terça-feira, 14 de outubro de 2025

Todos os negócios do presidente: é assim que Trump fica muito mais rico na Casa Branca

A riqueza do presidente dos EUA se multiplicou em apenas alguns meses. Seu império familiar abrange desde imóveis até criptomoedas e gera inúmeros conflitos de interesse.

A tênue linha ética que Trump fecha

Em 1996, o jornalista Mark Singer foi contratado pela The New Yorker , revista onde trabalhou por 20 anos , para acompanhar Donald Trump por alguns meses e escrever um perfil detalhado do então empresário americano, com grande influência na mídia. Singer escreveu o que se tornaria um dos artigos lendários da revista : um retrato angular no qual concluiu que o magnata havia alcançado "o luxo supremo: uma existência livre do murmúrio perturbador de uma alma". Em 2005, ele republicou o artigo para um livro que compilava nove de seus melhores perfis dos últimos anos, e o The New York Times publicou uma resenha elogiosa. Trump decidiu enviar uma carta ao jornal, chamando Mark Singer de "perdedor" e acrescentando algumas outras sutilezas, uma publicidade que impulsionou as vendas do livro.

Com todo o sarcasmo do mundo, o repórter decidiu escrever a Trump para agradecê-lo e, como prova de sua gratidão, enviou-lhe um cheque de US$ 37,82. A empresa de Trump devolveu a carta alguns dias depois com um bilhete do então presidente insultando-o novamente. No entanto, um lançamento negativo de US$ 37,82 apareceu na conta bancária do jornalista. Trump havia descontado o cheque.

Há muitas histórias para descrever o gênio empreendedor de Donald Trump , mas nenhuma captura sua essência como esta: um amor febril, apaixonado e constante pelo dinheiro, transmitido de geração em geração. De Fred Trump — seu pai, um construtor de casas no Queens e no Brooklyn que costumava incentivar o filho a seguir uma carreira como esta: "Seja um matador"; "Você é um rei" — ao atual presidente, incluindo seus filhos, como Ivanka, com seus próprios negócios, ou Donald Jr. e Eric, administrando o império da família.

O gene já emergiu na próxima geração, e até mesmo uma das netas do presidente, Kai Trump, de 18 anos, começou a vender moletons com suas iniciais por US$ 130, com a inestimável promoção de fotografá-los nos gramados da Casa Branca, o enésimo potencial conflito de interesses deste governo. São roupas, alerta a jovem empreendedora em seu site, "feitas por trabalhadores americanos qualificados", caso alguém esteja procurando maliciosamente pelo selo " Made in China" .

Donald Trump não é o primeiro presidente dos EUA a chegar à Casa Branca vindo do mundo empresarial, mas certamente não há precedentes para alguém cuja fortuna tenha aumentado tanto durante sua presidência, em grande parte devido a críticas razoáveis ​​aos seus oponentes, auxiliadas pela mesma aura presidencial. Porque em meio ao barulho das guerras comerciais, às farsas sobre o uso de paracetamol em gestantes e — também — ao acordo de paz para Gaza, o conglomerado Trump está ganhando dinheiro, dinheiro pessoal, aos montes.

Uma versão 2.0

O Trump de seu primeiro mandato (2017-2021) foi o conhecido magnata imobiliário, dono de hotéis, resorts, clubes de golfe e edifícios residenciais em todo o mundo, que gerava receita colocando sua marca Trump em inúmeros produtos e não se opunha a ganhar alguns dólares com livros ou televisão. Trump 2.0 é muito mais diversificado: além de um crescente portfólio imobiliário, ele administra sua própria rede social, a Truth Social, de propriedade do Trump Media & Technology Group, e um novo e próspero negócio de criptoativos, com sua memecoin , uma criptomoeda recém-cunhada que é altamente volátil e não tem valor subjacente. Ele lançou $TRUMP em janeiro passado, dois dias antes de assumir o cargo, e durante esse período atingiu um valor de mercado de US$ 40.000, pelo menos no papel.

Quanto cresceu a fortuna de Trump desde que se tornou presidente do governo mais poderoso do mundo ? De quantos dólares estamos falando? De acordo com dados da Forbes desta semana, entre 2024 e 2025, a riqueza do empresário-presidente saltou de US$ 2,3 bilhões para US$ 7,2 bilhões, um salto amplamente atribuído às suas novas atividades. O New York Times, por outro lado, estimou em julho passado que o valor absoluto era de cerca de US$ 10 bilhões, embora grande parte desse montante estivesse localizado em ativos ilíquidos (ou seja, difíceis de converter em dinheiro). E o Bloomberg Billionaires Index, o maior banco de dados financeiro do mundo, estimou neste verão que sua riqueza mais que dobrou durante sua administração, para US$ 6,4 bilhões.

