segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A crise social e o desafio do Estado

A crise econômica e social causada pela pandemia tem levado mais famílias a recorrer aos serviços públicos - e o Estado tem de dar uma resposta à altura

A pandemia de covid-19 tem imposto uma série de desafios na área da medicina, de forma especial para o Sistema Único de Saúde (SUS). Mas não é apenas em relação à saúde que o novo coronavírus acrescenta demandas para o poder público que, na maioria das vezes, tem dificuldades para atender satisfatoriamente a população mesmo em circunstâncias normais. A crise econômica e social causada pela pandemia tem levado mais famílias a recorrer aos serviços públicos – e o Estado tem de dar uma resposta à altura.

No mês de julho, por exemplo, houve aumento de 73% de pedidos de matrícula de crianças de 4 a 6 anos nas escolas municipais de São Paulo em relação ao mesmo período do ano passado. Em 2019, 981 crianças pediram vaga em julho; agora, 1,7 mil. Dos pedidos feitos neste ano, 400 ainda não foram atendidos.

Atípica para esse período do ano, a demanda por vagas na rede pública de educação infantil é uma consequência da migração de alunos de pré-escolas particulares. A corroborar esse diagnóstico, bairros com população de mais baixa renda – com menos crianças matriculadas na rede particular em tempos normais – tiveram menor aumento de pedidos de matrícula.

No mês passado, verificou-se também aumento dos pedidos de vagas nas creches, para crianças de 0 a 3 anos. As matrículas para essa faixa etária têm uma dinâmica diferente, já que ocorrem ao longo de todo o ano. Mesmo assim, cresceram 44% em relação ao mesmo mês de 2019, agravando o problema da falta de vagas nas creches. Na cidade, há 22 mil crianças à espera de uma vaga na creche.

Se todo o ensino foi afetado pela pandemia do novo coronavírus, a educação infantil sofreu especialmente com a crise, também em razão da dificuldade em oferecer atividades remotas para crianças pequenas. O Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo (Sieeesp) estima que 30% das instituições privadas de educação infantil fecharam as portas durante a pandemia. O encerramento de tantas escolas agrava o drama do desemprego, com a demissão de professores e funcionários, e sobrecarrega diretamente a rede pública. Segundo a legislação vigente, a partir dos quatro anos todas as crianças devem estar matriculadas na escola. O descumprimento dessa obrigação dá ensejo à responsabilização judicial dos pais.

A rede estadual, que inclui os ensinos fundamental e médio, também sentiu o aumento da demanda de vagas em função da crise social e econômica causada pelo novo coronavírus. No mês de julho, houve aumento de 35% das matrículas em relação ao mesmo período do ano passado. Segundo informou o Estado, movimento similar ocorreu em outras redes de ensino no País.

Não há apenas aspectos negativos na migração das crianças para a rede pública de ensino. “É uma nova população para a escola pública, que traz outras experiências, e pode contribuir para o desenvolvimento do projeto pedagógico”, disse a educadora Anna Helena Altenfelder, presidente do conselho do Cenpec. “É importante que os pais não vejam essa mudança como um castigo para o filho”, explicou. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma sala de aula heterogênea, com diferenças sociais, culturais e étnicas, traz benefícios para todos.

De toda forma, o aumento da demanda nas redes públicas de ensino traz uma série de desafios para o poder estatal, em suas variadas esferas. Por exemplo, torna ainda mais evidente a necessidade da reforma administrativa, para que se tenha um Estado mais eficiente, e do ajuste fiscal, para que as atividades essenciais, como educação, disponham dos recursos necessários. A pandemia do novo coronavírus traz urgência em relação aos assuntos de curto, médio e longo prazos.

Decisiva para atenuar os efeitos da crise social e econômica, essa responsabilidade envolve não apenas os agentes públicos, mas todos os brasileiros. A necessidade de um Estado eficiente e inclusivo deve ser estímulo para o voto em candidatos competentes e honestos, bem como para o acompanhamento diligente dos que já foram eleitos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
17 de agosto de 2020

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

A debandada

Paulo Guedes deixou claro que Jair Bolsonaro tem escolha entre manter ou não o teto de gastos e a responsabilidade fiscal - e aparentemente já a fez.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, admitiu que sua equipe sofreu uma “debandada” com a saída dos secretários de Desestatização e Privatização, Salim Mattar, e de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel. Nos dicionários, “debandada” significa fuga em desabalada carreira. O ministro explicou do que afinal fugiram seus assessores: do “establishment”.

Paulo Guedes informou que Paulo Uebel deixou o governo porque a reforma administrativa foi adiada e que Salim Mattar saiu porque estava insatisfeito com o ritmo das privatizações: “O establishment não deixa”, disse o ministro.

O próprio Salim Mattar, em declarações sobre sua decisão, acusou o “establishment” de impedir que as estatais sejam vendidas e que o Estado seja reformado: “O establishment não quer a transformação do Estado. Não deseja a reforma administrativa. Não deseja a privatização. Se tiver privatização, acaba o toma lá dá cá. Acaba o rio de corrupção. O establishment deseja segurança de que as coisas vão continuar do jeito que estão”.

Nesses termos, é importante saber o que seria o tal “establishment”, responsável por tanto atraso. Salim Mattar explicou: “O establishment é o Judiciário, é o Executivo, é o Congresso, são os servidores públicos, os funcionários de estatais”. Ou seja, o “establishment”, tratado como barreira intransponível ao progresso, seria a estrutura estatal – burocrática, política e judicial – necessária para o funcionamento de um regime democrático.

Entende-se a frustração de quem chegou ao governo acreditando que os milhões de votos conferidos ao presidente Jair Bolsonaro fossem suficientes para que sua agenda de campanha fosse automaticamente implementada, sem necessidade de negociação de nenhuma espécie e até mesmo, em alguns casos, sem respeitar os ritos legais.

O problema é que a democracia não funciona assim. Na democracia, predomina a mobilização política na defesa de interesses os mais diversos no espaço público garantido pelas instituições republicanas. Cabe ao governo encontrar a melhor maneira de articular esses interesses para que o País avance, tendo como base a agenda vencedora da eleição majoritária.

O presidente Bolsonaro, no entanto, renunciou a esse papel. Passou boa parte do mandato a lavar as mãos sobre as discussões no Congresso, sem constituir uma base sólida e sem se envolver nos debates mais importantes. Ao contrário: em vários momentos, Bolsonaro prejudicou a tramitação de reformas, quase sempre no interesse de grupos de pressão de vocação estatista.

Em outras palavras, o “establishment” de que se queixam Paulo Guedes e seus agora ex-assessores tem em Bolsonaro seu mais legítimo representante. É muito difícil privatizar estatais e fazer reformas quando a resistência parte do próprio presidente da República – cuja conversão ao liberalismo, na campanha eleitoral de 2018, só enganou quem se deixou enganar.

A oposição à modernização do Estado pode ser vencida se houver genuína disposição de dialogar e de defender um projeto claro de País. O governo de Fernando Henrique Cardoso promoveu privatizações em larga escala, inclusive de “joias da coroa”, mesmo enfrentando um Congresso hostil. Hoje, ao contrário, o Congresso vem se mostrando favorável à agenda liberal – que só não avança mais porque o presidente não quer.

Em público, Bolsonaro diz, sem muita convicção, que continua comprometido com as privatizações e com a manutenção da responsabilidade fiscal, mas na prática nada faz para estimular as privatizações nem para desestimular ministros que sonham com o renascimento do desenvolvimentismo à custa do teto de gastos. A esse propósito, o ministro Paulo Guedes advertiu que “os conselheiros do presidente que o estão aconselhando a pular a cerca e furar o teto vão levá-lo para uma zona sombria, uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal” e que “o presidente sabe disso”. Assim, Paulo Guedes deixou claro que Bolsonaro tem escolha – e aparentemente já a fez, razão pela qual cinco integrantes da equipe econômica já jogaram a toalha.
     
Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
13 de agosto de 2020 | 03h00

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Coronavírus no Brasil: 103.421 mortos até uma hora atrás e 3.123.109 infectados


Veja aqui os números consolidados:
103.421 mortes confirmadas
3.123.109 casos confirmados
Às 8h, o consórcio publicou a primeira atualização do dia com 103.118 mortes e 3.114.287 casos.
Na terça-feira (11), às 20h, o balanço indicou: 103.099 mortes, 1.242 em 24 horas. Com isso, a média móvel de novas mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 1.000 óbitos, uma variação de -4% em relação aos dados registrados em 14 dias.
Sobre os infectados, eram 3.112.393 brasileiros com o novo coronavírus, 56.081 confirmados no último período. A média móvel de casos foi de 43.474 por dia, uma variação de -6% em relação aos casos registrados em 14 dias.
Progressão até 11 de agosto
No total, 7 estados apresentaram alta de mortes: SC, MG, MS, AM, AP, TO e BA.
Em relação a segunda (10), SP e RS estavam com a média de mortes subindo e, hoje estão em estabilidade. AP estava com a média em estabilidade e, agora, está subindo.
Estados
Subindo: SC, MG, MS, AM, AP, TO e BA.
Em estabilidade, ou seja, o número de mortes não caiu nem subiu significativamente: PR, RS, ES, SP, DF, GO, MT, PA, PE e PI.
Em queda: RJ, AC, RO, RR, AL, CE, MA, PB, RN e SE.
Essa comparação leva em conta a média de mortes nos últimos 7 dias até a publicação deste balanço em relação à média registrada duas semanas atrás (entenda os critérios usados pelo G1 para analisar as tendências da pandemia).
Fonte: G1 / Globo News

Os militares

Como sistema político, o militarismo sempre foi parte essencial do despotismo moderno

Como uma poltrona gasta e fora de moda, a Presidência da República é charmosa, mas nunca foi bonita, nem quando nova. Envolvida desde a origem em perfídias, corporativismo, endeusamentos indevidos e esperanças desfeitas, essa senhora de 129 anos mais uma vez dissolve o casamento civil. Sem perspectiva, diz que é consensual, pondo culpa na eleição.

Confusa, vendo o eleito indicar militares como únicos com capacidade de combater a corrupção e fortalecer o papel do poder estatal, concede carta-branca à tropa para agir como força de ocupação.

Para dissimular essa peacekeeping inédita, libera a Polícia Federal para aleijar o ciclo PT-PSDB como estratégia para tirar parentes do noticiário. Criticado predominantemente como devedor em atraso, toca o seu governo caranguejo, bizarro e simétrico, com os conchavos políticos antigos. Usufrui a surrada agenda manipulatória imposta pelos governos midiáticos dos últimos 30 anos. Todo dia a mesma discrepância entre reputação e notoriedade, ser famoso ou ser falado, condenar na TV antes de acusar no tribunal. Foi à esquerda que se cozinhou a sociedade confessional da vergonha perdida, dando sabor aos clérigos da Lava Jato, comidos crus agora à direita. 

Qualquer ladainha de dizer que a Presidência é incompetente é mentira. A Presidência é incorrigível. A crise avança outra vez na mesma direção de preferir cavalgar na sela dos pobres do que reconhecer seu direito de fabricar arreios. Pobres dos pobres. Por alguns reais o governante os terá a seu serviço. Coquete, a senhora deixa escapar: enquanto se tem força para agradar, não se diz que é corromper. Política é romance de especuladores.

