quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Quarentena política a juízes e promotores deveria ser eterna, diz subprocurador

De janeiro de 2019 a julho de 2020, Lucas Rocha Furtado, subprocurador-Geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, protocolou 173 representações relacionadas a atos do Poder Executivo.

A produtividade o fez ganhar a alcunha de "espinho" do presidente Jair Bolsonaro no TCU. Furtado renega o apelido. "Nunca tive nenhum apelido e não gostaria de ser chamado de espinho. É uma função ingrata. A minha atuação é apenas uma reação aos atos do governo", afirma.

Além do apelido que refuta, também é acusado por apoiadores do governo de atuar com propósitos eleitorais. Algo que nega com veemência. Segundo ele, quem opta por entrar no Ministério Público ou na magistratura deveria ser impedido por prazo indeterminado de disputar cargos públicos.

Natural de Fortaleza, Furtado sofreu um acidente vascular cerebral em 2008 e teve que ficar afastado um ano de suas atividades. O AVC deixou algumas sequelas e a aposentadoria era uma opção. Ele, no entanto, preferiu seguir trabalhando no Ministério Público. "Dando trabalho", como gosta de resumir a sua função. Outra definição de sua atuação é a de ser uma ponte entre o trabalho da imprensa livre e o Poder Público.

"Tive que me reinventar após o derrame e me conferi esse papel. De atuar como uma ponte entre a investigação efetuada pela imprensa e o TCU. Se há mérito ou demérito nessa minha atuação, atribuo isso à própria imprensa. Minha função é simplesmente levar essas demandas adiante para que não caiam no vazio como no passado. Não deixo cair. Investigo qualquer denúncia publicada pela imprensa desde que contenha o mínimo de elementos que justifiquem um procedimento no meu campo de atuação", explica.

Questionado sobre o número exato de representações que já fez no governo Bolsonaro, Furtado diz não saber, mas dá uma pista de como seu trabalho é orientado. "Há uma notícia de que o orçamento irá prever mais para a Defesa do que para a Educação. Isso me deixa inquieto. Devo agir? É político? Por que alguém pode considerar política essa atuação, não vou agir? Mais uma representação para essa estatística que procuro não conhecer", resumiu.

Essa inquietação pode ser conferida na diversidade dos temas questionados pelo subprocurador. Já fez desde representações sobre anúncios de empresas do governo em sites de fake news, investigações do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) sobre jornalistas e até uma que pede ao TCU que impeça o presidente de fazer propaganda da cloroquina.

Em entrevista à ConJur, além de falar sobre sua atuação em meio à pandemia, afirma que a OAB deveria ser fiscalizada pelo TCU e que o fato do consórcio da "lava jato" ter prestado bons serviços ao país não torna ninguém imune à fiscalização.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

ConJur — O senhor tem sido notoriamente uma das figuras mais atuantes no que diz respeito aos pedidos de fiscalização do dinheiro público no governo Bolsonaro. Alguns enxergam no seu trabalho ambições políticas. Como lida com essa crítica? Quantas representações fez desde o início do governo?

Lucas Rocha Furtado — Muito se discute se haveria ou não quarentena para juízes e promotores se lançarem na política. Por mim, esse prazo seria eterno. Se uma pessoa opta por ser juiz ou promotor, não poderia nunca disputar um cargo político. Pessoas nesses cargos podem tomar medidas que as colocam em situação de destaque e que colocariam em risco a isonomia com que devem agir. Eu, particularmente, não tenho nenhuma pretensão política. O meu quadrado é o Ministério Público.

ConJur — Em entrevista recente, o senhor se definiu como um "espinho" no caminho que o governo escolheu. Como seria isso, poderia explicar melhor?

Furtado — Foi um repórter que me entrevistou e me informou sobre eu ser considerado um "espinho". Não sabia que era conhecido como um "espinho". Nunca tive nenhum apelido e não gostaria de ser chamado de assim. É uma função ingrata. A minha atuação é apenas uma reação aos atos do governo. É como na segunda Lei de Newton [princípio fundamental da dinâmica]. Minha atuação é apenas a de trabalhar para exercer o controle que existe e que deveria existir em qualquer atividade pública ou privada. Faz parte de qualquer atividade ela ser controlada.

Encaro a questão do espinho no sentido de que fico parado. Minha função é não me mexer. Só que, se eventualmente alguém cruzar o caminho que fere o interesse público, posso incomodar. Nesse sentido posso até ser um espinho. Não que eu queira incomodar quem quer que seja.

Não gostaria que minha atividade fosse vista como uma atividade política, porque não é. Será que a omissão não poderia ser considerada uma opção política? Não é minha pretensão adotar uma postura política. Só exerço a minha função. 

ConJur — Muitos dizem também que o senhor tem ultrapassado os limites da competência do TCU. O senhor concorda de alguma maneira com isso? Qual o limite da competência do MP junto ao TCU?

Furtado — Em matéria de competência do TCU, posso dizer que temos duas visões. Uma mais tradicional e outra mais moderna, de combate à corrupção. A mais tradicional foi inclusive a responsável por colocar o Brasil na posição de um dos países mais corruptos do mundo, segundo a Transparência Internacional. É isso que nós queremos para o Brasil? Que a primeira linha de combate à corrupção seja enfraquecida? Que o Tribunal de Contas seja um tribunal de faz de conta? Ou um tribunal que efetivamente combata a corrupção? Combater a corrupção demanda um processo longo que vai demandar muito esforço. Espero que com apoio da população. Esse apoio vai ser imprescindível para chegarmos a um bom termo para o bem do Brasil. Vale lembrar que os efeitos da corrupção para a economia brasileira foram muito negativos.

ConJur — Em um cenário atípico como o da epidemia, qual deve ser o papel do MP junto ao TCU? Como encontrar o equilíbrio entre a fiscalização e a alta demanda de verbas e gastos do governo no combate à Covid-19?

Furtado — Em momento de pandemia se exige do fiscal ainda mais do que se exige normalmente. É certo que ninguém quer ser posto atrás das grades. Ter uma prisão decretada pode acabar com a vida de uma pessoa. É preciso ter muito equilíbrio para exercer a competência conferida pela Constituição de combate à corrupção ao MP e à magistratura. É preciso separar o que é fraude do que é efetivamente aumento normal de preço por conta da pandemia e do aumento de demanda. Somente uma investigação cuidadosa pode demonstrar essa diferença.

Só que prender antes do fim da investigação infere o risco de acabar com a vida da pessoa. Existe, por trás de cada suposta ilegalidade apontada, uma vida humana. É preciso combater as fraudes sem cometer abusos. É uma atividade muito difícil e complicada.

ConJur — O senhor fez uma representação que resultou no pedido do TCU para que se investigue a denúncia de que os procuradores da "lava jato" usaram aparelhos de monitoramento de ligações telefônicas que depois desapareceram. Outra representação se opunha à criação de uma fundação privada com recursos públicos que acabou barrada. Acredita que as ferramentas para controle de gastos no MP poderiam ser mais eficientes?

Furtado — Sobre a "lava jato", é preciso que se diga que todos devem observar a legalidade. Ponto. Inclusive a "lava jato". Não há dúvida de que a operação prestou grandes serviços ao Brasil. Isso é acima de qualquer questão. Inclusive observei isso na representação e reitero. É uma das mais importantes operações de combate à corrupção ocorridas em toda a história do mundo. Isso é um passaporte para irregularidades? Não.

Não considero. Ao contrário. Sendo a "lava jato" um exemplo de combate à corrupção, deveria se comportar no sentido de comprovar exemplarmente que não existiu o desaparecimento que era ou poderia ser usado para escutas.

A operação deveria ser capaz de comprovar que esse aparelho não existe. Estamos aguardando. Grandes poderes demandam ou deveriam demandar também grandes responsabilidades. Todos devemos responder pelos nossos atos.

ConJur — A OAB é uma autarquia? Deveria ser fiscalizada pelo TCU?

Furtado — A OAB é uma autarquia. Tanto que não paga determinados impostos, por exemplo, como o IPTU e IPVA. Podem inscrever qualquer advogado em dívida ativa, o que caracteriza autarquia. E como qualquer autarquia deve se sujeitar à apreciação de contas perante ao TCU.

ConJur — O balcão único da leniência funciona sem o MPF?

Furtado — Seria essencial que o Ministério Público Federal participasse. A não participação do MPF pode prejudicar a segurança jurídica fundamental à leniência.

ConJur — O colaborador da justiça não deveria ter proteção contra retaliação nos moldes dos whistleblowers?

Furtado — Muita coisa boa poderia ser feita no Brasil copiando o que funciona e o que dá certo em outros países. A figura do whistleblower no sistema norte-americano é um exemplo. Seria bom para o Direito brasileiro. Vale dizer que algumas dessas inovações esbarram na falta de recursos. Às vezes a medida no papel é maravilhosa, mas não pode se tornar efetiva na prática.

Por Rafa Santos, do Consultor Jurídico

Brasil passa dos 116 mil mortos e 3,6 milhões de infectados por covid-19

O Brasil registrou 1.271 mortes e 47.134 casos novos de covid-19 nas últimas 24 horas, segundo o boletim do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) de terça-feira (25/08).

Com isso, o país chegou a 116.580 óbitos e 3.669.995 infecções causadas pelo novo coronavírus desde o início da pandemia.

O Estado com o maior número de óbitos é São Paulo (28.912), seguido pelo Rio de Janeiro (15.560) e Ceará (8.339).

O Conass criou uma plataforma para registrar os dados sobre o novo coronavírus no país após o Ministério da Saúde ter passado a divulgar, no início de julho, os números de forma menos detalhada.

Após a controvérsia causada pela mudança e uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto, a pasta recuou e voltou a divulgar os números completos.

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O Brasil ultrapassou a marca de 100 mil mortes por covid-19 no dia 8 de agosto e continua como o segundo país do mundo com maior número de casos e mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que tem mais de 5,7 milhões de casos e 177 mil mortes pela covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

BBC News Brasil

terça-feira, 25 de agosto de 2020

A pergunta que aborrece o presidente

Se tivesse uma boa explicação para seus negócios esquisitos, Jair Bolsonaro certamente já a teria dado, sem recorrer à selvageria

Não é nada fácil ser moderado quando se é Jair Bolsonaro. Para quem fez carreira política na base da ofensa explícita a adversários e ao decoro, interpretar um personagem discreto e ponderado como o que o presidente incorporou nas últimas semanas deve demandar um esforço quase sobre-humano. Mas a natureza, cedo ou tarde, se manifesta, e o presidente Bolsonaro voltou a ser quem sempre foi, ao dizer a um jornalista, no domingo passado, que estava com “vontade de encher a tua boca com uma porrada”. Tudo porque o repórter lhe havia feito uma pergunta incômoda.

Que pergunta foi essa, afinal, que causou reação tão truculenta de um presidente que, conforme a crônica política de Brasília, havia se metamorfoseado em democrata de uns dias para cá? O repórter, do jornal O Globo, perguntara a Bolsonaro que explicação ele tinha para os depósitos de R$ 89 mil em cheques na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro, feitos por Fabrício Queiroz e pela mulher deste, Marta Aguiar.

