terça-feira, 9 de junho de 2020

TSE analisa ações que pedem a cassação da chapa do presidente Jair Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, em 2018

Entenda os riscos para Bolsonaro e Mourão no TSE, onde 8 ações pedem cassação da chapa

Bolsonaro e Mourão sentados, olhando para lados opostos, em evento

Direito de imagemEVARISTO SA/AFP VIA GETTY IMAGES
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O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) retomou nesta terça-feira (09/06) o julgamento de duas ações que pedem a cassação da chapa presidencial eleita em 2018, formada pelo presidente Jair Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão.

No total, há oito ações na Corte que tentam anular a eleição presidencial, das quais quatro tratam do suposto uso de notícias falsas (fake news) pela campanha de Bolsonaro. No entanto, o julgamento dessas quatro ações, vistas como ameaças maiores ao presidente, ainda não está marcado.

Os dois casos que serão analisados nesta terça-feira tratam de um ataque virtual a um grupo de mulheres formado no Facebook em 2018 contra a eleição de Bolsonaro — após uma invasão por hackers o grupo foi alterado para parecer que apoiava o então candidato do PSL, hoje sem partido.

O ministro relator dessas duas ações, Og Fernandes, votou em novembro contra a cassação da chapa em decorrência dessa alteração do grupo. O ministro Edson Fachin, no entanto, pediu vista (mais tempo para analisar o caso), o que levou ao adiamento do julgamento para esta terça.

Para que uma chapa eleita seja cassada, não basta que se comprove que houve ilegalidade na campanha. É preciso também que os ministros considerem eventual irregularidade cometida na eleição grave a ponto de comprometer a integridade do pleito, explica Lara Ferreira, professora de direito eleitoral na Faculdade Dom Helder Câmara. É isso que os sete ministros do TSE devem analisar nessas ações.

Uma eventual cassação da chapa presidencial ainda este ano provocaria a convocação de uma eleição direta extraordinária para escolher novos presidente e vice-presidente que governariam até 2022. Se Bolsonaro e Mourão vierem a ser cassados a partir de 2021, haveria eleição indireta pelo Congresso para definir o novo mandatário do país.

Entenda melhor a seguir as oito ações que tramitam no TSE e qual o risco que representam para Bolsonaro e Mourão.

As duas Ações de Investigação Judicial Eleitoral (Aijes) que serão julgadas nesta noite foram apresentadas, respectivamente, pela coligação Unidos para Transformar o Brasil (Rede/PV), da candidata derrotada Marina da Silva, e pela coligação Vamos Sem Medo de Mudar o Brasil (PSOL/PCB), do candidato derrotado Guilherme Boulos.

Ambas argumentam que o ataque ao grupo do Facebook constitui abuso eleitoral e pedem a cassação dos mandatos de Bolsonaro e Mourão, além da declaração de inelegibilidade dos dois por oito anos.

A invasão e alteração do grupo "Mulheres Unidas contra Bolsonaro", que reunia mais de 2,7 milhões de pessoas, segundo os autores das ações, ocorreu em setembro de 2018. Após esse ataque, o grupo ganhou o nome de "Mulheres COM Bolsonaro #17" e passou a compartilhar mensagens de apoio ao então candidato, além de excluir manifestações de participantes contrárias à chapa do PSL.

No dia 15 daquele mês, Bolsonaro postou em suas redes sociais uma imagem do grupo modificado com a mensagem "Obrigado pela consideração, Mulheres de todo o Brasil!". Para as coligações de Boulos e Marina Silva, esse agradecimento publicado pelo então candidato seria forte indício de que Bolsonaro teria participado ou teria ciência do ataque.

Para coligações derrotadas e autoras de ações na Justiça Eleitoral, agradecimento publicado pelo então candidato seria forte indício de que Bolsonaro teria participado ou teria conhecimento de ataque a grupo no Facebook.

A argumentação não foi aceita pelo relator das duas ações, o corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Og Fernandes. Único a votar até agora, ele considerou que as provas levantadas no processo confirmam que o grupo sofreu invasão, mas ressaltou que não foi possível confirmar a autoria do ataque.

Além disso, Fernandes avaliou que a invasão do grupo por menos de 24 horas não teve gravidade capaz de comprometer a normalidade e a legitimidade do pleito. Para o relator, a cassação da chapa eleita só deve ser adotada em situações excepcionais, quando houver provas robustas e contundentes de autoria e participação no ato ilegal.

Embora os demais ministros possam divergir do ministro relator, o voto de Fernandes é um indicativo de que estas duas ações representam baixo risco para Bolsonaro e Mourão.

O TSE é formado por três ministros do STF, dois do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e dois oriundos da advocacia, nomeados pelo Presidente da República a partir de uma lista eleita pelo Supremo.

Faltam votar nessas duas ações os ministros Tarcisio Vieira e Sérgio Banhos (oriundos da advocacia), o ministro Luiz Felipe Salomão (do STJ, assim como Og Fernandes) e os ministros do STF Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, este último, atual presidente do TSE.

Como andam as 4 ações que acusam campanha de fake news?
Há quatro Aijes pedindo a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão pelo suposto uso de notícias falsas (fake news) na campanha presidencial para atacar adversários. Essas ações investigam, por exemplo, possíveis irregularidades na contratação do serviço de disparos em massa de mensagens pelo aplicativo WhatsApp durante a campanha eleitoral.

Duas dessas ações foram apresentadas pela coligação O Povo Feliz de Novo (PT/PCdoB/PROS), do candidato derrotado Fernando Haddad, e duas pela coligação Brasil Soberano (PDT/AVANTE), do candidato derrotado Ciro Gomes.

Elas foram iniciadas após reportagem do jornal Folha de S.Paulo publicada em outubro de 2018, antes do segundo turno da eleição presidencial, apontar que empresas de apoiadores de Bolsonaro teriam contratado pacotes de disparo em massa de mensagem para atacar o candidato petista, Fernando Haddad. A prática seria ilegal porque empresas estão proibidas de contribuir com campanhas desde 2015.

As acusações iniciais descritas nessas Aijes são vistas como frágeis dentro da Procuradoria-Geral Eleitoral devido à falta de provas consistentes, apurou a BBC News Brasil. Essas ações, porém, causam preocupação dentro do Palácio do Planalto devido à possibilidade de serem abastecidas por provas levantadas no Inquérito das Fake News (investigação aberta no STF para apurar ataques a seus ministros) ou na CPI das Fake News (comissão parlamentar que tem como um dos focos de investigação a utilização de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições 2018).

No caso do Inquérito das Fake News, por exemplo, o ministro Alexandre de Moraes, que preside as investigações, determinou no final de maio que fossem quebrados os sigilos bancário e fiscal de quatro empresários bolsonaristas para apurar se eles teriam financiado uma rede de disparo de notícias falsas e ataques contra ministros do STF.

Sua decisão determinou a quebra de sigilo desde julho de 2018, o que poderia revelar eventuais ações desses empresários durante a campanha eleitoral. Entre os alvos dessa decisão está Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan.

A coligação de Haddad já pediu ao ministro Og Fernandes, relator das ações no TSE, que autorize o compartilhamento de eventuais provas colhidas no inquérito aberto no STF e na CPI, enquanto a defesa de Bolsonaro se posicionou contra essa possibilidade. Falta a Procuradoria-Geral Eleitoral se manifestar para o TSE decidir se autoriza ou não esse compartilhamento.

À BBC News Brasil, a defesa da coligação de Haddad disse acreditar que a conclusão do julgamento dessas ações ainda deve demorar, devido ao desafio que o TSE enfrenta neste ano com a realização das eleições municipais em meio à pandemia de coronavírus.

"Por um questão prática, é muito difícil que o TSE consiga analisar essas ações ainda este ano", afirma o advogado Marcelo Schmidt, do escritório Aragão e Ferraro.

O que vai influenciar no compartilhamento ou não das provas?
Direito de imagemSTF
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Parte dos juristas considera o inquérito das fake news ilegal, já que foi instaurado pelo presidente do STF (foto) sem participação do MPF
O compartilhamento de provas entre diferentes processos é algo comum, ressalta a professora de direito eleitoral Lara Ferreira. O inquérito das Fake News, porém, é considerado ilegal por parte dos juristas, já que foi instaurado pelo presidente do STF, Dias Toffoli, sem participação do Ministério Público Federal.

Nesta quarta-feira (10/06), o STF vai julgar um pedido do partido Rede para encerrar a investigação, que é conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes, por escolha de Toffoli. O resultado desse julgamento deve ser determinante para que o TSE decida se é possível importar provas do inquérito das Fake News para as ações que acusam a campanha de Bolsonaro de divulgação de notícias falas.

Como alguns ministros do STF já se manifestaram publicamente a favor do inquérito, a expectativa é que a maioria do Supremo mantenha a investigação, mas adote algumas medidas para garantir sua legalidade, como determinar a participação do Ministério Público e estabelecer que Moraes não poderá julgar eventuais processos abertos a partir dela.

No entanto, mesmo que o inquérito seja considerado legal e as provas possam ser compartilhadas, isso não significa, necessariamente, que elas serão consideradas no julgamento da chapa presidencial.

No caso do julgamento da chapa eleita na eleição de 2014, composta por Dilma Rousseff e Michel Temer, o TSE autorizou o compartilhamento de provas da Operação Lava Jato que indicavam possíveis ilegalidades na campanha eleitoral. Porém, depois, a Corte decidiu que esses elementos não poderiam ser considerados no julgamento eleitoral porque não tinha relação com os fatos narrados na acusação inicial da ação.

"Esse caso é diferente, na medida em que o próprio ministro Alexandre de Moraes determinou a quebra de sigilo dos empresários desde julho de 2018", argumenta Marcelo Schmidt, um dos advogados da coligação de Haddad.

"Por esse recorte temporal, que abarca o período eleitoral, por se tratar da mesma prática, o uso de recursos de empresários para disseminar notícias falsas, acreditamos que o compartilhamento das provas seria inevitável", disse ainda.

A professora de direito eleitoral Lara Ferreira também considera que o caso atual é diferente da ação contra a chapa Dilma-Temer e diz que, em tese, o uso das provas na ação eleitoral contra Bolsonaro é possível.

"Mas eu digo isso em tese porque será necessário verificar em cada uma das provas que forem trazidas se elas são pertinentes e necessárias nesse processo da Justiça Eleitoral", ressaltou.

A advogada Karina Kufa, que defende Bolsonaro, não atendeu ao pedido de entrevista para essa reportagem. Em manifestação ao TSE ela argumentou queo inquérito das Fake News apura ataques contra o Supremo e, portanto, não tem relação com o objeto inicial das ações eleitorais contra a chapa presidencial.

Ela também argumenta contra o uso de provas da CPI das Fake News por considerar que a comissão parlamentar se desvirtuou de seu foco original, se transformando "em arena de embates ideológicos por opositores do atual governo".

Quais as outras duas ações contra a chapa Bolsonaro-Mourão?


Ações movidas pela coligação de Fernando Haddad questionam cobertura da eleição pela Record e outdoors pró-Bolsonaro

Há ainda mais duas ações movidas pela coligação de Fernando Haddad. A que está mais adiantada e aparenta menor risco para Bolsonaro e Mourão é a Aije que aponta suposto favorecimento da chapa vitoriosa pela TV Record e seu portal de notícias, o R7, durante a cobertura das eleições. Essa ação já foi rejeitada por unanimidade pelo TSE em outubro, mas a Corte ainda vai julgar um último recurso da coligação de Haddad contra essa decisão.

