ganhos sociais obtidos de 2001 a 2013, quando 24,6 milhões de seus habitantes deixaram a pobreza — cerca de 50% da redução da pobreza em toda a América Latina e Caribe nesse período.

O Bolsa Família, sistema de proteção social que é, segundo Ibarra, reconhecido internacionalmente pela flexibilidade e capacidade de focalização dos recursos em quem mais precisa, não foi capaz de amortecer a crise para os mais miseráveis. De 2014 a 2017, mais de 4,6 milhões brasileiros caíram para a pobreza extrema.

Algumas pesquisas já apontaram as deficiências do Bolsa Família nessa fase, como represamento de pedidos para receber as transferências, redução das equipes que fazem a busca ativa de possíveis beneficiários e a ausência de reajustes anuais do benefício para repor a inflação.

"Durante e após a crise de 2014, não vimos a resposta [do sistema de proteção social] como houve em outros momentos, o que teve implicações para a pobreza e a desigualdade", diz o economista do Banco Mundial.

O impacto da renda emergencial

Neste ano, o impacto da pandemia na economia foi reduzido para as faixas mais pobres devido ao auxílio emergencial. O benefício de 600 reais, que chega a 1,2 mil reais para mães solteiras, começou a ser pago em abril para um período inicial de três meses. A partir de outubro, será reduzido à metade, e a última parcela será paga em dezembro.

Por ter um valor muito superior ao Bolsa Família, cujo benefício médio é de 190 reais, em alguns casos a renda emergencial superou a perda provocada pela pandemia, retirando famílias da pobreza.

"Esse programa foi tão amplo que há evidências sugerindo que ele reverteu, e não apenas mitigou, alguns dos efeitos monetários da pandemia. E não é uma surpresa que essas transferências possam ter mais que compensado o impacto para alguns grupos", afirma Ibarra.

Questionado sobre qual será o impacto do fim do auxílio emergencial na pobreza a partir do ano que vem, ele afirma que isso dependerá de eventuais reformas dos programas sociais, do desempenho da economia no último trimestre deste ano e do comportamento do mercado de trabalho.

Publicado originalmente por Deutsch Welle, edição de 26.09.2020

Trem da alegria da AGU ficou parado na estação

Mesmo suspensa, a promoção absurda de 607 procuradores prova a urgência da reforma administrativa

Existe o Brasil real: é o país onde a pandemia fez a economia encolher quase 10%, salários foram cortados, empresas fecharam as portas, houve ondas de demissões, o desemprego cresceu 28% e atinge quase 13 milhões. E existe um Brasil paralelo, o Brasil do funcionalismo público: é o país onde nenhum salário foi cortado, ninguém foi demitido e onde, não fosse uma investigação da imprensa, 607 procuradores federais teriam sido promovidos, 606 ao topo da carreira, passando a ganhar R$ 27,3 mil por mês.

O trem da alegria na Advocacia-Geral da União (AGU), resultado de uma canetada do procurador-geral Leonardo Fernandes na última sexta-feira, só foi suspenso depois de revelado pelo site Poder360. O episódio, além de revelar a importância da imprensa profissional, é mais uma prova eloquente — como se provas ainda faltassem — da necessidade urgente da reforma administrativa. Dos passageiros do comboio que ficou preso na estação, 303 cumpririam a regra estapafúrdia que prevê promoções automáticas a cada cinco anos. Outros 303 entrariam no vagão daqueles que, no entender de Fernandes, são dignos de “merecimento”. Depois das promoções, 93% dos 3.783 procuradores da AGU estariam no nível mais alto de uma carreira cujo salário inicial, de R$ 21 mil, já os coloca entre os 2% de maior renda no país.

Em nenhum governo ou empresa, em nenhum lugar do mundo, uma medida dessas faria sentido. Era tão somente uma manobra artificial para dar aumento a servidores públicos cujo salário está congelado até o final de 2021 — e cujos privilégios estão ameaçados pela reforma administrativa. O mais intrigante é que os procuradores que seriam beneficiados foram excluídos da reforma, pois são, como os juízes, considerados “membros de poder”.

Fica também claro, pelo episódio, por que não faz sentido excluir de uma reforma que se propõe a trazer um mínimo de racionalidade à gestão pública justamente as carreiras que desfrutam os privilégios mais escandalosos. É o caso, na AGU, dos “honorários de sucumbência” pagos a advogados que vencem causas em favor do governo. Não há, da parte deles, risco comparável aos da advocacia privada para justificar a prebenda que custou, em 2019, R$ 590 milhões aos cofres públicos.

O presidente da associação dos advogados públicos chegou a definir as promoções como “procedimento padrão”. Pior é que são mesmo. A AGU informou que as realiza a cada seis meses. Assim como todos os privilégios do alto funcionalismo, promoções por tempo de serviço nada têm de ilegal. A lei precisa mudar, entre tantos motivos, justamente para barrar esse tipo de absurdo.

Para categorias como juízes ou procuradores, é justo preservar a estabilidade como garantia contra pressões políticas ou financeiras. Mas todos os descalabros assegurados pela lei — licença-prêmio, promoções automáticas, férias de 60 dias, auxílios-paletó, honorários de sucumbência e penduricalhos — deveriam ser revistos. O episódio ilustra à perfeição por que o Estado brasileiro precisa da reforma administrativa com urgência urgentíssima.

Editorial de O Globo, edição de 25.09.2020.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

AGU promove, de uma só vez, mais de 600 procuradores para o topo da carreira. Salário é de R$ 27,3 mil

Medida ocorre em meio às discussões sobre a proposta do governo de reforma administrativa, que pretende acabar com a promoção por tempo de serviço

 Em um só dia, a Advocacia-Geral da União (AGU) promoveu 607 procuradores federais. Desse total, 606 foram promovidos para o topo da carreira e irão receber R$ 27,3 mil.

A medida ocorre em meio às discussões no Congresso Nacional sobre a reforma administrativa enviada pelo governo no início deste mês, que tem entre as propostas reformular carreiras do serviço público e acabar com promoções automáticas por tempo de serviço.

A promoção foi autorizada na sexta-feira passada, mas revelada nesta quarta-feira pelo portal Poder 360. Das 607 promoções, 304 são por merecimento e 303 por antiguidade, ou tempo de serviço.

Com essa promoção, dos atuais 3.783 procuradores federais, 3.489 já chegaram à categoria especial, com salário de R$ 27,3 mil, o equivalente a 92% do total.

O total de promoções representa uma escalada em relação aos últimos anos e equivale a mais de sete vezes o total registrado em 2019, de 83 promoções. Em 2018, foram 69 e em 2017, um total de 79 pessoas foram promovidas, segundo dados apresentados pelo Jornal Nacional.

A ascensão em massa de procuradores ocorre em meio às discussões no Congresso Nacional sobre a reforma administrativa enviada pelo governo no início deste mês que extingue, por exemplo, as promoções por tempo de serviço.

Além de rever esse benefício, a reforma também prevê novas formas de ingresso no funcionalismo ao criar contratos sem previsão de estabilidade. O texto também flexibiliza regras para contratação de temporários.

A proposta de reforma apresentada pelo Executivo não atinge os chamados membros de Poder, como juízes, procuradores e promotores. Carreiras de Estado, como auditores fiscais e delegados da Polícia Federal, também não estão incluídas.