Uma vista do Trump Hotel em Las Vegas, Nevada, em uma imagem tirada em 3 de julho. / Crédito:DANIEL SLIM (AFP / GETTY IMAGES)

Não é possível determinar os números exatos porque, em primeiro lugar, nem todos os negócios de Trump estão listados em bolsas de valores e, em segundo lugar, a maior parte de seus ativos permanece em imóveis e é compartilhada com familiares e parceiros. Quanto à maré de milhões que circula por meio de criptoativos, muitos estão completamente vinculados à sua marca pessoal, dificultando uma estimativa independente de seu valor. Outras receitas vêm de licenças de livros ou outros produtos. Há um problema adicional: Trump foi acusado de inflar o valor de seus ativos em mais de uma ocasião para obter mais linhas de crédito, algo que chegou a ser levado à justiça, embora ele tenha sido absolvido.

O que é palpável em relação à sua primeira presidência, em termos de dinheiro vivo, é que a máquina entrou em overdrive. Quando chegou à Casa Branca, anunciou que se desfaria da gestão de suas empresas e as colocaria sob um fundo fiduciário, o que significa que seriam administradas por outra pessoa. Foi o que Jimmy Carter fez, por exemplo, com sua empresa agrícola, mas com uma diferença fundamental: Carter a colocou nas mãos de um independente, e o conglomerado de Trump é liderado por Donald Jr., o principal gerente, e seu irmão, Eric, que, claro, têm contato constante com o pai. Eles também o ajudam a espalhar a mensagem política MAGA (Make America Great Again) pelo mundo e a inaugurar novos edifícios com ele.

Como aponta um advogado especializado em governança e ética, que prefere permanecer anônimo devido ao seu emprego atual em uma empresa privada: " Para evitar quaisquer acusações de má conduta, o que ele deveria ter feito era se desfazer de todos os seus negócios nos Estados Unidos e no exterior, mas isso não vai acontecer. Na verdade, ele está se expandindo tanto nacional quanto internacionalmente." Seus filhos sempre afirmaram que estiveram envolvidos no mundo dos negócios e investimentos a vida toda, que não são novatos procurando ganhar dinheiro do zero no aconchego do Salão Oval e que não faria sentido para eles abandonarem suas carreiras empresariais agora.

Os negócios originais dos Trump, imóveis de luxo, propriedades residenciais, hotéis, campos de golfe e outros edifícios comerciais ou clubes controlados pela Organização Trump, oferecem a imagem mais simbólica dessa mistura de poder político avassalador com os negócios habituais de seus filhos . Por exemplo, no final de julho, Trump fez uma viagem supostamente privada aos seus campos de golfe na Escócia, um refúgio que usou para se encontrar com o primeiro-ministro britânico Keir Starmer e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Como toque final, ele inaugurou um novo campo de golfe com seus dois filhos, evento que também contou com a presença do primeiro-ministro escocês, John Swinney.

Entre campos de golfe, resorts e edifícios para diversos usos, Trump possui quase vinte grandes propriedades imobiliárias. A lista inclui estabelecimentos icônicos como o resort Mar-a-Lago, na Flórida, a Trump Tower na Quinta Avenida, em Nova York, e os campos de golfe mencionados na Escócia, entre outros. A Forbes os avaliou em cerca de US$ 2,5 bilhões, mas o valor, mais uma vez, está sujeito a inúmeras ressalvas. Por exemplo, o Gabinete do Procurador-Geral de Nova York observou que Trump comprou um campo de golfe em Jupiter, Flórida, por US$ 5 milhões e, menos de um ano depois, em sua declaração de imposto de renda de 2013, o avaliou em US$ 62 milhões.

Chegada dos petrodólares

Além do valor dos ativos em si, há a renda gerada anualmente por esses negócios, que também tem sido fonte de controvérsia tanto neste quanto no último mandato, já que a decisão de Trump de se hospedar em seus próprios hotéis e resorts nos Estados Unidos forçou sua comitiva de longa data a fazer o mesmo, usando dinheiro do contribuinte. Soma-se a isso o fato de que muitos milionários pagam para se filiar justamente a esses clubes para ter acesso ao presidente.

Uma enxurrada de petrodólares está sendo investida no setor imobiliário, com os descendentes do presidente impulsionando a atividade no Golfo Pérsico. O grupo fechou vários acordos multimilionários com a incorporadora saudita Dar Global, o mais recente de US$ 1 bilhão para desenvolver um projeto residencial e comercial em Jidá. A Trump Organization também fechou acordos de licenciamento com a Dar Global para outros projetos em Dubai, Omã, Catar e Riad. Vários desses acordos foram finalizados após as viagens do presidente à região.

Durante seu primeiro mandato, Trump prometeu não lançar novos projetos fora dos Estados Unidos para evitar suspeitas ou qualquer potência estrangeira que buscasse beneficiar seus negócios em troca de influência junto ao presidente. Agora, o conglomerado busca lucrar no exterior, embora evite realizar projetos com governos.

Além de questões éticas e de imagem, os processos que recebeu durante seu primeiro mandato foram rejeitados na Justiça. As leis de conflito de interesses dos EUA não se aplicam a presidentes da mesma forma que a outros funcionários públicos. Há uma disposição na Constituição que, desde o século XVIII, proíbe o presidente ou qualquer outro funcionário do governo de aceitar presentes ou doações de governos estrangeiros sem o consentimento expresso do Congresso, mas Trump desafiou essa disposição ao aceitar um jato Boeing 747 de luxo avaliado em US$ 400 milhões do Catar, que ele usará como avião presidencial, um novo Air Force One.