A outra ação acusa a campanha de Bolsonaro de ter cometido abuso econômico no uso de outdoors em 33 municípios, de 13 Estados, instrumento de propaganda que é expressamente proibido pela legislação eleitoral. Segundo a coligação O Povo Feliz de Novo, o uso de outdoors em diferentes cidades indica um uso coordenado desse instrumento em favor da campanha de Bolsonaro.

Já a defesa do presidente diz que esses outdoors foram contratados por diversos apoiadores de forma espontânea, sem prévio conhecimento de Bolsonaro. Ao pedir a rejeição da ação, seus advogados também ressaltam que os outdoors não traziam pedidos de voto, o número de candidato ou o cargo para o qual Bolsonaro concorria.

Em março, a Procuradoria-Geral Eleitoral se manifestou contra a cassação da chapa vitoriosa, por considerar não haver provas de que a ação foi coordenada pelos então candidatos do PSL.

Além disso, a PGE considerou que anúncios em favor de Bolsonaro não seriam suficientes para provocar o desequilíbrio do pleito, já que a investigação do Ministério Público indicou que outdoors utilizados representariam um investimento de R$ 141.332, valor baixo quando comparado ao gasto total da campanha de Bolsonaro (cerca de R$ 2,5 milhões) e ainda menor se comparado ao gasto da campanha de Haddad (quase R$ 40 milhões).

Essa ação já está em fase final, faltando o relator, ministro Og Fernandes, liberar seu voto para que seja marcado o julgamento.

A defesa da coligação de Haddad, porém, considera que isso ainda pode demorar, considerando que é um processo grande, que envolve muitas pessoas (os apoiadores de Bolsonaro que custearam os outdoors).

Mariana Schreiber - @marischreiber
Da BBC News Brasil em Brasília
9 junho 2020

MPE recomenda envio de provas do inquérito que investiga fake news no STF a processo de cassação de Bolsonaro no TSE

Processo na Justiça Eleitoral investiga se a chapa do presidente se beneficiou da contratação de empresas de disparos de mensagens em massa.

O vice-procurador-geral Eleitoral, Renato Brill de Góes, encaminhou nesta terça-feira ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) parecer favorável ao compartilhamento de provas do inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) que investiga a disseminação de notícias falsas e ataques a ministro da Corte com um processo de cassação da chapa de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão no TSE.

O inquérito do STF foi aberto em março do ano passado. Há duas semanas, o relator, ministro Alexandre de Moraes, determinou buscas e apreensões em endereços ligados a apoiadores de Bolsonaro. O episódio aumentou ainda mais as críticas do governo ao Supremo. Já a ação no TSE foi aberta a pedido da coligação encabeçada pelo PT, que teve Fernando Haddad como candidato em 2018.

(Carla Zambelli: 'Fico feliz com pessoas do centrão no governo? Não')

O processo no TSE investiga se a chapa vitoriosa para a presidência da República se beneficiou da contratação de empresas de disparos de mensagens em massa. O caso veio à tona a partir de reportagem do jornal “Folha de S. Paulo” de dezembro de 2018 que denunciou “irregularidades na contratação do serviço de disparos em massa de mensagens de cunho eleitoral, pelo aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp”.

Segundo uma testemunha, uma rede de empresas recorreu ao uso fraudulento de nome e CPF de idosos para registrar chips de celular e garantir o disparo de lotes de mensagens em benefício de políticos. Ou seja, empresas de disparos em massa teriam usados dados de terceiros, adquiridos de forma ilegal, porque não tinham autorização para tanto.

Ainda segundo o processo, duas dessas agências foram subcontratadas pela empresa AM4, que foi a maior fornecedora da campanha de Bolsonaro. Segundo a prestação de contas do hoje presidente ao TSE, foram pagos R$ 650 mil à empresa.

O PT pediu compartilhamento das provas do inquérito do Supremo porque, ao longo das investigações, foi identificado o “gabinete do ódio”, um grupo dedicado a disseminar notícias falsas e ataques ofensivos a pessoas comuns, autoridades e instituições. Segundo depoimento prestado por um deputado federal cujo nome é mantido em sigilo, o grupo teria, entre seus principais integrantes, assessores especiais da Presidência da República.

Ainda segundo o inquérito do STF, há um grupo de empresários responsáveis pelo financiamento dessa rede de propagação de mensagens falsas ou agressivas. Entre os suspeitos está o dono das lojas Havan, Luciano Hang. Entre as provas a serem compartilhadas, estão os objetos apreendidos há duas semanas nas buscas e apreensões - como celulares, computadores e outros dispositivos eletrônicos.

Em manifestação ao TSE, a defesa de Bolsonaro foi contra o compartilhamento de provas. Argumentou que o inquérito do STF trata da divulgação de notícias falsas e ofensivas aos ministros da Corte - e, portanto, não teriam nada a acrescentar no processo de cassação de mandato. O procurador-geral eleitoral ponderou que as provas obtidas na busca e apreensão podem ser úteis no processo do TSE.

“Como pontuado pelos representados, o objeto do Inquérito nº 4781/DF, a princípio, não guarda correspondência com a causa de pedir estampada na inicial. No entanto, não há como olvidar que os elementos de informação decorrentes das diligências determinadas na decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes podem desvelar fatos que se relacionem com a questão discutida nestes autos”, escreveu o procurador.

Ele ponderou que, no inquérito das fake news, Luciano Hang é listado como suspeito de ter integrado grupo de empresários que colaboram para impulsionar vídeos e materiais contendo ofensas e notícias falsas, com o objetivo de desestabilizar as instituições democráticas e a independência dos poderes, por meio de aplicativos como o WhatsApp. Uma das diligências do inquérito do Supremo foi a quebra do sigilo fiscal e bancário do empresário referentes ao período julho de 2018 e abril de 2020, que compreende a campanha eleitoral de 2018.

“Nessa toada, as diligências determinadas no Inquérito nº 4781/DF podem trazer luz ao esclarecimento dos fatos apontados na inicial, na medida em que poderão vir a demonstrar a origem do financiamento das práticas imputadas à campanha dos representados na inicial”, observa o procurador. Renato Brill de Góes afirma que “há um nítido liame entre os fatos, ainda que o conteúdo das mensagens veiculadas possa ser diverso”

O procurador explica que, se as provas forem mesmo compartilhadas, o TSE terá a obrigação de mantê-las em sigilo, porque elas estão sob essa condição no STF. Caberá ao relator da ação no TSE, ministro Og Fernandes, decidir se autoriza ou não o uso das provas.

O relator já tinha declarado encerrada a fase de produção de provas da ação do STF e tinha determinado a apresentação de alegações finais da defesa e da acusação. No entanto, diante de novas revelações no inquérito do STF, e diante de pontos em comum entre as duas investigações, o PT pediu reabertura da fase probatória e o relator concordou. Agora, Og Fernandes vai decidir pelo compartilhamento ou não das provas. Se aceitar, será aberto novo prazo para as partes se manifestarem sobre as provas.

Depois disso, se não houver mais apresentação de novas provas da defesa ou da acusação, será aberto prazo para alegações finais. Em seguida, o relator vai elaborar um voto e liberar o processo para julgamento em plenário. Diante da indefinição sobre a fase probatória, não há previsão de quando isso vai acontecer. O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, já afirmou que incluirá as ações de cassação na pauta de julgamentos assim que o relator liberar. Ao todo, são oito processos contra a chapa Bolsonaro-Mourão aguardando julgamento no tribunal.

Carolina Brígido e Aguirre Talento / O GLOBO
09/06/2020 - 17:42 / Atualizado em 09/06/2020 - 19:23

Pedido de cassação de Carlos Bolsonaro é protocolado na Câmara de Vereadores do Rio

"Carlos Bolsonaro, como o pai, não está preocupado com o sofrimento do povo. Tudo que faz nas sessões é criar confusões, xingar os colegas e atrapalhar o andamento dos trabalhos”, argumentou Brizola.

Carlos Bolsonaro, durante visita ao Supremo Tribunal Federal

O Conselho de Ética da Câmara do Rio recebeu ontem um pedido de cassação do vereador Carlos Bolsonaro. (Foto acima). O documento é assinado por Leonel Brizola, vereador pelo Psol. 

Alega que Carlos ignora o decoro parlamentar em suas manifestações. Lembra, por exemplo, de quando o filho do presidente sugeriu que Brizola "queima ou cheira" ou da insinuação de que vereadores do Psol usam drogas. Cita também o dia em que o vereador disparou xingamentos aos colegas durante uma sessão virtual.

"Carlos Bolsonaro, como o pai, não está preocupado com o sofrimento do povo. Tudo que faz nas sessões é criar confusões, xingar os colegas e atrapalhar o andamento dos trabalhos”, argumentou Brizola.

Por Nelson Lima Neto / O GLOBO
09/06/2020 • 11:43

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Randolfe pede à PGR investigação sobre Bolsonaro e ‘guru’ Olavo de Carvalho por ‘eu derrubo o seu governo’

 “O que Olavo de Carvalho sabe que poderia derrubar Jair Bolsonaro? Que crimes foram cometidos com a ciência de Jair Bolsonaro? Por que arrecadar dinheiro para quem lhe xinga? Por que um empresário precisaria de aval do Presidente da República para fazer o que parece ser uma doação? Há dinheiro público envolvido?”.


Olavo de Carvalho. Foto: TV Escola

Em representação enviada à Procuradoria-Geral da República nesta segunda, 8, o senador Randolfe Rodrigues diz que os fatos ‘estranham tanto quanto surpreendem’ e indicam que falas do escritor levantam a possibilidade de ocorrência imediata de vários crimes, como extorsão, prevaricação, lavagem de dinheiro, calúnia e difamação contra o Presidente, bem como mediata (indireta) de inúmeros outros, como, corrupção.

O senador Randolfe Rodrigues apresentou à Procuradoria-Geral da República uma representação pedindo investigação da conduta do presidente Jair Bolsonaro e do escritor Olavo de Carvalho após a série de postagens que o ‘guru do bolsonarismo’ fez na madrugada deste domingo, 7, criticando o presidente – escrevendo até que pode derrubar o governo. Na representação enviada à PGR, Randolfe diz que os fatos ‘estranham tanto quanto surpreendem’.

Segundo o parlamentar, as falas de Olavo levantam a possibilidade de ocorrência imediata de vários crimes, como extorsão, prevaricação, lavagem de dinheiro, calúnia e difamação contra o Presidente, ‘bem como mediata de inúmeros outros, como, por exemplo, corrupção’.

Em vídeo, Olavo afirmou que Bolsonaro não faz nada para defendê-lo de uma susposta milícia digital, que o presidente não é seu amigo e que ainda pode ser processado por prevaricação, já que presencia crimes e não faz nada. Em seguida, ainda escreveu que pode derrubar o governo Bolsonaro e pergunta: “Os militares obedecem você ou é você que obedece a eles?”

“Quer levar um processo de prevaricação da minha parte? Se esse pessoal não consegue derrubar o seu governo, eu derrubo. Continue inativo, continue covarde e eu derrubo essa mer.. desse seu governo, aconselhado por generais covardes ou vendidos”, ameaçou.