Enquanto isso, apreensiva por ver mais de 100 mil brasileiros morrerem em seu colo por negligência sua, mergulha dentro de si. É falsidade não reconhecer a natureza sindical do governo. Feminina, a velha dama pensa em pedir desculpas à antiga primeira-dama que, sem malícia, plantou um canteiro com a bandeira do seu partido no jardim do Alvorada. Precavida, rascunha carta aos sindicatos dizendo que o Exército não será sua CUT. Diplomática, suspende as críticas à teocracia islâmica, à China, a Cuba e à Venezuela. São prismas de militarismos, mas não o nosso, desconversa.

A Presidência pressente aquele momento triste em que nem a alma reage. Vê pecado em usufruir o Deus cristão dispensando sua moralidade. Sente a realidade econômica desmoralizante de um Pernalonga que vai andando, sem notar que já está andando por cima do abismo. Sabe que conflito/rivalidade/inimizade/picuinha combinam pouco com justiça. Mas lista de desafetos, não, não podemos dormir descansados. 

Decide fingir que não vê o desastre cívico que é apostar em poder assimétrico, armar civis, incrementar a mentalidade militar com alcance sem fundamento, incentivos e estímulos incompatíveis com sua natureza profissional. O resultado logo esbarrará na pior das equações: a capacidade da força impulsionada sem avaliar todas as dimensões e a noção de comando supremo ajustado como a fechadura envolve a chave.

Qualquer agravo à transgressão da lógica está no horizonte. Comando militar acima da estatura nacional e internacional do estadista, refém de diplomacia sem campo de manobra, provocará pesados danos ao País. Pois poder militar partidarizado, ao invés de dissuasório e capaz de seduzir adversários, sinaliza para a emersão de soberania maligna. Como poder interno armado só lhe restará o caráter parapolicial. Logo envolvido em corrida armamentista ou avançando sobre as polícias estaduais, ampliando a vastidão da insegurança pública, matriz de secessão. 

É erro os militares se infiltrarem no interior do poder político para serem nova classe dirigente. Pessoalmente são democráticos, neutros ou autoritários, como os civis, mas como sistema político o militarismo sempre foi parte essencial do despotismo moderno. Militares como corporação estável e profissional das nações democráticas não precisam do exercício do poder político para obter identidade social. É no exterior que a força mostra bandeira.

A pátria dos especuladores não é nenhum país. Sua riqueza sem fundamento se alimenta da bolsa divorciada da realidade. De outro lado, a pandemia autorizou um governo Saps (Serviço de Alimentação da Previdência Social, que funcionou até os anos 1960), especialista em provisões. Saciar apetites legítimos ou não é a expectativa que ainda sustenta este governo. Ou seja, se o Brasil deslizar para um regime autoritário não será somente pela conhecida vocação do presidente para o arbítrio. 

As ideias do governo são desintegradas, voluntaristas e se parecem com literatura de autoajuda. Seu discurso se organiza em torno da individualização dos problemas, mesmo com doença importada. Pela primeira vez um grande sofrimento não seria visto como um fracasso individual e o País poderia unir-se na dor. 

Mas, não. Ele deu um jeito de distribuir a fragilidade a cada um.

Em apenas cinco meses e com o dobro de mortes dos 20 anos da Guerra do Vietnã, a política informa aos militares quão desconhecido é esse front.

Paulo Delgado é sociólogo. Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S.Paulo edição de 12 de agosto de 2020.

Não querem privatizações para manter o 'rio de corrupção', diz ex-secretário de Guedes

Um dia depois do anúncio de sua saída do governo, Salim Mattar afirma que os 'liberais puro-sangue' na Esplanada cabem num 'micro-ônibus'

De saída do governo depois de um ano e meio à frente do programa de vendas das estatais, o empresário Salim Mattar, diz que o establishment não quer as privatizações para não acabar com o "toma lá dá cá" e o "rio da corrupção".

Entrevista com Salim Mattar, empresário e ex-secretário do Ministério da Economia

Em entrevista ao Estadão, um dos fundadores da Localiza diz que continua apoiando o governo Jair Bolsonaro, mas deixa claro o descontentamento com as resistências para o avanço das privatizações, principalmente da Casa da Moeda e dos Correios. Ele admite que a venda dos Correios pode demorar 28 meses (mais de dois anos), caso saia mesmo do papel. Na iniciativa privada, diz, seria vendida em 60, 90 dias.

Para Salim, o ministro da Economia, Paulo Guedes, continua firme no cargo, mas reconhece que cabe a ele moderar e equilibrar o processo de redução do tamanho do Estado. “Ele vive no ambiente político e o governo só vai fazer as privatizações de uma forma consensual. Os militares têm que concordar, o Planalto tem que concordar, o Congresso, o TCU”.

Na visão do ex-secretário de Guedes,  os "liberais puro-sangue" do governo cabem num "micro-ônibus". “O que mais vi na Esplanada é que o Estado deseja se proteger contra o cidadão. Não há interesse do Estado servir ao cidadão. Temos um Leviatã bem maduro aqui no Brasil”, diz Salim, que afirma que seu tempo no setor público é página virada. Agora, vai trabalhar em projetos dos institutos liberais que financia.

Salim Mattar

Salim Mattar, ex-secretário de Desestatização, Desinvestimentos e Mercados do Ministério da Economia. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil - 19/2/2020

Por que o sr. pediu demissão? O que aconteceu?

Tudo tem o seu ciclo. Estou no governo há um ano e meio e todos viram a energia e dedicação em relação às privatizações. Apesar do prazo tão curto, consegui deixar um legado. Recebemos o governo com 134 estatais e eu fui apurar direito e encontrei 698 empresas que têm participação da União. Em julho e agosto, estávamos implementando o estatuto modelo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), com elevados padrões de governança para aquelas empresas que permaneceram ainda estatais. Fizemos um decreto que obriga cada ministério a fazer uma justificativa para a existência da empresa e vendemos R$ 150 bilhões de desestatização e desinvestimento e reduzimos 84 empresas. E deixamos um pipeline (carteira de projetos) formatado de 14 empresas que serão privatizadas de janeiro a dezembro de 2021. Mesmo eu saindo, continuo dando apoio ao ministro e à pauta da economia.

O ministro Paulo Guedes disse que o sr. falou que o establishment não deixa privatizar. O sr. cansou?

Por mim, eu venderia todas as empresas, sem exceções. O governo tem que cuidar da qualidade de vida do cidadão, da saúde, educação, segurança. Temos 470 mil funcionários nas estatais. Isso tira energia, enquanto deveria estar cuidando do social. Essas estatais acabam servido para toma lá, dá cá e corrupção. Existe uma resistência do establishment em vender as empresas. Você é  testemunha que a nossa MP 902 que quebrava o monopólio da Casa da Moeda, para que pudéssemos privatizá-la, caiu. O que aconteceu? O Congresso disse não. Estamos numa democracia, cabe a mim acatar. Eles foram eleitos. Acabou! Eles decidiram. Não é para vender, não vamos vender.

Há duas semanas o sr. disse que continuava motivado. Qual foi o estopim para essa mudança de lá para cá?

Estou fora, mas continuo motivado. E torcendo para a pauta da economia, vendo o teto de gastos (regra que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação), acompanhando tudo.... Antes a minha motivação era vender estatal, agora sou um ex-servidor. A minha motivação é apoiar esse governo e o farei. Estarei na torcida, principalmente para o ministro Guedes. Eu fiquei no governo 18 meses. Eu plantei alguma coisa que alguém vai colher em 2021, quando serão privatizadas 14 estatais.

Quem garante? O governo Bolsonaro não vendeu até agora nenhuma estatal. A pauta não fica enfraquecida?

Essa pauta não é apenas minha. Essa pauta é do Guedes e vai continuar existindo. Vendemos 84 empresas, como subsidiárias e desinvestimento, mas nenhuma estatal. Não diminuiu o feito.

O que levou o sr. a ir até o presidente da República para pedir demissão?

Eu não pedi demissão ao presidente Bolsonaro. Se verificar a pauta do presidente, vai ver que ele me recebeu este ano 12 vezes. Ele sempre me apoiou. 

O sr. não pediu demissão diretamente ao presidente? 

Não pedi lá, não. Eu pedi ao Guedes. Umas quatro horas depois (do encontro com o presidente). Não é de sopetão: ‘eu vou sair do governo agora’. Há uma amadurecimento de uma ideia. Na verdade, eu e o Ubel (Paulo Uebel, secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, que pediu demissão no mesmo dia que Salim) entramos juntos no governo. Apesar do convite do Guedes, foi o Uebel que me deu a motivação de vir para o governo. Fizemos um pacto naquela época: entrarmos juntos e sairmos juntos. Não foi porque aconteceu uma coisa ontem. Eu não sou um cara precipitado. Eu sou mineiro, cauteloso, cuidadoso, moderado. Isso já estava sendo amadurecido há um período de tempo. Achei que ontem (terça-feira) pudesse ser o momento de apresentar a exoneração porque acredito que o dispêndio do meu esforço em relação ao resultado obtido estava negativo, apesar de todos os legados. 

Quais o motivos para nenhuma privatização ter acontecido nesses 18 meses?

Focamos  na reforma da Previdência e foi a estratégia adotada. Acredito que foi a certa porque aprovamos a maior reforma do mundo. Depois da reforma, começamos tomar  as providências para as desestatizações, levantamento, análise de cada empresa, quais os ministros mais favoráveis. Demorou tempo. Já no ano passado, colocamos diversas empresas no PND ( Programa Nacional de Desestatização, o primeiro passo para a privatização). Isso vai para o BNDES, que contrata consultoria, advocacia, auditoria... Cada contratação leva de 90 a 120 dias. É muito demorado. Quando a empresa entra no PND, para mim, é líquido e certo que essa empresa vai ser vendida. Quem assumir no meu lugar, vai levar 14 empresas.

Qual delas tem mais chance? 

As três primeiras serão fechadas. São tão ruins que nem comprador teve. São a Ceitec (empresa que fabrica chip de boi), Emgea (empresa gestora de ativos) e ABGF (gestora de fundos garantidores e garantias). Ele (Guedes) fala da Codesa (Companhia Docas do Espírito Santo), que está marcada para o segundo semestre de 2021, e Eletrobrás, que o Congresso acertou a modelagem, vai acontecer. E os Correios e o óleo da PPSA (a companhia administra os contratos da União na exploração dos campos de petróleo). Essa empresa é a calculadora de quanto tem o óleo. É vender o óleo que está debaixo da terra. Não é vender a empresa. O ano que vem será bom. Está cheio de empresas.

A Casa da Moeda foi uma frustração? Qual a empresa que o sr gostaria de ter vendido e não conseguiu?

A Casa da Moeda para mim foi um aprendizado. Estamos numa regime democrático. As pessoas que foram eleitas disseram não. Cabe a mim, aceitar. Foi uma lição. Temos que reconhecer que quem foi eleito pelo voto tem poder. Eu era um servidor com DAS (Direção e Assessoramento Superior, cargos que podem ser ocupados por qualquer servidor ou pessoa externa ao serviço público) cargo comissionado, que a qualquer momento poderia ser demitido. Deputado, não. O Congresso não quis a privatização da Casa da Moeda. Eu entendi, esse é pensamento médio do Congresso. Ok.  Não é o Rodrigo Maia (presidente da Câmara), porque ele é favorável às privatizações, à redução de Estado. 

Qual empresa o sr. queria ter vendido primeiro?