Embora os edifícios sejam o setor mais consolidado do portfólio de investimentos de Trump e aquele em que ele mais imprime sua marca pessoal (grandeza, luxo e seu nome em negrito), o universo das criptomoedas se tornou um império em questão de meses e merece um capítulo à parte. Se a mencionada memecoin $TRUMP estava sendo negociada a US$ 7,48 no mercado nesta sexta-feira, o valor total dessa moeda pode ser estimado em US$ 1,4 bilhão, de acordo com dados da Coinmarketcap, embora obviamente não seja propriedade do magnata.

Novos horizontes

Os Trumps operam nesse mercado volátil por meio da World Liberty Financial, uma plataforma fundada por seus filhos — incluindo o mais novo, Barron Trump, já rico aos 19 anos — juntamente com outros investidores como Steven Witkiff, Zac Folkman e Chase Herro, chamados pela imprensa americana de "criptopunks". A própria plataforma também lançou seu próprio token digital, $WLFI, que estava sendo negociado a US$ 0,17 na manhã de sexta-feira, representando um valor total de US$ 4,34 bilhões.

O mercado de criptomoedas está particularmente no centro das atenções da oposição democrata. O Fundo de Defensores da Democracia Estatal, uma plataforma de oposição, monitora de perto suas atividades no setor, justamente por coincidirem com uma abordagem abertamente "favorável às criptomoedas" em relação a esse tipo de ativo financeiro de alto risco e alta volatilidade. Segundo seus cálculos, em meados de março, esses ativos já representavam US$ 2,9 bilhões para Trump, 37% de toda a sua fortuna.

“Em vez de se desfazer de seus criptoativos para evitar potenciais conflitos de interesse, o presidente Trump parece ter se posicionado para maximizar seus benefícios, adotando um programa regulatório menos agressivo do que seus antecessores”, segundo Virginia Canter, chefe da prática anticorrupção do grupo. “A redução da supervisão nessa área pode comprometer a segurança nacional dos EUA”, afirmou ela em um comunicado.

A história do Trump Media & Technology Group também fala da genialidade irredutível do presidente dos Estados Unidos. Quando em janeiro de 2021, após o ataque ao Capitólio, o Twitter de Jack Dorsey (hoje X, de Elon Musk) decidiu suspender permanentemente a conta de Donald Trump, ele começou a trabalhar na ideia de lançar sua própria rede social para evitar o que considerava a censura do establishment. A Truth Social foi lançada em outubro daquele ano. A empresa, que está listada na bolsa, tem uma capitalização, nesta sexta-feira, de US$ 4,78 bilhões e, segundo dados de julho do The New York Times , Trump controlava 115 milhões de ações, o que hoje equivaleria a cerca de US$ 2 bilhões. No entanto, este é um tipo de ativo tão intimamente ligado à sua figura que é difícil ver se seu valor se sustentaria com um eventual desinvestimento pelo republicano.

Trump, como se sabe, acabou retornando ao que hoje é o X, de propriedade de Elon Musk. O relacionamento do presidente com o bilionário fundador da Tesla — embora ele já tenha deixado o governo — também atraiu uma enxurrada de críticas. Em uma impressionante mistura de negócios, política e governo, em março passado, Trump exibiu cinco veículos elétricos da marca diante da imprensa ao lado de Musk, em sinal de apoio ao empresário, que na época via as ações da empresa despencar em meio à tempestade política causada por seu cargo e sua missão: ele era responsável por enxugar a administração e demitir dezenas de milhares de funcionários públicos.

“Acho que ele foi tratado de forma muito injusta por um grupo muito pequeno de pessoas, e eu só quero que as pessoas saibam que ele não pode ser penalizado por ser um patriota, e ele é um grande patriota, e ele fez um trabalho incrível com a Tesla”, disse Trump na época, e logo depois anunciou sua intenção de comprar um de seus carros.

A primeira-dama Melania Trump ladeada pelos filhos do presidente, Eric e Ivanka (acima) e Tiffany e Donald Jr. (abaixo) em Ohio, EUA, em 2020. / Crédito: JIM WATSON (AFP/GETTY IMAGES)

Os negócios estão prosperando em torno da família Trump, não apenas por causa dos moletons que sua neta começou a vender. O marido de Ivanka, Jared Kushner, também empresário, foi fundamental, por exemplo, na megacompra da Electronic Arts, a empresa por trás dos jogos FIFA e The Sims, pela empresa americana de capital de risco Silver Lake e pelo fundo soberano da Arábia Saudita (Fundo de Investimento Público, PIF). De acordo com o The Wall Street Journal , o genro de Trump usou suas conexões na Arábia Saudita para ajudar no negócio. A Amazon, por outro lado, pagou US$ 40 milhões pelos direitos de um documentário sobre Melania Trump, uma das primeiras-damas mais discretas que os Estados Unidos já tiveram. Seu marido nunca foi avesso a audiovisuais; muito pelo contrário, algo que gerou uma renda suculenta e colocou seu rosto em milhões de lares americanos — um dos ingredientes de seu sucesso político — foi justamente o reality show The Apprentice, que ele apresentou.