Nas publicações, Olavo ainda reclama que Bolsonaro não coloca seus assessores para defendê-lo de processos e multas que estaria respondendo na Justiça, sem dar detalhes sobre os casos. Depois do apelo, o empresário Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, decidiu apelar a um grupo de empresários para financiar Olavo. Por meio de um grupo de Whatsapp, Hang disse aos amigos que Olavo está sem dinheiro e que precisa de apoio financeiro para que continue “lutando pelo Brasil”.

Com base nas declarações do ‘guru bolsonarista’ Randolfe fez uma série de questionamentos na representação à PGR: “O que Olavo de Carvalho sabe que poderia derrubar Jair Bolsonaro? Que crimes foram cometidos com a ciência de Jair Bolsonaro? Por que arrecadar dinheiro para quem lhe xinga? Por que um empresário precisaria de aval do Presidente da República para fazer o que parece ser uma doação? Há dinheiro público envolvido?”. Segundo o senador, as questões precisam ser respondidas com urgência.

Pepita Ortega, Rayssa Motta e Paulo Roberto Netto
08 de junho de 2020 | 17h31

Para especialistas, falta de transparência sobre dados pode configurar crime de responsabilidade

Governo atentou contra as leis de acesso à informação, além de ferir um direito fundamental, o da informação

As manobras executadas pelo governo federal para mascarar o número de mortes causadas pela covid-19 pode configurar crime de responsabilidade ao presidente da República, Jair Bolsonaro, e ao ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello. 

Para especialistas, o governo atentou contra as leis de acesso à informação, além de ferir um direito fundamental, o da informação.

Desde o início da pandemia, o governo federal reduziu o nível de transparência nas informações sobre a crise e, mais recentemente, passou a atrasar e a maquiar os números sobre casos e mortes da doença.

O Estadão revelou nesta segunda-feira que a mudança na divulgação ocorreu após Bolsonaro determinar que o número de mortes ficasse abaixo de mil por dia. A ordem foi repassada a Pazuello, que entregou a demanda à sua equipe. 

“A Lei de Acesso à Informação fala que é uma conduta ilícita se negar a fornecer ou retardar deliberadamente e de forma incompleta, incorreta ou imprecisa. Essas tentativas de mudar a metodologia, que é uma forma incorreta de fornecer informação, poderia se configurar no artigo 32 desta lei”, diz Fernanda Campagnucci, diretora executiva da Open Knowledge Brasil.

Desde sexta-feira, o ministério mudou a forma de divulgação dos indicadores do coronavírus, deixando de apresentar alguns dados consolidados. No sábado, o presidente Jair Bolsonaro confirmou que o governo passou a adotar uma nova sistemática para prestar informações sobre o coronavírus.

Uma das mudanças é que o boletim diário do ministério, divulgado a partir de sexta, traz apenas o número de recuperados, novos casos e mortes registrados nas últimas 24h. Antes, o quadro apresentava também os números totais, registrados desde o início da pandemia.

Outra alteração é que o boletim passou a ser divulgado pelo ministério por volta das 22h. Inicialmente, essa divulgação ocorria às 17h - depois, passou para 19h.

A divulgação às 22h começou nos últimos dias sem que o Ministério da Saúde desse uma justificativa para o atraso. Além disso, o portal do governo federal que traz os números da pandemia no Brasil saiu do ar na noite desta sexta. Ao ser acessada, a página apresentava apenas a mensagem "Portal em Manutenção." Ela voltou por volta das 17h deste sábado.

No entanto, o portal retornou reformulado e com dados ínfimos, se comparado à versão anterior. Não há, por exemplo, informações detalhadas sobre cada Estado - nem o total acumulado de contágios e de mortes.

“Isso são condutas ilícitas de responsabilidade do agente público”, disse Fabiano Angélico, mestre em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em transparência. “Pelas declarações do presidente da República, ao dizer que não haveria notícia no ‘Jornal Nacional’, parece ter havido um retardamento deliberado e isso configuraria um crime”, disse Angélico.

O professor da Faculdade de Direito da USP Rafael Mafei também cita o possível enquadramento no crime de responsabilidade pública.

Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil, acredita que o caso possa ser enquadrado como improbidade administrativa.  A lei prevê punição a quem negar publicidade a atos oficiais ou retardar algum ato legal. “Porque isso é líquido e certo”, disse.

Na Câmara, o deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) entrou com uma notícia-crime no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, por prevaricação (crime cometido quando o indivíduo, indevidamente, faz ou deixa de fazer algo da atribuição do cargo para satisfazer interesse pessoal) e improbidade administrativa.

Já o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e outros parlamentares ingressaram com uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo, com medida de liminar, para que o governo divulgue a compilação de dados estaduais, sem manipulação, e também para que o balanço diário seja feito até as 19h30.

“O governo não pode se omitir de sua função básica, publicidade e transparência. Isso incorre em crime de responsabilidade”, afirmou a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA).

Camila Turtelli, O Estado de S.Paulo
08 de junho de 2020 | 19h56

Brasil tem 849 mortes por coronavírus em 24 horas, revela consórcio de veículos de imprensa; são 37 mil no total

Levantamento feito por jornalistas de G1, O Globo, Extra, Estadão, Folha e UOL junto às secretarias estaduais de Saúde mostra ainda que houve 19.631 novos casos de Covid-19 em um dia; são 710.887 no total.

Veículos de comunicação formam parceria para dar transparência a dados da Covid-19

O Brasil teve 849 novas mortes registradas em razão do novo coronavírus nas últimas 24 horas, aponta levantamento feito pelo consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias estaduais de Saúde. Com isso, já são mais de 37 mil óbitos pela Covid-19 no país até esta segunda-feira (8). Veja os dados, consolidados às 20h:

37.312 mortes - eram 36.463 até as 20h de domingo (7), uma diferença de 849 óbitos
710.887 casos confirmados; eram 691.256 até a noite de domingo

Os dados foram obtidos após uma parceria inédita entre G1, O Globo, Extra, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e UOL, que passaram a trabalhar de forma colaborativa para reunir as informações necessárias nos 26 estados e no Distrito Federal. Personalidades do mundo político e jurídico, juntamente com entidades representativas de profissionais e veículos de imprensa, elogiaram a iniciativa.

O objetivo é que os brasileiros possam saber como está a evolução e o total de óbitos provocados pela Covid-19, além dos números consolidados de casos testados e com resultado positivo para o novo coronavírus.

Brasil tem 849 mortes por coronavírus em 24 horas, revela consórcio de imprensa

Das 20 cidades com maior mortalidade no Brasil, 12 estão no Amazonas e só quatro fora da Região Norte. No ranking, aparecem cinco capitais, nesta ordem: Belém (1°), Fortaleza (5°), Recife (11°), Manaus (13°) e Rio de Janeiro (15°).

Taxa de ocupação de leitos de UTI

Acre – 82,6% em todo o estado em 4/6
Alagoas – 79% em todo o estado 4/6
Amapá – 98,84% em todo o estado em 4/6
Amazonas – 70% em todo o estado em 3/6
Bahia – 71% em todo o estado em 5/6
Ceará – 76,30% em todo o estado em 8/6
Distrito Federal – 69,5% na rede privada e 42,24% na rede pública em 29/5
Espírito Santo - 85,14% em todo o estado em 4/6
Goiás - 46,6% dos leitos de gestão estadual, em todo o estado em 3/6
Maranhão –96,25% na Grande São Luís, 80,85% no interior e 85,2% em Imperatriz em 2/6
Mato Grosso – 37,6% em todo o estado em 4/6
Mato Grosso do Sul – 5,4% em todo o estado em 8/6
Minas Gerais – 71% em todo o estado em 8/6
Pará – 79% em todo o estado em 3/6
Paraíba – 67% em todo o estado em 5/6
Paraná – 40% em todo o estado em 4/6
Pernambuco – 98% em todo o estado em 3/6
Piauí - 61% em todo o estado em 24/5
Rio de Janeiro – 90% no SUS em todo o estado em 5/6
Rio Grande do Norte – 84% na rede pública e 71% na rede privada em 5/6
Rio Grande do Sul – 71,9% em todo o estado em 5/6
Rondônia – 77,9% em todo o estado em 3/6
Santa Catarina – 61,7% do sistema público em todo o estado em 3/6
São Paulo – 71% em todo o estado em 5/6
Sergipe – 68,3% na rede pública e 85% na rede privada em todo o estado em 4/6
Tocantins – 60% dos leitos ocupados em 3/6
Roraima não divulga a lotação dos leitos de UTI do estado.

Testes feitos pelos estados

Número de testes de coronavírus feitos pelos estados

Estado Nº de testes Data de divulgação
Acre 18.252 8/6
Alagoas 18.048 1º/6
Amapá 21.241 3/6
Amazonas 6.183 27/4
Bahia 39.949 21/5
Ceará 152.057 8/6
Distrito Federal 141.344 29/5
Espírito Santo 56.831 5/6
Goiás 12.925 30/5
Maranhão 66.717 3/6
Mato Grosso 8.253 3/6
Mato Grosso do Sul 14.806 8/6
Minas Gerais 25.280 5/6
Pará 54.311 3/6
Paraíba 60.022 5/6
Paraná 26.063 25/5
Pernambuco 50.392 28/5
Piauí 43.109 3/6
Rio de Janeiro 25.308 4/6
Rio Grande do Norte 25.465 5/6
Rio Grande do Sul 12.508 26/5
Rondônia 18.891 3/6
Roraima 718 23/4
Santa Catarina 33.000 4/6
São Paulo 87.463 27/5
Sergipe 20.702 2/6
Tocantins 7.095 25/5
Total 990.351

Fonte: secretarias estaduais de Saúde

Rio de Janeiro não divulga o número de testes.

Pacientes recuperados de Covid-19 nos estados

Estados Nº de pacientes recuperados Data de divulgação

Acre 4.133 8/6
Alagoas 8.461 5/6
Amapá 6.148 8/6
Amazonas 34.583 2/6
Bahia 11.464 5/6
Ceará 46.515 8/6
Distrito Federal 7.336 5/6
Espírito Santo 9.919 5/6
Goiás 738 26/5
Maranhão 23.272 8/6
Mato Grosso 1.145 5/6
Mato Grosso do Sul 1.190 7/6
Minas Gerais 6.857 8/6
Pará 44.244 8/6
Paraíba 3.945 5/6
Paraná 2.267 4/6
Pernambuco 20.375 4/6
Piauí 456 29/5
Rio de Janeiro 41.838 2/6
Rio Grande do Norte 8.391 8/6
Rio Grande do Sul 8.391 5/6
Rondônia 2.600 3/6
Roraima 1.230 6/6
Santa Catarina 6.442 4/6
São Paulo 24.616 5/6
Sergipe 2.999 2/6
Tocantins 2.634 8/6
Total 325.602

Fonte: secretarias estaduais de Saúde

Dados do Ministério da Saúde

O Ministério da Saúde também divulgou dados nesta segunda-feira (8). Segundo a pasta, houve 679 novos óbitos e 15.654 novos casos, somando 37.134 mortes e 707.412 casos desde o começo da pandemia. Ou seja, um número inferior ao divulgado pelo consórcio. A divulgação, porém, ocorreu horas antes.