No entanto, há um movimento para que o Congresso adicione essas categorias nas novas regras, algo que está elevando a pressão pelas promoções dentro das carreiras antes que o tema seja debatido.

Brecha na lei

Em entrevista ao GLOBO, o Coordenador da Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa, o deputado Tiago Mitraud (Novo-MG), disse este mês que vai advogar para que as novas regras, como fim de progressões automáticas, férias de mais de 30 dias e aposentadoria compulsória como punição, também atinjam os atuais servidores e membros de Poder.

Outra fonte de pressão por promoções é o congelamento, até 2021, no salário dos servidores.

A medida foi negociada pela equipe econômica como contrapartida à concessão de R$ 60 bilhões a Estados e municípios para enfrentar a pandemia.

A lei, no entanto, deixou uma brecha para aumentos indiretos de salário ao não vedar progressões dentro das carreiras do funcionalismo público.

A economista Ana Carla Abrão disse ao Jornal Nacional que, diante da brecha deixada pela lei, a tendência é que outros casos de reajuste em massa sejam feitos neste ano e no próximo.

Ela avalia que esta é uma das maiores distorções do modelo de recursos humanos do setor público.

— Ou seja, as pessoas progridem e são promovidas nas suas carreiras, todas elas chegam no topo e aí nós temos uma situação em que temos muitos chefes, poucos chefiados e o atendimento à população lá na ponta está sempre desassistido — afirmou.

AGU: 'critérios objetivos'

As promoções também vão de encontro aos esforços da equipe econômica para conter o crescimento do gasto com pessoal.

Nos últimos 12 anos, considerando apenas o funcionalismo civil, essa despesa cresceu 145%, consumindo cerca de R$ 110 bilhões por ano.

Segundo projeções do Ministério da Economia, a despesa com pessoal no setor público consolidado — que inclui governo federal, estados, municípios e estatais — deve saltar de 13,7% do PIB, em 2019, para 14,8% do PIB, em 2030, em um cenário sem reformas.

Atualmente, a carreira dos procuradores federais é dividida em quatro grupos: procurador federal, da Fazenda, do Banco Central e advogado da União. Pelo regulamento, as promoções nessas carreiras podem ocorrer a cada seis meses.

Segundo a AGU, as promoções na carreira de procurador federal são realizadas semestralmente, todos os anos. “As vagas nas categorias observam critérios objetivos”. E acrescenta que os recursos para efetivação das promoções são previstos na lei orçamentária anual.

Honorários de sucumbencia

A carreira de procurador federal é uma das mais cobiçadas na administração pública. Além de salário-base a partir de R$ 21 mil, os advogados públicos federais ainda são beneficiados com o recebimento dos honorários de sucumbência.

Trata-se de um valor mensal relativo ao pagamento feito pelas partes derrotadas em ações contra a União, o que pode “turbinar” ainda mais os salários dos procuradores.

Em 2019, O GLOBO revelou que, entre janeiro e outubro daquele ano, os advogados públicos federais tinham recebido, ao todo, R$ 528 milhões em honorários de sucumbência.

Racismo estrutural:Caso Magalu evidencia barreira a negros: em só 5% das empresas eles chegam a presidência

Em junho deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que os vencimentos dos advogados não poderiam ultrapassar o teto do funcionalismo público, fixado em R$ 39,2 mil.

Leandro Prazeres, de O Globo. Publicado opriginalmente na edição de 23.09.2020.

Ex-assessor de Flávio comprou terreno de Bolsonaro em dinheiro vivo

Guilherme Hudson é investigado no inquérito das ‘rachadinhas’ e apontado pelo Ministério Público como funcionário ‘fantasma’

 Investigado no inquérito das rachadinhas e apontado pelo Ministério Público do Rio como funcionário “fantasma” do antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos) na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), o coronel da reserva Guilherme dos Santos Hudson pagou R$ 38 mil em dinheiro por um terreno em Resende, em 2008. Os vendedores foram o então deputado federal Jair Bolsonaro e Ana Cristina Siqueira Valle, sua segunda ex-mulher. Em valores corrigidos pelo IPCA, o montante corresponderia hoje a R$ 71 mil. 

Hudson é investigado pelo Ministério Público Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo

O imóvel tinha sido adquirido por Bolsonaro e Ana Cristina em novembro de 2003, pelo mesmo valor que o venderam após a separação, sem reajuste por valorização do terreno ou pela inflação de 28,76%, segundo o IPCA – o que equivaleria a pouco mais de R$ 10 mil. O documento não informa se houve sinal antecipado, nota promissória ou dívidas para pagamentos futuros. 

A escritura da compra, obtida pelo Estadão, registra o pagamento em “moeda corrente do País, contada e achada certa” – denominação usada quando a aquisição é feita em dinheiro, segundo advogada consultada pela reportagem. O imóvel fica num condomínio em Resende, cidade em que vive a família de Ana Cristina. Foi lá, na década de 1970, que Hudson e Bolsonaro serviram juntos na Academia Militar das Agulhas Negras. 

A propriedade fica no condomínio Limeira Tênis Clube. Tem piscina, spa, sauna, bar, salão de festas, campo de futebol e quadras de esportes. Duas propriedades com o mesmo tamanho – cerca de 560 metros quadrados – são vendidas em sites de compra e venda de imóveis por R$ 430 mil e R$ 480 mil. Procurados por meio de seus advogados, Hudson e a mulher não quiseram se manifestar. O presidente Bolsonaro informou, por meio da assessoria, que não vai se posicionar. Ana Valle não respondeu.

Na investigação sobre as “rachadinhas” (apropriação de parte do salário dos servidores), o MP do Rio afirma que, em dezembro do ano passado, o coronel da reserva sacou R$ 15 mil, equivalente a 74% dos valores recebidos durante os dois meses em que esteve lotado no gabinete de Flávio, em 2018. Isso corrobora, segundo a Promotoria, a versão de que ele repassava os valores recebidos para seus chefes. Ana Maria, por sua vez, sacou R$ 430 mil, 43% dos rendimentos que teve como servidora do gabinete. 

A investigação que cita o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos) por supostamente empregar funcionários “fantasmas”, atinge um filho e duas noras do coronel, além dele próprio, mesmo sem ter sido funcionário do parlamentar. Em 30 de outubro do ano passado, com a apuração do MP já aberta, o oficial da reserva e seu filho Guilherme de Siqueira Hudson compareceram ao gabinete de Carlos na Câmara Municipal. Uma semana depois, prestaram depoimento ao MP, conforme revelou o jornal O Globo. 

No pedido de medidas cautelares apresentado à Justiça em dezembro do ano passado, na investigação sobre as “rachadinhas”, o Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (Gaecc) inseriu uma tabela com saques em espécie feitos pelos parentes de Ana Cristina quando estavam lotados na Alerj: 86% do que receberam, um total de R$ 4 milhões. 

Bolsonaro e  na Cristina ficaram juntos entre 1997 e 2008, quando se separaram de modo conflituoso. Em julho, a revista Época mostrou que, enquanto esteve junto, o casal adquiriu 14 imóveis, cinco deles em dinheiro. Um deles é o que foi vendido para Hudson.