Fabrício Queiroz, como se sabe, é o pivô do escândalo da “rachadinha”. Conforme investigações do Ministério Público que abrangem fatos de 2007 a 2018, funcionários do gabinete do hoje senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente e na época deputado estadual no Rio de Janeiro, devolviam parte do salário que recebiam. Quem recolhia o dinheiro era Fabrício Queiroz, também assessor de Flávio Bolsonaro e amigo de décadas da família do presidente.

“Rachadinha” é o nome que a literatura do baixo clero político deu à prática de alguns parlamentares de apropriar-se do salário de servidores comissionados, em geral gente que raramente comparece ao trabalho – os chamados “fantasmas”. Além de sua flagrante imoralidade, tal conduta caracteriza uma série de infrações, tais como peculato, concussão e improbidade administrativa.

No caso específico de Fabrício Queiroz – que está em prisão preventiva por conta do escândalo –, já se sabe que esse prestimoso assessor dos Bolsonaros pagou contas, fez depósitos e movimentou valores consideráveis em favor da família presidencial. Para o Ministério Público, há razões para crer que se trata de esquema de lavagem de dinheiro.

Uma dessas movimentações suspeitas teve como destinatária a hoje primeira-dama Michelle Bolsonaro. Segundo as investigações, Fabrício Queiroz e sua mulher, Marta Aguiar, depositaram na conta de Michelle vários cheques, com valores entre R$ 2 mil e R$ 3 mil, totalizando R$ 89 mil. Foi essa movimentação que atiçou a curiosidade do repórter que irritou Bolsonaro: afinal, por que Michelle Bolsonaro recebeu esses cheques de um suspeito de lavagem de dinheiro?

Sempre que trata do assunto, o presidente se aborrece. Como “explicação”, já disse que se tratava do pagamento de um empréstimo feito por ele a Queiroz, no valor de R$ 40 mil, e que coube à primeira-dama descontar os cheques porque não tinha tempo de ir ao banco. No final do ano passado, quando questionado por um repórter se tinha algum comprovante do tal empréstimo a Queiroz, Bolsonaro respondeu: “Ô rapaz, pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu pro teu pai, tá certo?”.

O presidente Bolsonaro, por menos que goste, deve explicações ao País a respeito desse estranho caso. As que deu até agora foram insuficientes – para não dizer ofensivas à inteligência alheia. Em primeiro lugar, já se sabe que não há qualquer registro bancário do generoso empréstimo que Bolsonaro diz ter feito a Queiroz. E em segundo lugar o valor da “devolução” do suposto empréstimo bateu em quase R$ 90 mil, bem acima dos R$ 40 mil informados pelo presidente.

Bolsonaro escolheu ofender os repórteres que o questionam a respeito desses negócios esquisitos – ainda ontem, voltou a atacar jornalistas, chamando-os de “bundões” (covardes, no dialeto dos valentões). Se tivesse uma boa explicação, o presidente certamente já a teria dado, sem recorrer à selvageria. Como aparentemente não tem, faz o que sabe fazer melhor: parte para a intimidação. É inútil, pois a pergunta incômoda continuará a ser feita, até que haja uma resposta convincente – dada ou pelo presidente ou pela Justiça.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
25 de agosto de 2020 | 03h00

115 mil ‘bundões’?

Bolsonaro: ‘tem de enfrentar o vírus como homem’ e ‘bundão’ tem mais chance de morrer

Tardou, mas não falhou. O Jairzinho Paz e Amor jogou a toalha e, no domingo, emblematicamente à entrada da Catedral de Brasília, foi o que ele nunca deixou e nunca deixará de ser: Jair Messias Bolsonaro, sempre no ataque, beligerante, grosseiro, despejando sua ira nos repórteres que deixam famílias e amores em casa e enfrentam a covid-19 para cobrir as atividades do presidente-candidato até aos domingos. E ele não deixou barato. Ontem, voltou à carga.

Um repórter fez uma pergunta não só válida, mas obrigatória, e Bolsonaro reagiu à la Bolsonaro: “Vontade de encher a tua boca de porrada”. Pior para ele. A pergunta viralizou, replicada em mais de um milhão de posts em português e outras línguas – “Presidente, por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil do Fabrício Queiroz?”. De boca calada, Bolsonaro some das manchetes e sua popularidade sobe. Quando fala, volta às manchetes, choca o País e passa vergonha no mundo.


(Ataque a jornalista cria terceira pior onda de publicações negativas para Bolsonaro, diz consultoria)


Jair Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro ameçou o jornalista durante visita a uma feirinha de artesanato em Brasília Foto: Gabriela Biló/Estadão

Apoiadores registraram o golpe e, na tentativa de se contrapor ao tsunami da internet, editaram o vídeo, sem a pergunta do repórter e deturpando a fala de um feirante. Ele convidava Bolsonaro para visitar “a feirinha na catedral”, mas a legenda diz que é para visitar “a filha na cadeia”. Daí a reação do presidente. Feirante, filha, feira, cadeia... Uma lambança. Mas há quem acredite!

Bolsonaro continuou sem explicar os depósitos e não cogitou pedir desculpas ao jornalista, mas poderia ao menos ficar calado. Até ficaria, não fosse Bolsonaro. E, assim, um evento ontem no Planalto virou um festival de vexames. Começa pelo nome: “Vencendo a covid-19”. Vencendo o quê? Com mais de 115 mil mortos e 3,5 milhões contaminados, o Brasil é o segundo País mais atingido pela pandemia no mundo e virou referência de erros, descaso e falta de coordenação federal. Até o “amigão” Donald Trump já disse isso mais de uma vez.

Segundo: como fazer um evento sobre a pandemia sem dar uma palavra sobre os muitos milhares de mortos? Sem conforto para as famílias e amigos? Sem solidariedade aos que pegaram o vírus, muitos com sequelas graves? A quem o presidente pensa que está enganando ao esconder a realidade? Aliás, ele continua enganando e se enganando quando diz que “sempre foi um atleta das Forças Armadas”. “Sempre”? Como assim? Ele foi do Exército há bem mais de 30 anos e saiu pela porta dos fundos, depois de alucinações com bombas em quartéis.

Numa cerimônia de derrotados para comemorar uma vitória imaginária, não poderia faltar cloroquina. Catados a dedo, compareceram bolsonaristas dispostos a corroborar o constrangedor “Vencendo a covid-19”, badalar um medicamento que não tem comprovação contra esse vírus em lugar nenhum do mundo e dizer amém a qualquer outra barbaridade do presidente.

No triste espetáculo, Bolsonaro se vangloriou do “histórico de atleta” e de ter tido uma forma amena da covid-19, para provocar os jornalistas: “Quando pega num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”. Assim, ele atacou não só os jornalistas, a quem quer “encher de porrada”, mas os 115 mil que morreram e os que pegaram a forma mais grave – os fracotes, “bundões”. Como já ensinou Bolsonaro, “tem de enfrentar o vírus como homem, não como moleque”. Ou seja, cara a cara, sem isolamento, aglomerado, sem máscara, sem álcool em gel. Tudo frescura.

A ameaça de “dar porrada” foi diante da Catedral de Brasília e o título do vídeo deturpado, sem a pergunta do repórter sobre o “Queiroz”, é um versículo da Bíblia: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Nada mais apropriado ao momento que vive o Brasil. A verdade está aí, escancarada, à vista de todos. Pena que milhões se recusam a admiti-la e a se libertar.

Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo
25 de agosto de 2020 | 03h00

Governo revisa conteúdo e reduz cursos para policiais

Número de agentes formados em plataforma do Ministério da Justiça e Segurança Pública cai 80%; pasta fala em ‘adaptação de nova linguagem’

Eleito com discurso de suporte aos policiais e endurecimento da repressão à criminalidade, o governo Jair Bolsonaro reduziu a quantidade de cursos de formação e aperfeiçoamento fornecidos pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, o que levou a uma queda na ordem de 80% na instrução de agentes em todo o País. O motivo alegado foi a necessidade de atualizar e revisar o conteúdo. Os treinamentos, feitos na modalidade de ensino à distância, o EaD, foram criados em 2005, ainda na gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A plataforma do governo oferece três tipos de cursos, todos virtuais e gratuitos. Os de aperfeiçoamento pessoal incluem conteúdos como ética, gestão e direitos humanos. Já os exclusivos para policiais são focados em técnicas relacionadas ao trabalho, como perícia (balística e papiloscopia), inteligência cibernética e investigação de homicídio e estupro. Eles podem ser autoinstrutivos ou acompanhados por tutores, como os da área de inteligência, que devem ser retomados neste ano.

Ao fim do governo Michel Temer, em 2018, a rede de ensino à distância do governo federal tinha 72 cursos disponíveis, que receberam 292 mil matrículas. Ao todo, 204 mil profissionais da segurança concluíram cursos do catálogo. Em 2019, os números caíram para 47 cursos e 44,5 mil matrículas.  Os dados foram obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, em resposta a pedido feito pelo Instituto Sou da Paz.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública é alvo de uma disputa política para que seja desmembrado, uma forma de recriar a pasta dedicada exclusivamente à área de segurança. Aliados do presidente querem emplacar um nome ligado às PMs. Eles alegam, entre outras razões, que o ministro André Mendonça, ex-advogado-geral da União e pastor presbiteriano, tem experiência apenas em assuntos jurídicos e não com gestão de segurança.

O ministro sofre pressão também por causa do dossiê produzido por uma unidade de inteligência da pasta. O relatório, revelado pelo UOL em julho, lista dados pessoais de policiais e acadêmicos autodeclarados “antifascistas” e potencialmente adversários políticos do governo. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que na quinta-feira passada proibiu a pasta de monitorar opositores.

Um dos alvos do relatório, o professor Ricardo Balestreri, especialista em direitos humanos e secretário nacional de Segurança Pública na gestão de Lula, foi um dos idealizadores do sistema de aulas à distância. Ele afirma que os demais poderes devem monitorar o programa de cursos para evitar um risco de formação de “milícias políticas no lugar de polícias”. “Uma coisa muito revolucionária é que todas as disciplinas tinham conteúdo transversal de direitos humanos, porque a ideia era mudar a prática da polícia brasileira no seu dia a dia na rua”, disse Balestreri.

Números

Questionado pelo Estadão, o ministério informou números que apontam para uma retomada neste ano, com 92 mil inscritos e 71 mil aprovados até julho. Atualmente, há 46 títulos disponíveis, além de 14 cursos novos em produção e 18 em revisão, segundo a pasta.

“Ao longo de seis meses a Senasp aprimorou um novo ambiente de estudos, revisando seu catálogo de cursos quanto à atualização de legislação, técnicas e procedimentos. Os cursos foram encaminhados aos setores técnicos para identificação de possíveis impropriedades e a necessidade de adaptação de nova linguagem”, disse o ministério.

A diretora executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, afirmou faltar clareza ao governo sobre como induzir a política de segurança pública no País. “Não acho que seja uma motivação política, de tirar temas, algo ideológico, mas sim uma falta de capacidade de gestão e de escolha do que é prioridade, do que cabe ao ministério fazer em política de segurança”, disse Carolina. “Para muitos Estados sem recursos, o sistema acaba sendo uma fonte de repertório para os policiais e parece que ficou para segundo plano. A plataforma  podia ter problemas, mas estava consolidada”, completou ela.