A parceria entre os veículos de comunicação foi feita justamente em resposta à decisão do governo Jair Bolsonaro de restringir o acesso a dados sobre a pandemia de Covid-19.

Mudanças feitas pelo Ministério da Saúde na publicação de seu balanço da pandemia reduziram a quantidade e a qualidade dos dados. Primeiro, o horário de divulgação, que era às 17h na gestão do ministro Luiz Henrique Mandetta (até 17 de abril), passou para as 19h e depois para as 22h. Isso dificulta ou inviabiliza a publicação dos dados em telejornais e veículos impressos. “Acabou matéria no Jornal Nacional”, disse o presidente Jair Bolsonaro, em tom de deboche, ao comentar a mudança.

A segunda alteração foi de caráter qualitativo. O portal no qual o ministério divulga o número de mortos e contaminados foi retirado do ar na noite da última quinta-feira (4). Quando retornou, depois de mais de 19 horas, passou a apresentar apenas informações sobre os casos “novos”, ou seja, registrados no próprio dia. Desapareceram os números consolidados e o histórico da doença desde seu começo. Também foram eliminados do site os links para downloads de dados em formato de tabela, essenciais para análises de pesquisadores e jornalistas, e que alimentavam outras iniciativas de divulgação.

Entre os itens que deixaram de ser publicados estão: curva de casos novos por data de notificação e por semana epidemiológica; casos acumulados por data de notificação e por semana epidemiológica; mortes por data de notificação e por semana epidemiológica; e óbitos acumulados por data de notificação e por semana epidemiológica.

Neste domingo (7), o governo anunciou que voltaria a informar seus balanços sobre a doença. Mas mostrou números conflitantes, divulgados no intervalo de poucas horas.

Por G1
08/06/2020 20h02  Atualizado há 29 minutos

A dor tem cor

No Brasil, está sempre "tudo bem". Morte de Miguel mostra que nada está bem, pois, para empregadas, levar uma vida cruel parece ser algo normal. Não dá mais para aguentar esse racismo enraizado, diz Stefanie Prange de Oliveira, colunista da DW.

    Empregada doméstica pendura roupas
Empregada doméstica pendura roupas

"Por que essas mulheres aguentam tudo isso em silêncio?", questiona a colunista

Caros brasileiros,

às vezes, faltam palavras. Confesso que sinto certa dificuldade e inibição para escrever esta coluna. Porque depois da morte trágica do menino Miguel, o assunto levanta tristeza, constrangimento, e dor, muita dor.

Estou falando de empregadas domésticas no Brasil. Isso por si só já pode parecer pretensioso, pois eu nunca trabalhei como empregada. Mas queria compartilhar com vocês a minha singela experiência com esta profissão.

Quando cheguei no Brasil pela primeira vez, conheci a dona Teresinha. Ela trabalhava para meu marido brasileiro quando ele ainda morava sozinho. Morava longe, era separada, tinha uma filha com deficiência mental, que criava sozinha, e já estava com sintomas da doença Parkinson avançados.

A dona Teresinha não era de muita conversa, mas por pior que fossem os problemas dela, dizia sempre que estava "tudo bem". Queria lavar as roupas no tanque de sua casa em vez de colocar na máquina, queria passar as roupas mesmo com a mão tremendo, e dizia que se nos mudássemos para a Lua, ela iria trabalhar lá.

Na época, recém-chegada da Alemanha, me perguntava: como alguém com tanta amargura, pobreza e sofrimento, que não tem nada para comer na geladeira e nem geladeira tem, pode chegar no trabalho sorrindo e dizer que está "tudo bem"? A dona Teresinha me enchia de vergonha.

Depois da dona Teresinha veio a dona Roseane. Ela só tinha 27 anos e já era viúva. Tinha perdido o marido num acidente de carro. Também criava o filho sozinha. Como se isso não bastasse, alguns anos depois, a mãe dela que morava na Bahia, morreu de câncer.

É muita fatalidade, sofrimento e dor. Por que essas mulheres aguentam tudo isso em silêncio? Por que para empregadas domésticas uma vida dura e cruel parece ser a coisa mais normal do mundo? Quem inventou a lenda que mulheres negras suportam dores em doses maiores?

Quando vi a notícia sobre a morte do Miguel, me dei conta que esse sofrimento é simplesmente ignorado. Parece que empregadas são seres diferentes aos quais o famoso calor humano brasileiro não se estende.

Enquanto a patroa  fica chateada quando o cachorro está mal, a empregada não pode se dar ao luxo de demostrar sinais de fraqueza, apesar de levar uma vida precária. Tem trabalhar mesmo estando doente, com filho fora da escola, ou com alguém da família passando mal. Mas está sempre "tudo bem". "Tudo bem?": a morte do Miguel mostra que nada está bem. Mostra que no Brasil ainda prevalece a mentalidade escravista de 500 anos atrás. Por que desmerecer, minimizar, ignorar o sofrimento de milhões de empregadas, que na grande maioria são mulheres negras, é tratar elas como escravas?

Percebi essa herança escravista quando encontrei, pela primeira vez nos anos 1990, a Nair Jane de Castro Lima, empregada desde os nove anos de idade que trabalhava na casa de uma família alemã no Rio de Janeiro. Ela me contou como se comoveu quando um dia, encontrou uma colega chorando na frente de uma igreja.

Essa colega tinha trabalhado 40 anos na casa de uma família e foi dispensada quando tinha a idade de se aposentar. Ela não tinha para aonde ir e não ia receber aposentadoria, porque nem certidão de nascimento tinha. Em outras palavras: ela simplesmente não existia.

Essa crueldade foi uma das razões que levaram a Nair Jane a fundar o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos. No ano passado, reencontrei-a novamente no Rio de Janeiro. A orientadora da minha filha Stefanie tinha recomendado assistir ao documentário "Colcha de retalhos" que abordava a invisibilidade das trabalhadoras domésticas no Brasil por meio da história de Nair Jane. Quando terminou o filme, ela estava lá!

Stefanie Prange de Oliveira com a deputada federal Benedita da Silva

Stefanie Prange de Oliveira com a deputada federal Benedita da Silva 

A minha filha, nascida no Rio de Janeiro, está escrevendo uma dissertação de mestrado sobre os direitos trabalhistas de empregadas domésticas e o debate sobre o legado da escravidão no Brasil. Ela conversou com Nair Jane, assim como também conseguiu entrevistar Benedita da Silva.

Inclino-me perante guerreiras como Benedita da Silva e Nair Jane, que lutaram por coisas tão básicas como o direito de ter uma certidão de nascimento. E conseguiram conquistas sociais como a PEC das Empregadas Domésticas que entrou em vigor há cinco anos.

Com isso, o Brasil mudou. Mas ao mesmo tempo ficou igual. A morte do Miguel mostra que a "Casa Grande e Senzala" ainda existe. Mas também revela que não dá mais para aguentar a dor de um tratamento desumano em silêncio.

Agradeço a minha filha por entrar nessa luta contra racismo. E agradeço a todos manifestantes que foram e ainda vão para rua para deixar claro: #vidasNegrasImportam!

Fonte: Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha. Jornalismo independente em 30 idiomas. 

Iniciativas tentam contornar apagão de dados da covid-19

Após governo Bolsonaro esconder dados da epidemia e levantar temor de que vai passar a maquiar contagem, jornais formam parceria para coletar dados. Conselho de secretários de Saúde também lança painel com informações.

O presidente Jair Bolsonaro
 
Após minimizar coronavírus, Bolsonaro passou a aplicar política para dificultar o acesso aos dados da doença no país

Após a decisão do Ministério da Saúde de reduzir drasticamente a transparência dos dados sobre os impactos da covid-19 no país, novos meios de monitoramento vêm surgindo para tentar suprir a lacuna deixada pelo governo de Jair Bolsonaro.

Entre as iniciativas estão uma parceria de coleta de dados entre grupos de comunicação rivais e um novo painel controlado pelos secretários estaduais de Saúde.

Na última sexta-feira, o governo federal parou de publicar os dados consolidados da epidemia, como o total de mortes e casos de covid-19 no país. O Painel Coronavírus do Ministério da Saúde chegou a ser retirado do ar. Posteriormente, voltou mutilado, sem os números totais e desprovido de quase todas as suas ferramentas, como gráficos e tabelas.

Foi a culminação de semanas de redução de transparência, que se intensificou depois da saída de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde e o aumento da influência militar na pasta. O governo também passou a atrasar propositalmente a divulgação de dados e dar ênfase a aspectos "positivos" da pandemia.

Além de diminuir a transparência, as atitudes do governo levantaram o temor de falsificação dos dados. No fim de semana, um bilionário cotado para assumir um cargo no Ministério da Saúde afirmou que a pasta pretende fazer uma "recontagem" no número de mortos e acusou, sem provas, as secretarias estaduais de inflarem as cifras.

No domingo, o governo federal chegou a anunciar que voltaria a divulgar os dados completos da epidemia, mas acabou por reforçar a desconfiança sobre a qualidade de seus números ao publicar dados contraditórios.

Num primeiro momento, apontou que o número de mortes registradas entre sábado e domingo havia sido de 1.382. Depois, reduziu a contagem para 524, atribuindo a diferença a um erro na soma de dados de alguns estados.

Confira iniciativas lançadas para contornar o "apagão" de dados:

Parceria entre veículos de comunicação

Os jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo e os portais G1 e UOL anunciaram uma colaboração para coletar dados sobre a epidemia nos 26 estados e no Distrito Federal.

Equipes desses veículos vão dividir tarefas, compartilhar dados e elaborar um balanço diário que será fechado às 20h.

"Numa sociedade organizada como a brasileira, é praticamente impossível omitir ou desfigurar dados tão fundamentais quanto o impacto de uma pandemia. Com essa iniciativa conjunta de levantamento de dados com os estados, deixamos claro que a imprensa não permitirá que nossos leitores fiquem sem saber a extensão da covid-19", afirmou Sérgio Dávila, diretor de redação da Folha, em comunicado divulgado pelos veículos.

Painel Conass

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), que reúne os titulares das 27 secretarias de Saúde da federação, lançou no fim de semana o Painel Conass, que é atualizado todos os dias às 18h30 (horário de Brasília) – ou seja, bem antes do horário do governo federal, que empurrou na semana passada a divulgação de seu boletim diário para as 22h.

O site disponibiliza dados da doença por estado e o total do país, mais ou menos como o antigo portal do Ministério da Saúde fazia até a última sexta-feira. Os dados são coletados com as secretarias estaduais de Saúde.

"A tentativa autoritária, insensível, desumana e antiética de dar invisibilidade aos mortos pela covid-19 não prosperará", disse o presidente do Conass, Alberto Beltrame, no último sábado.

Dados Transparentes

Comandado pelo médico João Gabbardo, que atuou como braço direito do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, o Dados Transparentes é similar ao Painel Conass e também acompanha a pandemia por meio da coleta de dados com as secretarias estaduais de Saúde. No momento, Gabbardo ocupa o cargo de secretário executivo no Comitê de Contingência do Coronavírus do governo de São Paulo.

Brasil.io

O Brasil.io é formado por uma força-tarefa de 40 voluntários que compilam diariamente boletins epidemiológicos das 27 secretarias estaduais de Saúde. O site já estava no ar antes de o governo começar a reforçar sua política de dificultar o acesso às informações.