E, enquanto isso, as vendas de produtos licenciados sob sua marca, desde os famosos bonés, diversas coleções de roupas (uma das mais recentes, intitulada "Golfo da América", em referência à renomeação do Golfo do México dessa forma) ou tênis, continuam gerando outras fontes de renda por meio de royalties .

A Organização Trump chama seu patriarca de "a própria definição de uma história de sucesso americana". "O arquétipo de um empresário e negociador sem igual". Uma de suas frases favoritas, que ele usa há décadas, está em destaque em seu site, embora seja difícil imaginar o significado que ela poderia assumir neste estranho 2025: "Se você tiver que pensar, pense grande".

Amanda Mars, a autora deste artigo, é Jornalista e correspondente de economia do EL PAÍS, onde trabalha desde 2006. Começou no escritório de Barcelona, ​​passou para a seção de Economia e foi correspondente em Nova York e Washington (2015-2022). Foi diretora do Cinco Días e vice-diretora da seção de economia do EL PAÍS. Anteriormente, trabalhou na La Gaceta de los Negocios e na agência Europa Press. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 11.10.25

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

É hora de repensar o papel do Supremo

Uma Corte menos sobrecarregada e mais fiel à sua natureza colegiada e vocação constitucional pode recuperar a confiança da sociedade e resgatar sua autoridade, o que faz bem à democracia

A aprovação do Projeto de Lei 3.640/2023 inspira uma reflexão mais ampla sobre um tema sensível, mas fundamental para o Brasil: a posição do Supremo Tribunal Federal (STF) no arranjo institucional do País.

O projeto em questão, aprovado em caráter terminativo pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, impõe restrições legais às decisões monocráticas, o que o regimento interno do STF já faz, e limita o rol de partidos com legitimidade para propor ações de controle concentrado de constitucionalidade, o que é inconstitucional à luz do art. 103, inciso VIII, da Lei Maior. Mas, a despeito desses problemas, o projeto reforça a necessidade de resgatar a natureza colegiada da Corte, expõe a banalização do acesso à mais alta instância do Poder Judiciário e mostra que há disposição política para discutir uma necessária reforma do Supremo.

A Constituição de 1988 atribuiu ao STF uma gama de competências que extrapola, e muito, o modelo de uma corte constitucional clássica. Além da função precípua de garantir que direitos constitucionais tenham eficácia, o Supremo, no Brasil, é uma instância recursal e um tribunal criminal para autoridades detentoras do chamado “foro privilegiado”. Essa acumulação de funções, compreensível no contexto da transição da ditadura militar para o regime democrático, gerou distorções ao longo do tempo que precisam ser enfrentadas com coragem e espírito republicano.

A realidade se impôs: o Supremo, sobrecarregado de processos e compelido a decidir sobre questões eminentemente políticas, passou a ser visto mais como um participante do jogo de poder político do que como um tribunal imparcial. Em maior ou menor grau, as crises institucionais ocorridas no País nos últimos 20 anos, muitas deflagradas pela excessiva judicialização da política, tiveram o STF como um dos protagonistas e, por isso, corroeram a confiança da sociedade na Corte. Ao se tornar uma arena de disputas partidárias e ao participar de embates entre o Executivo e o Legislativo – seja por imposição legal, seja por voluntarismo dos seus membros –, o STF se distanciou ainda mais do ideal de uma corte puramente constitucional como instituição vital para o Estado de Direito.

É preciso rediscutir um arranjo constitucional que, malgrado o acerto de sua concepção à época, já não se mostra apto a contribuir para a estabilidade institucional do País. E isso não significa enfraquecer materialmente o Supremo nem muito menos degradar sua legitimidade. Ao contrário: o que se pretende é fortalecê-lo. Restringir sua competência ao estrito controle de constitucionalidade, aliviando-o das funções de instância recursal e de tribunal criminal, implica fazer do Supremo uma corte constitucional em sentido pleno, um modelo já consagrado pela experiência em democracias bem mais consolidadas do que a brasileira. Questões infraconstitucionais, em particular as de matéria penal, poderiam ser facilmente deliberadas pelo Superior Tribunal de Justiça, que possui todas as condições de atuar como última instância em uma miríade de processos.

Evidentemente, essa não será uma discussão fácil no Congresso. Forças muito poderosas decerto serão mobilizadas para manter tudo rigorosamente como está, contratando novas crises. Ademais, os conhecidos inimigos da democracia farão de tudo para intoxicar o debate com suas mentiras e distorções da realidade para deslegitimar o STF como instituição garantidora da ordem constitucional democrática. Mas ser difícil não significa que seja impossível trabalhar para dotar o Brasil de uma Corte Suprema integralmente dedicada à análise de questões constitucionais, pairando acima, quase anônima, das tensões típicas dos embates políticos em qualquer sociedade livre. As grandes conquistas civilizatórias da sociedade brasileira sempre deram trabalho.

A Constituição de 1988 foi escrita sob o signo da redemocratização e respondeu muito bem ao momento histórico. Mas as circunstâncias mudaram. Hoje, repensar o papel do Supremo, com boa-fé e dentro das balizas democráticas, é tarefa indispensável para um futuro mais auspicioso para o País.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 12.10.25

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Por campanhas a pão e água

Comissão reserva R$ 6,3 bilhões para partidos gastarem no pleito de 2026. Proposta vai na contramão do interesse público e deveria ser revista


Plenário da Câmara dos Deputados. / Pedro Ladeira, FolhaPress.