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo
25 de agosto de 2020 | 05h00

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Na mira de Guedes, Farmácia Popular atende mais de 20 milhões por ano

Programa deve ser extinto e seu orçamento destinado ao Renda Brasil, substituto do Bolsa Família; iniciativa oferece 35 medicamentos com descontos, sendo 20 deles gratuitos

O Farmácia Popular, que a equipe econômica do governo cogita extinguir, atendeu 21,3 milhões de pacientes em 2019. O programa oferece medicamentos gratuitos ou com descontos de até 90%. A entrega é feita por meio de farmácias credenciadas pelo governo federal, que recebem reembolso dos produtos comercializados.

Como revelou o Estadão, para alcançar um benefício médio de R$ 247 mensais ao Renda Brasil, programa que deve substituir o Bolsa Família, o ministro da Economia, Paulo Guedes, avalia extinguir o Farmácia Popular, considerado ineficiente na área econômica por contemplar todas as pessoas, independentemente da renda.

Para Renda Brasil ser de no mínimo R$ 247, Guedes quer acabar com Farmácia Popular e abono salarial

Farmácia Popular

Ministério da Economia acredita que programa seja ineficiente, por contemplar todas as pessoas, independentemente da renda. Foto: Paulo Liebert/Estadão
Criado em 2004, o Farmácia tem orçamento de R$ 2,5 bilhões para 2020, sendo que R$ 1,5 bilhão já foi pago. Segundo dados de fevereiro do Plano Nacional de Saúde, documento que orienta ações do ministério até 2023, estão credenciadas 31 mil farmácias, em 3.492 municípios (79% do total), para entrega dos medicamentos.

Neste plano, o ministério aponta como meta expandir a rede para 90% dos municípios com menos de 40 mil habitantes – hoje o Farmácia Popular alcança 75%. “Evidências demonstraram que o programa reduziu as internações hospitalares e mortalidade em relação à hipertensão e diabetes”, afirma o ministério neste documento.

As farmácias credenciadas oferecem 35 medicamentos, sendo 20 gratuitos. Os produtos tratam hipertensão, diabetes, asma, doença de Parkinson, glaucoma, entre outras doenças. Os descontos também se aplicam a contraceptivos e fraldas geriátricas.

Para o presidente-executivo da Associação Brasileira das Redes de Farmácias e Drogaria (Abrafarma), Sérgio Mena, o programa pode passar por ajustes, como distribuir medicamentos apenas a pacientes que tiveram consultas no SUS, mas não deve ser eliminado. "Quando não se cuida do diabetes e hipertensão, a conta fica maior. Essas duas doenças, por exemplo, dão origem a uma série de agravos e comorbidades que custam muito mais caro ao Brasil."

A Abrafarma calcula aumento de 17% nas vendas de medicamentos dentro do Farmácia Popular em 2020. "Isso é sinal de pobreza, de que tem mais gente precisando buscar o remédio pelo programa", afirma. Segundo Mena, as vendas subsidiadas representam menos de 1,5% do faturamento das associadas da Abrafarma.

A presidente da ProGenéricos, Telma Salles, diz que o Farmácia é "essencial" para reduzir gastos da União com a saúde, pois controla especialmente doenças crônicas.

Para o presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), Nelson Mussolini, acabar com o programa é "um tiro no pé". "O Ministério da saúde tem dois programas que são muito exitosos. Um é o programa de tratamento e prevenção do HIV/aids, reconhecido mundialmente. O outro é o Farmácia Popular", disse.

Conselheira nacional de saúde e representante da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar), Debora Melecchi afirma que o fim do programa pode trazer despesa à população mais pobre, já atingida pela pandemia da covid-19. "A saúde tem de ser vista como um investimento, não como um custo ao governo", afirmou.

Mateus Vargas, O Estado de S.Paulo
24 de agosto de 2020 | 18h51

O Brasil registrou 565 mortes e 17.078 casos novos de covid-19 nas últimas 24 horas

Com isso, o país chegou a 115.309 óbitos e 3.622.861 infecções causadas pelo novo coronavírus desde o início da pandemia.

O Estado com o maior número de óbitos é São Paulo (28.505), seguido pelo Rio de Janeiro (15.392) e Ceará (8.292).

Após a controvérsia causada pela mudança e uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto, a pasta recuou e voltou a divulgar os números completos.

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O Brasil ultrapassou a marca de 100 mil mortes por covid-19 no dia 8 de agosto e continua como o segundo país do mundo com maior número de casos e mortes na pandemia do novo coronavírus, depois apenas dos Estados Unidos, que tem mais de 5,7 milhões de casos e 177 mil mortes pela covid-19, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins.

Mudanças e atraso na divulgação de dados

O painel covid-19, do governo, que costumava trazer diversos dados e gráficos sobre a doença, ficou fora do ar por algumas horas entre os dias 5 e 6 de junho. Quando voltou, trazia apenas os dados das últimas 24 horas e não fazia referência ao total de mortes.

Diversos dados detalhados deixaram de ser exibidos.

Três dias antes, o horário de divulgação do material havia passado do início da noite para as 22h, inicialmente por "problemas técnicos", de acordo com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde, e, dois dias depois, porque os dados informados pelas secretarias estaduais de saúde precisariam "de checagem junto aos gestores locais".

Perguntado na ocasião sobre alterações no horário de divulgação, Bolsonaro brincou com o horário do Jornal Nacional, da TV Globo, normalmente exibido por volta de 20h30.

"Acabou matéria no Jornal Nacional?", disse, rindo.

"Mas é para pegar o dado mais consolidado, e tem que divulgar os mortos no dia. Por exemplo, ontem, praticamente dois terços dos mortos eram de dias anteriores, os mais variados possíveis. Tem que divulgar o do dia. O resto consolida para trás. Se quiser fazer um programa do Fantástico todinho sobre mortos nas últimas semanas, tudo bem."

BBC News Brasil

Bolsonaro ameaça repórter: por que milhares de pessoas estão perguntando sobre depósitos de Queiroz para Michelle

De acordo com reportagem da revista Crusoé, quebra de sigilo mostrou que Queiroz depositou 21 cheques na conta de Michelle entre 2011 e 2016 somando R$ 72 mil; a mesma conta, segundo outros veículos de imprensa, recebeu outros R$ 17 mil de mulher de Queiroz

"Presidente, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?"

As dúvidas sobre cheques depositados na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, pairam desde 2018, mas as suspeitas atingiram outro patamar depois que o presidente, Jair Bolsonaro, ameaçou agredir um repórter do jornal O Globo que lhe fez a pergunta acima.

A resposta do presidente no domingo (23/8), “vontade de encher tua boca com uma porrada, tá? Seu safado”, desencadeou críticas e notas de repúdio de políticos e entidades jornalísticas, mas também fez a pergunta viralizar nas redes sociais.

No Twitter, ela foi repetida mais de 1 milhão de vezes em menos de 24 horas e chegou a ser o assunto mais discutido da plataforma no Brasil. Segundo levantamento do professor Fabio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a pergunta foi replicada mil vezes a cada 40 segundos. Os questionamentos se espalharam por outras plataformas, mas não há estimativas sobre o volume das mensagens nelas.

Três perguntas sobre os depósitos de Fabrício Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro
Nomes influentes da rede social replicaram o questionamento. A exemplo, o músico Caetano Veloso, a atriz Bruna Marquezine, a cartunista Laerte, o apresentador Danilo Gentili, a cantora Anitta, o ator Bruno Gagliasso e os influenciadores Felipe Neto, Hugo Gloss e Felipe Castanhari. Esses nove somam mais de 65 milhões de seguidores no Twitter.

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Pule Twitter post de @LaerteCoutinho1

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— Laerte Coutinho (@LaerteCoutinho1) 23 de agosto de 2020
Final de Twitter post de @LaerteCoutinho1
Em nota, o jornal O Globo afirmou que “tal intimidação mostra que Jair Bolsonaro desconsidera o dever de qualquer servidor público, não importa o cargo, de prestar contas à população”.

Também em nota, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) disse que "o discurso hostil e intimidatório de Bolsonaro contra a imprensa vem incentivando sua militância a assediar jornalistas nas redes sociais nos últimos meses, inclusive com ameaças de morte e agressões aos profissionais e a seus familiares".

Bolsonaro foi questionado durante a mesma entrevista se sua declaração era uma ameaça à imprensa, mas ele não respondeu. As dúvidas sobre os depósitos na conta de Michelle Bolsonaro também continuam sem resposta.

Pule Twitter post de @BruMarquezine

Presidente @jairbolsonaro, por que sua esposa Michelle recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?

— Bruna Marquezine (@BruMarquezine) 24 de agosto de 2020
Final de Twitter post de @BruMarquezine

O escândalo com a primeira-dama da República tem dois momentos. O primeiro, no fim de 2018, quando o caso veio à tona. O segundo no início de agosto, quando mais cheques foram descobertos por investigadores e apontaram contradições na explicação do presidente.

No fim de 2018, a primeira-dama foi arrastada para o caso quando foi deflagrada a investigação contra Fabrício Queiroz, amigo de Bolsonaro há décadas e ex-assessor de Flávio Bolsonaro. Ele e o filho do presidente são suspeitos de integrarem um suposto esquema de lavagem e desvio de dinheiro do gabinete parlamentar de Flávio. Ambos negam.

Pule Twitter post de @Anitta

#repost @342artes
Presidente @jairbolsonaro, por que sua esposa Michelle recebeu R$89 mil de Fabrício Queiroz?#342artes #Porradanãonoscala pic.twitter.com/W2nl1W1oDQ

— Anitta (@Anitta) 24 de agosto de 2020
Final de Twitter post de @Anitta

À época, um relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) apontou uma série de movimentações bancárias suspeitas de Queiroz entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017, somando R$ 1,2 milhão. Umas das transações era o depósito de R$ 24 mil na conta da esposa de Bolsonaro.

Questionado em dezembro de 2018, o presidente disse que se tratava do pagamento por uma dívida que Queiroz tinha com ele. Afirmou também que o dinheiro foi depositado para Michelle porque ele não tem "tempo de sair".

"Emprestei dinheiro para ele (Queiroz) em outras oportunidades. Nessa última agora, ele estava com um problema financeiro e uma dívida que ele tinha comigo se acumulou. Não foram R$ 24 mil, foram R$ 40 mil. Se o Coaf quiser retroagir um pouquinho mais, vai chegar nos R$ 40 mil."

Há duas contradições na explicação de Bolsonaro. A primeira é que a quebra de sigilo mostrou que não há depósitos do presidente na conta de Queiroz que comprovariam o empréstimo alegado por Bolsonaro, segundo os veículos da imprensa que tiveram acesso ao documento.

A segunda, que envolve o valor das transações, surgiu no início de agosto de 2020, quando veículos jornalísticos publicaram informações sobre a quebra de sigilo fiscal de Queiroz e da mulher, Marcia Aguiar.