Além de disponibilzar dados totais do país, o site apresenta ferramentas que não estavam disponíveis no Portal Coronavírus do Ministério da Saúde nem mesmo antes do apagão, como dados por munícipio.

Lagom data

Criado pelo jornalista especializado em análise de dados Marcelo Soares, o Lagom Data também apresenta um panorama nacional sobre a covid-19 e uma série de mapas e gráficos interativos sobre a prevalência da doença nos municípios e estados brasileiros.

Extensão do Chrome para ver dados apagados pelo governo

Uma extensão do navegador Google Chrome disponilizada no domingo é capaz de restabelecer parte dos dados que passaram a ser ocultados pelo governo Bolsonaro.

A extensão, chamada "Transparência Covid-19", está na loja oficial do Chrome e é capaz de revelar novamente os antigos dados do Painel Coronavírus do Ministério da Saúde, como os números totais de mortes e casos. No entanto, as antigas tabelas, gráficos e curvas não aparecem com a ferramenta.

Fonte: Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha.  Jornalismo independente em 30 idiomas.

A violência policial contra negros como política de Estado no Brasil

Entre janeiro e julho de 2019, só a polícia do Rio matou 1.075 pessoas, 80% delas negras. Total é o dobro das vítimas em todo os EUA no mesmo período. No início da República, estudo previa zero negros no Brasil até 2012.

Protestos antirracismo no Rio de Janeiro

Protestos antirracismo foram realizados no Rio de Janeiro e em várias cidades brasileiras neste domingo

O Brasil não teria negros em 2012. A previsão foi apresentada no 1º Congresso Mundial das Raças, realizado em Londres no ano de 1911. "No espaço de um século, os mestiços desaparecerão do Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós", argumentou o antropólogo João Batista Lacerda. O então diretor do Museu Nacional representava o país no evento, a convite do então presidente Hermes da Fonseca (1910-1914), 23 anos após a assinatura da Lei Áurea.

Sua tese pressupunha que a força do "sangue branco" diluiria o "sangue negro". Sem a chegada de novos africanos, portanto, o embranquecimento em curso como política de Estado levaria ao resultado calculado. O antropólogo levou uma pintura para ilustrar esse processo. "Redenção de Can", do espanhol Modesto Brocos, retrata a alegria de uma avó negra pelo neto recém-nascido, de pele clara, no colo da mãe mestiça. Ao lado aparece o pai do bebê, representado como um português.

"Estava sendo gestada uma ideia de nação na qual o ser humano negro é indesejável e descartável", afirma a historiadora Ynaê dos Santos, especialista em relações étnico-raciais e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Contra esse projeto, manifestantes participaram do ato Vidas Negras Importam neste domingo (07/06), no centro do Rio de Janeiro.

Os gritos e cânticos entoavam críticas à violência da polícia contra o povo negro. Mesmo no contexto de isolamento social, as forças policiais continuam a fazer incursões armadas em favelas do estado. Um dia após o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibir operações no Rio durante a pandemia, houve tiroteio envolvendo policiais militares no Complexo do Alemão, zona norte da capital. Em abril, as mortes por ações policiais aumentaram 43% em relação ao mesmo período do ano passado.

Caso João Pedro

A vítima de maior repercussão foi o menino João Pedro, de 14 anos, assassinado em maio após ter sua casa alvejada por 72 tiros de fuzil disparados por policiais. No pedido de investigação da morte, o Ministério Público Federal incluiu a suspeita de tentativa de ocultação de cadáver. O nome do adolescente foi lembrado em diversos momentos do protesto, bem como o de George Floyd, morto durante uma operação policial em Minneapolis, nos Estados Unidos. Deitados no chão, manifestantes repetiam a frase "não consigo respirar", as últimas palavras de Floyd.

A manifestante Mônica Cunha percorreu todo o trajeto da manifestação ao lado de uma faixa que resume sua luta: "As mães negras não aguentam mais chorar", dizia a peça. Ela é fundadora do Movimento Moleque, que reúne e apoia familiares de vítimas de violações ocorridas em instituições socioeducativas – caso de seu filho Rafael, assassinado há 13 anos por um policial civil. "A maior fake news da história foi dizer que teve abolição. A pandemia está fazendo a gente encarar isso", defende.

Manifestante segura faixa em protesto antirracismo no Rio de Janeiro

Manifestante segura faixa em protesto antirracismo no Rio de Janeiro
Mônica Cunha perdeu seu filho Rafael em 2006, vítima da violência policial

Em 2018, a cada quatro mortes cometidas pela polícia no Brasil, uma aconteceu no Rio de Janeiro. Das 1.075 vítimas no estado entre janeiro e julho de 2019, 80% eram negras (percentual superior ao nacional, de 75%). O total corresponde ao dobro das mortes praticadas pela polícia dos Estados Unidos no mesmo período. Sem leis segregacionistas, como nos EUA, o racismo brasileiro tem uma dimensão institucional mais difícil de ser alcançada, avalia a historiadora Ynaê dos Santos.

"É um Estado que se fundamenta no trabalho escravo e pensa sua existência e história a partir do mito de fundação das três raças, 'harmonia' recuperada quase um século depois pelo mito da democracia racial. Esse processo esconde a violência da miscigenação contra negras, indígenas e mestiças", comenta.

A tentativa de embranquecer o Brasil após o fim da escravidão se deu pela imigração de jovens europeus latinos – abertos à integração com as mulheres brasileiras, acreditava-se.

Enquanto a mulher negra se inseriu precariamente no mercado de trabalho pelos serviços domésticos, não havia qualquer espaço para os homens. "Eles são mantidos como corpos perigosos. Conforme o racismo científico ganha espaço no século 19, pressupõe a ideia de que eles estavam geneticamente fadados a ações criminosas. A polícia brasileira é formada nesse pressuposto", afirma a historiadora.

O medo do Haiti

A primeira instituição policial criada no país foi a Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ), em 1809, inicialmente como Divisão Militar da Guarda Real de Polícia. A iniciativa se deveu à vinda de Dom João 6º e sua corte, mas também a um fenômeno que ecoava da América Central. "Havia um pânico generalizado entre as elites das Américas, com medo de que o 'haitianismo' se disseminasse", explica o historiador Luiz Antonio Simas, pesquisador das culturas de rua do Rio.

Protesto antirracismo no Rio de Janeiro

Protesto antirracismo no Rio de Janeiro

Simas se refere à Revolução Haitiana (1791 – 1804), que resultou no fim da escravidão no Haiti e na conquista da independência sobre a França. Até hoje, o brasão da PMERJ traz o símbolo da coroa e duas pistolas cruzadas à frente de folhas de cana-de-açúcar e café.

"O imaginário que acompanha as polícias desde a criação é a contenção dos corpos pretos e a defesa da propriedade nas mãos de pouca gente. Não houve transformação estrutural das polícias, e o Brasil continua tendo medo do Haiti", avalia o historiador.

Apesar da ausência de modernizações, a estrutura policial brasileira sofreu modificações durante a ditadura militar. As forças de repressão do Estado foram aparelhadas com treinamento e orçamento inéditos para a "guerra interna" contra o comunismo, a partir da Doutrina de Segurança Nacional.

O fim do regime (1964-1985) no contexto de internacionalização da guerra às drogas estimulada pelo ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon (1969-1974) deu lugar a um novo inimigo interno a ser combatido: o tráfico de drogas.

"O cartão de visitas da nossa democracia são as chacinas dos anos 1990", assinala o historiador Lucas Pedretti, ex-integrante da Comissão Estadual da Verdade do Rio. Ele se refere aos episódios da Candelária, Acari e Vigário Geral, que deixaram um rastro de 40 mortes. "A juventude negra e periférica nunca deixou de ser o alvo. Por duas décadas, na ditadura, a violência de Estado ampliou sua ação. Nossa democracia é marcada por um terrorismo de Estado muito profundo, inclusive com aprimoramentos, vide o caveirão aéreo utilizado em operações policiais", constata.

"Racismo dita o modo de funcionamento das instituições"

No ato deste domingo, a jovem Thaís Fidélis, de 20 anos, dizia estar nas ruas por seus pares terem sido mortos dentro de casa. "Não temos direito ao isolamento sequer. Nossa polícia é uma força de repressão que mata quem é igual a eles", afirma. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os negros representavam 37% do efetivo policial no Brasil em 2018. A informação é autodeclarada e pode haver subnotificação.

Protesto antirracismo no Rio de Janeiro

Protesto antirracismo no Rio de Janeiro

Atos lembraram a morte de George Floyd nos EUA, mas também as vítimas da violência policial no Brasil

O coronel reformado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Íbis Pereira é ex-comandante-geral da corporação. Em sua avaliação, o racismo não deve ser lido pelo simples ódio ao negro. "Assim, seria muito fácil resolver. Bastaria isolar os racistas. Como tecnologia de dominação, pela força e consciência, o racismo determina o modo de funcionamento das instituições e opera como ferramenta de reprodução das desigualdades", afirma.

A Constituição de 1988, primeira na história do Brasil a ter um capítulo sobre segurança pública e tratar o tema como direito, ainda carece de complementação para definição clara dessa política, bem como de sua arquitetura institucional. Mais de três décadas sem ações significativas, Pereira descarta a ideia de incompetência. "Hoje estou convencido de que a política de segurança é não ter política. O racismo dialoga com essas ausências", opina o coronel.

"Na ponta, temos uma polícia fraturada, que não investiga e atua de forma independente como força de repressão em territórios de pobreza onde a Constituição ainda não chegou", complementa.

Como resultado dessa configuração, observa-se também o adoecimento da polícia. Em 2018, 104 policiais cometeram suicídio, 42% a mais do que no ano anterior. O número é superior aos agentes mortos em serviço. "Só uma polícia humanizada pode ter práticas humanizantes. Quem mata o outro também mata algo dentro de si", finaliza o coronel.

Fonte: Deutsche Welle, a emissora internacional da Alemanha. Jornalismo independente em 30 idiomas. 

Toffoli pede a Bolsonaro que pare de ter 'atitudes dúbias' em relação à democracia

Presidente do Supremo criticou manifestações que pedem o fechamento da Corte: 'Demitir os ministros do STF e colocar o que no lugar?'

De volta à presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) após 15 dias afastado por causa de uma pneumonia, o ministro Dias Toffoli participou nesta segunda, 8, de uma cerimônia de lançamento de um manifesto em defesa do tribunal e da democracia assinado por mais de 200 entidades da sociedade civil.

Toffoli criticou ataques ao Supremo, pediu "trégua" entre os Poderes por causa da pandemia e fez um apelo ao presidente Jair Bolsonaro para que ele não tome mais atitudes "dúbias" - sem dar exemplos - em relação à democracia.

"Não é mais possível, e aqui dialogo com presidentes de Poderes, em especial ao presidente Jair Bolsonaro, atitudes dúbias. Tenho uma relação harmoniosa (com ele) e com o vice-presidente Hamilton Mourão. Eles juraram defender a Constituição e são democratas. Chegaram ao poder pela democracia, merecem nosso respeito, mas algumas atitudes têm trazido uma certa dubiedade", disse o Presidente do Supremo Tribunal Federal. 

"Essa dubiedade impressiona e assusta a sociedade brasileira e a comunidade internacional. Precisamos de paz institucional, prudência, união no combate à covid-19 e isso se dá através da democracia. É com a Constituição que vamos buscar as soluções possíveis."