A prática de comprar apartamentos pagando em espécie não é crime, mas é apontada por órgãos de controle como suposto indício de lavagem de dinheiro. É isso que o MP do Rio investiga, entre outros supostos crimes.

“Todas as operações financeiras do senador Flávio Bolsonaro e de seus familiares estão dentro da lei. As informações sobre as compras e vendas de imóveis foram detalhadas junto ao Ministério Público e todos os esclarecimentos já foram dados”, afirmou o senador, em nota. Carlos Bolsonaro não respondeu. Na quarta-feira, 23, o Estadão mostrou que o vereador também comprou um imóvel em dinheiro vivo, um apartamento de R$ 150 mil na Tijuca, quando tinha 20 anos.

Caio Sartori, O Estado de S.Paulo / 24 de setembro de 2020 | 05h00

As consequências vêm depois

Países europeus cobram 'ações reais imediatas' contra o desmatamento, sob pena de ver dificultada a entrada de produtos brasileiros

 A França reafirmou na sexta-feira passada que rejeitará, em seu formato atual, o acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, aprovado no ano passado, após 20 anos de negociações, mas ainda pendente de ratificação pelos Parlamentos dos países envolvidos.

O governo francês se manifestou depois de receber relatório de um grupo de especialistas sobre os riscos à biodiversidade supostamente acarretados pelo acordo. Segundo o estudo, o desmatamento nos países do Mercosul vai crescer a uma taxa de 5% ao ano nos seis anos seguintes à implantação do acordo. Os especialistas concluem que o custo ambiental supera os benefícios econômicos.

O governo brasileiro reagiu. Nota conjunta dos Ministérios das Relações Exteriores e da Agricultura negou que o acordo represente “qualquer ameaça ao meio ambiente”. Ao contrário, diz o texto: “Reforça compromissos multilaterais e agrega as melhores práticas na matéria”. Para o governo, o estudo francês carece de critérios técnicos e ignora que a pecuária brasileira ampliou sua produtividade sem aumentar a área de pastagens. Por fim, reitera o bom histórico brasileiro em políticas de conservação, destaca a modernidade do nosso Código Florestal e reafirma garantias de sustentabilidade ambiental.

Fortemente contaminada por um lado pela histeria ideológica bolsonarista, que vê conspiração em todo canto, e por outro pelo lobby de produtores concorrentes do agronegócio brasileiro, que aproveitam o discurso irresponsável do presidente Jair Bolsonaro para reivindicar mais protecionismo, a contenda tende ao infinito, neste caso, com grandes prejuízos para o Brasil. 

Por ora, o único fato incontestável, como diria o Conselheiro Acácio, é que as consequências continuam a vir depois: se tem toda a razão ao manifestar “estranheza” com um relatório que põe em dúvida os evidentes progressos de boa parte do agronegócio do País no que diz respeito à proteção dos biomas, o governo brasileiro, no entanto, está colhendo o que plantou desde que o presidente Bolsonaro assumiu com um discurso de franco menosprezo pelas questões ambientais.

Hoje, a pressão contra o Brasil não se limita a produtores franceses interessados em enfraquecer o agronegócio brasileiro. Multiplicaram-se nos últimos meses iniciativas com vista a constranger o governo Bolsonaro a agir com mais firmeza contra o desmatamento e as queimadas.

Em junho, o Parlamento holandês aprovou moção contra a ratificação do acordo da União Europeia com o Mercosul, sob a alegação de que havia risco de aumento do desmatamento da Amazônia. Na semana passada, foi a vez do Parlamento da Áustria vetar o acordo, pela mesma razão. E há alguns dias a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, disse ter “sérias dúvidas” sobre o acordo comercial, como consequência da situação na Amazônia e no Pantanal.

Além disso, um grupo de investidores internacionais expressou em carta aberta preocupação com o “desmantelamento de políticas ambientais e de direitos humanos” no Brasil. Na mesma linha, 230 organizações do agronegócio e do setor financeiro, além de ONGs ambientalistas, enviaram uma carta ao governo destacando que reduzir o desmatamento é de “fundamental importância para o País”.

Na semana passada, um grupo de oito países europeus liderados pela Alemanha também enviou carta ao governo brasileiro para cobrar “ações reais imediatas” contra o desmatamento, sob pena de ver dificultada a entrada de produtos brasileiros na Europa.

Diante disso, o governo Bolsonaro pode escolher: ou aceita que a questão ambiental há muito deixou de ser apenas pretexto para produtores europeus prejudicarem o agronegócio brasileiro, e afinal toma providências sérias para combater o desmatamento, ou continua a tratar as críticas como parte de um complô internacional contra o Brasil. A julgar pelo discurso de Bolsonaro na ONU, repleto de fantasias sobre o sucesso de seu governo na área ambiental e de denúncias paranoicas a respeito de “interesses escusos” de organizações “aproveitadoras e impatriotas”, o governo já fez sua escolha: a errada

Tudo o que sabemos sobre:Floresta AmazônicaONU [Organização das Nações Unidas]desmatamentoincêndio florestal

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo , edição de 24.09.2020

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Discurso de caçamba de caminhão

Setor moderno do agronegócio faz o possível para se afastar de Bolsonaro

Por Élio Gáspari

Jair Bolsonaro abriu os debates da Assembleia Geral da ONU com um discurso de vereador em caçamba de caminhão. Defensivo, com momentos de delírio, viu-se “vítima de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”.

Faz tempo, quando um oficial brasileiro perguntou ao general americano Vernon Walters quais eram os interesses dos Estados Unidos na Amazônia, ele respondeu: “A Amazônia é de vocês, cuidem dela”. Walters conhecia o Brasil como poucos, chegou a percorrer de carro a Rodovia Belém-Brasília.

As imagens de satélites e as fotografias da floresta mostram que não se está cuidando direito da Amazônia. Bolsonaro, contudo, estava na sua realidade paralela. Falou mal dos outros, bem de si, de seu governo e reclamou do preço da cloroquina.

A retórica dos agrotrogloditas encurralou Bolsonaro, e hoje o setor moderno do agronegócio faz o possível para se afastar dele. Afinal, já houve épocas em que o governo brasileiro viu-se em posições canhestras no cenário internacional, mas D. Pedro II nunca saiu pela Europa defendendo a escravidão. Astuto, enquanto pôde, fechou o acesso dos estrangeiros à navegação na Amazônia. Fez muito bem, pois alguns burocratas americanos pensaram na possibilidade de mandar para lá seus negros. Esse foi um tempo em que o andar de cima nacional mamava no atraso, mas fingia que era inglês. Pela primeira vez, desde a chegada das caravelas portuguesas, o governo brasileiro está orgulhosamente apenso à agenda do atraso.

A fala de Bolsonaro foi antecedida por um pronunciamento do ministro-general Augusto Heleno que denunciou “nações, entidades e personalidades estrangeiras” com um “interesse oculto mas evidente” de “derrubar o governo Bolsonaro”.