Pule Twitter post de @DaniloGentili

Por favor, parem de perguntar pro @jairbolsonaro porque a esposa dele Michelle recebeu 89 mil do Queiróz senão o PT volta.

— Danilo Gentili (@DaniloGentili) 24 de agosto de 2020
Final de Twitter post de @DaniloGentili

Segundo reportagem da revista Crusoé, a quebra de sigilo mostrou que Queiroz depositou 21 cheques na conta de Michelle entre 2011 e 2016, somando R$ 72 mil. E o jornal Folha de S.Paulo e o portal G1 divulgaram, ainda, que a abertura das informações bancárias de Marcia Aguiar revelou mais seis cheques depositados por ela para a primeira-dama entre janeiro e junho de 2011, no valor total de R$ 17 mil.

Assim, o montante agora revelado, de R$ 89 mil, é mais que o dobro dos R$ 40 mil citados por Bolsonaro no fim de 2018.

A primeira-dama não possui imunidade constitucional e pode se tornar alvo da investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro. Como Michelle não era funcionária do gabinete de Flávio, ela não foi incluída inicialmente como investigada e não teve seu sigilo fiscal quebrado até o momento.

Não estão claros ainda quais serão os próximos passos da investigação que envolveu a mulher, um filho, uma assessora e um casal de amigos do presidente da República, que não pode ser responsabilizado por "atos estranhos ao exercício de suas funções".

BBC News Brasil

Bolsonaro, candidato a ditador

Por Merval Pereira

Bolsonaro não tem a menor capacidade de ser presidente da República. É autoritário, candidato a ditador. Não aguenta relações entre instituições e entre opinião pública, acha que não deve satisfação a ninguém, nem que tem explicar casos como o do depósito de R$ 89 mil na conta de sua mulher Michele, por Fabricio Queiroz.

A pergunta sobre essa questão  é absolutamente importante para sabermos o que está acontecendo no Brasil e naquela família, envolvida em falcatruas e corrupção de baixo calão, baixo nível. É preciso explicar o que está acontecendo e por que esse presidente se acha em condições de xingar um repórter em público e porque acha que pode dar esse tipo de resposta a uma pergunta totalmente cabível. 

É um fato denunciado pela revista Crusoé e depois confirmado com aditivos pela Folha de S. Paulo que D. Michele recebeu R$ 89 mil do Queiroz. E tudo indica que é fruto da rachadinha, da qual ele e os filhos viveram durante 30 anos. Absurdo ter que aceitar um presidente desse nível cultural e de educação baixíssimo.

A maior prova de que o país está decadente é Bolsonaro ser presidente, numa situação imprevisível, eleito por uma série de circunstâncias políticas, não por ele. Agora ele se fortalece com ações populistas; vai aumentar o Bolsa Família, mas o país não tem dinheiro, está completamente quebrado. Brasil é um país decadente, à deriva, com um governo completamente fracativo .

Ontem, o verdadeiro Bolsonaro voltou à ação, com a grosseria e a selvageria que são características desse nosso presidente. O “paz e amor” que ficou quieto durante alguns meses, com medo da prisão do Queiroz, era fake.

Publicado originalmente no blog do Merval no saite de O Globo, às 14,46 hs de hoje.

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato

Abro a coluna com dois desembargadores aposentados.

O nome do médico

Dois desembargadores aposentados, do alto de uma juventude acumulada durante oito décadas e meia, encontram-se no aniversário do neto de um deles. Os desembargadores Amaro Quintal da Rocha e Antônio Vidal de Queiroz, como sói acontecer com amigos que se conheceram no início da idade da razão, foram direto ao assunto que mais os motivava:

– Até que enfim, encontrei o médico que curou a minha amnésia, disse Amaro.

– Como é mesmo o nome dele? Perguntou Vidal.

– É, é, é, deixe-me ver, é... é... Como é mesmo o nome dele? Espere aí... é, é... é.

O nome, escondido num cantinho do cérebro, relutava em aparecer. Começou a se perturbar. Mas não deixou a onda abatê-lo.

– É, é, como se chama... é... é... como se chama mesmo aquela coisa vermelha, amarela, branca, que nasce em um galho cheio de espinhos, aquele assim? (e foi mostrando o tamanho do galho e o formato da coisa).

Vidal matou a charada:

– Rosa, o nome é Rosa.

Amaro, radiante, grita para a mulher que estava sentada logo adiante:

– Rosa, oh, Rosa, como é mesmo o nome daquele médico que curou a minha amnésia?

Bolsonaro e a base do lulismo

Só mesmo no Brasil ocorrem coisas desse tipo: num curto espaço de tempo, o território do lulopetismo por excelência, o Nordeste, 27% da população do país, é invadido pelo novo governante que passa a ocupar o trono do pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva. Bolsonaro tem sido mais festejado do que Lula dos velhos tempos, quando era um Deus, o Pai dos Pobres, o salvador da Pátria para os nordestinos. É ovacionado aos gritos de mito, mito, mito. Põe chapéu de couro e cai nos braços da massa que espera por ele nos aeroportos. A ponto de um atento olheiro da cena política regional confessar, perplexo, a este consultor: o cenário é do frei Damião do passado. Bolsonaro vai ao Nordeste pela 4ª vez em 19 dias.

BO+BA+CO+CA

A equação a que tenho me referido todo tempo está presente: Bolso, Barriga, Coração, Cabeça. O auxílio emergencial na paisagem da pandemia cai dos céus como maná no deserto. E como cai. Permite que famílias carentes abasteçam a velha geladeira desprovida de alimentos. Ademais, o lulismo tem perdido fôlego na região desde os turbulentos tempos de Dilma e escândalos que cercaram o PT. Lula, por seu lado, não abriu o partido para novas lideranças. Os governadores petistas da região até se esforçam para fazer um bom governo, mas a crise econômica, ao lado da crise política e da crise sanitária, solapam as estruturas estaduais. Governar nesses nebulosos tempos tem sido um exercício de arte, técnica e sorte.

2022 já começou

Outro interlocutor da região confessa a este analista: "quando você pergunta a um eleitor em quem ele vai votar este ano, comumente ouve a resposta - não sei ainda, só sei que em 2022 votarei em Bolsonaro, no mito". Donde emerge a dúvida: haverá dinheiro para sustentar o auxílio emergencial até 2022? Não se sabe. Mas é notória a satisfação de Jair Bolsonaro com a melhoria de sua imagem e a de seu governo, feitas por pesquisas de opinião pública, sendo as duas últimas feitas pelo Datafolha e XP-Ipespe. Subiu a avaliação positiva – ótimo/bom – caiu a negativa. Em torno de 8% a 10%. Sob essa sombra confortável, o presidente vai exigir de Paulo Guedes que arrume dinheiro para estender o colchão social.

E se Guedes disser não?

O pragmatismo chegou ao Palácio do Planalto. Se a reeleição vai depender do colchão social, é evidente que o presidente e seu entorno forçarão a barra para garantir a grana. Os desenvolvimentistas, liderados pelo general Braga Neto (Casa Civil) e por Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), os dois ministros mais interessados num forte programa de investimentos e obras, estariam soltando os fios do programa Renda Brasil, que substituirá o Bolsa Família. A campanha chega às margens dos Estados. No Norte e Centro-Oeste, a tendência aponta para a melhoria dos índices do governo. Apenas o Sudeste, que tem os maiores contingentes eleitorais do país, tende a indicar retração nos números. O eleitor de classe média mais crítico mora na região. E sofre com o empobrecimento puxado pela pandemia, a par das críticas que faz à gestão da crise pelo governo. Uma de Paulo Guedes: ler é passatempo de rico. Por isso, quer taxar livros. Paulo Guedes não mostra ser um scholar de Chicago.

Debandada

Por isso mesmo, Guedes estará entre a cruz e a caldeirinha: arrume o dinheiro ou, se não quiser, caia fora. A essa altura, a mosca azul da reeleição é o bicho que mais atrai a atenção do governante. Secretários e assessores, ante a escalada da gastança que se esboça, saem em debandada do governo. Quatro já saíram. Paulo Guedes é um ministro que parece insatisfeito. Achava que ia semear a roça do liberalismo com a semente das privatizações. Não tem conseguido. Chegou a sonhar com mais de um trilhão de arrecadação. Vê esse sonho cada vez mais distante. Salim Matar, empresário e rico, pediu as cartas com muito desabafo sobre a lerdeza do Estado. E o próprio mercado já começa a perceber que Guedes não é irremovível.

Influi ou não influi?

O caso Flávio Bolsonaro influirá ou não na avaliação do seu pai, o presidente? Pelo jeito, o público tende a separar as coisas. A retomada da investigação pelo MP do RJ não terá forte impacto sobre o mandatário-mor.

Os impactos

Mas as coisas para Bolsonaro e desenvolvimentistas não estarão equacionadas apenas com a vitamina das intenções eleitorais. O Brasil real é o dos milhões de contaminados, dos milhares de mortos – chegaremos a quantos, 150 mil, 200 mil? – do empobrecimento geral da sociedade, da precária estrutura dos serviços públicos, da recessão econômica e, claro, do percurso a ser seguido pela economia mundial. O Brasil já não depende apenas de suas condições. Dependerá de outros. Os investimentos estão em estado de expectativa, de observação. Fala-se em bolha das bolsas. Os maiores investidores, como Warren Buffett, desviam suas compras para o ouro. As interrogações se multiplicam.

E a vacina?

Pois é. Mais de 150 vacinas estão sendo o objeto de testes no mundo. As mais avançadas – em número de 6 – entraram na fase 3 de testes com humanos. Duas vacinas da China, uma de Oxford, e a da Rússia, que já foi até registrada, sem ainda comprovação de eficácia, estão na frente da batalha científica. O Brasil está entre os países que testam duas vacinas, uma da China, a outra, de Oxford. São Paulo está testando. O Paraná fez acordo com a Rússia. Mas é pouco provável que tenhamos alguma delas ainda este ano. Enquanto isso, uma segunda dá sinais de vida em países europeus (Itália, Alemanha) e na própria China.

Uma leitura sobre as oposições

As oposições estão fragmentadas. Apenas em seis Estados haverá eleição com coligação majoritária entre PT e PSOL. A leitura que se faz é a de que cada partido oposicionista, face às crises pandêmica, econômica e política, quer se aventurar e apostar em seus protagonistas. Daí a razão de se ver um imenso rolo compressor formado por partidos governistas do Centrão e outros que começam a ostentar o lema de independência. Todos acreditam que terão boa oportunidade em novembro. Em alguns centros mais pesados, a polarização dará o tom.

Perfis

Até o momento, não surgiram nomes capazes de galvanizar a atenção das massas, a não ser o nome do próprio presidente. O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro perde força. E entra no palco da polêmica como juiz que julgou com parcialidade figuras implicadas na Lava Jato, como Lula. O ex-ministro da Saúde, Luiz Mandetta, entra melhor como vice numa chapa. O governador Eduardo Leite, do RS, a depender de sua performance, poderá se habilitar. O governador Doria, de SP, está com o foco em 2022. Vejamos.