Os Correios. É uma empresa grande deficitária que tem prestação de serviço muito ruim. Os Correios seria a primeira empresa que eu privatizaria. Tivemos muita resistência desde o início do próprio ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia). Ele teve muita resistência. E colocaram no PPI (Programa de Parceria de Investimentos). No PPI, é para estudar. No PND, é para poder vender. Então, atrasou. Vai demorar 28 meses para ser vendido. Caso seja vendido. Não tenho certeza. Uma empresa como essa na iniciativa privada estaria vendida em 60, 90 dias.

Por que o sr. e o Uebel fizeram um pacto de sair juntos?

Nós já estávamos conversando. Não pretenderíamos ficar tanto tempo no governo. Ok, podíamos ficar, mas dependendo da velocidade com que as coisas acontecessem. As coisas são difíceis. O establishment não quer a transformação do Estado. Não deseja a reforma administrativa. O establishment não deseja privatização. Se tiver privatização, acaba o toma lá, dá cá. Acaba o rio de corrupção. O establishment deseja segurança que as coisas vão continuar do jeito que estão. O establishment é o Judiciário, o Executivo, o Congresso, são os servidores públicos, os funcionários das estatais. Não querem mudanças. Elas vão acontecendo vagarosamente. Olha a Eletrobrás!.

A saída do sr. e do Uebel tem alguma relação com o documento do Instituto Millenium e a campanha "Destrava", para pressionar pela reforma administrativa? 

É uma coisa mais do Uebel. Ele deixou claro que ele estava chateado de a reforma administrativa ter sido engavetada e não ter saído este ano. E o próprio ministro disse isso. Não foi um motivo. 

A agenda liberal perdeu força no governo?

Não está perdendo força. Eu e o Uebel somos os mais liberais do governo junto com o Paulo Guedes, o Carlos da Costa (secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade). É verdade. Temos sim um grupo de liberais, Eu estou à direita do ministro. Eu sou muito mais a favor da redução do Estado e das privatizações. Ele tem que ser habilidoso como ministro. Ele sabe o que pode e deve ser feito. Cabe a ele moderar e equilibrar esse processo de redução do tamanho do Estado e privatizações. Ele vive no ambiente político e o governo só vai fazer as privatizações de uma forma consensual. Os militares têm que concordar, o Planalto tem que concordar, o Congresso, o TCU.

O ministro Paulo Guedes não fica fragilizado com mais baixas no momento de pressão do teto de gastos? Essa pressão pode levar  à saída do ministro do cargo?

O ministro está muito bem. Está firme. Ele e o presidente gozam de uma excelente amizade e confiança mútua. O presidente deposita muita confiança e dá muita autonomia. O ministro é um conselheiro informal. Não há esse risco. Ele está forte e firme e com todo apoio do presidente.

E o teto de gastos vai cair?

Tem que existir uma responsabilidade fiscal no País. O Guedes foi muito franco na coletiva que deu junto com o líder Artur Lira (deputado pelo PP-PI, um dos líderes do chamado Centrão) e o presidente Rodrigo Maia. Tem que existir responsabilidade. Parece que esse assunto foi resolvido. Lira e Maia apoiaram que não pode ter furo no teto de gastos. Esse assunto está pacificado.

O sr vai voltar para a Localiza?

Não vou voltar. O meu período de iniciativa privada passou. É página virada, como também minha participação no setor público. Vou voltar para os meus projetos de vida pessoal. Eu vou me dedicar em transformar nossos institutos liberais mais virtuais. Institutos que apoio, fundei e ajudo. São 120 no Brasil. Eu financio os institutos com R$ 2 milhões por ano. Vou me dedicar  à propagação das ideias liberais na sociedade brasileira. Essa contribuição é maior do que estar no governo.

Os críticos dizem que a agenda liberal foi confundida no governo. Muitos no governo se dizem liberais e não são. Não prejudicou o espírito liberal?

Os liberais puro-sangue cabem em um micro-ônibus. Agora, tem muita gente que é liberal e não sabe. Descobri isso no governo. Mas tem também muitas pessoas que se passam por liberais para poderem se aproximar, ficar perto do governo. Não são  liberais. O discurso é diferente da prática. O que mais vi na Esplanada é que o Estado deseja se proteger contra o cidadão. Não há interesse do Estado em servir ao cidadão. Raramente vemos coisas que são a favor do cidadão. Isso me deixou muito preocupado. Temos um Leviatã (metáfora do Estado como soberano absoluto e com poder sobre seus súditos que assim o autorizam através do pacto social) bem maduro aqui no Brasil.

Adriana Fernandes, O Estado de S.Paulo / 12 de agosto de 2020 | 12h39

Após debandada, Guedes manda recado para Bolsonaro

     Ministro da Economia afirma que furar o teto de gastos vai levar presidente a      uma "zona de impeachment". Pasta viu saída de mais dois secretários e tem                         perdido influência para desenvolvimentistas no governo.    


    Paulo Guedes

Paulo Guedes

O ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou na noite de terça-feira (11/08) que auxiliares de Jair Bolsonaro estão aconselhando o presidente a "furar" o teto de gastos. Guedes não citou nomes, mas disse que essas figuras estão levando Bolsonaro para uma "zona sombria" que pode provocar o impeachment do presidente.

"Os conselheiros do presidente que estão aconselhando a pular a cerca e furar teto vão levar o presidente para uma zona sombria, uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal. O presidente sabe disso, o presidente tem nos apoiado", afirmou o ministro.

Nas últimas semanas, a imprensa brasileira vem relatando que há uma pressão crescente por parte de algumas alas desenvolvimentistas para flexibilizar o teto de gastos, aprovado no governo Michel Temer em 2016. 

Essas alas defendem mais investimentos públicos e programas, entre eles o Renda Brasil, uma versão repaginada do Bolsa Família. No momento, com o decreto de estado de calamidade em todo o país, o governo não é obrigado a cumprir o teto de gastos.

Na Esplanada, Guedes tem protagonizado conflitos com o titular do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que defende mais gastos públicos.

As declarações de Guedes foram feitas depois que dois altos secretários da sua pasta pediram demissão: Salim Mattar (Desestatização e Privatização) e Paulo Uebel (Desburocratização, Gestão e Governo Digital).

Guedes admitiu que o ministério sofreu uma "debandada". Nos bastidores, os dois estavam insatisfeitos com com o ritmo das privatizações e das reformas. Bolsonaro foi eleito com um discurso liberal e privatista. Guedes também fez grandes promessas e expôs planos que por vezes soaram irreais. Mas o governo não entregou praticamente nada até agora.

Agora, a saída dos secretários expôs um congelamento da agenda de Guedes e um enfraquecimento da pasta.

"Hoje houve uma debandada", afirmou. "O que ele [Mattar] me disse é que é muito difícil privatizar, que o establishment não deixa haver a privatização, que é muito difícil, muito emperrado, que tem que ter apoio mais definido, mas decisivo. O secretário Uebel, a mesma coisa. A reforma administrativa está parada, então ele reclama também que a reforma administrativa parou", disse Guedes.

O ministro também sugeriu que as reformas e as privatizações têm caminhando em ritmo lento por causa da ação do próprio presidente. "Um tá reclamando, dizendo que tá indo devagar. Outro tá dizendo 'vai no ritmo que eu quiser, eu que sou o presidente da República, eu que tive o voto, se você quiser, você sai'", disse.

 "Se o presidente quiser ser reeleito, nós temos que nos comportar dentro dos orçamentos, fazendo a coisa certa e enfrentando os desafios de reformas", completou.

Desde o início do mandato de Bolsonaro, Guedes já perdeu uma série de nomes da sua equipe original. Em junho, o secretário especial de Comércio Exterior, Marcos Troyjo, deixou a pasta para ser presidente do Banco dos Brics. No mesmo mês, Mansueto Almeida pediu para deixar o Tesouro Nacional. No mês seguinte, foi a vez de Caio Megale pedir para sair da Secretaria de Desenvolvimento da Indústria, Comércio, Serviços e Inovação, e de Rubem Novaes anunciar sua saída da presidência do Banco do Brasil.

No no passado, Guedes já perdido o ex-secretário da Receita Federal Marcos Cintra, demitido em setembro, e Joaquim Levy, que pediu demissão após uma passagem relâmpago pela chefia do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Fonte: Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha. Jornalismo independente em 30 idiomas.

Kamala Harris: o que Joe Biden pode ganhar ou perder com a escolha da senadora pela Califórnia como candidata a vice

Kamala Harris era apontada como favorita para compor a chapa de Joe Biden desde o momento em que o então provável candidato democrata anunciou, em março, que escolheria uma mulher como candidata a vice

Kamala Harris

O candidato democrata à presidência dos EUA, Joe Biden, anunciou que Kamala Harris, senadora pela Califórnia, será sua companheira de chapa contra Trump. /  Direito de imagemAFP

Às vezes, a escolha óbvia é óbvia por um motivo.

Harris era uma escolha segura e prática. Ela também está agora, aparentemente, na posição de ser a herdeira do Partido Democrata — seja daqui quatro anos porque Biden perdeu em 2020 ou não concorreu à reeleição, ou em oito anos se Biden cumprir dois mandatos completos.

Quem é Kamala Harris, escolhida vice por Joe Biden na disputa com Trump

Como Donald Trump e Joe Biden estão se saindo nas pesquisas?

Pode ser por isso que houve tantas tentativas de derrubar Harris ou apresentar candidatos alternativos no mês passado.

Na realidade, essa foi a primeira luta da próxima batalha de indicação presidencial, e Harris — cujas ambições são claras — agora dá um passo na competição.

Mas determinar a futura indicação democrata é uma batalha para outro momento. Agora a preocupação urgente para o partido é como Harris pode ajudar Biden a conquistar a Casa Branca.

A seguir, veja pontos fortes que ela traz para a chapa e algumas preocupações que os democratas podem ter.

Ponto forte: Diversidade

O Partido Democrata de hoje não se parece com Joe Biden. É jovem e é etnicamente diverso. Assim, para ter uma chapa que refletisse as pessoas que votariam nele, estava cada vez mais óbvio que Biden precisava encontrar alguém mais jovem e menos branco que ele.

Harris, cujo pai era jamaicano e mãe veio da Índia, preenche essa necessidade específica. Ela se torna a primeira mulher negra e a primeira asiática a concorrer em uma chapa presidencial de um grande partido. E embora aos 55 anos ela não seja exatamente jovem, quando comparada a Joe Biden, de 77 anos, ela é totalmente ágil.

Foto da família Harris

Pai de Harris era jamaicano e mãe dela veio da Índia. / Direito de imagem HARRIS FAMILY

Na tarde de terça-feira (13/08), antes de ser anunciada como a escolha de Biden, Harris tuitou sobre a necessidade de diversidade na liderança do partido.

"Mulheres negras e mulheres de cor há muito tempo estão sub-representadas em cargos eletivos e em novembro temos a oportunidade de mudar isso", escreveu.

Harris pode ser a responsável direta por algumas dessas mudanças.

Um dos papéis tradicionais de um candidato a vice na chapa presidencial é enfrentar a oposição. Enquanto o candidato no topo da chapa segue o caminho retórico, o número dois parte para o ataque contra a oposição.

Em 2008, Sarah Palin, vice da chapa de John McCain, mais do que fez jus ao apelido, "Sarah the Barracuda" (um tipo de peixe conhecido por ser agressivo), por exemplo.