A retórica defensiva de Bolsonaro para a ONU e a denúncia de Heleno indicam que houve uma mudança de ares no Planalto. Em maio, o capitão via-se desafiado pelo Judiciário e dizia “vou intervir”. Como e onde, nunca se soube, mas, na mesma linha, o general havia condenado uma iniciativa que “poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. No “vou intervir” estava implícita a ideia de que Bolsonaro dispunha de uma retaguarda, mas ela lhe faltou, e as “consequências imprevisíveis” ficaram momentaneamente no campo da fantasia. Naqueles dias os mortos pela Covid eram 18 mil. Hoje são mais de 130 mil.

Ao contrário do que pensam o general Heleno e almas inquietas do Planalto, não há ninguém querendo “derrubar o governo Bolsonaro”. O presidente tem contas a ajustar com o Judiciário por coisas que aconteceram antes de sua investidura e, ainda assim, seria exagero acreditar que desemboquem num impedimento. O verdadeiro jogo está na busca obsessiva pela reeleição, e nisso pouco influirão “nações, entidades e personalidades estrangeiras”. Tudo dependerá do desempenho do governo. Bolsonaro viu esse risco nos primeiros momentos da pandemia. Em março ele dizia: “Se a economia afundar, afunda o Brasil. E qual o interesse dessas lideranças políticas? Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder”.

Luta-se pelo poder. Em maio, no ataque. Em setembro, na defesa.

Élio Gáspari é Jornalista e Historiador. (Autor de 5 livros sobre o regime militar instaurado em abril de 1964). Este artigo foi publicado originalmente em O Globo, edição de  23.09.20.

Brasil vive fuga recorde de investidores estrangeiros, e questão ambiental pode piorar quadro

Nos primeiros oito meses do ano, US$ 15,2 bilhões deixaram o país, maior volume para o período desde 1982

As queimadas na Amazônia e, mais recentemente, no Pantanal, tendem a afastar os investidores estrangeiros do Brasil Foto: João Paulo Guimarães / AFP

O Brasil está perdendo atratividade para os investidores estrangeiros. Os efeitos da crise global provocada pela pandemia e as incertezas em relação à retomada da trajetória do controle de gastos públicos no próximo ano reduziram o apetite pelos ativos brasileiros. Com o avanço de queimadas e desmatamento, esse quadro tende a se agravar, segundo especialistas e gestores.

Os dados do fluxo cambial mostram um quadro inédito de saída de recursos externos. Nos primeiros oito meses deste ano, US$ 15,2 bilhões deixaram o país, o maior volume para o período desde que o Banco Central (BC) começou a compilar as estatísticas, em 1982. Além disso, os investidores estrangeiros retiraram R$ 87,3 bilhões da Bolsa brasileira de janeiro a 17 de setembro de 2020.

Isso é quase o dobro do registrado em todo o ano passado, quando saíram R$ 44,5 bilhões. É a maior saída da série da B3, iniciada em 2008.

Os dados do fluxo cambial consideram os resultados das exportações e das importações do país, a chamada conta comercial, e o fluxo financeiro de investimentos, aportes em títulos ou dividendos remetidos e recebidos do exterior, a conta financeira. As saídas se concentram exatamente na conta financeira: foram US$ 89,6 bilhões no período de 12 meses até agosto.

Acordo Mercosul-UE: Custo ambiental supera vantagem econômica, aponta relatório da França

Já a conta comercial tem saldo positivo de US$ 36,2 bilhões nessa comparação.

Já os números de saída de estrangeiros da Bolsa não consideram a entrada de capital por meio de ofertas públicas de ações, os IPOs.

Investimento cai 27%

Em uma audiência virtual promovida na terça-feira pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o ex-presidente do BC Arminio Fraga alertou para a piora da imagem do Brasil no exterior.

— Em função da piora concreta das taxas de desmatamento e de sinais abundantes de que prevalece hoje uma certa tolerância com a questão, o Brasil tem merecido uma imagem bastante negativa na cena internacional. O mesmo obscurantismo que nos prejudicou e nos prejudica no combate à pandemia nos afeta também nos temas ambientais — disse Arminio.

Ele ressatou que qualquer hesitação nessa área “reforça essa percepção negativa que hoje se abate” sobre o Brasil, que corre o risco de se tornar um pária.

Antes das eleições de 2022:Governo decide acelerar estudos para privatizar os aeroportos Santos Dumont e Congonhas

Esta imagem negativa no exterior também pode ser observada nos dados sobre investimento estrangeiro, que registrou o menor resultado para um primeiro semestre em mais de uma década. Nos primeiros seis meses deste ano entraram US$ 22,8 bilhões, o menor patamar desde os US$ 13,9 bilhões registrados em 2009 e uma queda de 27% na comparação com o mesmo período de 2019.B

Ainda assim, contrariando os dados do BC, em seu discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que os investimentos cresceram:

— O Brasil foi, em 2019, o quarto maior destino de investimentos diretos em todo o mundo e no primeiro semestre de 2020, apesar da pandemia, verificamos um aumento de ingresso de investimentos em comparação com o mesmo período do ano passado.

Arminio ressaltou que o desmatamento vai prejudicar cada vez mais o agronegócio, as exportações e os investimentos estrangeiros no Brasil:

— O desmatamento e outros crimes ambientais, além de agravarem o problema global, trazem enorme risco para o ecossistema do agronegócio, nosso setor mais bem-sucedido, e também para a oferta de energia no nosso país.

Segundo ele, isso prejudica também cada vez mais o acesso a mercados para os produtos brasileiros:

— Basta lembrarmos o acordo com a União Europeia. A crescente ênfase, por parte das melhores empresas do mundo, do trio chamado em inglês ESG, traduzindo, meio ambiente, social e governança, reduz a atratividade do Brasil como destino de investimentos.

Daniela da Costa-Bulthuis, gestora para o Brasil da holandesa Robeco Asset, também alerta para as consequências da atual política ambiental para o futuro do país:

— O país está perdendo o capital de longo prazo, que é o que vem para ficar e que vai aumentando os investimentos ao longo do tempo. Em um exemplo hipotético, o estrangeiro pode ficar receoso de investir em uma fábrica de alimentos no Brasil e, dali a certo tempo, algum produto agrícola brasileiro ser proibido no mercado internacional por causa de práticas contra a preservação ambiental.

‘O trem já partiu’

Para Daniela, o governo deveria escutar o que a comunidade estrangeira tem a dizer:

— Quando os investidores estrangeiros alertam sobre a situação ambiental brasileira, não é uma questão política. Estamos olhando os dados oficiais, e eles apontam que o desmatamento está avançando. E o Brasil não é o único país que recebe alertas de investidores estrangeiros.

Eric Christian Pedersen, diretor de Investimentos Responsáveis, da gestora finlandesa Nordea Asset Management, considera que, no curto prazo, o risco maior diz respeito à aprovação do acordo entre Mercosul e União Europeia (UE). Isso porque a questão ambiental tem grande espaço na agenda europeia.

Daniela ressalta que, hoje, conservação ambiental e economia estão ligados:

— No mundo atual, não é possível conduzir atividade predatória no meio ambiental no longo prazo. Pode-se chegar a um ponto em que não haja fertilizante que faça a terra ser produtiva.

Arminio vê relação de dependência entre meio ambiente e atividade econômica:

— A persistir o aumento da temperatura do planeta, as consequências serão devastadoras. O trem já partiu, e todo cuidado é pouco. Estima-se que o impacto econômico e social ao longo do tempo será maior que o da pandemia. Imagino até bem super.