A cada par de anos a história se repete. Parlamentares discutem o tamanho do fundo eleitoral destinado aos partidos políticos para as campanhas do próximo pleito, o montante é considerado acintosamente alto por segmentos da sociedade civil, a imprensa publica editoriais e colunas contra a proposta, que mesmo assim acaba passando.

Para as eleições de 2026, a Comissão Mista de Orçamento reservou R$ 4,9 bilhões para o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, que se somariam ao R$ 1,4 bilhão do Fundo Partidário (distribuído anualmente às agremiações), perfazendo um total de R$ 6,3 bilhões.

Para a conta ficar completa, deveria incluir os gastos tributários (desconto no IR) em que o poder público incorre a título de ressarcimento a emissoras de rádio e TV pelo tempo utilizado no horário eleitoral obrigatório. Estamos falando de mais algumas centenas de milhões de reais.

Não sou contra o financiamento público de campanha. Ele me parece melhor que a situação anterior, na qual as campanhas eram bancadas principalmente por doações de empresas, o que tornava os políticos eleitos ultrassensíveis aos interesses de quem os financiava.

Daí não se segue que as verbas pagas aos partidos precisem ser exorbitantes, generosas e nem mesmo confortáveis. Ao contrário, não vejo mal algum em que as campanhas sejam extremamente modestas, para não dizer franciscanas.

Há atividades em que o valor do investimento afeta a qualidade do produto. Pense num prédio construído com materiais muito vagabundos. Ele pode até ruir. Mas esse não é o caso de eleições. Não importa quanto se invista em campanhas, serão eleitos sempre o mesmo número de governantes e parlamentares —e não há nenhum indício de que gastando mais obtemos melhores representantes.

Mais, como a quase totalidade das verbas vêm do fundo eleitoral, uma redução uniforme dos montantes pouco afeta a disputa.

Se os parlamentares fossem movidos pelo interesse público, fariam as campanhas passar a pão e água. Ou seja, não vai acontecer.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista, foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…" Publicado originalmente na FSP, em 07.10.25

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

É imperioso lembrar que violar prerrogativas do advogado é crime

A advocacia é função essencial à administração da Justiça, como estabelece a Constituição em seu artigo 133. O advogado não é mero participante do processo judicial, mas, o protagonista da defesa e da cidadania. Sua atuação assegura que o contraditório e a ampla defesa, cláusulas pétreas da ordem constitucional, se tornem realidade. 

No entanto, ainda hoje, em pleno Estado Democrático de Direito, multiplicam-se episódios de desrespeito às prerrogativas profissionais, frequentemente protagonizados por autoridades que, paradoxalmente, deveriam zelar pela observância da lei.

É imperioso lembrar que violar prerrogativas do advogado é crime. O Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei Federal nº 8.906/94), em seu artigo 7º- B, introduzido após uma longa luta institucional de 15 anos, dispõe: “Constitui crime a violação de direito ou prerrogativa do advogado, estabelecido nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei, punível com detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa”.

Esse dispositivo é fruto de uma batalha que iniciamos em 2004, quando presidi pela primeira vez a OAB-SP. Levamos a proposta de Criminalização das Violações de nossas Prerrogativas Profissionais à Reunião do Colégio de Presidentes das seccionais da OAB de todo o Brasil, que aconteceu em Curitiba. Aprovada a proposta por unanimidade, teve início a luta que travamos durante os nove anos que presidi a OAB-SP e por mais seis anos em que estive como Conselheiro Federal da OAB, dando lugar a uma conquista histórica para a advocacia e para a cidadania.

Apesar da vitória legislativa, que ocorreu pela Lei nº 13.869, de 2019 (Lei de Abuso de Autoridade), a qual alterou o Estatuto da Advocacia e entrou em vigor em janeiro de 2020, incluindo o artigo 7º- B, as violações e desrespeitos às nossas prerrogativas profissionais ainda persistem, e com muita frequência.

Advogados continuam a ser constrangidos em audiências, têm negado acesso a autos, sofrem restrições arbitrárias no contato com clientes e, não raramente, são intimidados em delegacias de polícia, Tribunais de Justiça ou nas Comissões Parlamentares de Inquérito. Tais atos não atingem apenas a dignidade do profissional, mas acima de tudo, comprometem os direitos fundamentais da cidadania a uma defesa plena.

Recentemente temos visto colegas advogados, em pleno exercício profissional, notadamente em CPIs, tornarem-se alvos de chacotas, piadas e constrangimentos agressivos por parte de autoridades que não respeitam a lei e cometem, dessa forma, crime.

Não bastasse o nosso estatuto, no caso de CPIs, também a Lei nº 1.579/1952 (artigo 3º, §2º), bem como os Regimentos Internos da Câmara dos Deputados e do Senado, asseguram a qualquer depoente, seja ele investigado ou testemunha, o direito de ser acompanhado e assistido por advogado, inclusive em sessões sigilosas.