João Doria

João Doria é um atento governante. Empresário bem-sucedido na área empresarial, decidiu ingressar na área política, da qual nunca esteve afastado por ter convivido com o pai, que foi deputado Federal e cassado pela ditadura. É uma pessoa disciplinada, observador, aplicado e com um vício: o trabalho. Trabalha umas 18 horas por dia. Não bebe e não fuma. Aprendeu, desde cedo, a se articular com os universos político, empresarial e jornalístico. João tem uma feição publicitária e um banda jornalística. Sabe expressar sem cacoetes e sabe vender bem os peixes de sua rede. Dominou o PSDB. Mas o fato de ter deixado na lateral seu ex-mentor, Geraldo Alckmin, pesa na sua imagem. Um ingrato, dizem. Sobrou a impressão de que pensa assim: primeiro, eu; segundo, eu; terceiro, eu. E cola sua imagem ao creme de la creme da elite jovem empresarial. Virou, por excelência, o alvo de Bolsonaro. A depender do amanhã da economia, pode se consolidar como o principal opositor do presidente. Criou arestas entre os tucanos. E administra bem a pandemia em São Paulo.

Sara Winter

Essa moça que adotou o nome de Sara Winter é mesmo desastrada. Massificou o nome da menor, 10 anos, grávida, que fez um aborto em Recife, autorizado pela Justiça. O que essa Winter quer? Chuva de visibilidade em torno de seu nome? Deve passar o fim do inverno trancafiada. Pelo que se lê.

Fecho a coluna com um senhor rico e bom de Petrópolis.

Sou solidário e não pago

Antônio Carlos Portela era um senhor rico e bom. Dava aval a todo o mundo, em Petrópolis. Gostava de política. Gostava demais. Quando chegava a campanha eleitoral, sua maneira de ajudar os amigos era avalizar empréstimos para as despesas de campanha. Certa eleição, avalizou um título para um candidato a deputado, que perdeu feio e ficou em dificuldades de pagar. O gerente do banco, sabendo que não receberia do devedor, foi ao avalista:

– Senhor Portela, o título está vencido. Preciso que o senhor pague. Como avalista, o senhor é solidário.

– Sou, sim. Sou muito amigo dele e estou inteiramente solidário com ele. Se ele não pagou, é porque tem seus motivos. Porque estou solidário, não pago também.

Gaudêncio Torquato, Professor Titular na USP, é cientista político e consultor de marketing político.

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Livro Porandubas Políticas

A partir das colunas recheadas de humor para uma obra consagrada com a experiência do jornalista Gaudêncio Torquato.

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Sistema penal mistificado

O indiciamento é uma cortina de fumaça que se lança para cegar e iludir a sociedade. Assim pensam e sustentam Antonio Cláudio Mariz de Oliveira e Fábio Tofic Simantob, advogados criminalistas de grande respeito, em artigo n'O Estado de São Paulo, edição de hoje.

O julgamento penal não é apenas aquele ritual que se desenrola entre quatro paredes, em salas ornamentadas e com a participação de tribunos paramentados. Na sociedade do espetáculo, o julgamento penal se dá antes de tudo na mídia. Nesse julgamento, a condenação é a jato, não obedece a regras nem procedimentos e não revela nenhuma preocupação com a verdade. Interessa-se exclusivamente em transformar o crime em espetáculo. A mídia poderia exercer um papel pedagógico em relação ao crime, que é um fenômeno humano e social. As causas, as circunstâncias, as influências do meio e da própria vítima, enfim uma série de aspectos poderiam ser abordados, como uma tentativa até de ser reduzida a própria criminalidade.

A mídia tem importante papel de fiscalizar os abusos do poder público. Parece, no entanto, que quando se cuida de fiscalizar os abusos praticados nos julgamentos penais a mídia enfrenta um dilema. Os abusos e abusadores são muitas vezes as fontes das grandes manchetes.

Esquece-se muitas vezes que o cometimento de um crime dá ao Estado o direito de punir, mas para o acusado surge uma série de garantias oriundas de princípios constitucionais e processuais para a preservação de sua dignidade, para garantir o exercício da ampla defesa e para que, se ele for condenado, lhe seja aplicada uma pena justa.

A linguagem jurídica sofre na mídia um processo de pasteurização. Investigado, acusado e condenado viram a mesma coisa, embora retratem categorias jurídicas completamente diferentes. Basta uma manchete para que uma empresa, o governo, um cidadão sejam imediatamente condenados pela opinião pública.

Para o leitor leigo, a sucessão de notícias com expressões como “PF investiga”, “MP denuncia” costuma levar à falsa impressão de que os fatos já foram completamente apurados e julgados, quando, na verdade, o processo mal começou, nenhuma defesa ainda foi apresentada. E quando há prisão, então? Bom, se foi preso é porque é culpado. O efeito danoso que isso traz para a justiça é enorme. Quando o julgamento midiático sai tão à frente do julgamento penal, este acaba ficando refém do veredicto que os holofotes precipitaram. E, note-se, esse julgamento midiático aplica uma pena que é cruel e perpétua. Crueldade e perpetuidade proibidas pela Constituição. Cruel pelo sofrimento causado ao suspeito e a seus familiares em razão da exposição de sua imagem e perpétua porque a mácula o acompanhará pelo resto de seus dias.

É importante também ter presente que, em face da cultura punitiva incentivada pelo próprio Poder Judiciário e amplamente divulgada e estimulada pela imprensa, a sociedade criou uma única expectativa diante de um procedimento penal, pela culpa e pela condenação, como se não existissem as alternativas da inocência e da absolvição.

Qualquer decisão que não seja pela condenação é vista com desconfiança, como se a Justiça, na melhor das hipóteses, tivesse sido leniente, a defesa houvesse praticado chicana e o Ministério Público, quando requer absolvição, negligenciado ou prevaricado. Afinal, o sujeito estava condenado (pelo menos é o que se achava), pois foi até preso, como pode agora ter sido absolvido?

O dano que essa publicidade opressiva causa ao regular andamento da justiça e o grau de sofrimento impingido ao acusado são tão expressivos que em alguns países ela virou crime, como na Inglaterra e na França. Aqui, no Brasil, a Lei de Abuso de Autoridade, recentemente aprovada, veio timidamente cuidar do problema ao proibir que os meios de comunicação sejam usados para promover acusações criminais com o pernicioso combustível do clamor público, ou da vox populi, como chamavam os romanos.

O punitivismo que campeia conseguiu criar falsas ideias, noções deturpadas, conceitos adulterados, referentes à chamada persecução penal, que iludem a sociedade e trazem a falsa impressão de se estar combatendo o crime, quando não se está. Estaria o crime sendo atacado caso as suas causas estivessem disso debeladas. Nessa hipótese, sim.

Como exemplo dessa cortina de fumaça que se lança para cegar e iludir a sociedade temos, entre outros, um instituto propositadamente desfigurado, conceitualmente deturpado e enganosamente explorado pela mídia: o indiciamento.

Provavelmente, o leitor nem saiba o que seja indiciamento. A qualquer leigo que pela primeira vez se depara com o drama de responder a um inquérito, e fica sabendo que será indiciado, logo o acometem as mais sombrias previsões. E tem razão, pois logo surgirá uma manchete: “Fulano é indiciado”. Pronto. Não há salvação para ele. Acabou. A Justiça o condenou. A sociedade passa a vê-lo de outra forma.

Mas, não. O indiciamento é um dos institutos mais inúteis da lei brasileira. Sua inocuidade é absoluta. Trata-se de um penduricalho que serve como estigma e nada mais. É mero ato administrativo praticado pelo delegado para registro policial, que mercê da exploração midiática se tornou sinônimo de condenação e de execração pública.

Como o indiciamento, outros mitos precisam ser desfeitos em nome de uma compreensão realista e honesta do sistema penal, pois ele trata de um fenômeno humano, portanto, nosso, que é o crime.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Opositor russo Alexei Navalny é hospitalizado por envenenamento, diz porta-voz

Navalny, de 44 anos, passou mal durante voo da Sibéria para Moscou e está em tratamento intensivo

O líder opositor russo Alexei Navalny, crítico mais proeminente do presidente Vladimir Putin, está em coma em uma unidade de terapia intensiva na Sibéria após ter sido supostamente envenenado, disse sua porta-voz.

Ele passou mal após tomar um chá no aeroporto de Tomsk, na Sibéria, antes de viajar para Moscou, segundo sua representante, Kira Yamysh.

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Alexei Navalny foi preso duas vezes em 2018 por organizar protestos contra o governo de Vladimir Putin. Foto: Shamil Zhumatov/REUTERS

Já com a aeronave no ar, Nalvany começou a suar frio e perdeu a consciência no banheiro. O avião fez um pouso de emergência em Omsk e ele foi levado ao hospital. “Nós suspeitamos que Alexei foi envenenado com algo misturado no seu chá”, escreveu Yamysh em seu Twitter. “Essa foi a única coisa que ele bebeu nesta manhã.”

O hospital confirmou que o advogado e ativista anticorrupção está em coma e que respira com a ajuda de aparelhos. De acordo com os médicos, seu estado é grave, mas estável, e o suposto envenenamento é apenas "uma das teorias sob investigação".

Segundo a agência de notícias Interfax, exames iniciais indicam que havia em seu corpo sinais de um “agente psicodisléptico não identificado”. O canal de mensagens Baza, que atua no Telegram, noticiou que ele teria sido envenenado com GHB, uma das drogas habitualmente usadas em golpes conhecidos como “boa noite, Cinderela”. O jornal britânico The Guardian divulgou um vídeo de Navalny sendo retirado do avião após ser supostamente envenenado.

A médica de Navalny, Anastasia Vasilieva, disse à Deutsche Welle que a equipe médica local se recusa a falar com ela e que, dada a gravidade da situação, transferi-lo para o exterior neste momento não é uma opção viável.

“Eu estou indo para Omsk agora para insistir que me deixem examiná-lo. Nós decidiremos se ele precisará ser transferido para outro hospital. Precisamos salvá-lo”, disse Vasilieva.

Navalny, o principal nome da oposição a Putin

Navalny é o principal rosto do movimento de oposição ao Kremlin e esta não é a primeira vez que recebe ameaças. No ano passado, ele afirma ter sido envenenado com uma substância que lhe causou um grave reação alérgica durante uma de suas diversas passagens pela prisão. Em 2017, foi atacado por um homem desconhecido com um líquido verde, perdendo 80% da visão de um olho e sofrendo queimaduras químicas.

Ele é fundador do Fundo Anticorrupção (FBK), entidade que se tornou conhecida nos últimos anos por descobrir e publicar nas redes sociais escândalos de corrupção das elites políticas e empresariais russas.

Nos últimos anos, o grupo conseguiu construir uma rede local grande pelo país. O FBK já foi considerado culpado de violar uma lei de "agente externo" por aceitar financiamento estrangeiro e Navalny, condenado por corrupção.

Seus apoiadores, no entanto, afirmam que ele é vítima de perseguição política pelo Kremlin. O advogado já foi barrado de participar de diversas eleições e, frequentemente, é detido nas manifestações antigoverno que muitas vezes lidera.