Gabriel Shinohara, André de Souza, Gabriel Martins e Rennan Setti /Publicado oriiginalmente por O Globo, edição de 23/09/2020 - 08:16.

'Faltam coordenação e metas para superar a pandemia', diz Pedro Parente

Na visão de ministro do FHC que livrou o País do apagão em 2002, sem articulação 'ou a vacina dá certo ou não se sabe o que virá'.

Entrevista com Pedro Parente, presidente do conselho da BRF

Pedro Parente cursou engenharia eletrônica e administração de empresas, mas sua imagem pública, no País, é a de um bem-sucedido gestor de crises. Na mais famosa delas, a do apagão, em 2001-2002, ele chefiava a Casa Civil do governo FHC e presidiu um comitê de gestão de crise com amplos poderes. Conseguiu tirar o Brasil do buraco graças à forte colaboração da população, que reduziu o consumo de energia e ajudou a preservar a água nos reservatórios. “Foi bonito de ver a adesão da sociedade, sem necessidade dos cortes compulsórios”, recorda o executivo nesta conversa.

No Brasil de hoje, com o coronavírus fazendo vítimas, o chamado “ministro do apagão” põe o dedo no que considera o “X” da questão: “a falta de coordenação entre os organismos envolvidos” e “uma enorme diferença entre a visão da autoridade máxima e a dos outros responsáveis pelo setor”.

Pedro Parente dirigiu três ministérios durante o governo FHC e foi presidente da Petrobrás durante gestão Temer. Hoje, ele está na BRF.

É uma análise de peso de quem já esteve lá. Entre outras, Parente dirigiu três ministérios no governo FHC – Planejamento, Casa Civil e Minas e Energia. Depois, passou à área privada, onde atuou no grupo RBS, na Bunge e na TAM. No governo Temer, presidiu a Petrobrás. Mas voltou à iniciativa privada no comando de um dos maiores grupos mundiais no setor de alimentos, a BRF, onde hoje preside o conselho de administração. “O foco da empresa agora é crescimento”, avisa.

Como vê o futuro do País? “Sinto uma grande frustração quando vejo a enorme diferença entre o País que somos e o que poderíamos ser. Espero que a gente supere as diferenças para viver num Brasil plural e com uma agenda comum.” Aqui vão os melhores momentos da conversa:

O sr. comandou o combate à crise do apagão no governo FHC. Que acha da gestão da atual crise sanitária?

Nesta crise de agora, vejo uma questão marcante: a falta de coordenação entre todos os organismos envolvidos. No apagão, esses órgãos eram todos federais – o Operador Nacional do Sistema (ONS), a Anel, o BNDES, ministérios – e a cooperação foi assegurada. Nesta da covid-19, tem União, Estados e municípios, e não se pode dizer que a articulação tenha acontecido de modo a reduzir o impacto da crise.

Em suma, não houve coordenação.

Houve uma tentativa no início, com o ministro (Luiz Henrique) Mandetta, mas ela acabou não acontecendo. No apagão, a articulação foi feita por delegação direta do presidente ao chefe da Casa Civil, que naquele momento era eu.

Que horizontes o sr. vê no combate à pandemia? 

Uma característica desta crise é a falta de confiabilidade nas informações – o número de pessoas infectadas, as mortes, os que se curaram... – e isso prejudica a definição de políticas adequadas ao tamanho real do problema. A segunda é o desafio de se entender o que vai acontecer daqui para frente, como retomaremos a vida normal. Assim, me parece que virou uma típica situação da bala de prata: ou a vacina vem e dá certo, ou não sabemos o que vai acontecer. Pois, sem o acompanhamento dos casos e dos contatos feitos pelas pessoas infectadas, como vamos definir as ações?

Como era essa organização durante o apagão de 2001?

Naquela ocasião, o governo cometeu um erro de avaliação. Recebemos da área de energia a informação de que havia probabilidade de 5% de termos falta de energia. Imaginávamos que, caso necessário, um corte de 5% não seria uma coisa complicada. Não foi o que aconteceu. Dado o fato de que o nosso sistema dependia da natureza naquele momento, havia risco grande de coisas aleatórias afetarem. Aí, numa reunião na Câmara de Política Energética, os técnicos disseram que seria preciso um corte de energia em todas as cidades do Sudeste – no caso de São Paulo, por 4 ou 8 horas. Imagina o susto da equipe ao ouvir isso.

Assim de repente? Do zero para essa informação de 8 horas?

De repente, não. Mas governos têm o péssimo hábito de preferir escutar os otimistas, e não os realistas. Aí, quando a situação mostrou-se de uma gravidade maior, Pedro Malan defendeu junto a FHC que o problema deveria ser coordenado pelo chefe da Casa Civil, que no momento era eu. Apresentei ao presidente proposta de criação de um comitê de crise que deveria ter total autonomia e recursos. Ele concordou, saiu a MP e o comitê funcionou muito bem.

Por que deu certo?

Porque tínhamos meta de redução da energia. Sugerimos a redução voluntária e houve enorme adesão. Dissemos que cada residência tinha de economizar 20% da média do gasto de um ano antes. E foi bonito de ver a colaboração de todos e a preservação dos reservatórios de água. Sem necessidade de cortes compulsórios.

No caso da pandemia, hoje, como vê seu impacto na economia?

Vejo dois. O primeiro é, sem articulação, o tempo bem maior para que o País volte à normalidade. A crise poderia estar sendo menos longa e com custo menor em termos de saúde, vidas, empregos, fechamento de empresas. O segundo impacto é que, com uma boa coordenação, você teria informações mais eficientes, uma previsibilidade maior. Hoje, vivemos num grau de incerteza muito grande.

E como está, nesse cenário todo, a BRF? No começo, sei que houve temor no setor de distribuição de alimentos, com um município querendo fechar tudo, outro querendo abrir... 

Quando bateu a gravidade do problema, houve muitos desencontros entre Poderes estaduais e municipais. Trabalhamos com viveiros de frangos e porcos onde tem de chegar alimento, ração. Os frangos não podem passar um dia a mais no viveiro. Felizmente, a empresa se preparou com antecedência, já em fevereiro. Criamos um comitê interdisciplinar, com a participação de um infectologista renomado da USP, o Esper Kallas. Fizemos também um acordo com grupo médico do Einstein. 

Como isso funcionou?

Às vezes, surgia um problema numa cidade onde tínhamos uma unidade de produção, e mandávamos um aviãozinho com os médicos para orientar os prefeitos. Doávamos leitos hospitalares, equipamentos de UTI. Hoje, estamos numa situação quase normalizada. Digo “quase” porque ainda temos a questão de readequar o nível ótimo de estoques.

E o setor de exportação, voltou ao patamar anterior? 

Para nós, essa é uma área fundamental. Temos um fator positivo que é a diversificação de mercado, cada vez mais trabalhando com produtos de marca, de valor agregado, reduzindo o impacto dos preços de commodities como milho e soja. A diversificação permite que 50% das vendas sejam no exterior.

A China tem um peso nisso?