Spacca

A negativa de acompanhamento de advogado, viola não apenas a lei, mas o próprio equilíbrio das investigações parlamentares. Pior ainda, é quando assistimos a um simulacro de obediência à lei, quando a CPI autoriza o acompanhamento do advogado, mas impede sua assistência ao cliente ou o uso da palavra “pela ordem”, com um sonoro e agressivo “cala a boca”.

Esses direitos dos advogados, além da proteção legal, têm sido, reiteradamente, assegurados pelo Supremo Tribunal Federal, em diversos precedentes (HC 100.200/DF; HC 134.983/MC; MS 30.906/MC), firmando-se o entendimento de que o advogado pode comunicar-se reservadamente com seu cliente, sem restrições arbitrárias. Impedir esse contato é obstaculizar a própria defesa técnica, o que constitui grave afronta ao devido processo legal, além de um crime.

No Brasil vigora o princípio “nemo tenetur se detegere”, segundo o qual ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. O STF consolidou essa proteção (HC 79.812/SP; HC 171.438/DF), reconhecendo que cabe ao advogado assegurar que seu cliente não seja coagido a falar contra si. Qualquer medida que impeça o exercício desse direito, configura abuso de autoridade e o crime de violação de prerrogativas.

Estatuto não pode ser letra morta

O advogado, no exercício da defesa técnica, não pode ser impedido ou limitado de forma ilegal e ilegítima em sua atuação. Qualquer restrição arbitrária é crime, ferindo o devido processo legal e comprometendo a legitimidade do Estado Democrático de Direito.

Diante dessas garantias legais à cidadania, é inadmissível que ainda se tolere a violação de prerrogativas de advogado. Quando ocorrer, há necessidade de uma reação institucional. As entidades representativas, em especial a OAB, têm o dever de agir processualmente, além do repúdio formal e do desagravo público. Embora esses gestos tenham valor simbólico, não são suficientes para conter as práticas reiteradas de desrespeito.

É tempo de aplicar a lei em toda sua extensão. O artigo 7º- B do Estatuto da Advocacia não pode permanecer letra morta.

Autoridades que violam prerrogativas precisam ser responsabilizadas civil e criminalmente. Quando essas autoridades forem processadas criminalmente e estiverem no banco dos réus, precisarão contratar um advogado para se defender. Talvez assim compreendam a gravidade de seus atos ilegais e passem a entender o nosso papel. Essa experiência é pedagógica e ajuda a ensinar aos violadores de nossas prerrogativas que esses direitos profissionais não são privilégios, mas garantias institucionais da própria cidadania.

Também não nos esqueçamos de que eventuais ações indenizatórias contra autoridades, na esfera civil, garante-lhes o direito de regresso contra o Estado, mas a obrigação de indenizar decorrente de condenação penal, vai direto no bolso do violador das prerrogativas, para satisfazer o dano provocado com seu ato ilegal e criminoso.

O respeito às prerrogativas profissionais do advogado não depende da boa vontade de autoridades, uma vez que se trata de imposição legal e constitucional. Ignorá-las, além de crime, é atentar contra o próprio sistema de Justiça.

Por isso, não podemos admitir que a conquista histórica da tipificação penal da violação de prerrogativas seja esvaziada pela inércia. É hora de ação firme para que a OAB e as demais entidades classistas façam uso da arma que conquistamos, processando criminalmente os violadores de nossas prerrogativas e reafirmando, na prática, que o advogado precisa ser respeitado para que a cidadania também o seja.

O fortalecimento da advocacia é o fortalecimento da cidadania e, por consequência, da própria democracia. Em defesa da cidadania e da advocacia, é hora de reagir. Convoco a advocacia brasileira, pela OAB e por nossas entidades classistas, a processar criminalmente as autoridades violadoras de nossas prerrogativas.

Sem o respeito ao advogado e às nossas prerrogativas profissionais, não há contraditório, não há ampla defesa e, portanto, jamais haverá Justiça!

Luiz Flávio Borges D’Urso, o autor deste artigo, é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, pós-doutor pela Faculdade de Direito de Castilla-LaMancha (Espanha), presidente da OAB-SP por três gestões (2004/2012), presidente de honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim), presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM), vice-presidente da Associação Comercial de SP (ACSP) e conselheiro da Federação das Indústrias de SP (Fiesp). Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 05.10.25

sábado, 4 de outubro de 2025

Uma agenda para o Supremo

É péssimo para um país ter a Justiça sob suspeição. Estou entre os que acreditam que o Supremo Tribunal Federal (STF) teve um papel essencial para salvar a democracia em 2022 – e, como cidadão e democrata, reconheço e sou grato por isso.

Não é preciso, porém, ser um bolsonarista de carteirinha para perceber que nosso Supremo assumiu um protagonismo na vida do País que, em algum momento, seria recomendável que diminuísse no futuro.