O presidente do STF, Dias Toffoli. Foto: Dida Sampaio/Estadão

O presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministro Dias Toffoli. Foto: Dida Sampaio / Estadão

Toffoli afirmou que não há cabimento em manifestações que pedem o fechamento do Supremo ou pedidos de saída de seus ministros. "Demitir os ministros do STF e colocar o que no lugar? Fazer o quê? Trazer o que como solução?", questionou. "Isso não está dentro de nossa carta política. A sociedade está sendo firme e (Rodrigo) Maia (presidente da Câmara) e (Davi) Alcolumbre (presidente do Senado) têm sido muito firmes em não deixar esses movimentos (contra o STF) não crescerem no seio do Congresso. O presidente Bolsonaro também foi firme junto a sua base contra a abertura de CPIs em relação ao Judiciário e se manifestou contra processos de impeachment (de ministros). Nesse momento de combate à pandemia, precisamos de uma trégua entre os Poderes."

Para o presidente do Supremo, atentar contra o tribunal é atentar contra a democracia. "A força da nossa democracia deve-se em grande medida à autonomia do Judiciário. O STF, insituição centenária, republicana e democrática, é a última trincheira da defesa dos direitos. Atentar contra o Judiciário, o STF e seus ministros, é atentar contra a própria democracia. Seguiremos vigilantes em relação a qualquer forma de ataque ou ameaça."

Durante sua fala, Toffoli ainda afirmou não haver espaço para "confrontos" no País. "Não há de ter espaço para confrontos desnecessários e artificiais em um momento tão difícil pelo qual passa a Nação brasileira. Não podemos radicalizar diferençasa ponto de tornar inviável o diálogo. Uma democracia sólida se firma na pluralidade. Temos que cultiver o respeito às diferenças e buscar convergências para trilhar o caminho da pacificação social."

Entre os signatários do manifesto lançado pela AMB nesta segunda estão a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB) e Universidade de São Paulo (USP). A manifestação, idealizada e organizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pede autonomia e independência do Poder Judiciário e repudia ‘ataques e ameaças desferidas por grupos que pedem desde a prisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal até a imposição de uma ditadura no país’.

O texto destaca ainda a importância de preservar princípios republicanos para combater as crises sanitária e econômica provocadas pela epidemia da covid-19 no País. Entre eles, a pluralidade política e a separação harmônica entre os Poderes, bem como dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e das prerrogativas dos integrantes do sistema de Justiça

“Atacar o STF significa ameaçar todo o Judiciário e os valores democráticos do Brasil. Discordâncias, debates e críticas fazem parte e são bem-vindas no Estado de Direito. A liberdade de manifestação e de expressão, no entanto, não abarca discursos de ódio e a apologia ao autoritarismo, à ditadura e a ideologias totalitárias que já foram derrotadas no passado”, afirmam os signatários do manifesto.
     
Matheus Lara e Rayssa Motta, O Estado de S.Paulo
08 de junho de 2020 | 16h56

O Partido dos Robôs sem voto

Ex-marqueteiro de Bolsonaro escreve primeiro artigo depois de briga com Carlos, o Zero Dois, o filho Vereador desde os 18 anos de idade, no Rio de Janeiro.

Carlos Bolsonaro na Câmara dos Vereadores do Rio Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo

Carlos Bolsonaro na Câmara dos Vereadores do Rio Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo

O empresário Marcos Aurélio Carvalho, um dos donos da AM4, foi peça-chave na campanha presidencial de Jair Bolsonaro em 2018. No fim daquele ano, contudo, deixou a equipe de transição de Bolsonaro após o vereador Carlos se incomodar com uma entrevista que deu ao GLOBO. Depois de meses em silêncio, Carvalho aceitou escrever um artigo para o Sonar sobre internet e política. 

Abaixo o artigo do ex-marqueteiro que ajudou Bolsonaro a virar presidente:

A democracia moderna foi atravessada por um desafio inimaginável até pouco tempo: a ocupação da pólis por seres irreais. Quem são esses usuários que diariamente emplacam temáticas políticas nos trending topics do twitter, com uma capacidade quase imediata de mobilização em torno de hashtags perfeitamente bem combinadas, perfeitas até demais para serem verdade?

Há uma falha no teste do pato. “Se ele parece com um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então provavelmente é um pato” – diz o ditado. E o usuário que se parece com eleitor, reclama como eleitor, apoia como eleitor, mas usa hashtags milagrosamente lançadas, em questão de minutos, aos assuntos mais comentados do momento? É robô.

Tudo que acontece de mais relevante na política nacional vira uma hashtag, ou mais provavelmente duas: uma de apoiadores e outra de detratores. Inicia-se, então, a batalha digital do dia.

Existem, porém, as batalhas reais e as batalhas que nascem forjadas e se tornam reais. As primeiras não deixam de interessar à análise do cenário dicotômico, mas as segundas merecem especial atenção crítica. Robô não vota. Então por que importa tanto o tumulto que ele faz? Porque a movimentação de usuários irreais tem o condão de pautar o debate. A aparência de que um assunto está sendo comentado faz com que ele passe a ser comentado de fato. Está feito o sequestro da pauta política de um país.

A movimentação de uma expressiva quantidade de usuários falsos tem a perigosa capacidade de criar uma bolha inflacionária política ou eleitoral. O que significa isso? Que ela traz uma falsa robustez a uma ideia, a uma pessoa ou a uma causa. Esse conjunto de robôs desprovidos de título de eleitor cria uma “bolha” de apoiadores - frágil, posto que mentirosa. Mas a demonstração da ampla adesão à ideia chama mais gente, desta vez pessoas reais. É uma bolha inflacionária política e eleitoral, na medida em que carrega uma pessoa nos ombros invisíveis de celulares conectados a contas falsas e entrega a ombros verdadeiros de quem sentiu que estava aderindo a um forte movimento, “que subitamente eclodiu”. Então, pouquíssimo importa que robô não vota, não comparece a manifestação, não bate panela na janela, desde que ele consiga fazer pessoas reais, capazes de tudo isso, aderirem ao movimento.

Não pode ser subestimada a grande susceptibilidade de uma pessoa real se juntar a um movimento de origem falsa. As pessoas entram diariamente nas redes sociais em busca de um tema para comentar. Não é mais só uma questão de programação comportamental, é também uma questão de pertencimento. Se uma hashtag entra para os trending topics, para muitos isso significa quase automaticamente que o assunto em torno dela merece um comentário ou uma ação.

Muita ficção científica foi produzida no passado, especulando sobre robôs usurpando empregos e até postos de comando humanos; mas pouco se imaginou sobre robôs usurpando o debate público humano, o debate sobre a própria forma de uma sociedade humana se organizar e se deixar liderar.

Qual é o grande mal disso? Justamente pela fugacidade do “assunto do momento”, a batalha política passou a ser diária, pontual e pormenorizada. Houve um claro esvaziamento da política de identificação de ideias e propostas, em favor da política de identificação de posturas e falas, cotidianamente. É um rumo perigoso para se tomar: o debate político deixar de ser sobre ideias e passar a ser sobre circunstâncias. A transitoriedade do apoio gera graves crise de representatividade e de capacidade de se liderar, pelo prazo necessário para fazer qualquer diferença.

Se esses fatos estão postos e estamos falando de uma realidade enquanto ela acontece (vide batalha de hashtags do dia), o que se há de fazer? Muito se debate, acertadamente, sobre regulação, investigação e inibição da presença digital fake. Mas conhecem-se os desafios de se controlar algo que é pouco rastreável, que desconhece fronteiras territoriais e faz-se esbarrar em alcances jurisdicionais.

Sem dúvidas, a melhor forma de encarar é escancarar. Não se questiona a importância de a comunidade digital global continuamente trabalhar para evoluir em segurança, rastreabilidade e confiança; e de as comunidades jurídicas amadurecerem os debates sobre controle, responsabilização e desmobilização. Mas a contribuição mais eficaz e imediata virá – e já tem vindo – das iniciativas de jogar luz sobre as trevas da mobilização robotizada em torno de pautas políticas.

Não tem fidelidade partidária no Partido dos Robôs sem Voto. É preciso apostar alto na “trollagem” contra os robôs. Isso significa expor suas contradições, suas obviedades, suas falhas, seus movimentos e suas inconsistências. Talvez seja essa uma boa releitura moderna do enigma da esfinge. Precisamos decifrar as redes a serviço do fake, sob pena de vermos devorado o debate público tal como se conhece. Nas urnas: um homem, um voto. Nas redes: um homem, um post.

Publicado originalmente em O GLOBO, edição de 08.06.2020

A desmoralização do Estado

Órgãos da administração pública perdem tempo e recursos com delírios dos sabujos de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro já declarou que está “lutando contra o sistema, contra o establishment”. Como parte dessa guerra particular, o chefe de Estado tudo faz para desprestigiar justamente o Estado que deveria chefiar. Sempre que pode, trata de caracterizar a estrutura administrativa como pouco confiável, quando não francamente hostil a ele. Para o presidente, até mesmo algumas das pessoas próximas no seu governo são suspeitas de conspiração – há algum tempo, chegou a desabafar: “Já levei facada no pescoço dentro do meu gabinete”.

Assim, Bolsonaro busca construir para si um “Estado” paralelo, distante dos controles institucionais. O próprio presidente confirmou essa intenção ao mencionar, na infame reunião ministerial de 22 de abril, que dispõe de um “sistema de informações” pessoal. “Sistemas de informações, o meu funciona. O meu particular funciona. Os que têm oficialmente desinformam”, declarou o presidente.

Esse sistema pessoal, como mostrou reportagem do Estado, é composto por amigos e conhecidos do presidente. No mês passado, ele chegou a dizer que “graças a Deus tenho amigos policiais civis e policiais militares no Rio de Janeiro”, pois por meio desses contatos ficou sabendo que algo “estava sendo armado para cima de mim”, citando a “possibilidade de busca e apreensão na casa de filhos meus, onde provas seriam plantadas”. É esse o tipo de informação que Bolsonaro considera importante para o desempenho de suas funções, e não as que os sistemas formais lhe oferecem. E os cerca de 10 mil contatos do presidente em seu celular, todos certamente ávidos para lhe parecer úteis, tratam de alimentar suas paranoias com teorias da conspiração – que Bolsonaro leva muito mais a sério que a realidade reportada por funcionários de carreira nos órgãos estatais.

Como bom demagogo, Bolsonaro encaminha as mensagens que recebe desse sistema pessoal para que assessores tomem providências. Desse modo, submete o Estado, cuja estrutura é legalmente impessoal, aos caprichos de bolsonaristas com acesso ao WhatsApp presidencial. Órgãos da administração pública perdem precioso tempo – e recursos públicos – com delírios dos sabujos de Bolsonaro.

Espanta que o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, suporte esse comportamento do presidente. Afinal, como responsável formal por fornecer as informações necessárias para que o presidente governe, o ministro Heleno deveria ser o primeiro a envergonhar-se diante do fato, agora público, de que o presidente prefere se informar com amigos pelo WhatsApp do que pelos relatórios do GSI. Do mesmo modo, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vinculada ao GSI, foi olimpicamente ignorada por Bolsonaro quando lhe encaminhou relatórios alertando sobre a necessidade de isolamento social para enfrentar a pandemia de covid-19. Bolsonaro preferiu, em vez disso, acreditar em palpites sobre drogas miraculosas contra o vírus.