Envenenamento no chá de Navalny

A polícia de Omsk disse que está investigando um possível envenenamento, mas segundo a agência de notícias estatal Tass, esta hipótese não é considerada. De acordo com uma fonte da agência, não se exclui que Navalny tenha “bebido ou tomado algo por conta própria”.

A companhia aérea que o transportava, a S7, no entanto, disse que ele não bebeu ou comeu nada enquanto estava no ar. Segundo o relato que um passageiro, Pavel Lebedev, postou em suas redes sociais, Nalvany gritava de dor pouco antes de perder a consciência.

Opositores envenenados

O suposto envenenamento de opositores do  regime de Putin não é algo raro na Rússia. Em 2006, Alexander Litvinenko, ex-agente da KGB e crítico de Putin, morreu em Londres após beber chá envenenado com polônio-210.

Oito anos depois, Sergei Skripal, um russo que trabalhava como agente duplo para as Inteligências russa e britânica, foi envenenado com um agente nervoso em Salisbury, no Reino Unido.

Em 2018, Petr Verzilov, editor do site independente Mediazona, passou um mês na UTI após uma substância desconhecida lhe custar a fala e parte da visão. O Kremlin nega qualquer envolvimento com os casos, chamando-os de "provocações anti-Rússia". /AFP e Reuters

Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, edição de 20.08.2020

Na convenção democrata, Obama denuncia Trump como uma ameaça à democracia

Ex-presidente apelou à responsabilidade individual de cada americano e disse que ninguém conseguirá consertar o país sozinho

A noite mais esperada da convenção democrata foi marcada pela dura crítica do ex-presidente Barack Obama ao seu sucessor, Donald Trump. Em um dos discursos mais contundentes contra o republicano desde que deixou a Casa Branca, Obama disse que Trump nunca "sentiu o peso do cargo" e que não teve "nenhum interesse" em tratar a presidência como algo que não fosse um reality show para ganhar atenção.

Obama repetiu uma ideia apresentada no discurso de sua mulher, Michelle: a de que Trump não consegue ser melhor. A ex-primeira-dama disse que o republicano não estava à altura do momento. "É o que é", disse. Na noite desta quarta-feira, Obama retomou o mantra com outras palavras. "Donald Trump não cresceu no cargo porque ele não consegue", afirmou o ex-presidente.

A consequência, segundo o ex-presidente, são "170 mil americanos mortos. Milhões de empregos perdidos. Nossos piores impulsos  soltos, nossa orgulhosa reputação ao redor do mundo diminuída drasticamente e nossa democracia e nossas instituições ameaçadas como nunca antes".

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O ex-presidente Barack Obama discursa durante terceira noite da convenção nacional Foto: DNCC via AFP

Obama apelou à responsabilidade individual de cada americano e disse que ninguém conseguirá consertar o país sozinho. "Eu estou pedindo a vocês que acreditem em sua capacidade, que abracem sua responsabilidade como cidadãos, para garantir que os princípios básicos da nossa democracia perdurem. Porque é isso que está em jogo agora: nossa democracia", disse o ex-presidente.

Em um pedido para que os eleitores se mobilizem a votar, ele disse que o presidente conta com o cinismo dos eleitores."Este presidente e aqueles que estão no poder contam com seu cinismo. Eles sabem que não podem te ganhar com as políticas deles. Então querem tornar o mais difícil possível para você votar e convencê-lo de que seu voto não importa. É assim que eles ganham. (...) É assim que uma democracia definha, até que não haja mais democracia", disse Obama. "Não podemos deixar isso acontecer. Não os deixe tirar seu poder. Não os deixe tirar sua democracia", disse Obama, que estimulou que eleitores façam um plano para votar.

O discurso de Obama nesta noite foi um tom acima do que o que costuma adotar. Ele tem feito poucas e pontuais aparições desde 2017. Michelle já relatou que o silêncio do marido em alguns momentos políticos a incomoda.

"Eu nunca esperei que meu sucessor fosse abraçar minha visão ou continuar minhas políticas. Eu esperava, pelo bem do nosso país, que Donald Trump pudesse mostrar algum interesse em levar o trabalho a sério, que ele sentisse o peso do cargo e descobrisse alguma reverência pela democracia que fora colocada sob seus cuidados. Mas ele nunca fez", disse Obama.

"Ele não mostrou interesse em trabalhar. Nenhum interesse em encontrar terreno comum. Nenhum interesse em usar o incrível poder do seu cargo para ajudar alguém além de si mesmo e de seus amigos. Nenhum interesse em tratar a presidência como algo além de um reality show que ele pode usar para obter a atenção que deseja", completou o presidente.

Durante as últimas três noites, os democratas têm apresentado Trump como um presidente inexperiente, incapaz de liderar o país em um momento de crise e sem comprometimento com os americanos. "Donald Trump é o presidente errado para este país", disse Michelle na segunda-feira, ao condensar a mensagem da abertura da convenção.

A receita de apresentar Joe Biden como a única alternativa para retirar o país da crise foi repetida nos três dias de evento, mas ganha importância na voz de Obama. Os dois disputaram juntos as eleições de 2008 e 2012, da qual saíram vencedores, e dividiram a responsabilidade de governar os Estados Unidos durante oito anos.

Biden foi um vice-presidente leal, dizem ex-assessores de Obama. O ex-presidente, reconhecido pela boa oratória e com alta popularidade, relembrou os tempos de campanha. "Há 12 anos, quando comecei uma busca por um vice-presidente, eu não sabia que acabaria encontrando um irmão", disse Obama.

"Joe e eu viemos de diferentes lugares e gerações. Mas o que eu rapidamente comecei a admirar nele é sua resiliência, fruto de muita luta. Sua empatia, nascida de muita dor", disse Obama. "Ao longo de oito anos, Joe era o último na sala sempre que eu enfrentava uma grande decisão. Ele me tornou um presidente melhor. Ele tem o caráter e a experiência para nos tornar um país melhor", disse o ex-presidente.

Os democratas têm tentado mostrar que uma grande coalizão contra Trump foi construída, abarcando as alas progressista e moderada do partido, as diferentes gerações e até alguns republicanos descontentes. O engajamento do senador independente Bernie Sanders na campanha deste ano foi um sinal de que o partido está mais unido do que em 2016, em torno de um inimigo comum.

Para vencer em novembro, Biden precisa que um eleitorado tipicamente democrata se empolgue para votar em escala maior do que o registrado quando Hillary Clinton disputou. Por isso, é crucial energizar jovens, negros, latinos, mulheres que moram nos subúrbios e alguns independentes e moderados que estiveram desgostosos com a política.

A terceira noite da festa democrata foi batizada de "uma união mais perfeita", o mesmo nome dado a Obama ao primeiro discurso em que citou a questão racial na campanha de 2008. Na época, ele clamou pela necessidade de buscar a união em um país racialmente dividido. O tema voltou na noite desta quarta-feira, com a celebração de Kamala Harris como a primeira mulher negra a disputar a vice por um grande partido.

Os democratas também fizeram um apelo claro para os que os eleitores se organizem para votar. "Por quatro anos, as pessoas me disseram: 'Eu não percebi o quão perigoso ele era'. 'Eu gostaria de poder voltar e fazer de novo.' Ou pior 'Eu deveria ter votado'. Bem, esta não pode ser mais uma eleição deveria, gostaria, poderia", disse Hillary.

Em 2016, ela ganhou a eleição no voto popular com 3 milhões de votos a mais do que Trump, mas perdeu a eleição no Colégio Eleitoral, onde o republicano recebeu a maioria dos delegados. "Chame um amigo e use uma máscara. Não importa o que, vote. Vote como se suas vidas e subsistência estivessem em jogo, porque elas estão", disse a ex-candidata.

Beatriz Bulla / Correspondente, Washington, O Estado de S.Paulo
20 de agosto de 2020 | 00h01

Contra o racismo não há vacina, diz Kamala

Senadora é a primeira mulher negra que concorre à Casa Branca por um grande partido e fez do discurso na convenção democrata uma de suas manifestações mais fortes contra o racismo

     


A senadora Kamala Harris aceitou na noite desta quarta-feira, 19, a nomeação histórica do Partido Democrata para disputar a vice-presidência como companheira de chapa de Joe Biden. Kamala é a primeira mulher negra que concorre à Casa Branca por um grande partido e fez do discurso desta noite uma de suas manifestações mais fortes contra o racismo. "Vamos ser claros: não há vacina para o racismo. Nós temos de fazer o trabalho", disse Kamala.

 Kamala Harris - EUA
Kamala Harris em seu discurso para aceitar indicação histórica na política americana   Foto: Kevin Lamarque/Reuters

Kamala falou sobre o sofrimento com perdas causadas pela pandemia de coronavírus e sobre o fato de negros, latinos e indígenas terem sido atingidos desproporcionalmente mais do que os brancos. "Isso não é uma coincidência. É efeito do racismo estrutural. Das desigualdades na educação e tecnologia, acesso a saúde e moradia, segurança no trabalho e transporte. A injustiça no acesso a saúde reprodutiva e maternal. No excesso de uso da força pela polícia. E no nosso sistema de justiça criminal", disse a candidata a vice.

"O vírus não tem olhos e ainda assim ele sabe exatamente como nós vemos uns aos outros e como tratamos uns aos outros", disse Kamala.

A terceira noite da festa democrata foi batizada com o mesmo nome dado por Barack Obama a um discurso crucial da campanha de 2008: Uma união mais perfeita. Na época, Obama falou pela primeira vez sobre a questão racial e admitiu que os EUA eram um país racialmente dividido. Com Kamala Harris na chapa, os democratas querem sinalizar que estão comprometidos com a diversidade no partido e também com o trabalho de união da sociedade.

O tema já era caro a Biden, que foi vice de Obama e herdou capital político do ex-presidente junto ao eleitorado negro, mas ganhou especial importância depois da ebulição social de junho, quando americanos protestaram contra o racismo após a morte de George Floyd.

A eleição deste ano, disse a candidata, é um "ponto de inflexão". "O caos constante nos deixa à deriva. A incompetência nos dá medo. A insensibilidade nos faz sentir sozinhos. É demais", disse ela. "Neste momento temos um presidente que transforma nossas tragédias em armas políticas. Joe vai ser um presidente que irá transformar nossos desafios em propósitos", disse a candidata a vice.

Filha de pai jamaicano e mãe indiana que se conheceram nos Estados Unidos marchando pelos movimentos civis, Kamala explorou sua trajetória pessoal no discurso desta noite.

A candidata a vice disse que um país de união parece distante com Donald Trump na presidência. Ao dizer que carrega valores ensinados por sua mãe, disse que é preciso ter "uma visão da nossa nação como uma comunidade amada onde todos são bem-vindos, não importa nossa nossa aparência, de onde viemos ou quem amamos".

"Um país onde podemos não concordar em cada detalhes, mas estamos unidos em torno da crença fundamental de que todo ser humano tem um valor infinito e merece dignidade e respeito", afirmou a senadora. "Um país em que nos preocupamos uns com os outros, onde nós ascendemos e caímos como um só, onde nós enfrentamos nossos desafios e celebramos nossos triunfos. Juntos. Hoje, esse país parece distante. O fracasso de Donald Trump custou vidas e meios de subsistência", disse ela.