Nesse contexto, o que se segue é uma sugestão de pontos que, qualquer que seja o vencedor na eleição de 2026, pode ser conveniente adotar entre 2027 e 2030:

1) Encerramento do Inquérito 4.781, base de todo um conjunto de ações empreendidas pelo Supremo, frequentemente na pessoa do ministro Alexandre de Moraes. Creio que a visão de que esse inquérito precisa ter um desfecho é compartilhada por boa parte da sociedade;

2) Acordo informal com quem ocupar o Executivo para o STF perder protagonismo na mídia. Parte da animosidade que existe em setores da sociedade em relação ao Supremo decorre do fato de muitos dos seus juízes estarem todas as semanas na mídia. Há ocasiões em que o STF é chamado a ocupar o centro do palco, como no caso das ameaças à democracia.

Que depois não se queixem se nas pesquisas a confiança na Justiça continuar baixa, mas em 2027 os juízes do Supremo deveriam contribuir para uma maior calmaria institucional, “saindo à francesa”;

3) Indicação de juízes com ampla aceitação. Entre 1. ºdejan ei rode 2027 e 31 dezembro de 2030, três juízes do STF farão 75 anos. Sem deixar de reconhecer os méritos dos indicados, o fato é que as últimas quatro indicações ao Supremo foram marcadas porcarac terísticas específicas:Bol sonar o indicou um juiz como argumento de“poder tomar uma tubaína com ele” e outro por ser evangélico; e Lula indicou seu advogado pessoal e seu ministro da Justiça. Seria bom que as próximas indicações sejam vistas como “neutras”, no terre noda política; e

4) Mudança de procedimentos. Há uma agenda nesse campo, que abrange desde a adoção de um código de conduta acerca do que um juiz do STF pode ou não fazer, até o combate aos privilégios (penduricalhos y ot rasco sitas más ), combate esse que, para ter maiores chances de prosperar, o Supremo deveria liderar.

A agenda é vasta. Pode não ocorrer nada disso, mas, nesse caso, quedepoisos interessados não se queixem se nas pesquisas a confiança na Justiça continuar baixa, se parte da população considerar que vivemos num país extrem amente injusto e se uma proporção importante do eleitorado opinar que vivemos sob uma “ditadura da toga”. 

Fabio Giambiagi, o autor deste artigo, é economista e escritor. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 03.10.25

Sistema disfuncional

O presidencialismo sem freios e contrapesos redundou num sistema de irresponsabilidade, gerador de conflitos entre Poderes

Como se fosse uma selfie

A instabilidade política é um mal crônico da República. No Império, a Constituição estatuía o Poder Moderador, exclusivo do imperador, para velar pela manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais Poderes.

Com a República, desaparece o órgão estabilizador, que Rui Barbosa e Pedro Lessa entendiam ter sido substituído pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Isso graças à circunstância de que com a República, pelos Decretos n.º 510/90 e 848/90 e pela Constituição de 1891, atribuiu-se ao STF a competência para declarar lei ou ato do Executivo inconstitucional, podendo limitar os desvios dos demais Poderes. Outro instrumento de controle estava no habeas corpus para debelar ofensa a qualquer direito individual.

Deodoro da Fonseca, eleito em fevereiro de 1891, renuncia em novembro do mesmo ano. Pela Constituição, a vacância na primeira metade do mandato importava em nova eleição, com o que não concordou Floriano Peixoto, o vice. Generais e membros da sociedade contestaram esse abuso, tendo então Floriano, em abril de 1892, decretado o estado de sítio por 72 horas e prendido militares e civis, como José do Patrocínio e Olavo Bilac. Passadas as 72 horas, mantinham-se as prisões.

Rui Barbosa impetrou habeas corpus, em vista da cessação do estado de sítio, mas Floriano pressionou o STF, com a escusa de se tratar de questão política e indeferida a ordem.

Todavia, em 1893, em habeas corpus impetrado em favor dos revoltosos do navio Júpiter, concedida a ordem, o ministro da Guerra enviou ao presidente do Supremo, José Higino, ofício no qual expressava ser a decisão ofensiva à ordem pública. O ministro José Higino respondeu: “Não cabe ao Poder Executivo dar instruções ou determinar a jurisprudência”.

Esta interferência direta do comandante do Exército no campo jurisdicional da Suprema Corte repete-se em duas outras oportunidades: em 20 de outubro de 1965, o STF concedeu habeas corpus a Miguel Arraes, recebendo críticas de militares. O presidente do STF, então, em entrevista a jornal, afirmou ser tempo de os militares se compenetrarem, de não serem tutores da Nação. O general Costa e Silva, ministro da Guerra, no dia seguinte, classificou a posição do Supremo como histórica agressão às Forças Armadas. Em uma semana, editava-se o Ato Institucional n.º 2, aumentando o número de ministros do STF de 11 para 15, construindo uma maioria de apoiadores do regime militar.

Nas vésperas do julgamento do habeas corpus em favor de Lula, em 2018, novamente o então chefe do Exército, general Villas Bôas, se intromete para afirmar em tom de ameaça ser contra a impunidade.

A aposentadoria forçada de ministros do STF marca a História. Getúlio, em 1931, chefe do governo provisório, afastou compulsoriamente seis ministros. O mesmo se deu durante o regime militar em 1968, pelo Ato Institucional n.º 5, com a aposentadoria compulsória dos ministros Vitor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima.

O STF, que Rui Barbosa contava ser o estabilizador, por poder frear os abusos, foi, em vista disso, sempre afrontado, com várias estratégias.