Se serve de consolo para o ministro Augusto Heleno, vários outros órgãos de Estado já foram menosprezados – quando não hostilizados – por Bolsonaro. Basta lembrar, por exemplo, que Bolsonaro chamou de “mentirosos” os dados sobre desmatamento produzidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Mais recentemente, pressionou o Ministério da Justiça e a Polícia Federal a lhe darem informações às quais ele legalmente não pode ter acesso, e vem esnobando as diretrizes do Ministério da Saúde para enfrentar a pandemia, promovendo aglomerações em comícios.

Nos casos citados, os responsáveis pelos órgãos ou se demitiram ou foram afastados. Já o ministro Augusto Heleno, a despeito das humilhações, segue firme no cargo – mesmo depois que o GSI, falhando em sua missão precípua, deixou de informar ao presidente sobre a folha corrida do indicado para presidir o Banco do Nordeste, que teve de ser exonerado um dia depois de nomeado pois sobre ele pairam suspeitas de irregularidades.

É para evitar esse tipo de vexame, entre outras razões, que o Estado precisa de um sistema de informações robusto e profissional. Mas, por melhor que seja esse sistema, não é possível fazer milagres quando o presidente da República trabalha com afinco para desmoralizá-lo e o chefe do GSI se conforma com a situação.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo
08 de junho de 2020 | 03h00

O declínio da esperança

Ações destemperadas, conflitos desnecessários e prevalência de interesses familiares estão entre os motivos pelos quais muitos eleitores deixaram de confiar em Bolsonaro

De janeiro de 2019 para cá, houve mudanças significativas no modo como os brasileiros veem o presidente Jair Bolsonaro e o seu governo. Por exemplo, hoje muitos eleitores se sentem profundamente frustrados com Bolsonaro. Os motivos são variados: ações destemperadas, conflitos desnecessários, ineficiência na promoção da retomada da economia, prevalência de interesses familiares, o modo como tem lidado com a pandemia do novo coronavírus, demissões de alguns ministros de Estado – especialmente, Luiz Henrique Mandetta e Sérgio Moro – e tantas outras atitudes que destoam da imagem que muitos tinham de Jair Bolsonaro quando depositaram seu voto nas eleições de 2018. Ao mesmo tempo, é de reconhecer que, para alguns – um grupo nitidamente minoritário –, nada do que Jair Bolsonaro fez ao longo desses 18 meses foi razão para diminuir a confiança e o apreço que a ele dedicam.

Diante desse cenário, com avaliações tão contrastantes, há, no entanto, um fato inegável. Desde o início do ano passado até agora, houve um claro declínio da esperança em relação ao governo e ao País. Utiliza-se aqui o termo esperança em seu sentido mais básico, tal como registram os dicionários: o sentimento de quem vê como possível a realização daquilo que deseja, a confiança de que se realizará aquilo que se deseja. Tivesse ou não fundamento, fosse ou não razoável, o fato é que, após as eleições de 2018, boa parte da população tinha a esperança de que a situação social e econômica do País iria melhorar. Havia expectativa de que o novo governo promovesse os ajustes para recolocar o Brasil nos trilhos, afastando-o da nefasta trajetória imposta pelo PT.

Para muitos, a esperança de um novo patamar de competência e moralidade materializou-se no momento em que Sérgio Moro, símbolo máximo da Operação Lava Jato, deixou a magistratura para incorporar-se à equipe do presidente eleito Jair Bolsonaro. Ele não abandonava apenas uma carreira no Judiciário de 22 anos, com tudo o que isso envolve. O discurso era ainda mais poderoso. Sérgio Moro saía do cargo com o qual havia, de alguma forma, mudado a história do País para assumir, com total carta branca do presidente da República, uma missão ainda mais relevante no combate à corrupção e à criminalidade – ou seja, uma missão de reconstrução da vida pública no País. O céu era o limite. Essa disposição é hoje tristemente contrastada pelo clima que imperou na entrevista em que Sérgio Moro anunciou os motivos de sua demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública. As palavras do ex-juiz da Lava Jato descortinaram um panorama completamente diferente dos sonhos e aspirações nutridos na campanha eleitoral de 2018 e no início de 2019. O presidente Bolsonaro foi apresentado como alguém empenhado obsessivamente em levar adiante seu desejo de interferir na Polícia Federal e, muito especialmente, na superintendência do órgão no Rio de Janeiro, com efeitos diretos sobre a investigação de seus familiares e amigos. Foi enorme a decepção de quem ainda acreditava no presidente.

Mas o declínio da esperança não se deu apenas pela saída de Sérgio Moro do governo. Ao contrário do que prometeu na campanha, o presidente Bolsonaro aproximou-se do Centrão e entregou-lhe cargos importantes, com verbas igualmente importantes. A agenda de reformas foi completamente esquecida. Na realidade, os sinais dados pelo Palácio do Planalto foram em sentido oposto à austeridade com a coisa pública, com concessões a setores do funcionalismo, medidas populistas, intentos de ampliação de programas assistencialistas por interesse eleitoreiro e ralo compromisso com o equilíbrio fiscal.

O regime presidencialista confere ao chefe do Executivo federal uma inequívoca tarefa de liderança. O presidente da República não apenas desempenha atribuições burocráticas. Além do dever de definir prioridades e traçar propostas e políticas que realizem essas prioridades, ele tem a missão de apresentar um futuro possível ao País. Cabe-lhe fortalecer a confiança da população na realização de um saudável panorama de desenvolvimento econômico e social. No entanto, Jair Bolsonaro não apenas descumpre essa missão, como consegue diariamente minar qualquer resquício de esperança de que possa haver, até o final de seu mandato, dias melhores.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo
08 de junho de 2020 | 03h00

O caminho do arbítrio

Estamos vivendo um processo semelhante ao da Venezuela chavista, só que de sinal trocado
 
Urge que o presidente Bolsonaro pare sua escalada rumo ao autoritarismo, mediante o uso indiscriminado do arbítrio. Decisões presidenciais num Estado democrático passam por uma série de mediações, sendo as mais importantes o Legislativo e o Judiciário, e no que concerne a este último, o STF. Arrogar a si a verdade e a decisão arbitrária só é fonte de confrontos incessantes.

Acontece que o presidente e sua família operam segundo a concepção schmittiana da distinção entre amigo e inimigo, fazendo que qualquer crítica ou divergência seja vista sob o prisma do inimigo a ser atacado. O mesmo vale para amigos em definições mutáveis, pois, ao passarem a ser considerados uma ameaça, tornam-se inimigos a ser abatidos – os casos mais eloquentes, Bebianno, Moro e Santos Cruz. 

A distinção amigo-inimigo não é, todavia, exclusiva da extrema direita, vale também para a esquerda. O próprio Carl Schmitt, após ter sido apoiador entusiasta de Hitler, escreveu, no pós-guerra, que Mao e Lenin se encaixavam na mesma concepção, tecendo-lhes elogios. Chávez e agora Maduro são seus discípulos. A distinção lulopetista entre “nós” e “eles” é dessa mesma estirpe.

No caso da experiência venezuelana, considerada por Lula um exemplo de democracia, processou-se a subversão da democracia por meios democráticos. As instituições democráticas foram inicialmente preservadas, enquanto o seu interior foi progressivamente minado. A imprensa e os meios de comunicação em geral foram, passo a passo, calados, o Legislativo perdeu suas funções, com o presidente passando a legislar por decretos, e o Supremo Tribunal, após ser atacado, foi cooptado. Milícias foram criadas e passaram a violentar e controlar os cidadãos. 

No Brasil, estamos vivendo um processo semelhante nos seus inícios, só que de sinal trocado. Da extrema esquerda passamos para a extrema direita. Os ataques sistemáticos à imprensa, aos meios de comunicação em geral e o financiamento e operação organizada de grupos encarregados de difundir fake news mostram essa tática de ataque ao “inimigo”. A ameaça de ruptura institucional, apesar de apresentada como defesa da democracia contra o espantalho do comunismo, é outro de seus braços. A constituição de milícias digitais, agora tornadas milícias de rua, até mesmo armadas, caso do grupo liderado por Sara Winter, é outro de seus instrumentos. A antiga bandeira preta da Ucrânia, símbolo da extrema direita naquele país, é o seu símbolo. 

Na mesma linha, a declaração presidencial de que população brasileira deve ser armada para não ser escravizada procura, na verdade, a servidão dessas forças ao domínio da extrema direita. Uma coisa é a posse de armas no legítimo exercício da autodefesa, um direito; outra, muito diferente, é armar a população para se opor às autoridades, como os governadores de Estado, por suas políticas de combate à pandemia. 

Contudo parar esse processo rumo ao precipício exige moderação do presidente, com a subsequente alteração da equipe governamental mediante o afastamento dos mais exaltados, os ideológicos. A perseguir tal política, as crises sanitária, política e econômica só tendem a se agravar, levando o País a um impasse perigoso, estando o próprio mandato presidencial em questão.

As recentes manifestações de reação a este autoritarismo por meio de vários manifestos pela democracia exibem uma sociedade atuante, ciente de que suas instituições devem ser defendidas independentemente dos governos. A democracia é tida por um valor maior, situado acima das contendas políticas e partidárias. No entanto, não deveria esse processo ser conduzido sob o modo de uma nova polarização, embora possa ser necessária num primeiro momento, sob pena de outra forma de autoritarismo surgir novamente no horizonte. O impasse institucional seria o seu resultado.

Salta à vista que dois terços da população brasileira não são pró-democracia, apesar de serem anti-Bolsonaro. Aí estão incluídos, por exemplo, os responsáveis pelo mensalão, que minaram o sistema representativo com a corrupção e o descalabro fiscal, para além das tentativas, felizmente infrutíferas, de controle da imprensa e dos meios de comunicação, apresentadas naquele então como sendo a verdadeira democracia. Para não falar das milícias do MST infernizando o campo brasileiro. Convém estar atentos a esses “novos democratas”.

Deve-se olhar igualmente com precaução a participação de torcidas organizadas nas manifestações, pois considerá-las como democráticas é outro equívoco. Na pressa de uma oposição atuante nas ruas, corre-se o risco de confundir alhos com bugalhos, na medida em que se caracterizam por serem uma espécie de quadrilhas, cujo prazer é extraído do uso da violência. 

A sociedade brasileira deve sair da polarização, tendo como norte a democracia, sob pena de perpetuarmos o impasse pelos próximos dois anos e meio, além de corrermos o perigo de nele permanecer por mais quatro anos, seja sob a égide da extrema direita, seja da extrema esquerda. 

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal  do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, em 08.06.2020.

Brasil manchado também nos EUA

O parentesco ideológico do presidente brasileiro com seu líder americano pouco vale diante da maioria democrata na Câmara dos Representantes

Mais uma vitória sinistra foi alcançada pelo presidente Jair Bolsonaro, em seu esforço para transformar o Brasil em pária internacional. Ele poderá continuar aplaudindo, seguindo e imitando seu grande guru, o presidente Donald Trump, mas terá de abandonar a ambição de um acordo comercial com os Estados Unidos, pelo menos enquanto houver maioria democrata na Câmara dos Representantes. A busca de qualquer parceria econômica mais estreita com “o Brasil do presidente Jair Bolsonaro” será rejeitada, informaram 24 deputados democratas da Comissão de Orçamento e Tributos da Câmara. A declaração foi expressa em carta dirigida ao chefe do Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR), embaixador Robert Lighthizer. O embaixador havia anunciado em maio, depois de uma conversa com o chanceler brasileiro Ernesto Araújo, a intenção de intensificar a cooperação econômica entre os dois países.