Kamala é vista como uma senadora pragmática e moderada, disposta a flexibilizar opiniões para compor com o partido. A escolha de seu nome deve o efeito de acenar à ala progressista, que cobra por mais diversidade no partido, ao mesmo tempo que mantém a percepção de que Biden fará um governo de centro.

Ela foi procuradora-geral da Califórnia antes de ser eleita senadora em 2016. Seu passado como procuradora chegou a ser um problema entre a ala progressista do partido, que a acusa de não ter pressionado pela reforma do sistema criminal americano. Em junho, no entanto, Kamala conseguiu diminuir o volume das críticas ao marchar ao lado dos manifestantes que pediram o fim do racismo nas abordagens policiais, após a morte de George Floyd.

No discurso, ela voltou a lembrar da amizade com Beau Biden, filho de Joe Biden e sua conexão pessoal com o companheiro de chapa. Beau ocupava o cargo de procurador-geral de Delaware quando ela tinha o mesmo cargo na Califórnia, mas morreu em decorrência de um tumor no cérebro em 2015.

Durante as últimas três noites, os democratas têm apresentado Trump como um presidente inexperiente, incapaz de liderar o país em um momento de crise e sem comprometimento com os americanos. A ex-secretária de Estado e candidata derrotada do partido democrata em 2016, Hillary Clinton, foi na mesma linha. "Eu gostaria que Donald Trump tivesse sido um presidente melhor. Mas, infelizmente, ele é quem ele é", disse em discurso na mesma noite.

Os democratas têm tentado mostrar que uma grande coalizão contra Trump foi construída, abarcando as alas progressista e moderada do partido, as diferentes gerações e até alguns republicanos descontentes. O engajamento do senador independente Bernie Sanders na campanha deste ano foi um sinal de que o partido está mais unido do que em 2016, em torno de um inimigo comum.

Para vencer em novembro, Biden precisa que um eleitorado tipicamente democrata se empolgue para votar em escala maior do que o registrado quando Hillary Clinton disputou. Por isso, é crucial energizar jovens, negros, latinos, mulheres que moram nos subúrbios e alguns independentes e moderados que estiveram desgostosos com a política.

Beatriz Bulla / Correspondente, Washington, O Estado de S.Paulo
20 de agosto de 2020 | 00h39
Atualizado 20 de agosto de 2020 | 10h00

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

O Brasil tem 110.171 mortes por coronavírus confirmadas até as 13h desta quarta-feira (19)

Veja os números consolidados:

110.171 mortes confirmadas
3.418.306 casos confirmados

Na terça-feira (18), às 20h, o balanço indicou: 110.019 mortes, 1.365 em 24 horas. Com isso, a média móvel de novas mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 989 óbitos, uma variação de -4% em relação aos dados registrados em 14 dias.

Sobre os infectados, eram 3.411.872 brasileiros com o novo coronavírus, 48.637 confirmados no último período. A média móvel de casos foi de 42.783 por dia, uma variação de -3% em relação aos casos registrados em 14 dias.

No total, 2 estados e o Distrito Federal apresentaram alta de mortes: MG, DF e AM.

Em relação a segunda (17), RO estava com a média de mortes em alta e, hoje, está em estabilidade.

Total de mortes: 110.019

Registro de mortes em 24 horas: 1.365

Média de novas mortes nos últimos 7 dias: 989 por dia (variação em 14 dias: -4%)

Total de casos confirmados: 3.411.872

Registro de casos confirmados em 24 horas: 48.637

Média de novos casos nos últimos 7 dias: 42.783 por dia (variação em 14 dias: -3%)
(Antes do balanço das 20h, o consórcio divulgou dois boletins parciais, às 8h, com 108.696 mortes e 3.363.807 casos; e às 13h, com 108.900 mortes e 3.370.262 casos confirmados.)

Estados

Subindo: MG, DF e AM.
Em estabilidade, ou seja, o número de mortes não caiu nem subiu significativamente: PR, RS, SC, ES, SP, GO, MS, RO, TO, BA, PB e PE.
Em queda: RJ, MT, AC, AP, PA, RR, AL, CE, MA, PI, RN e SE.
Essa comparação leva em conta a média de mortes nos últimos 7 dias até a publicação deste balanço em relação à média registrada duas semanas atrás (entenda os critérios usados pelo G1 para analisar as tendências da pandemia).

Fonte: G1 / Globo News

O Brasil entre Donald Trump e Joe Biden

Diante da incerteza sobre que país irá emergir da disputa presidencial, é imperioso que o governo brasileiro mantenha uma prudente distância do embate político nos EUA. Análise de Hussein Kalout, em artigo publicado hoje n' O Estado de S.Paulo

Uma relação equilibrada entre o Brasil e os Estados Unidos será sempre importante para a estabilidade hemisférica, para o desenvolvimento socioeconômico latino-americano e, sobretudo, para o avanço de uma agenda bilateral mutuamente benéfica nas mais variadas esferas, tais como comércio, investimentos, defesa, saúde, educação e ciência, tecnologia e inovação.

É imprescindível que Brasília e Washington tenham uma verdadeira parceria estratégica – sem que haja subordinação de interesses ou alinhamento automático. O que se espera de um país da envergadura do Brasil é que mantenha relação equilibrada com a principal potência internacional. Essa deve ser uma relação estruturada de acordo com o interesse nacional – e não orientada a partir de simpatias pessoais.

Diante da incerteza sobre que país irá emergir da disputa presidencial entre Donald Trump e seu adversário Joe Biden, é imperioso que o governo brasileiro mantenha uma prudente distância do embate político entre democratas e republicanos – como manda, aliás, a tradição diplomática brasileira.

O pêndulo do favoritismo, conforme os dados disponíveis no momento, inclina-se na direção do candidato democrata. O presidente incumbente possui pouco tempo para reverter o declínio de sua popularidade em estados vitais como, por exemplo, Pensilvânia, Florida, Arizona e Carolina do Norte – mas, nada é impossível em política. Há sondagens que indicariam diminuição recente da vantagem de Biden, que ainda mantém a dianteira com certa folga.

Biden Trump

O presidente Donald Trump e o democrata Joe Biden  Foto: Saul Loeb and Ronda Churchill/AFP

O discurso que garantiu a Trump a vitória, na eleição de 2016, contra a democrata Hillary Clinton, parece não encontrar o mesmo eco no cenário atual. Falha de liderança, incapacidade decisória e fragilidade moral pesam contra o atual presidente. O sentimento “anti-trumpista” ganhou tração e transformou a disputa em uma eleição de caráter plebiscitário. Isso, obviamente, sem mensurar os efeitos reais que o desemprego, a tensão racial e a pandemia podem ainda ter sobre o resultado final do pleito.

Não é preciso dizer que Joe Biden, se vencer, recolocará o EUA de volta na UNESCO, na OMS, mudará o padrão de voto do país nos foros ambientais e nos mecanismos internacionais de direitos humanos. O Acordo de Paris, a agenda securitária dos EUA para o Oriente Médio e a entendimento delineado com Cuba – no governo Obama – retornarão naturalmente para o centro gravitacional da agenda de política exterior americana.

Sob um governo democrata, o Brasil não estará no centro da agenda de prioridades. Tampouco o país será tratado como ator irrelevante, apesar dos escorregões de idolatria em prol do “deus” Trump, o suposto “salvador do ocidente”. Pragmáticos como são, os americanos relevarão tudo e focarão nas concessões que podem ainda extrair do governo Bolsonaro. Esperam, porém, que o governo brasileiro não adote uma política negligente em temas sensíveis, especialmente no que diz respeito à Amazônia – para que o Biden não seja compelido a ter de criticar o Brasil abertamente. E, obviamente, espera-se que Brasília siga a estratégia de Washington na obstrução da agenda da China no mundo.

Ainda que o Brasil cogite a hipótese de evoluir de patamar, saindo do campo da subserviência a Trump para o campo do mero alinhamento automático aos EUA, será forçoso fazer ajustes importantes nas atuais linhas da “política externa”. Afinal, o Brasil terá que lidar com outro Estados Unidos, onde os principais temas globais receberão uma abordagem diplomática muito distinta da que prevalece na atual administração da Casa Branca.

Daqui em diante, será fundamental esboçar um traço de sobriedade quanto à manifesta predileção do governo brasileiro pela reeleição do atual presidente americano. A proteção do interesse nacional requer não cair no amadorismo infantil de se imiscuir, novamente, na eleição presidencial alheia. Agora, se Trump repetir o feito de quatro anos atrás, aí Brasília terá a oportunidade de renovar a seu servilismo sem peias diante do interesse nacional... norte-americano!

Hussein Kalout, o autor deste artigo, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras em O Estado de S.Paulo. Publicado originalmente em 19 de agosto de 2020 | 08h47

Como a taxação de livros pode afetar os mais pobres

Projeto de reforma tributária do governo Bolsonaro prevê o fim da isenção para livros e taxação de 12%. Além de agravar crise do mercado editorial, mudança pode aprofundar desigualdades no país.


Mulher coloca livro em prateleira
    
Proposta de taxar livros tem gerado forte repercussão no mercado editorial, que encolheu mais de 20% em uma década

Quando recebeu seu primeiro salário, aos 15 anos, Amaury de Sousa se dirigiu a uma loja da livraria Saraiva e comprou O Abusado, obra do jornalista Caco Barcellos. "Foi um dos dias mais felizes da minha vida", lembra. Ele finalmente poderia ler à vontade, sem o prazo que sua mãe estipulava para devolver os livros que tomava emprestado em uma das casas onde trabalhava como cuidadora de idosos. Tão recheadas eram as estantes, que um vão entre os títulos passava despercebido.

"Eu achava interessante aquelas prateleiras gigantescas e sempre gostei de livros, mas naquele tempo a gente não tinha condição de comprar. Ela me dava uma semana para ler, antes de devolver sem que ninguém notasse", conta o jovem de 24 anos que foi criado e reside até hoje com a mãe na favela Santa Marta, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro.

Cumprir o prazo era difícil, já que a mãe trazia para o menino de 12 anos clássicos como Microfísica do Poder, de Michel Foucault. "Eram livros muito técnicos. Às vezes eu não entendia nada, ficava voltando na mesma página várias vezes. Mas tinha uma curiosidade incontrolável para entender o mundo, os outros e eu mesmo", recorda. Rapidamente, a leitura tornou-se a janela para o mundo que não existe no quarto onde dorme, sem luz natural.

Os livros representam para Amaury uma plataforma de transformação social. A bagagem cultural o colocou em vantagem no processo seletivo para atendente na Livraria da Travessa, onde trabalhou por dois anos e intensificou o mergulho literário. Hoje, ele cursa Cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF) e trabalha em projetos audiovisuais.

Os saberes absorvidos e interpretados pelas lentes de sua realidade fizeram com que, desde cedo, despertasse a atenção de produtores internacionais. Ele acaba de roteirizar e filmar um documentário sobre a pandemia nas favelas do Rio para a emissora de televisão japonesa NHK.