Cartaz da campanha de Kamala Harris

Cartaz da campanha de Kamala Harris

Se esta é uma tarefa que recai sobre Harris, a história sugere que ela estará à altura da função. Biden certamente se lembra que foi Harris quem foi atrás dele com gosto durante o primeiro debate das primárias democratas em julho de 2019, criticando a oposição dele a um programa de ônibus escolares.

Harris também demonstrou ser uma interrogadora muito determinada e combativa durante seu mandato no Senado dos Estados Unidos. Donald Trump se lembra claramente disso, ao comentar na noite de terça-feira que achava que Harris foi "extraordinariamente desagradável" com seu segundo candidato à Suprema Corte, Brett Kavanaugh.

Trump pode não gostar, mas "desagradável" pode ser exatamente o que Biden está procurando.

Ponto forte: Estabilidade

Uma coisa que os políticos que concorreram a cargos nacionais disseram repetidas vezes é que é impossível ter dimensão da intensa pressão que essas campanhas criam até que se tenha realmente participado de uma.


Joe Biden conversando com sua candidata a vice-presidente Kamala Harris por um link de vídeo, divulgado por seu fotógrafo oficial de campanha.

Biden diz a Harris que ela será sua companheira de chapa

Embora a candidatura presidencial de Harris para 2020 não tenha sido bem-sucedida e ela tenha desistido antes da maioria de seus concorrentes, ela sabe o que é estar sob tamanho escrutínio. Quando ela lançou sua campanha para dezenas de milhares de apoiadores em janeiro de 2019, ela foi tratada como uma candidata presidencial de primeira linha. Por algum tempo em julho, depois de sua forte participação no primeiro debate, ela subiu para o topo de algumas pesquisas primárias.

Harris passou pelo fogo, pelo menos por um tempo, e sabe como é. Se houvesse grandes problemas em seu passado, eles já teriam aparecido. Dado que ela já participou de disputa democrata para a presidência (primárias), não é impossível para muitos americanos imaginá-la como presidente algum dia.

A senadora da Califórnia pode não ter sido a candidata mais dinâmica na campanha em 2019 e certamente não foi a mais bem-sucedida, mas neste momento ela é conhecida. E para Biden, que atualmente está em alta nas pesquisas, quanto menos surpresas no resto da campanha, melhor.

Desvantagem: 'Harris é um policial'

Mais do que quase qualquer outro candidato ao posto de vice-presidente, Harris vem de um passado em cargos na área de aplicação da lei. Dadas as recentes manifestações contra a brutalidade policial e alegações de racismo institucional na aplicação da lei, o currículo de Harris pode fazer com que alguns progressistas dentro do Partido Democrata hesitem.

Certamente aconteceu durante a campanha presidencial de Harris, quando a frase "Harris é um policial" foi uma acusação irônica feita à senadora da Califórnia em mais de uma ocasião.

Tanto como promotora distrital de São Francisco quanto como procuradora-geral da Califórnia, Harris se posicionou mais ao lado da polícia do que dos suspeitos, mesmo nos casos em que esses suspeitos possam ter sido condenados injustamente. Embora ela tenha expressado oposição pessoal à pena de morte, ela apoiou seu uso enquanto esteve no cargo.

Mais do que quase qualquer outro candidato ao posto de vice-presidente, Harris vem de um passado em cargos na área de aplicação da lei.

Ser um combatente do crime obstinado pode ser um atributo atraente entre os eleitores independentes e de tendência conservadora nas eleições gerais, mas se esse apoio vier à custa do entusiasmo pela chapa Biden-Harris entre os eleitores da esquerda, então pode não ser positivo.

Desde a morte de George Floyd, Harris tem defendido abertamente a reforma da aplicação da lei, recebendo elogios de alguns progressistas. No entanto, é seguro dizer que eles ainda guardam algumas dúvidas.

Desvantagem: Mudanças

O fato de Harris ter realizado uma campanha presidencial foi notado como um marco a seu favor. No entanto, há um outro lado nisso. A campanha dela, embora tenha começado com estrondo e tenha seus momentos, também teve algumas falhas graves (e algumas dessas falhas relacionadas à própria candidata).

Embora Harris tenha um histórico bastante moderado como senadora e procuradora-geral do estado, ela tentou virar à esquerda durante sua campanha presidencial. Ela se pronunciou a favor da educação universitária gratuita, do programa ambiental Green New Deal e da saúde universal, por exemplo, mas nunca soou muito convincente sobre isso.

Ela tropeçou particularmente na questão sobre se o seguro privado deveria ser banido — o que, embora seja bom para os progressistas, causa desconforto para muitos moderados.

"Vamos eliminar tudo isso", disse ela com certa desenvoltura durante uma entrevista. "Vamos continuar."

Nos dias de hoje, a sentença de morte para políticos é parecer muito político — serem percebidos como dispostos a mudar valores e crenças com base no que os eleitores desejam.

Sinceridade, ou pelo menos a aparência dela, é um prêmio de virtude para os eleitores — e parte da razão pela qual Donald Trump se tornou presidente. Embora seus apoiadores nem sempre concordassem com ele, eles sentiam que ele dizia o que pensava.

A mudança de Harris, de moderada, depois para a esquerda e agora de volta, talvez, para o centro de Biden, pode deixar alguns eleitores se perguntando onde estão seus valores fundamentais — ou se ela tem algum valor fundamental.

BBC News / Anthony Zurcher, Correspondente na América do Norte

‘Debandada’: Por que auxiliares de Paulo Guedes estão abandonando o governo Bolsonaro?

Se antes pareciam saídas pontuais por motivos particulares, o desembarque de mais dois auxiliares importantes do ministro da Economia, Paulo Guedes, compôs o que o próprio chamou de “debandada”

Bolsonaro e Guedes vivem afastamento crescente desde a eleição de 2018

Bolsonaro e Guedes vivem afastamento crescente desde a eleição de 2018 / Direito de imagemADRIANO MACHADO/REUTERS

Desde o início do governo deixaram seus cargos Joaquim Levy (BNDES), Marcos Cintra (Receita Federal), Marcos Troyjo (Comércio Exterior), Rubem Novaes (Banco do Brasil), Caio Megale (Fazenda), e Mansueto Almeida (Tesouro Nacional).

A crise interna na pasta econômica do governo Bolsonaro (sem partido) se agravou nesta semana com a saída de Salim Mattar, secretário especial de desestatização, e Paulo Uebel, responsável pela secretaria especial de desburocratização.

“Hoje houve uma debandada? Hoje houve uma debandada”, disse Guedes a jornalistas nesta terça-feira (11). “Salim falou: ‘A privatização não está andando, prefiro sair’. Uebel disse: ‘A reforma administrativa não está sendo enviada, prefiro sair’. Esse é o fato, essa é a verdade.”

Nesta quarta-feira (12), Bolsonaro publicou no Facebook um texto em defesa das privatizações e do teto de gastos públicos.

Há uma série de fatores envolvendo a saída dos auxiliares de Guedes, como reformas emperradas no Congresso ou engavetadas pelo presidente Bolsonaro, falta de vontade de política para privatizar, embate entre rigor fiscal e de ampliação de gastos públicos, disputas com o campo político, projetos que não saem do papel, recessão econômica, cultura do compadrio em Brasília e a crise fiscal agravada pela pandemia de covid-19.

A atual debandada é, para alguns analistas políticos, um marco de virada na trajetória econômica que começou com a agenda liberal defendida por Guedes ainda na campanha eleitoral, a exemplo do plano de vender todas as estatais, algo rejeitado desde as eleições pelo próprio Bolsonaro, cujo perfil estatista despertava desconfianças sobre quão liberal seria seu governo.

Ao longo do mandato, promessas e previsões do ministro da Economia, que falava em crescimento anual de até 5% depois da aprovação da reforma da Previdência e déficit zero em um ano, confrontaram-se com a deterioração econômica do país, que passou de crescimento fraco em 2019 (de 1,1% do PIB) para recessão em 2020, com queda projetada de 11% do PIB no segundo trimestre em meio à crise do coronavírus.

A mudança do debate sobre a política econômica também foi influenciada pela busca por medidas para conter o estrago econômico da pandemia. Como de costume no Executivo, parte do governo Bolsonaro defende a manutenção do rigor fiscal com o teto de gastos e a dívida pública, por exemplo. Outra corrente prega aumento dos gastos públicos como estratégia de crescimento econômico.

Três dos principais debates no governo atualmente, aliás, passam por ampliação do Bolsa Família, auxílio emergencial da pandemia e criação de um tributo para transações digitais, uma espécie de nova CPMF.


Enfraquecido, Guedes nega que vá deixar o cargo e prepara o anúncio de mais um programa econômico. Em dezembro de 2019, ele reclamou de “fake news” sobre supostas mudanças em sua equipe. “Nosso time está unido, não sei de onde vem esse negócio que há uma briga e tem gente pensando em sair. Não entendo isso.” Três dos quatro citados nominalmente à época pelo ministro já deixaram o governo.

Salim Mattar e as privatizações que não saem do papel

Dono da empresa Localiza, de aluguel de veículos, Mattar chegou ao governo com a missão de tocar o gigantesco plano de privatizações prometido desde a campanha eleitoral de 2018.

Naquela época, então assessor econômico do candidato presidencial, Guedes defendia a privatização de todas as empresas estatais. Pouco depois de assumir, o já ministro afirmou em março de 2019 que a desestatização renderia mais de R$ 1 trilhão para os cofres públicos.

Desde o início havia resistência política, inclusive de Bolsonaro, contra a venda de estatais, a exemplo das três principais: Banco do Brasil, Petrobras e Caixa.

Mas houve pouco avanço nessa seara, em grande parte comandada pelo BNDES. Em julho deste ano, Mattar afirmou que o governo federal pretendia privatizar ou conceder à iniciativa privada 12 estatais no primeiro semestre de 2021.

Nova leva de desembarque na equipe econômica leva ministro da Economia a falar em debandada

Uma delas seria a Eletrobras, venda que está nos planos de desestatizações em Brasília desde o governo Temer, mas ainda não saiu do papel. As negociações sobre o modelo de privatização estão em curso com o Congresso.

Até agora, segundo Mattar, a venda de subsidiárias e empresas coligadas a estatais rendeu R$ 150 bilhões ao erário, incluindo a venda da BR Distribuidora por R$ 86 bilhões. Mas o grosso da privatização ainda está em fase de estudo.

A crise econômica agravada pela pandemia de covid-19 atrapalhou o cronograma de desestatização do governo federal, mas Mattar afirmou que esse não é o único motivo para sua saída.

“Existe uma coisa que se chama vontade política. Estou dizendo que, na política, não há uma vontade política de fazer desestatizações”, afirmou ele, em entrevista à CNN Brasil. Segundo Mattar, o establishment dificulta o processo porque discorda das privatizações e a burocracia estatal torna a desestatização muito mais demorada.

A venda dos Correios, por exemplo, levaria no mínimo dois anos até ser concretizada.

Paulo Uebel e a reforma administrativa emperrada

Outro pilar do programa liberal de Paulo Guedes é uma reforma administrativa também com redução do papel do Estado para reequilibrar a situação fiscal, entre outros objetivos.

Secretário de desburocratização, Uebel tentava atrair apoio dentro do governo para a reestruturação do serviço público, mas a forte resistência do funcionalismo levou à desidratação da proposta desde a sua gestação.

Propostas que geram desgastes com aliados e apoiadores, como a redução de salários de servidores públicos, devem ficar de fora da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que ainda nem foi enviada ao Congresso. As mudanças também não devem atingir aqueles que já estão contratados.