A demanda da China tem forçado uma elevação de preços no mercado internacional. E essa influência só não é maior porque ela é que autoriza planta por planta a ser construída. Recentemente, preocupados com o risco de transmissão do coronavírus pelos animais importados, os chineses determinaram, sem base científica, o fechamento de plantas em diversos países, inclusive uma das nossas. Mas tudo o que a gente pode vender para a China está vendendo.

Pode dar números? Com a pandemia, o consumo caiu muito?

Tivemos uma redução de produção, em algumas unidades, por ocorrência da covid-19 em funcionários. Houve uma queda de produção que, no global, pode ter chegado a 10% ou 15%. 

Como presidente do conselho da BRF, se fosse listar hoje as três maiores preocupações do grupo, quais seriam?

Observo que, em primeiro lugar, estamos num setor estratégico. Um setor que continuará com demanda crescente por muitos anos se levarmos em conta, em especial na Índia e na China, o fenômeno da urbanização. Isso leva a uma sofisticação do consumo: as famílias deixam de consumir proteína vegetal e passam à proteína animal. Então, a empresa, sob o ponto de vista da equação financeira, está numa situação muito melhor do que há dois anos. A questão agora é crescimento.

Hoje fala-se muito em ESG, a política ambiental, social e de governança, que já é uma prática quase recorrente de empresas. Ou não?

Essa é uma demanda crescente, que veio para ficar. Houve, creio que no ano passado, um importante manifesto de um conjuntos de CEOs que integram o ranking da Forty and Five Hundred, dizendo que hoje a empresa não tem mais de satisfazer o acionista. Ela tem de atender às comunidades, aos empregados, a sua cadeia de fornecedores e clientes.

Você, como cidadão, o que espera do País daqui para frente?

Eu sinto uma grande frustração quando vejo a enorme diferença entre o País que somos e o que poderíamos ser. Com os recursos que temos, os nossos empreendedores, os jovens com novas mentalidades. Espero que a gente supere as diferenças, para voltarmos a ser um País diverso, plural, onde se respeitem as diferenças e se crie uma agenda comum. Tem muita coisa que se poderia fazer, aqui, sem depender dos outros.

*QUEM É: PEDRO PARENTE, PRESIDENTE DO CONSELHO DA BRF. ELE É ENGENHEIRO E ADMINISTRADOR, FOI MINISTRO DO PLANEJAMENTO, DA CASA CIVIL E DE MINAS E ENERGIA DO GOVERNO FHC. PRESIDIU A PETROBRÁS NO GOVERNO TEMER E FOI VICE-PRESIDENTE DA RBS.

Entrevista concedida a Sonia Racy,  de O Estado de S.Paulo. Publicada originalmente em 23 de setembro de 2020 | 05h00

Mendacidade na ONU

Jair Bolsonaro usou os holofotes da Assembleia-Geral da ONU para reiterar suas irresponsáveis imposturas acerca de graves temas

Como se estivesse em uma de suas corriqueiras “lives” nas redes sociais, nas quais fala o que lhe dá na telha e dá livre curso às mais delirantes teorias conspirativas, o presidente Jair Bolsonaro usou os holofotes da abertura da Assembleia-Geral da ONU para reiterar suas irresponsáveis imposturas acerca de graves temas.

A vergonha só não foi maior porque depois de Bolsonaro quem discursou foi seu guia, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que estava mais afiado do que nunca – entre outras barbaridades, ele defendeu que a ONU responsabilize a China pela pandemia.

Como sempre colocando seus estreitos objetivos eleitoreiros acima dos interesses do País, Bolsonaro começou seu discurso reiterando pela enésima vez a farsa segundo a qual, “por decisão judicial”, todas as medidas de isolamento para combater a pandemia de covid-19 “foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação”. Todos sabem, contudo, que não houve nenhuma decisão judicial com esse teor.

Há tempos o Supremo Tribunal Federal (STF) esclareceu que, conforme o princípio federativo expresso na Constituição, o governo federal não podia anular unilateralmente decisões de governos estaduais e municipais para combater a pandemia, como pretendia Bolsonaro, mas isso não o eximiu de cumprir as responsabilidades próprias da União.

Sem nenhum compromisso com os fatos, contudo, o presidente Bolsonaro reafirmou a patranha segundo a qual seu governo foi dispensado judicialmente de responsabilidade sobre a múltipla tragédia. Acrescentou, como se isso não bastasse, que grande parte da crise foi causada pela imprensa, que “politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população”. “Sob o lema ‘fique em casa’ e ‘a economia a gente vê depois’, quase trouxeram o caos ao país”, acrescentou o presidente, repetindo para uma audiência internacional o discurso falaz que costuma fazer em seus rompantes mitingueiros.

E tudo isso resume apenas os cinco primeiros parágrafos do pronunciamento, obviamente destinado não a mudar a imagem do Brasil, visto hoje como pária em muitos círculos internacionais, mas sim a reafirmar aos bolsonaristas fanáticos a disposição do presidente de continuar a ser o Bolsonaro de sempre.

Assim, Bolsonaro pintou na ONU o quadro de um Brasil glorioso, que “alimenta o mundo” e que avança a despeito dos muitos inimigos – nunca nomeados e desde sempre interessados apenas em obstar o sucesso do País. O Brasil, disse Bolsonaro, “desponta como o maior produtor mundial de alimentos” e, por isso, segundo seu raciocínio, “há tanto interesse em propagar desinformações sobre nosso meio ambiente”.

“Somos vítimas de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”, disse Bolsonaro, negando o que todos são capazes de ver, isto é, o aumento substancial da destruição daqueles biomas sob seu governo – que sustenta um discurso irresponsável de desenvolvimento baseado no relaxamento da legislação ambiental.

“A Amazônia brasileira é sabidamente riquíssima. Isso explica o apoio de instituições internacionais a essa campanha escorada em interesses escusos que se unem a associações brasileiras, aproveitadoras e impatrióticas, com o objetivo de prejudicar o governo e o próprio Brasil”, declarou Bolsonaro. Na mesma linha da conspiração, em audiência no STF acerca da questão ambiental, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, havia dito que “não podemos admitir e incentivar que nações, entidades e personalidades estrangeiras, sem passado que lhes dê autoridade moral para nos criticar, tenham sucesso em seu objetivo, obviamente oculto, mas evidente, que é prejudicar o Brasil e derrubar o governo Bolsonaro”.

Assim, os próceres do governo Bolsonaro não se envergonham de levar às mais altas tribunas as teses mais doidivanas acerca de temas de enorme relevância para o Brasil e o mundo, apostando na confusão. Debalde: como mostra a crescente fuga de investidores estrangeiros, cada vez menos gente cai nessa conversa, que só prejudica a nação brasileira.

Editorial - Notas & Informações, O Estado de S.Paulo / 23 de setembro de 2020 | 03h00

Aos 20 anos, Carlos Bolsonaro comprou imóvel de R$ 150 mil com dinheiro vivo

Filho do presidente pagou valor em espécie por apartamento em 2003; montante corrigido é de R$ 366 mil

 O vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos) tinha apenas 20 anos, em 2003, quando se dirigiu a um cartório no centro do Rio e pagou R$ 150 mil em dinheiro por um imóvel. O montante corresponde hoje a R$ 366 mil, em valores corrigidos pelo IPCA. Investigado por supostamente se apropriar dos salários de funcionários “fantasmas” na Câmara Municipal, Carlos vai disputar o sexto mandato este ano. 