Hoje, devido à situação financeira mais confortável, falta espaço na casa apertada para empilhar novos títulos. Toda vez que se depara com um curso que gostaria de fazer e não pode pagar, ele busca um livro que integre as referências bibliográficas. É assim que está aprendendo francês sozinho no momento.

Homem de máscara sentado em escada de favela no Rio de Janeiro

Homem de máscara sentado em escada de favela no Rio de Janeiro
"Valor dos livros cria distanciamento entre o jovem periférico e a literatura", diz Amaury de Sousa, morador de Santa Marta

Escapar das estatísticas graças à leitura já seria um feito e tanto. Mas, uma vez sobrevivente, restava o desafio de não deixar a alma morrer, em uma realidade na qual o homem não pode chorar. Eis que surge a poesia, sua grande paixão. "Sou um homem nu, vestido por dentro, que paga todo dia o preço por sentir demais", define-se.

Nos eventos poéticos que ajuda a organizar em favelas cariocas, Amaury sempre achou curioso que jovens de grande talento não tivessem as referências que o despertaram para o valor dessa arte, como Carlos Drummond de Andrade. A fonte comum de inspiração é o rap, em especial o grupo Racionais MC's.

Morador do Morro do Vidigal, o escritor Geovani Martins é uma das principais revelações da literatura brasileira nos últimos anos. Até outubro do ano passado, seu livro de estreia, O Sol na Cabeça, publicado pela Companhia das Letras, tinha vendido 40 mil exemplares e havia sido lançado em dez países. Os direitos da obra para o cinema foram adquiridos pelo diretor cearense Karim Aïnouz.

Fã do escritor contemporâneo, Amaury tinha sede de conversar sobre os contos de Geovani com os colegas das rodas de poesia. Mas rapidamente observou que a maioria não tinha lido o livro, enquanto amigos "playboys" não paravam de o procurar para comentar a obra.

"Livros custam de 30 a 40 reais, em média. Com esse dinheiro, dá para comprar cinco quilos de feijão, dois quilos de arroz e um pouco de frango no supermercado. Esse valor cria um distanciamento muito grande entre o jovem periférico e a literatura", constata.

Projeto de taxação

Tal dificuldade de acesso aos livros pode se intensificar ainda mais devido a um projeto enviado pelo governo de Jair Bolsonaro ao Congresso. O mercado livreiro é isento de tributação desde 2004, mas a equipe econômica federal pretende modificar esse quadro por meio da reforma tributária. A proposta prevê a taxação de livros em 12%, por meio da criação de uma Contribuição Social sobre Operações de Bens e Serviços (CBS).

A proposta tem gerado forte repercussão nas redes sociais e, sobretudo, no mercado editorial, que encolheu mais de 20% em uma década, com perdas que somam 1,4 bilhão de reais. O cenário é resultante das transformações digitais e agravado pela recessão econômica iniciada em 2015, além da falência de grandes redes do setor livreiro, como Livraria Cultura e Saraiva, em recuperação judicial.

O fechamento de lojas físicas durante a pandemia, devido às medidas de restrições sanitárias, afetou ainda mais o setor. Em abril, o mercado livreiro registrou uma perda de 47% no faturamento em comparação ao mesmo mês em 2019, segundo o levantamento Painel Varejo de Livros no Brasil, feito pela Nielsen Bookscan.

"É preciso considerar que esse imposto tem um efeito cascata sobre a cadeia econômica do livro. Estimamos que a mudança possa aumentar o preço final em até 20%", afirma Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias e proprietário da editora Letraviva.

Gurbanov destaca que o encarecimento dos livros não terá impactos meramente econômicos. "Não é somente o ato de compra, mas o que o livro significa como veículo de transmissão de informações, conhecimento e produção cultural. Não só do Brasil, mas de todos os países. Os efeitos colaterais serão muito graves, e o Brasil vai pagar muito caro se esse projeto for aprovado", avalia.

O argumento de Guedes

Para defender a mudança, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem defendido a ideia de que livros são consumidos por camadas de maior renda da população. Nesse sentido, a isenção não se justificaria. Para compensar o impacto sobre os mais pobres, Guedes defende a realização de doações pelo governo — sem explicar como isso seria feito — e a ampliação do Bolsa Família para essa finalidade.

"Vamos dar o livro de graça para o mais frágil, para o mais pobre. Eu também, quando compro meu livro, preciso pagar meu imposto. Então, uma coisa é você focalizar a ajuda. A outra coisa é você, a título de ajudar os mais pobres, na verdade, isentar gente que pode pagar", disse o ministro durante audiência na Comissão Mista da Reforma Tributária.

Ao defender a ampliação dos programas de transferência de renda, Guedes argumentou que as camadas de menor renda estão mais preocupadas em comprar comida do que livros. "Num primeiro momento, quando fizeram o auxílio emergencial, estavam mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos", declarou Guedes.

Em artigo publicado recentemente na Folha de São Paulo, Luiz Schwarz, editor da Companhia das Letras, contestou a tese do ministro. Ele destacou que na última edição da Bienal do Livro no Rio de Janeiro, realizada no ano passado, parte expressiva dos 600 mil participantes era de jovens da classe C.

"Na Flup [Festa Literária das Periferias], os dados são ainda mais eloquentes: do público total do evento, 97% se declaram leitores frequentes de livros, 51% têm entre 10 e 29 anos, 72% são não brancos, e 68% pertencem às classes C,D e E", ressaltou.

Visão de curto prazo

A economista Juliana Damasceno, pesquisadora da área de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), afirma que a reforma tributária deve priorizar uma redistribuição de tributos que vise a correção de distorções que penalizam a economia brasileira atualmente.

"A carga é o ponto final da reforma. A justiça social e estratégia econômica do sistema deveria ser o ponto de partida. Dentro dessa questão estratégica, fomentar educação deveria ser prioridade", avalia.

Damasceno lembra que os retornos da educação para a economia no longo prazo são amplamente documentados. E defende que é preciso reconhecer a importância do setor de livros, ainda que represente uma parcela mais restrita da educação após os avanços da digitalização.

"Incentivar esse setor vai na direção contrária de aumentar sua carga, o que pode resultar em aumento do preço pro consumidor final. Governos tendem a ter visões mais 'curto-prazistas' quando a situação fiscal se aperta. Antes de um plano de recuperação desse forte desequilíbrio fiscal, é difícil pensar no longo prazo, e isso acaba penalizando áreas estratégicas como a educação", analisa a especialista.

Fonte: Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha. Jornalismo independente em 30 idiomas. 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

O duelo justo no processo

Litigantes devem atuar com paridade de armas, para manter o equilíbrio da disputa judicial

Conforme ensinança do festejado professor Miguel Reale, a quem sucedi na Academia Mackenzista de Letras, Direito é “um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento de limites à ação de cada um de seus membros”. Em outras palavras, representa um conjunto de regras e normas que regulam a vida em sociedade, sem o que seria impossível a convivência social humana. Em que pese a heterogeneidade de nossa civilização, ela guarda certa similitude entre os mais diversos ordenamentos, representada no tratamento isonômico reservado aos litigantes.

Na Babilônia, a lei de talião pregava o “olho por olho, dente por dente”, uma fórmula cruel e bárbara, que se distanciava da punição com justiça. Com o passar dos tempos, o Direito foi se desenvolvendo e, com ele, a noção de igualdade. Na Roma Antiga, havia a Lei das Doze Tábuas (Lex Duodecim Tabularum), que consagrava a igualdade entre patrícios e plebeus. Por sua vez, na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) dispôs em seu artigo 1.º que “os homens nascem e são livres e iguais em direito”. A isonomia, nesse caso, assume uma feição formal, eis que estabelecida perante a lei, o que a faz ignorar as possíveis desigualdades existentes no plano fático.

Todavia não se deve buscar somente essa igualdade consagrada pelo liberalismo clássico. É necessário considerar as desigualdades existentes na sociedade, desapegando-se, portanto, de sua concepção formalista. Desse modo, aqueles que se encontram em situações desiguais devem ser tratados de forma desigual.

Nesse sentido, Rui Barbosa, em seu célebre discurso conhecido como Oração aos Moços (1920), já dizia que “tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. Trata-se, pois, do conceito de igualdade material, que respeita as especificidades de cada indivíduo, descartando a ideia de que a sociedade seja algo homogêneo.

O princípio da isonomia está consagrado no artigo 5.º, caput, da Constituição da República, sendo positivado também pela legislação infraconstitucional, consoante se observa nos artigos 7.º e 139, inciso I, do Código de Processo Civil, que visa a assegurar aos adversários o duelo justo.

Desse modo, na seara processual, o aludido consectário se desdobra na premissa de que os litigantes devem atuar com paridade de armas (par conditio), a fim de manter o equilíbrio da disputa judicial, e de que casos iguais devem ser tratados de modo indistinto.

Entretanto, o fiel da balança da justiça em algumas hipóteses pode pender para um dos lados. Isso ocorre, por exemplo, quando o magistrado, mesmo com conhecimento, fecha os olhos para situações em que houve prévio trânsito em julgado, isto é, quando não é mais cabível qualquer discussão a respeito da matéria, e as julga como se nada ocorrera anteriormente. Encontra, pois, subterfúgios para justificar a sua análise.

Essa situação acontece, sobretudo, nas causas em que há uma área nebulosa em relação às atribuições do Ministério Público (MP) estadual e do federal. Tome-se como exemplo uma ação civil pública promovida pelo parquet estadual já finalizada sem restrições probatórias, com exaurimento das vias recursais, e tempos depois outra ação civil pública, agora promovida pelo MPF, contra o mesmo réu, com idêntico conteúdo da primeira, sem fato novo ou provas novas, ainda que sob o fundamento de interesse coletivo.

Vale ressaltar que é consolidado o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, nas ações coletivas, a identidade de ações se verifica por meio do exame dos beneficiários dos efeitos da sentença, além da defesa dos mesmos interesses, sendo irrelevante, portanto, a existência dos mesmos autores.

Dessa forma, no exemplo acima, jamais poderia ter sido ajuizada uma ação civil pública exatamente nos mesmos moldes da anterior, eis que idênticas. O seu processamento macularia o primado que resguarda a imutabilidade do efeito das decisões, o que é inadmissível no ordenamento jurídico, além de propiciar um eventual conflito prático entre os julgados, se eles forem contraditórios, o que poderia atingir os interesses da sociedade.

Por sua vez, a segurança jurídica e o princípio da proteção à confiança, cujos fundamentos repousam no Estado de Direito, também são atingidos, na medida em que são frustradas as expectativas legitimamente criadas no sujeito por atos estatais, a estabilidade das relações jurídica, bem como a certeza que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas. Ademais, observa-se ainda que não se poderia falar em paridade de armas, uma vez que uma das partes se encontra em posição de desvantagem em relação à outra.

O magistrado parcial, que fica inerte quando deveria agir sem necessidade de provocação, subverte o sistema processual, visto que confere tratamento privilegiado a uma parte em detrimento da outra, abrindo espaço para que se produzam decisões que se afastam do conceito de justiça.
     
José Carlos G. Xavier de Aquino, o autor deste artigo, é Desembargador - Decano do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, edição de 
18 de agosto de 2020 | 03h00