Há debate sobre mudanças de estatutos de categorias, concursos públicos, estabilidade e disparidade salarial dentro do funcionalismo.

Mas o projeto de reforma administrativa acabou perdendo força dentro do governo federal mesmo antes do agravamento da situação econômica durante a pandemia. Guedes havia recuado no alcance da proposta diante da forte resistência do Congresso e da ala política do Executivo.

Adiada diversas vezes, a PEC é aventada desde fevereiro, mas não se sabe se o texto chegará ao Congresso neste ano.

Mansueto Almeida e o teto de gastos ameaçado

Secretário do Tesouro Nacional desde o governo Temer, o especialista em contas públicas Mansueto Almeida era até sua saída um dos principais defensores da manutenção do teto de gastos públicos, criado em 2016 para evitar que o governo federal gaste mais do que arrecada ou amplie sua previsão orçamentária acima da inflação.

E desde então o mecanismo previsto para durar duas décadas é alvo de disputa no Executivo e no Legislativo.

Uma das propostas para aumentar gastos passa por um tributo sobre transações digitais, numa espécie de ressurgimento da CPMF

Para um lado, mudanças no teto de gastos abririam espaço na economia para investimentos e estímulos a pessoas físicas e jurídicas durante a pandemia, além de evitar um eventual “apagão de serviços públicos” no país

Mas críticos da proposta, entre eles Mansueto Almeida, afirmam que flexibilizar o teto levaria ao descontrole da dívida pública e ao aumento dos juros no país, o que agravaria a crise.

A aprovação de despesas que agravam o rombo nas contas públicas, como o aumento do BPC (benefício pago a idosos e pessoas de baixa renda com deficiência), ampliaram o desgaste de Almeida no cargo.

Só que, no contexto de pandemia, a restrição orçamentária capitaneada por Almeida se tornou um grande obstáculo para gastos contra os efeitos da crise econômica. O principal deles é o pagamento do auxílio de R$ 600, que o governo Bolsonaro não sabe se acaba com ele ou o mantém, dado o impacto econômico significativo na população e nos índices de popularidade do presidente.

Como a pandemia não dá sinais de arrefecimento e a vantagem imediata do auxílio sobre a popularidade do presidente tem se mostrado considerável, assegurar o benefício emergencial ganhou primazia sobre pautas do campo liberal, como as privatizações.

Mas não só, enquanto Paulo Guedes e seus auxiliares queriam cortar gastos e enxugar o Estado, a gestão Bolsonaro tem dado sinais de que fará exatamente o contrário, com apoio a ala militar.

Almeida pediu demissão do Tesouro Nacional em junho e passou em quarentena obrigatória para quem ocupa cargos públicos estratégicos. Em janeiro de 2021, passará a ser sócio e economista-chefe do banco BTG Pactual.

Fonte: BBC News Brasil

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Brasil confirma hoje 102.034 mortes e contabiliza 3.068.138 infectados pela Covid-19.

Veja os números consolidados:

102.034 mortes confirmadas

3.068.138 casos confirmadas

Às 8h, de hoje o consórcio publicou a primeira atualização do dia com 101.936 mortes e 3.062.374 casos.

Na segunda-feira (10), às 20h, o balanço indicou: 101.857 mortes, 721 em 24 horas. Com isso, a média móvel de novas mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 1.022 óbitos, uma variação de +2% em relação aos dados registrados em 14 dias.

Em casos confirmados, eram 3.056.312 brasileiros com o novo coronavírus desde o começo da pandemia, 20.730 desses confirmados no último dia. A média móvel de casos foi de 43.521 por dia, uma variação de -4% em relação aos casos registrados em 14 dias.

Progressão até 10 de agosto

No total, 8 estados apresentaram alta de mortes: RS, SC, MG, SP, MS, AM, TO e BA.

Em relação a domingo (9), SP, MS, TO e BA estavam com a média de mortes em estabilidade e, agora, estão subindo.

Subindo: RS, SC, MG, SP, MS, AM, TO e BA.

Em estabilidade, ou seja, o número de mortes não caiu nem subiu significativamente: ES, DF, GO, MT, AP, PE, PI e RN.

Em queda: RJ, AC, PA, RO, RR, AL, CE, MA, PB e SE.

O estado do Paraná não divulgou os dados até as 20h. Considerando os dados até 20h de domingo (9), estava em estabilidade (-2%).

Essa comparação leva em conta a média de mortes nos últimos 7 dias até a publicação deste balanço em relação à média registrada duas semanas atrás (entenda os critérios usados pelo G1 para analisar as tendências da pandemia).

Fonte: G1 / Globo News

Kamala Harris é escolhida candidata a vice-presidente na chapa de Joe Biden

Candidato do Partido Democrata fez anúncio pelas redes sociais. Se derrotarem Donald Trump, senadora será a primeira eleita vice-presidente dos EUA

A senadora Kamala Harris declara seu apoio ao pré-candidato democrata Joe Biden, durante comócio em Detroit, Michigan, em 9 de março — Foto: Jeff Kowalsky/AFP

A senadora Kamala Harris declara seu apoio ao pré-candidato democrata Joe Biden, durante comício em Detroit, Michigan, em 9 de março — Foto: Jeff Kowalsky/AFP

O candidato do Partido Democrata à Presidência dos EUA, Joe Biden, escolheu como companheira de chapa a senadora Kamala Harris, de 55 anos. Caso vençam Donald Trump nas eleições de novembro, ela será a primeira mulher eleita a ocupar o cargo de vice-presidente dos Estados Unidos.

Biden usou as redes sociais para anunciar o nome da vice nesta terça-feira (11). "Eu tenho a grande honra de anunciar que escolhi Kamala Harris — uma lutadora destemida pelos pequenos e uma das melhores servidores públicas do país — como minha parceira de chapa", escreveu.

O candidato a presidente mencionou o filho morto em 2015, Beau Biden, que também atuou como procurador. Segundo ele, os dois trabalharam juntos.

"Eu era orgulhoso deles, e agora sinto orgulho de tê-la como minha parceira nesta campanha", disse.

Quem é Kamala Harris

Senadora pelo estado da Califórnia desde 2017, Harris chegou a se apresentar como pré-candidata à Casa Branca e liderou algumas das pesquisas internas do Partido Democrata. No entanto, foi perdendo apoio até deixar de vez a corrida presidencial.

Harris nasceu de pais imigrantes: um pai jamaicano e uma mãe indiana, que, inclusive, se notabilizou pela pesquisa na área de câncer e como ativista de direitos civis.

Formada em direito e ex-procuradora do Distrito de San Francisco e do estado da Califórnia, a agora candidata a vice ganhou projeção nacional ao questionar duramente , em sabatinas no Senado, indicados por Trump para cargos de juiz da Suprema Corte e de Secretário de Justiça.

Fonte: G1 / Globo News

Os cheques para a primeira-dama

É preciso uma explicação muito diferente das que foram apresentadas até agora sobre o relacionamento da família Bolsonaro com o ex-policial militar Queiroz

O presidente Jair Bolsonaro deve ao País uma explicação convincente sobre os cheques depositados por Fabrício Queiroz, ex-policial militar e ex-assessor parlamentar do filho Flávio, em nome da primeira-dama Michelle Bolsonaro. As movimentações datam de outubro de 2011 a dezembro de 2016, em valores de R$ 3 mil e R$ 4 mil, alcançando a soma de R$ 72 mil. Revelado pela revista Crusoé, o detalhamento dos depósitos de Queiroz em nome de Michelle foi confirmado pelo Estado.

É preciso uma explicação muito diferente das que foram apresentadas até agora sobre o relacionamento da família Bolsonaro com o ex-policial militar Queiroz. Desde que foi revelada, no segundo semestre de 2018, a investigação envolvendo movimentações suspeitas de Fabrício Queiroz e os Bolsonaros, o que se ouviu foram relatos pouco convincentes que, com o passar do tempo, se mostraram insustentáveis. Bastou vir uma nova informação sobre o caso para que a explicação anterior se tornasse inverossímil. O País não merece versões parciais, especialmente de quem chegou ao Palácio do Planalto prometendo combater a corrupção.

A revelação dos depósitos de R$ 72 mil escancara, por exemplo, a insuficiência da explicação dada em dezembro de 2018, quando veio à tona relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), anexado aos autos da Operação Furna da Onça, que citava um cheque de R$ 24 mil depositado por Fabrício Queiroz em favor de Michelle Bolsonaro. A movimentação levantou suspeita, uma vez que não se encaixava nas atribuições funcionais do ex-policial militar que foi assessor parlamentar de Flávio Bolsonaro até outubro daquele ano. 

Na ocasião, a explicação para a movimentação dos R$ 24 mil na conta de Michelle Bolsonaro não foi dada pela titular da conta. Foi Jair Bolsonaro quem apresentou uma razão para o tal depósito do assessor parlamentar de seu filho na conta de sua mulher. Segundo Bolsonaro, o valor de R$ 24 mil referia-se ao pagamento de um débito antigo que Fabrício Queiroz tinha com ele, Jair Bolsonaro.

Segundo Bolsonaro, o montante devido por Fabrício seria ainda maior, na ordem de R$ 40 mil. “Emprestei dinheiro para ele (Queiroz) em outras oportunidades. Nessa última agora, ele estava com um problema financeiro e uma dívida que ele tinha comigo se acumulou. Não foram R$ 24 mil, foram R$ 40 mil. Se o Coaf quiser retroagir um pouquinho mais, vai chegar nos R$ 40 mil”, disse Bolsonaro em dezembro de 2018 ao site O Antagonista. 

Como agora se sabe, os valores depositados não foram R$ 24 mil, tampouco R$ 40 mil. Foram identificados R$ 72 mil de Fabrício Queiroz para Michelle Bolsonaro. Por que essa movimentação de dinheiro entre Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar de Flávio, e a mulher de Jair Bolsonaro? E uma vez que foi Jair Bolsonaro quem deu a primeira explicação sobre essas movimentações – seria um antigo débito entre Jair e Fabrício –, cabe agora ao presidente dar um cabal esclarecimento sobre os repasses.

A explicação sobre os depósitos na conta de Michelle Bolsonaro também deve incluir outros depósitos um tanto esquisitos, para dizer o mínimo. Não apenas Fabrício depositou cheques na conta da primeira-dama, como também a mulher do ex-policial militar, Márcia de Oliveira Aguiar, repassou valores à mulher de Jair Bolsonaro. Foram identificados seis depósitos, num valor total de R$ 17 mil, em 2011 de Márcia na conta de Michelle Bolsonaro. A mulher de Fabrício Queiroz também trabalhou no gabinete de Flávio Bolsonaro.

As investigações indicam o ex-policial militar como o operador financeiro do suposto esquema de “rachadinha” instalado no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Quando foi preso em junho, Fabrício estava hospedado em residência de Frederick Wassef, advogado de Jair Bolsonaro. Atualmente, Fabrício e Márcia cumprem prisão domiciliar.

O presidente Jair Bolsonaro deve uma explicação ao País sobre todos esses cheques. Não cabe penumbra em assunto tão sensível – movimentação de dinheiro de assessores parlamentares para familiares dos parlamentares.