Vereador no Rio, Carlos Bolsonaro, adquiriu apartamento na Tijuca em dinheiro vivo; ele não respondeu aos questionamentos da reportagem Foto: Wilton Junior / Estadão

O apartamento pago em “moeda corrente do País, contada e achada certa”, como diz a escritura que oficializou o negócio, fica na Rua Itacuruçá, na Tijuca, e ainda pertence ao parlamentar. Na eleição de 2016, ele declarou que o imóvel valia R$ 205 mil. O documento de compra e venda foi obtido pelo Estadão no cartório em que o negócio foi fechado. Foi a primeira aquisição imobiliária de Carlos, lançado à política pelo pai, o hoje presidente Jair Bolsonaro, em 2000, antes de fazer 18 anos.

Procurado, o vereador não respondeu à reportagem.

Apartamento comprado por Carlos Bolsonaro fica na Rua Itacuruçá, na Tijuca. Foto: Google Street View/ Reprodução

Uma advogada ouvida pelo Estadão sob condição de anonimato disse que a expressão “moeda corrente, contada e achada certa” na escritura não deixa dúvidas de que o pagamento foi feito em espécie. Essa prática não é crime, mas costuma ser apontada como indício de suposta lavagem de recursos, já que não deixa rastro no sistema financeiro se o dinheiro não passar por um banco. Segundo a especialista, a aquisição do imóvel por essa forma de pagamento só desperta estranheza se a origem dos recursos não estiver evidente. A reportagem não conseguiu contato com o casal que vendeu o apartamento. 

Carlos Bolsonaro é investigado por suspeita de nomear no seu gabinete funcionários que lhe repassariam, totalmente ou em parte, seus salários. Ao todo, 11 servidores estão sob investigação do Ministério Público. A maioria é ligada a Ana Cristina Siqueira Valle, que não é mãe de Carlos, mas foi casada com o pai do vereador.

Irmão de Carlos, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) também é investigado pelo Ministério Público do Rio por suposta prática de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no processo das “rachadinhas” (apropriação dos salários dos assessores) quando era deputado estadual. Neste processo, em que constam nomes coincidentes com a apuração que mira Carlos, investigadores se debruçam sobre pagamentos em dinheiro vivo feitos pelo parlamentar. 

O MP aponta indícios de que o senador fez pagamento “por fora”, em dinheiro, na aquisição de dois apartamentos em Copacabana, na zona sul. Nas escrituras, o valor declarado oficialmente era R$ 310 mil, mas no mesmo dia em que o negócio foi fechado, em novembro de 2012, o vendedor depositou em espécie, na própria conta, R$ 638 mil – e ele não havia feito nenhuma outra venda naquele semestre. 

O MP suspeita de lavagem dos recursos oriundos de esquema de “rachadinha”. Flávio nega ter cometido irregularidades e diz ser alvo de perseguição política, cujo objetivo seria atingir o governo Bolsonaro. 

Documento Carlos Bolsonaro / Pelo apartamento, o vereador do Rio pagou R$ 150 mil em dinheiro vivo. Foto: Reprodução

Bens

A apuração sobre o vereador Carlos Bolsonaro ainda está no início. O imóvel na Tijuca é um dos três que compunham a declaração de bens apresentada por ele em 2016 à Justiça Eleitoral – a deste ano ainda não está disponível. Os outros são em Copacabana e no Centro, que valeriam, há quatro anos, R$ 85 mil e R$ 180 mil, respectivamente.

O imóvel de Copacabana, comprado em 2009 por R$ 70 mil, foi pago por transferência eletrônica, segundo a escritura. O pagamento do imóvel do Centro foi dividido entre um sinal de R$ 40 mil em formato não especificado, R$ 120 mil por meio de transferência no fechamento do negócio e R$ 20 mil em uma nota promissória.

Antes de adquirir seu primeiro apartamento, Carlos morava com a mãe, Rogéria Nantes Bolsonaro, em um imóvel em Vila Isabel, na zona norte do Rio. Rogéria, que tentará voltar à Câmara Municipal em novembro, depois de 20 anos fora da política, também comprou o imóvel pagando em dinheiro em espécie. O preço em 1996 foi de R$ 95 mil, revelou o jornal O Globo. O Estadão confirmou a informação em cópia da escritura.

Ana Cristina Valle teve participação ainda mais ativa no mercado imobiliário enquanto foi casada com Bolsonaro, entre 1997 e 2008. Ela adquiriu 14 imóveis no período; cinco pagos em dinheiro vivo, segundo reportagem da revista Época publicada em julho. Em valores corrigidos, os pagamentos em espécie somam R$ 680 mil. Ela não foi localizada pela reportagem. 

Caio Sartori e Wilson Tosta, O Estado de S.Paulo - 23 de setembro de 2020 | 05h00

O adeus à empregada?

A pandemia forçou muitas famílias a se virar sem empregada e talvez faça o trabalho das domésticas ser mais valorizado. Quando a patroa limpa a casa, sente o peso do trabalho que sempre terceirizou.

Empregadas domésticas - as mensalistas vão se transformando cada vez mais em diaristas

Caros brasileiros,

Nunca imaginei ver um lado bom no coronavírus. Ele teve o poder de abalar uma instituição da sociedade brasileira que parecia insubstituível e inquestionável: a empregada doméstica.O vírus está forçando muitas famílias brasileiras a se virarem sem empregada há um bom tempo. De repente, a patroa e, às vezes, também o patrão começaram a aprender a cozinhar, lavar roupa, passar aspirador de pó, passar pano no chão e tomar conta das crianças.

 

            A empregada doméstica Nilza de Jesus, que ensinou a patroa a cozinhar pelo telefone

Uma amiga minha virou cozinheira. Com as dicas da empregada pelo telefone, começou a fazer pratos refinados, como lasanha de berinjela e suflê de legumes. E gostou. A empregada, que desde março está em casa recebendo salário, se impressionou com a chefe: "Em duas semanas, ela aprendeu tudo."

O coronavírus mudou as regras de casa. Cozinhar virou coisa de chefe. Programas de culinária na televisão, receitas no Instagram e dicas compartilhadas em grupos de Whatsapp fizeram milhares de pessoas no home office aprenderem a cozinhar.

Além disso, os sites de gastronomia viram um aumento gigantesco no tráfego desde o início da pandemia. O portal de receitas do UOL teve um crescimento de 230% na audiência em junho em relação a março. Já o canal do programa MasterChef no YouTube ganhou 129 mil novas inscrições durante o período de quarentena.

Quem não gosta de cozinhar talvez tenha se inspirado com os programas e pedido um prato especial num dos serviços de entrega de comida que tanto cresceram na pandemia. Para muitos restaurantes, esses eram os únicos meios de manter seu negócio vivo.

As empregadas que ficaram em casa também tinham que inventar uma maneira de ganhar dinheiro, pois muitos patrões, segundo a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, não continuaram pagando o salário.

"Muitas mulheres tentaram fazer alguma coisa nova", disse Maria Noeli dos Santos, do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do município do Rio. "Algumas fizeram comida em casa e venderam para fora, outras ofereceram serviço de manicure. Se der certo, vão continuar."