Na mesma data da carta, 3 de junho, o Parlamento holandês aprovou moção contrária ao acordo comercial entre União Europeia e Mercosul, assinado em 2019 e ainda pendente de ratificação pelos países participantes. A devastação da Amazônia foi o principal argumento a favor da moção. Mas também houve referência a riscos para os povos indígenas. Políticos citados pela imprensa europeia, nas discussões sobre o acordo entre os dois blocos, têm apontado o governo Bolsonaro como inimigo do meio ambiente e dos direitos humanos.

Ameaças ao meio ambiente, aos direitos humanos e à democracia são listadas extensamente na carta enviada ao principal negociador comercial dos Estados Unidos, o embaixador Lighthizer. O presidente Jair Bolsonaro, segundo os deputados, tem uma longa e persistente história de “declarações depreciativas sobre mulheres, populações indígenas e pessoas identificadas por gênero ou orientação sexual, além de outros grupos”. O governo Bolsonaro, continua o texto, “demonstrou seu completo menosprezo por direitos humanos básicos, pela necessidade de proteger a floresta amazônica e pelos direitos e dignidade dos trabalhadores”.

O Brasil sob Bolsonaro, acrescentam os deputados, não estará preparado, de forma crível, para assumir os novos padrões de direitos trabalhistas e de proteção ambiental estabelecidos no Acordo Estados Unidos-México-Canadá. Negociar qualquer acordo comercial com o Brasil será perda de tempo, sustentam os autores da carta.

Mencionando detalhes da gestão Bolsonaro, o texto cita números do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) sobre aumento das queimadas na Amazônia. Esses dados, poderiam ter lembrado os autores da carta, foram postos em dúvida pelo presidente Bolsonaro, no início de uma polêmica encerrada com a demissão do diretor do instituto, o físico Ricardo Galvão, respeitado internacionalmente.

Há um claro componente protecionista na atitude dos democratas. Eles acabam atribuindo aos produtores brasileiros “uma história de emprego de práticas desleais de comércio”. A acusação é vaga e a intenção de impedir uma concorrência maior aos produtores americanos é evidente. Além disso, os autores da carta confundem a atividade ilegal e ambientalmente danosa realizada na Amazônia com a produção agrícola eficiente e competitiva – a mais importante – nas áreas tradicionais.

O protecionismo é novamente favorecido, portanto, pelas atitudes e políticas do presidente Bolsonaro e de seus piores ministros. Nos Estados Unidos, assim como na Europa, os defensores de barreiras contra produtos brasileiros dispõem de amplo cardápio de argumentos – ambientalistas, políticos e relativos a direitos humanos – fornecido pelo presidente do Brasil. Detalhe importante, na Europa, como nos Estados Unidos, os críticos frequentemente se referem ao “Brasil do presidente Jair Bolsonaro”. Essa expressão é usada pelos deputados democratas. O parentesco ideológico do presidente brasileiro com seu líder americano pouco valerá diante da oposição desse grupo. Os Estados Unidos são muito mais que Donald Trump. Bolsonaro parece ignorar também isso.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S.Paulo
08 de junho de 2020 | 03h00

'Bolsonaro gera crises e tenta envolver as Forças Armadas em ruptura', diz brigadeiro

Ex-presidente do STM afirma ser inaceitável a tentativa de usar as Forças Armadas como instrumento de governo; oficial critica ainda Heleno, Weintraub e Araújo

Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo
08 de junho de 2020 | 09h34

Caro leitor,

"É inaceitável tentar envolver as Forças Armadas em uma ruptura." A frase foi dita pelo tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, mas lembra o exemplo de outras, ouvidas nos Estados Unidos. A primeira foi: "Quando me tornei militar, há 50 anos, fiz um juramento de apoiar e defender a Constituição". Ela prossegue. "Nunca sonhei que tropas que fizeram o mesmo juramento que eu pudessem receber a ordem, sob quaisquer circunstâncias, de violar os direitos constitucionais de seus compatriotas." Quem a disse foi James Mattis, um general de quatro estrelas, com três guerras nas costas e ex-secretário da Defesa do presidente Donald Trump.

Pela primeira vez na história recente dos EUA, um presidente quis usar o Exército para controlar manifestações populares, garantidas pela Primeira Emenda. Em poucos dias, Trump se tornou um pária entre militares comprometidos com a Constituição. Mattis escreveu sobre o presidente:  "É o primeiro líder em minha vida que não tenta unir o povo americano e nem mesmo pretende tentar fazer isso. Em vez disso, ele busca dividir-nos. Nós estamos testemunhando as consequências de três anos de seu esforço deliberado, três anos sem uma liderança madura."

O exemplo de Mattis frutificou. Foi seguido por Colin Powell, outro ex-secretário da Defesa e republicano, que anunciou que votará no democrata Joe Biden. Quase uma centena de líderes militares assinou um manifesto contra Trump. "Militarizar a nossa resposta, como nós testemunhamos em Washington, DC, cria um conflito – um falso conflito – entre o mundo militar e o civil. Isso corrói a moral que assegura um vínculo confiável entre homens e mulheres de uniforme e a sociedade que eles juraram proteger e da qual eles mesmos são uma parte", escreveu Mattis.

Desde que começaram os atritos de Bolsonaro com o Supremo Tribunal Federal ou desde que seus filhos e amigos são alvo de investigações por desvio de verbas e de malversação do dinheiro público, subsidiando mentiras e propaganda política disfarçada de jornalismo, quase duas dezenas de manifestos foram feitos por militares que só tiveram olhos para decisões monocráticas de ministros do Supremo, mas não se lembraram de lutar contra o odioso privilégio de estar acima da lei, de não ser investigado, de povoar as instituições com amigos que engavetem bandalheiras.

Alguns generais brasileiros enviam artigos e mensagens aos amigos com textos que fariam corar seus pares americanos. Na semana passada, Maynard Santa Rosa – ex-secretário de Assuntos Estratégicos de Bolsonaro – escreveu O Arquétipo Cincinato. Nele, insinua a tese de que, no inconsciente da população brasileira, está a aceitação do homem providencial, da liderança forte, do salvador da República, personificado no ditador romano Lúcio Quíncio Cincinato.

Santa Rosa parece não perceber, na história de Roma (Ab Urbi Condita Libri), escrita por Tito Lívio, a devoção de Cincinato pelo bem comum, repreendendo tanto os tribunos da plebe por suas sedições quanto os patrícios que lhe ofereceram a reeleição como cônsul, rompendo com as regras da República. Para Lívio, as camadas superiores deveriam situar-se diante da sociedade como um exemplo a ser seguido, cujo comportamento moralmente elevado legitimaria a posição que desfrutavam.

Em sua obra Os Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Maquiavel disse que a ditadura fazia bem à Roma, desde que o poder não fosse usurpado, em vez de livremente delegado. Eis um detalhe que passou longe do texto de Santa Rosa: são os responsáveis pela República que vão buscar Cincinato em sua propriedade e não as legiões. Muito menos um general que escreve:  "Na hipótese de se chegar ao comprometimento da lei e da ordem, resta o remédio do Art. 142 da Constituição Federal, e o acatamento das Forças Armadas pela opinião pública será essencial na pacificação. Afinal, é no inconsciente coletivo do povo que reside a fé no braço forte e a confiança na mão amiga."

É constrangedor testemunhar militares que ainda acreditam que o povo apoiaria a intentona bolsonarista. O leitor viu aqui que Ulysses Guimarães, ao promulgar a Constituição, chamou de traidores da Pátria aqueles que atentam contra a Carta Magna.  É nesse contexto que surge o exemplo do tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla. Ex-comandante da Escola Superior de Guerra (ESG) e ex-presidente do Superior Tribunal Militar, ele disse: "As Forças Armadas não podem se meter em política.  Elas são instituições de Estado e não de governo. Não deve se meter em política pessoal".  O brigadeiro mandou mensagens aos amigos, alertando-os sobre as iniciativas dos militares ligados ao Planalto."Quem gera as crises é o presidente."

Ferolla representa o distanciamento de parte dos brigadeiros do governo Bolsonaro, ainda mais depois do decreto, que acabou revogado pelo presidente nesta segunda-feira, 8, após as críticas, que dava ao Exército o direito de ter aviação de asa fixas, enquanto os aviões da FAB ficam em solo por falta de combustível. "Heleno está sendo uma decepção. Ele está em uma posição em que devia pensar duas vezes antes de abrir a boca, pois deve dar o exemplo." Ontem, apesar de o Comando da PM de São Paulo dizer o contrário, o general Augusto Heleno tentou vincular os atos de vandalismo de uns poucos, após a manifestação pela democracia, à maioria das pessoas que foi pacificamente protestar contra Bolsonaro.

"Eu, como ministro do STM, julgava pessoas e não ideologias", afirmou Ferolla. Para ele, um governante não pode escolher um delegado da PF porque é amigo do presidente ou do ministro, nem juiz pode se meter em política. Todos devem dar o exemplo. O brigadeiro conhece de longa data o guru do bolsonarismo, Olavo de Carvalho. "Diga-me: Como é possível vir com essa conversa de Terra plana nessa altura do campeonato? Estamos no século 21. E tem dois amigos dele no governo: o ministro da Educação, esse Weintraub, e o das Relações Exteriores, o Ernesto Araújo."

Ferolla testemunhou a  fala de Abraham Weintraub na posse do reitor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), Anderson Ribeiro Correia. "Um discurso que qualquer caminhoneiro faria melhor." Por fim, o brigadeiro conta sua impressão sobre o vídeo da reunião presidencial do dia 22 de abril: "Esse vídeo é um exemplo: dentro de um prostíbulo seria imoral." E Ferolla explica por quê. "Cria-se um ambiente em que ninguém respeita nada. Isso é falta de liderança. O chefe tem de dar o exemplo." É aqui onde Trump e Bolsonaro falharam miseravelmente: o exemplo. O caso de Bolsonaro seria agravado por lideranças militares que o cercam e assistem a tudo em silêncio. E, quando falam, apenas repetem o radicalismo, as bravatas e os desmandos do bolsonarismo.

"Onde um general da intendência acha que pode ser ministro da Saúde sem ouvir os médicos?", indaga um coronel intendente sobre o general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, que loteou a pasta entre militares. Pazuello pode saber como entregar um garrafão de água em um pelotão de fronteira em Roraima, mas está perdendo a guerra contra o coronavírus. Seu ministério parece acreditar que a Nação não precisa saber da gravidade do momento. Alguém lhe deu o "bizu" de que basta não contar os mortos ou contar de forma diferente. Esse é o exemplo que o general de Bolsonaro dá à Nação.

Marcelo Godoy
Repórter especial
Jornalista formado em 1991, está no Estadão desde 1998. As relações entre o poder Civil e o poder Militar estão na ordem do dia desse repórter, desde que escreveu o livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015).