Editorial - Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, 11 de agosto de 2020 | 03h00

O governo fictício de Mourão

O vice-presidente discursa como se refletisse ideias e atitudes de um governo organizado, moderno e guiado por valores civilizados

Hamilton Mourão

O vice-presidente Hamilton Mourão Foto: Dida Sampaio/Estadão

Com palavras civilizadas, incomuns na atual diplomacia brasileira, o vice-presidente Hamilton Mourão discursou como representante de um governo imaginário, ao participar de evento ibero-americano organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ele pode ter manifestado suas ideias, ao falar em compromisso com “parâmetros globais de sustentabilidade” e com o multilateralismo, mas esses valores têm sido rejeitados, de forma persistente, pelo presidente Jair Bolsonaro e por vários ministros. A noção de uma ordem multilateral é hoje igualmente execrada no Palácio do Planalto e na Casa Branca, endereço do guia e modelo do principal mandatário brasileiro. 

“Executamos medidas urgentes para conter o desmatamento e as queimadas e estamos construindo um planejamento para médio e longo prazos para a Amazônia Legal”, disse o vice. Ele usou a primeira pessoa do plural, mas faltou – detalhe importantíssimo – esclarecer a quem se refere o pronome “nós”.

Haverá nesse pronome uma referência ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles? Nesse caso, como dar conta de sua tentativa, há poucos dias, de baixar a meta de redução do desmatamento? Mais difícil, ainda, é explicar a posição do presidente da República, crítico das informações ambientais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), protetor do ministro Salles e apoiador de suas ações contra o Ibama.

Na Amazônia, admitiu o vice-presidente, o desmatamento em 2020 poderá ultrapassar o do ano anterior. Se houver necessidade, acrescentou, o governo poderá manter até 2022 a ação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), usando a força militar para proteção do ambiente.

Mas o general Mourão foi além, ao comentar a importância da preservação ambiental para o sucesso comercial do agronegócio. O aumento dos crimes ambientais, afirmou, expõe o agronegócio a campanhas difamatórias e a políticas protecionistas no exterior.

O problema é real. Essas campanhas, no entanto, são favorecidas por ações e atitudes do presidente e de outras autoridades, pormenores omitidos pelo vice-presidente. Mas ele mostrou realismo – virtude rara, no governo, quando se trata dessas questões – ao mencionar a importância, para as empresas, de apresentar boas “credenciais ambientais, sociais e de governança”.

Além do vice-presidente, só a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, tem mostrado percepção dos problemas criados pelo presidente, por ministros e por pessoas próximas da Presidência, quando defendem o afrouxamento da defesa ambiental ou ofendem parceiros comerciais.

Ainda falando em nome de um governo que não deveria ser imaginário, o vice-presidente mostrou pesar pela morte de mais de 100 mil pessoas pela covid-19. “São perdas irreparáveis, que colocam toda a nação em luto”, afirmou. O presidente só mencionou o assunto quando foi inevitável, nos últimos dias, sempre mostrando impaciência e logo passando a outro tema. “Vamos tocar a vida”, foi a frase de Bolsonaro, na quinta-feira, logo depois de comentar com o ministro da Saúde a proximidade do número 100 mil.

O general Mourão mencionou ainda os desafios da recuperação econômica e falou sobre prioridades da política econômica e sobre a pauta de reformas. Nessa altura, aproximou-se mais da realidade do atual governo. Isso em nada enriqueceu o discurso. Poderia tê-lo piorado, se o vice-presidente se dispusesse a defender, como há poucos dias, a criação de um tributo semelhante à CPMF.

Esse tributo será necessário, segundo o ministro da Economia, para permitir a desoneração da folha de pagamentos. O vice-presidente incorporou esse argumento. Não lhe ocorreram, aparentemente, duas perguntas simples e óbvias: 1. Por que só a CPMF, uma aberração execrada na maior parte do mundo e condenada, no Brasil, por economistas de primeiro time, tornará possível aquela desoneração? 2. Foram examinadas outras soluções?

Mas o discurso ficou longe desses detalhes. Assim, pôde soar como se refletisse ideias e atitudes de um governo organizado, moderno e guiado por valores civilizados. 

Editorial - Notas & informações, O Estado de S.Paulo / 11 de agosto de 2020 | 03h00



 

Vacina russa desperta mais desconfiança que otimismo entre os cientistas

Falta de transparência dos resultados da vacina, registrada nesta terça-feira, deixam dúvidas sobre sua eficácia

Quando o governo russo programou uma vacinação em massa contra o coronavírus para outubro, os cientistas brasileiros mostraram mais desconfiança e cautela do que otimismo com a perspectiva de cura da doença que já infectou 20 milhões de pessoas no mundo. As dúvidas aumentaram nesta terça-feira, 11, quando o presidente Vladimir Putin afirmou que a Rússia se tornou o primeiro país do mundo a aprovar a regulamentação para uma vacina contra a covid-19. A possibilidade do estudo “pular” etapas de testes para acelerar a distribuição da vacina e a falta de transparência dos resultados deixam dúvidas sobre sua eficácia.

Vacina

Vacina

No caso de imunizantes em teste para a covid, pesquisadores estimam que eles possam estar licenciados menos de seis meses após o início da fase 3. Foto: Wilton Junior/Estadão

O Ministério da Saúde da Rússia informa que as pesquisas estão na fase 3, a última e mais importante das etapas de produção de uma vacina, mas não divulgou estudos em nenhuma revista científica sobre os resultados e a duração e os detalhes das fases anteriores. Segundo o órgão, a vacina já está apta para ser distribuída à população. Existem controvérsias. De acordo com o site russo Meduza, criado por jornalistas independentes, a Associação de Organizações de Pesquisa Clínica, entidade que reúne empresas farmacêuticas e organizações de pesquisa locais, aponta que a vacina ainda está na fase I-II de acordo com o registro de ensaios clínicos. A previsão de conclusão seria apenas em dezembro. Por isso, a entidade chegou a pedir ao Ministério da Saúde o adiamento do registro da vacina, o que não aconteceu. De acordo com o site Clinical Trials, referência mundial das pesquisas em andamento criada pelos Estados Unidos, os estudos russos ainda estão na fase 1 e 2.  

Como comparação, a vacina Coronavac, parceria do Instituto Butantã com a empresa chinesa Sinovac Biotech e que está sendo testada em voluntários brasileiros, vai precisar de 90 dias para concluir a fase 3. Se os testes tiverem resposta positiva, a vacina deve estar disponível apenas para a população no início de 2021. O experimento russo tem menos de dois meses de testes em humanos.

“Temos 26 vacinas em fase clínica de estudos e seis na fase 3. A vacina russa está em fase 1. Mas o governo está indicando uma vacina pronta em agosto. Isso é impossível. Porque pressupõe, necessariamente, estudos de fase 3, que não podem ser feitos sem a conclusão da fase 2. É impossível fazer tudo isso neste tempo”, opina a infectologista e epidemiologista Cristiana Toscano, de 48 anos, professora do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da UFG (Universidade Federal de Goiás) e representante da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

Cristiana está diretamente envolvida na busca por uma vacina contra o coronavírus. Ela é única representante da América do Sul a integrar o Grupo de Trabalho de Vacinas para covid-19 do Grupo Estratégico Internacional de Experts em Vacinas e Vacinação (SAGE), da Organização Mundial da Saúde. A especialista tem o papel de revisar, junto com os outros 14 componentes do grupo de trabalho, as evidências disponíveis sobre o progresso das vacinas candidatas contra a doença e definir estratégias e planos sobre o uso acelerado de vacinas (pré e pós-licenciamento).

A falta de publicação e compartilhamento dos dados de uma vacina registrada acentua a preocupação a nível mundial, opina a bióloga Natalia Pasternak, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência. “A comunidade científicia internacional está no escuro. É motivo de muita preocupação. Temos uma população de cerca de 150 milhões de pessoas que vai começar a ser vacinada sem que conheçamos os efeitos.  A Rússia pode fazer o registro, mas o vírus não tem fronteira”, compara a especialista. "Não é apenas a falta de transparência. É a conclusão de um estudo sem a apresentação de resultados", conclui. 

Tradicionalmente, vacinas levam em média dez anos para serem produzidas. A mais rápida foi a da caxumba, que demandou quatro anos. O desenvolvimento de novas tecnologias acelerou o processo, e a expectativa atual era de um produto disponível no início do ano que vem. Depois dos testes laboratoriais e pré-clínicos, feitos com animais, as vacinas passam por mais três etapas de testes em seres humanos. A primeira avalia a segurança em 20 a 80 voluntários, geralmente adultos saudáveis. A segunda aprofunda as análises, observando os efeitos em centenas de pessoas. Na última etapa, ela testa a segurança e eficácia em milhares de indivíduos. No caso da covid-19, as seis pesquisas no mundo que já atingiram essa fase vão aplicar duas doses da vacina nos voluntários, com intervalos de 14 a 28 dias entre elas.

Queimar etapas no desenvolvimento de uma vacina para acelerar sua distribuição levanta questões éticas de acordo com o virologista Paulo Eduardo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), afirma que. “Esses estudos geram dúvidas na comunidade científica mundial por causa da intenção dos envolvidos de saltar etapas e passar diretamente ao uso da vacina em escala mais ampla sem uma consolidação de sua eficácia e segurança de acordo com protocolos científicos que devem ser seguidos para qualquer vacina”, opina o especialista. “Não é ético fazer isso.”

Alheia à desconfiança da comunidade científica internacional, a Rússia acelerou seu cronograma seguindo determinação do presidente Putin, que queria simplificar e encurtar o prazo para os ensaios clínicos e pré-clínicos. Na reunião governamental transmitida pela televisão estatal, ele afirmou que uma de suas filhas tomou a vacina. “Sei que funciona de maneira bastante eficaz, forma uma forte imunidade e, repito, passou em todos os testes necessários”, disse Putin.

Na semana passada, Tatiana Golikova, vice-primeira-ministra, afirmou que o imunizante teria registro com a condição de “outro ensaio clínico para 1.600 pessoas ser realizado” em seguida. O ministro da Saúde da Rússia, Mikhail Murashko, anunciou que o programa de vacinação em massa começa em outubro. O imunizante foi desenvolvido pelo Instituto Gamaleya de Epidemiologia e Microbiologia, um tradicional centro produtor de vacinas do governo federal e que funciona desde a época do regime comunista. Os testes estão sendo feitos na Primeira Universidade Estadual Médica Sechenov de Moscou.

A vacina já foi administrada a 38 pessoas. Do total, 18 receberam a vacina uma vez e as outras 20 receberam duas doses, para estimular ainda mais o desenvolvimento da imunidade. Cada pessoa vacinada mantinha um diário no qual eram registrados os efeitos colaterais, como febre, erupção cutânea ou vermelhidão no local da injeção. Denis Logunov, vice-diretor científico do Instituto Gamaleya, declarou que não foram observados efeitos colaterais significativos. A Associação de Organizações de Pesquisa Clínica criticou a atuação dos cientistas, especialmente Logunov, que teria injetado a vacina em si mesmo quando ela ainda estava em fase de testes em animais. Os voluntários, que têm entre 18 e 65 anos, serão monitorados por mais seis meses.

A infectologista Rosana Richtmann, do Instituto Emilio Ribas, afirma que a vacina russa utiliza a plataforma do vetor-viral, a mesma técnica utilizada pela Universidade Oxford, que possui os estudos mais promissores sobre a vacina. “A única diferença é que os russos usam dois adenovírus, mas essa é uma das poucas informações que nós temos. Desconheço qualquer publicação ou estudo. A investigação não é transparente para o resto do mundo”, critica.