Será que o coronavírus conseguiu, então, o que a PEC das Domésticas pretendia alcançar e ainda não conseguiu? A meu ver, a pandemia deu no mínimo um empurrão, ao fazer com que um trabalho essencial, sempre negligenciado e discriminado, fosse mais valorizado. Pois se a patroa limpa a casa, vai sentir o peso do trabalho que ela sempre terceirizou. Se o patrão cozinha, ele provavelmente vai declarar a nova atividade como "arte culinária".

No entanto, essa minha esperança em relação a uma valorização do trabalho doméstico infelizmente se depara com um cenário nada favorável: metade das 8 milhões de empregadas domésticas brasileiras trabalha sem contrato e ficou quase totalmente desamparada durante a crise do coronavírus.

No novo livro Coronavírus: O trabalho sob o fogo cruzado, o sociólogo Ricardo Antunes, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na Unicamp, descreve a realidade cruel de uma crescente precarização. Segundo Antunes, as desigualdades já existentes no período pré-pandêmico adquiriram "um toque de crueldade": "A classe-que-vive-do-trabalho se vê na encruzilhada: morrer por covid-19 ou morrer de fome", escreve.

É verdade: muitas empregadas domésticas continuam trabalhando, arriscando a própria vida. Precisam do dinheiro, e a patroa não quer abrir mão do serviço, mesmo com o risco de uma infeção pelo coronavírus.

Mas a crueldade do coronavírus deve sacudir a sociedade brasileira. Depois que a crise passar, provavelmente cada vez menos mulheres vão voltar a trabalhar como empregadas, seja porque acharam uma alternativa, seja porque o empregador não chamou mais.

As mensalistas vão se transformando cada vez mais em diaristas, uma transformação que já vinha acontecendo há muitos anos. A pandemia deve contribuir ainda mais para essa mudança de perfil da categoria. Não adianta reclamar: a empregada não deve mais fazer parte da "tradicional família brasileira".

A autora deste artigo, Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.

Publicado originalmente por Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha. Jornalismo independente em 30 idiomas. 

Bolsonaro gosta de ser um negacionista

Na Assembleia Geral da ONU, o presidente disse que o Brasil é vítima de uma campanha de desinformação sobre a Amazônia. Mas as imagens dos incêndios falam por si. Assim como os números da covid-19, opina Thomas Milz.

"Não se deve esperar nada de construtivo de Bolsonaro", escreve Thomas Milz

É tradição na ONU: o Brasil é sempre o primeiro país a discursar na abertura da Assembleia Geral. A novidade este ano foi o discurso ser gravado em vídeo, devido à pandemia de coronavírus. Com mais de 137 mil mortes pela covid-19 confirmadas, o Brasil é atualmente o segundo país com mais vítimas da doença, atrás apenas dos Estados Unidos. Logo no início de seu discurso, Bolsonaro se colocou na defensiva. Afinal, como explicar o desastre nacional para um mundo que conhece a sua terrível comparação do coronavírus com uma "gripezinha"?

Segundo o presidente, a culpa não cabe a ele. Pelo contrário. Ele teria sido vítima do Judiciário brasileiro, que o deixou de mãos atadas na luta contra a pandemia e cedeu poderes aos governadores. Quem observa a situação mais de perto sabe que Bolsonaro se recusou a lutar contra a pandemia, que descreveu como "histeria". E pior ainda: ele se baseou na cloroquina, medicamento antimalárico comprovadamente ineficaz contra a covid-19, e colocou o Ministério da Saúde sob o comando de um general que havia organizado a logística dos Jogos Olímpicos do Rio.

Mas a negação de qualquer culpa ou responsabilidade faz parte da mentalidade populista de Bolsonaro. Assim como inflar a própria atuação sempre que algo está indo bem. De acordo com Bolsonaro, o auxílio emergencial pago a mais de 65 milhões de brasileiros para enfrentar a crise gerada pela pandemia protegeu a economia de um desastre ainda maior. Isso é verdade. No entanto, ele não disse ao público internacional que foi o Congresso quem pressionou o governo a liberar o auxílio. E ele simplesmente mentiu quando disse que as parcelas do auxílio somam 1.000 dólares por pessoa.

O negacionismo de Bolsonaro se torna ainda mais óbvio em relação à destruição ambiental em curso na Amazônia. As nuvens de fumaça podem ser percebidas até em grandes cidades do extremo sul do Brasil, e a sua gigante propagação também pode ser vista em imagens de satélite da Nasa. E o fato de que o governo Bolsonaro está impedindo as autoridades ambientais de proteger as florestas é evidenciado pelos cortes drásticos nos orçamentos ambientais. Até membros de seu próprio governo admitem abertamente a paralisia das autoridades de fiscalização ambiental.

Ainda assim, Bolsonaro também repetiu diante da plateia virtual da Assembleia Geral da ONU seu mantra de que ninguém protege mais a natureza do que o Brasil e que apenas a comunidade mundial malévola se recusa a reconhecer isso. "Somos vítimas de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal", disse Bolsonaro. Instituições internacionais estariam envolvidas em maquinações sombrias para prejudicar o seu governo e o Brasil, com a participação de associações brasileiras "aproveitadoras e impatrióticas".

Com isso, o presidente se dirige não apenas a organizações como o Greenpeace e o WWF e a ativistas como o ator Leonardo DiCaprio, mas também contra a própria ONU. A Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP 25, deveria ter sido realizada no Brasil em 2019. Mas Bolsonaro se opôs. Reiteradamente, ele acusou a ONU de querer tirar a Amazônia do Brasil com a ajuda do acordo climático de Paris.

Mas é claro que Bolsonaro não se interessa pela imagem do Brasil no mundo. Em tempos de redes globais de informação e graças à cobertura vigilante da mídia, o mundo hoje sabe muito bem o que está acontecendo nas florestas brasileiras. Nesse ponto, Bolsonaro não tem nada a ganhar. O discurso dele se dirige à própria população, a quem tem que responder sobre as mortes provocadas pelo coronavírus, a crise econômica devido à pandemia e a destruição do meio ambiente. E a quem ele – ao contrário da opinião pública bem informada no exterior – ainda pode imputar sua distorção dos fatos.

Atribuir a culpa a poderes obscuros estrangeiros agrada a muitos brasileiros. As ameaças das fileiras da União Europeia de não ratificar o acordo comercial com o Mercosul vêm a calhar para que Bolsonaro se mostre vítima de intrigas internacionais. 

Dois problemas movem o mundo atualmente: a pandemia da covid-19 e as mudanças climáticas. Ambas as crises têm dimensões globais e só podem ser resolvidas em nível global. Um estadista inteligente, portanto, usaria instituições globais como a ONU para encontrar soluções. Antes de mais nada, para interesse do seu próprio país. Mas Bolsonaro não pensa em soluções. Como populista profissional, ele aceita as crises com gratidão, para poder colocar a culpa em inimigos imaginários. Não se deve esperar nada de construtivo dele.

O alemão Thomas Milz trabalha há 15 anos no Brasil como jornalista e fotógrafo para veículos como o Bayerischer Rundfunk, a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. O texto acima reflete a opinião pessoal do autor, e não necessariamente da DW.

Publicado originalmente por Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha. Jornalismo independente em 30 idiomas.