Nesse tipo de pesquisa, o adenovírus, inócuo a seres humanos, transporta para dentro das células das pessoas vacinadas um gene capaz de produzir a proteína da espícula do novo coronavírus e, possivelmente, levar à formação de anticorpos. Os russos usaram como ponto de partida uma pesquisa anterior de vacina para outro coronavírus, o causador da Mers, doença respiratória da mesma família da covid-19 que atingiu especialmente o Oriente Médio a partir de 2012.

Cidadãos divididos

A vacina divide opiniões até entre os cidadãos russos. A jornalista e tradutora Daria Kornilova, de 45 anos, acredita que a vacina é uma ferramenta de propaganda. “O povo russo deve estar convencido do nosso sucesso. Isso, segundo as autoridades, pode reduzir a insatisfação com a situação econômica e política. Mas a Rússia pode recorrer a falsificações em prol de um resultado propagandístico? Claro que sim. O escândalo olímpico de doping mostra isso”, diz a moradora de Moscou, referindo-se à investigação da Agência Mundial Antidoping (Wada) de 2015 que apontou uma sistema de dopagem institucionalizado no atletismo russo.

Para Natália Zhavoronkova, de 32 anos, “ninguém vai arriscar a saúde da população”. “Se a vacina não funcionar do jeito esperado o triunfo pode virar catástrofe”, opina a gerente de TI. Já o médico particular Konstantin Boykov afirma que o país enfrenta problemas na àrea de saúde. “Em comparação com a época da União Soviética, os cuidados de saúde e prevenção de doenças estão diminuindo. Antes, toda escola tinha um médico, por exemplo. Hoje, não é mais assim. Acho improvável que a Rússia consiga desenvolver uma vacina tão rapidamente”, diz o especialista.  

Gonçalo Junior, O Estado de S. Paulo

Hormônio do exercício pode ter efeito terapêutico em casos de covid-19, sugere estudo

De acordo com pesquisa da Unesp, a irisina, liberada pelos músculos durante a atividade física, pode modular genes associados à maior replicação do novo coronavírus dentro de células humanas

Um estudo conduzido na Universidade Estadual Paulista (Unesp) sugere que o hormônio irisina, liberado pelos músculos durante a atividade física, pode ter efeito terapêutico em casos de covid-19. Ao analisar dados de expressão gênica de células adiposas, os pesquisadores observaram que a substância tem efeito modulador em genes associados à maior replicação do novo coronavírus (SARS-CoV-2) dentro de células humanas.

O achado teve como base dados de transcriptoma (conjunto de moléculas de RNA expressas em um tecido) de células adiposas não infectadas por SARS-CoV-2 que receberam doses de irisina.“Confrontamos as informações sobre os genes importantes na covid-19 com nossos dados do transcriptoma para fazer correlações. O resultado representa uma sinalização positiva para a busca por novos tratamentos nesse momento de emergência com a pandemia", diz Miriane de Oliveira , pesquisadora da Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu (SP).

No entanto, de acordo a cientista, é preciso ressaltar que trata-se de dados preliminares, uma sugestão do potencial terapêutico da irisina para casos de covid-19. "Estamos indicando um caminho de pesquisa para comprovar ou não o efeito benéfico do hormônio em pacientes infectados.”

O artigo, publicado na revista Molecular and Cellular Endocrinology, descreve dados gerados no estudo de pós-doutorado de Miriane, que analisou a ação da irisina e de hormônios tireoidianos em adipócitos. O trabalho contou com apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Pa

Por meio de técnicas de sequenciamento, os pesquisadores identificaram 14.857 genes expressos em uma linhagem de adipócitos subcutâneos. Ao tratar as células com irisina, observaram que a expressão de vários genes foi alterada.

Por causa da pandemia, os pesquisadores decidiram investigar possíveis efeitos da irisina em genes relacionados à replicação do SARS-CoV-2. A partir do cruzamento de dados, eles descobriram que o tratamento com a irisina em células adiposas diminuiu a expressão dos genes TLR3, HAT1, HDAC2, KDM5B, SIRT1, RAB1A, FURIN e ADAM10, reguladores do gene ACE2 – fundamental para a replicação do vírus em células humanas. O ACE2 codifica a proteína a que o vírus precisa se ligar para invadir células humanas.

Volta academias 

Volta academias

Hormônio do exercício pode ter efeito terapêutico em casos de covid-19, sugere estudo. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Outro aspecto positivo encontrado no estudo foi a irisina ter triplicado os níveis de transcrição do gene TRIB3. Estudo anterior demonstrou a importância da manutenção da expressão de TRIB3. Em indivíduos idosos, é comum ocorrer a diminuição da expressão desse gene, o que pode estar relacionado à maior replicação do SARS-CoV-2 e ao risco aumentado dessa população à covid-19.

“Um terceiro aspecto importante está no achado de outros grupos de pesquisa sobre o tecido adiposo aparentemente servir como repositório do vírus. Isso ajuda a entender por que indivíduos obesos têm maior risco de desenvolver a forma grave da doença. Fora isso, indivíduos obesos tendem a ter níveis menores de irisina, assim como maiores quantidades da molécula receptora do vírus [ACE2], quando comparados a indivíduos não obesos”, explica a pesquisadora.

A irisina, normalmente produzida de modo endógeno durante o exercício físico contínuo, é conhecida pela função de modificação metabólica do tecido adiposo branco – que armazena triglicerídeos, lipídios, acumula gordura e pode vir a ser inflamado –, tendo função similar ao tecido adiposo marrom. Esse processo favorece o gasto energético, o que torna a irisina um agente endógeno terapêutico para doenças metabólicas, como a obesidade.

É também conhecida a capacidade moduladora do hormônio na atividade dos macrófagos (células de defesa do sistema imune), o que confere potencial propriedade anti-inflamatória.

Gerenciamento de dados

O estudo de Miriane de Oliveira é um exemplo de como o gerenciamento de dados obtidos em pesquisas básicas pode semear outras descobertas e linhas de pesquisa.

“Fizemos inicialmente uma análise comparativa entre a ação da irisina e dos hormônios tireoidianos na diminuição de acúmulo lipídico e na modulação de genes nas células adiposas. O estudo gerou um volume grande de dados e, conforme veio a pandemia e outros grupos de pesquisa iam descobrindo os genes associados à replicação do SARS-CoV-2, decidimos investigar no nosso banco de dados como a irisina [e os hormônios tireoidianos] poderia influenciar a doença”, relata à Agência FAPESP.

A investigação original do grupo de pesquisadores buscou descobrir de que forma esses hormônios desempenham o papel termogênico na diminuição do tecido adiposo e geração de energia nos adipócitos. “Para isso, fizemos o transcriptoma e identificamos que genes seriam afetados na presença desses hormônios. Dados que serviram de base para o estudo sobre a covid-19”, diz.

Com o estudo, Miriane identificou que a irisina não só diminui o acúmulo lipídico como aumenta a expressão da proteína desacopladora 1 (UCP1), associada a maior gasto calórico. O aumento da expressão dessa proteína é compatível com a redução de dano de DNA e de estresse oxidativo.

Com a maior compreensão do papel da irisina em fatores correspondentes à obesidade e também a sua possível relação com os casos de covid-19, o grupo de pesquisadores vai analisar o efeito do hormônio em células infectadas com SARS-CoV-2.

O trabalho, que também será coordenado pela professora da Faculdade de Medicina da Unesp em Botucatu Célia Regina Nogueira de Camargo, é apoiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

“O objetivo é dar mais um passo nesse estudo e verificar em modelo tridimensional de cultura celular de adipócitos os resultados obtidos no nosso trabalho de bioinformática. Queremos entender como ocorre a modulação, por parte da irisina, nos genes relacionados à replicação do novo coronavírus”, diz

Maria Fernanda Ziegler, Agência FAPESP / Publicadoo originalmente em O Estado de S. Paulo

Coronavírus: Como obesidade pode estar impulsionando gravidade e morte de jovens por covid-19

"Concluímos que, em populações com grande prevalência da obesidade, a covid-19 afetará mais as populações mais jovens", afirmaram em maio três pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em texto publicado na revista médica Lancet.

Na ocasião, os autores apresentaram os resultados preliminares de uma pesquisa que buscou confirmar, com dados, algo que estava sendo observado na prática no hospital universitário da Johns Hopkins: pacientes jovens que chegavam às unidades de terapia intensiva (UTI) tendiam a ser obesos.

Os cientistas reuniram então dados de 265 pacientes internados em seis hospitais universitários americanos e concluíram que, sim, havia uma correlação inversa entre idade e Índice de Massa Corporal (IMC): pessoas mais novas internadas por covid-19 tinham maior probabilidade de ter IMC alto, na faixa da obesidade.

Quase três meses depois, novos relatos em hospitais e pesquisas científicas se somaram a este achado.

"Nossa correspondência (tipo de texto em um periódico científico, normalmente com etapas menos estritas que um artigo padrão) foi uma das primeiras, mas desde então já foram publicados 400 estudos — e este número continua aumentando — debatendo a conexão entre obesidade e os efeitos da covid-19 em uma pessoa infectada", explicou por e-mail à BBC News Brasil David A. Kass, cardiologista, professor da Universidade Johns Hopkins e um dos autores do trabalho.

"Existem hoje muitas pesquisas demonstrando que, se você considera os riscos que a obesidade sozinha produz para quadros piores de covid-19 (risco de hospitalização; de internação em UTI; ou de morrer), eles são consideravelmente aumentados em indivíduos com idade menor que 50-60 anos. Em pessoas mais idosas, digamos com mais de 65 anos, a obesidade sozinha se torna um risco menos proeminente."

"Presumo que seja porque em idades mais avançadas, existem muitas outras comorbidades — o envelhecimento e vulnerabilidades em si, histórico de câncer, doenças cardíacas, doenças imunológicas, doenças pulmonares — e que se tornam mais significativas nessa faixa etária".

EUA e Brasil: líderes em covid-19 e população com alto percentual de obesos

Fila para teste de covid-19 nos EUA; chegada da covid-19 no país, com cerca de 36% da população adulta obesa, provocou mais estudos sobre a associação entre doenças

Os autores da carta no Lancet também escreveram que, ao chegar aos EUA, o coronavírus tinha feito médicos e cientistas ficarem em alerta sobretudo para a população idosa — que se mostrou particularmente vulnerável na China e Itália, por onde a doença passou e deixou vítimas primeiro.

Mas, nos EUA, a alta prevalência da obesidade — 36% da população adulta, segundo dados globais de 2016 — explicitou este novo e relevante risco.

Professor de medicina da Universidade de Campinas (Unicamp) e diretor do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades, Licio Augusto Velloso avalia que, neste infeliz encontro entre as duas doenças, o Brasil tem mostrado características semelhantes aos EUA. Aqui, 22% da população adulta foi considerada obesa no levantamento de 2016, enquanto China e Itália aparecem respectivamente com 6% e 19,9%.

"Um outro fator importante na Itália é que a população é bem mais velha, então o principal fator da alta mortalidade lá parece ter sido a idade. Nos EUA, têm se destacado a obesidade e a diabetes."

Com altos percentuais de obesos, diz Velloso, as evidências têm confirmado a conclusão dos pesquisadores da Johns Hopkins de que populações com estas características colocam faixas etárias mais jovens em maior risco.

"Já há muitos estudos mostrando que, nos EUA, há uma mortalidade significativa nas faixas etárias intermediárias. O Brasil vai no caminho dos EUA, porque a nossa taxa de obesidade está muito alta — não tanto quanto nos EUA, mas também assustadoramente alta", aponta o médico, acrescentando que, no Hospital de Clínicas da Unicamp, é sabido pela equipe, por observação, que os jovens mais gravemente afetados pela covid-19 são na maioria obesos.

E, mesmo que países como o Brasil tenham uma população mais nova em geral, ele acredita que a relevância da covid-19 em faixas etárias mais baixas "certamente é mais porque estamos com jovens muito obesos, do que porque temos muitos jovens".

De acordo com dados do Ministério da Saúde, até o início de agosto a distribuição de pessoas hospitalizadas por covid-19 no Brasil por faixa etária foi maior nas idades de 60 a 69 anos (20%); 50 a 59 anos (18%); 70 a 79 anos (17%); 40 a 49 anos (14%); 80 a 89 anos (10%); 30 a 39 anos (10%); 20 a 29 (3.9%).

Combinação com hipertensão e diabetes

"Em fevereiro, os primeiros estudos publicados na China já deixavam claro que pacientes com obesidade, diabetes, hipertensão evoluíam de forma mais grave", apontou Licio Velloso, da Unicamp, em entrevista por telefone.

De antes da pandemia, a associação entre obesidade, diabetes e hipertensão já é bastante conhecida.

"Aproximadamente 60 a 70% das pessoas que são obesas acabam desenvolvendo tanto diabetes como hipertensão. Essas condições começam normalmente porque já há a obesidade de base", explica Velloso.

Por isso, explica o pesquisador, para os mais jovens a obesidade pode ser um fator mais relevante para a covid-19, pois normalmente — mas nem sempre — precede o desenvolvimento da diabetes e hipertensão.

Ele e David Kass destacaram que a produção científica se encaminha para, agora, responder mais precisamente como cada um desses fatores — obesidade, diabetes e hipertensão — influencia no desenrolar da covid-19, em diferentes idades.

Médicos relatam frequência, nos hospitais, de jovens internados com covid-19 que eram também obesos

Enquanto mais estudos são produzidos, na linha de frente profissionais como Peterson Lodi, que trabalhou no Hospital de Campanha do Leblon, no Rio, observaram características da covid-19 em jovens obesos que podem ajudar a entender a associação entre as doenças.

"Era nítida a tendência de pacientes jovens e obesos ficarem mais graves. Era rotineiro", lembra Lodi, também residente em medicina de emergência no Hospital Quinta D'Or.

"Observávamos nos jovens obesos muita falta de ar. Era mais comum e frequente um jovem obeso com insuficiência respiratória aguda, precisando de oxigênio, de broncodilatador", conta, relatando também nestes pacientes atendidos no Rio maior frequência do aparecimento da chamada ferida de decúbito (uma ferida causada pela pressão do peso em algum ponto do corpo) e uma demora na resposta à pronação (um procedimento de virar a barriga para baixo, ajudando na oxigenação).

Licio Velloso aponta pelo menos três explicações para a gravidade da covid-19 em pessoas obesas, não apenas as mais jovens. A primeira é que obesos, assim como diabéticos, são naturalmente imunodeficientes, com uma resposta imunológica menos eficiente em doenças mais conhecidas, como pneumonia, infecções renais e úlceras na pele, por exemplo.

Ilustração de proteínas de ligação do coronavírus (vermelho) se conectando aos receptores da célula humana alvo (azul) — para os coronavírus, estes receptores são do tipo enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2)

A segunda: tanto obesos como diabéticos e hipertensos têm uma quantidade grande da proteína que o coronavírus usa como receptor — a enzima conversora da angiotensina 2 (ECA2): "É como se a proteína fosse uma porta para o vírus entrar na célula. Todo mundo tem essa proteína, mas pessoas com hipertensão, diabetes e obesidade têm uma quantidade maior. É como se o vírus tivesse mais portas para entrar."

A terceira explicação foi detalhada em um artigo publicado por ele e colegas brasileiros no periódico Cell Metabolism, em julho. No trabalho, os autores mostraram que a glicose alta em pessoas diabéticas promove desajuste em células do sistema imune, o que atrapalha na defesa contra o coronavírus.

Presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), o endocrinologista Mario Kedhi Carra acrescenta que a obesidade leva a condições do corpo, como a compressão do diafragma, que dificultam o combate a doenças respiratórias; e também a um estado naturalmente "inflamado" — com maior circulação no corpo das chamadas citocinas pró-inflamatórias (substâncias produzidas pelo sistema de defesa), por exemplo.

Carra explica que, para além da medida do IMC — que a partir do valor 30 indica obesidade —, esta doença é definida principalmente pelo excesso de massa gordurosa em relação à magra. Isto pode ser constatado com exames como medida da circunferência abdominal, tomografia ou densitometria de corpo inteiro.

Perguntado sobre os riscos para pessoas obesas que têm hábitos saudáveis, como praticar exercícios, o endocrinologista respondeu que, existindo excesso de tecido gorduroso, isto já traz problemas para a saúde. Assim, mesmo o sobrepeso já é capaz de levar a alguns distúrbios metabólicos prejudiciais.

Para pessoas com sobrepeso e obesas, vale o reforço de medidas aconselhadas à população em geral para se proteger da covid-19.

"A recomendação é se resguardar: usar máscaras, lavá-las, evitar aglomeração. Muito cuidado também com a alimentação: de todos, os mais negativos são bebidas alcoólicas e alimentos com açúcar e gordura."

Ele acrescenta ainda que, mesmo a curto prazo, certas mudanças de hábitos já podem fortalecer o organismo em geral.

"Qualquer quantidade de quilos diminuída já traz melhorias enormes na saúde", diz, mencionando alterações rápidas já passíveis de serem observadas, como na pressão arterial, falta de ar e resposta inflamatória.

Mariana Alvim - @marianaalvim, da BBC News Brasil em São Paulo

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

País conta 101.269 óbitos registrados e 3.039.349 diagnósticos de Covid-19.

O Brasil tem 101.269 mortes por coronavírus confirmadas até as 13h desta segunda-feira (10) segundo levantamento do consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de Saúde Desde o balanço das 20h de domingo (9), 7 estados e o DF atualizaram seus dados: AC, GO, MG, MS, PE, RN e RR.

Veja os números consolidados:

101.269 mortes confirmadas

3.039.349 casos confirmados

Às 8h, o consórcio publicou a primeira atualização do dia com 101.142 mortes e 3.035.649 casos.

No domingo (9), às 20h, o balanço indicou: 101.136 mortes, 593 em 24 horas. Com isso, a média móvel de novas mortes no Brasil nos últimos 7 dias foi de 1.001 óbitos, uma variação de -6% em relação aos dados registrados em 14 dias.

Sobre os infectados, eram 3.035.582 brasileiros com o novo coronavírus, 22.213 confirmados no último período. A média móvel de casos foi de 43.137 por dia, uma variação de -7% em relação aos casos registrados em 14 dias.

BRASIL SUPERA 100 MIL MORTOS POR COVID-19

BRASIL, 100 MIL MORTOS

Progressão até 9 de agosto

No total, 3 estados apresentaram alta de mortes: RS, SC e MG.

Em relação a sábado (8), ES, CE e PI estavam com casos em queda e passaram passaram a ficar estáveis. RN mudou de estabilidade para queda. MS passou de alta de casos para estabilidade.

Estados

Subindo: RS, SC e MG.

Em estabilidade, ou seja, o número de mortes não caiu nem subiu significativamente: PR, ES, SP, DF, GO, MS, MT, AC, AM, TO, BA, CE, PE e PI.

Em queda: RJ, AP, PA, RO, RR, AL, MA, PB, RN e SE

Essa comparação leva em conta a média de mortes nos últimos 7 dias até a publicação deste balanço em relação à média registrada duas semanas atrás (entenda os critérios usados pelo G1 para analisar as tendências da pandemia).

Fonte: G1 / Globo News

As vítimas da irresponsabilidade

O Brasil não poderia ter escolhido pior presidente para enfrentar uma pandemia. Quantas vidas poderiam ter sido poupadas não fosse o discurso irresponsável de Bolsonaro é uma pergunta que pairará sobre a história.

Cruzes no Cemitério do Caju, no Rio, onde algumas das vítimas da covid-19 foram enterradas

Cruzes no Cemitério do Caju, no Rio, onde algumas das vítimas da covid-19 foram enterradas

O Brasil ultrapassou neste fim de semana oficialmente a marca de 100 mil mortos por covid-19. O número carrega em si uma tristeza imensurável. São 100 mil famílias que não puderam velar seus mortos, enterrados às pressas devido a protocolos de segurança sanitária. Em milhares e milhares desses casos, as famílias não puderam visitar seus entes queridos em seus últimos dias. É uma tragédia inominável. 

E, ainda assim, era previsível. Embora tivesse tido tempo de se preparar, já que o primeiro caso de covid-19 foi registrado em São Paulo quando a doença já havia infectado mais de 80 mil pessoas em 40 países, o Brasil reagiu à chegada da pandemia de forma descoordenada e ineficiente, perdendo rapidamente o controle sobre a disseminação do vírus, porque quem deveria estar coordenando os esforços nacionais preferiu fazer pouco caso da pandemia. 

O Brasil não poderia ter escolhido presidente mais despreparado para enfrentar uma crise como esta. No início de março, Jair Bolsonaro disse que o poder destruidor do novo coronavírus estava "superdimensionado" e que a imprensa promovia "histeria". Quando a situação na Itália já era crítica, o presidente disse que no Brasil a covid-19 mataria menos de 800 pessoas e que na Itália o número de mortes era alto porque a população era idosa.

Avaliações equivocadas, baseadas em palpites sem qualquer fundamento, como tantas outras que Bolsonaro fez ao longo desses quase seis meses – e por que não dizer de sua vida política. Sua postura negacionista e marcada por um notório desprezo pelo conhecimento científico mantém o país sem um ministro da Saúde desde o dia 15 de maio, quando o segundo ministro na pandemia deixou o governo por discordar do presidente.

No momento em que a epidemia começou a se agravar no Brasil, em vez de reconhecer o próprio erro e começar a trabalhar para proteger a população, Bolsonaro dobrou a aposta: criticou as regras de isolamento social impostas por governadores e prefeitos, incentivou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada, promoveu aglomerações e vetou o uso obrigatório de máscaras em escolas e estabelecimentos comerciais e religiosos. Não ajudou e ainda atrapalhou.

Quando o país se aproximava de 40 mil mortes por covid-19, o presidente passou a se esquivar da própria responsabilidade e, de forma covarde, jogou a culpa do alto número de infecções sobre governadores e prefeitos.

E agora o país chora seus mais de 100 mil mortos. Em vez de se solidarizar com as famílias atingidas, o presidente preferiu usar suas redes sociais para destacar o número de recuperados, como se a morte de 100 mil pessoas pudesse, de alguma forma, ser relativizada.

Quantas vidas poderiam ter sido poupadas no Brasil não fosse o discurso ignorante e irresponsável do presidente da República é uma pergunta que pairará sobre a história. E que deve perseguir Bolsonaro e todos aqueles que, por ação ou omissão, o alçaram ao poder.

A autora deste artigo, Francis França, é editora-chefe da DW Brasil

Publicado originalmente por Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha. Jornalismo independente em 30 idiomas.