Tentou-se reiteradamente caracterizar na 1.ª República atos de abuso de poder como questão política inapreciável pelo Judiciário. O decreto instituidor do governo provisório, em seu artigo 5.º, excluía de apreciação judicial os atos do Executivo. A Constituição outorgada de 1937 isentava do crivo judicial os atos praticados em estado de emergência, vigorante ao longo de toda a ditadura getuliana. Igualmente, nos Atos Institucionais n.º 1 e n.º 5, vedava-se o controle jurisdicional dos atos praticados com base nesses diplomas.

Outra estratégia consistiu em transformar o Supremo em órgão subordinado ao Legislativo. Na Constituição de 1937, artigo 96, parágrafo único, o Congresso poderia, para salvaguardar o interesse público, anular decisão do STF.

Propostas de deputados do PT ou do PL buscam nulificar decisões do STF. Por exemplo: 1) Proposta de Emenda Constitucional do deputado Fonteles (PT) permite ao STF criar súmula, por decisão de quatro quintos dos seus membros, mas que só terá força vinculante se tal efeito for outorgado pelo Congresso Nacional por maioria absoluta; e 2) proposta do deputado Domingos Savio (PL) autoriza ao Congresso Nacional sustar, por maioria absoluta, decisão do STF, não unânime, transitada em julgado, por extrapolar “limites constitucionais”.

Em ataques ao Supremo, Jair Bolsonaro e acólitos pretendem que o Senado casse ministros. Já disse Rui Barbosa, em discurso no Instituto dos Advogados Brasileiros, que é a mais grave das afrontas à Constituição o presidente ou o Congresso Nacional se converterem em instância julgadora da mais alta Corte, por discordar de suas decisões.

Em suma, o presidencialismo sem freios e contrapesos redundou num sistema de irresponsabilidade, gerador de conflitos entre Poderes, no qual o Legislativo se transforma em órgão extorsionário em busca de vantagens.

O sistema político é disfuncional, levando também a excessos da parte do STF. Só uma revisão geral permitirá a superação do mal crônico.

Miguel Reale Júnior, o autor deste artigo, é Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras e ex-ministro da Justiça. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.10.25

Seus amigos estão sugando sua energia? Três caminhos para lidar com 'vampiros sociais'

Você sente que alguém suga a sua energia?

Não se trata de um ser sobrenatural que se alimenta de sangue: os chamados "vampiros de energia" são amigos que parecem drenar sua disposição quando você passa tempo com eles.

Essas pessoas podem se queixar constantemente, falar apenas sobre si mesmas e demonstrar pouco ou nenhum interesse em você ou na sua vida.

Então, como identificá-las?

Sinais comuns incluem uma necessidade excessiva de atenção e segurança, segundo a psicóloga e autora Suzy Reading.

Esses amigos também podem afetar seu humor de forma gradual, por meio de elogios disfarçados ou cobrando que você esteja sempre animado, não permitindo que você expresse como realmente está se sentindo.

A escritora e jornalista Radhika Sanghani diz que a maneira como você se sente após encontrar esse tipo de pessoa costuma ser o sinal mais claro.

"Saí de situações assim pensando: isso não está funcionando, estou realmente exausta, e consigo perceber que o problema é delas, não meu."

Se você enfrenta esse tipo de situação, aqui estão três formas de lidar com ela.

1. Diga a eles como eles fazem você se sentir

Muitas pessoas podem não perceber como o comportamento delas te afeta.

Pode acabar sendo uma conversa estranha, mas falar abertamente e dizer como se sente pode ser muito eficaz.

"Há muitos exemplos de pessoas que receberam esse tipo de feedback e ficaram horrorizadas. Elas não tinham ideia do impacto que seu comportamento tinha sobre os outros", afirma Reading.

Esse tipo de honestidade pode ajudar a preservar uma amizade.

Sanghani sugere uma abordagem do tipo: "Quando estamos juntos, sinto que não há muito espaço para mim. Não me sinto ouvida. E não estou sendo perguntada também."

Se forem amigos de verdade, ouvirão o que você diz e não ignorarão.

"Se eles imediatamente negam ou ficam na defensiva, isso mostra que não são pessoas que quero na minha vida", diz Sanghani.

2. Estabeleça limites claros

Se o seu amigo não demonstra vontade de mudar o comportamento e vocês não conseguem se afastar, é importante estabelecer limites claros para se proteger.

Isso pode incluir reduzir o tempo que passam juntos ou definir regras para quando estiverem juntos.

"Seja claro sobre o que é aceitável e o que não é", sugere Reading.

Para exemplificar, Reading diz: "Você pode dizer 'não vamos mais enviar mensagens intermináveis' ou 'não vamos falar sobre nossas emoções'", diz Reading.

Mudar as atividades que fazem juntos também pode ajudar. Se normalmente saem para comer e conversar ou tomam café com frequência, experimente uma atividade diferente.

"Por que não saem para caminhar juntos? Ou fazer exercícios juntos, para que suas necessidades ainda sejam atendidas? Isso reduz a tendência da outra pessoa de dominar tudo", recomenda Reading.

3. Esteja preparado para terminar a amizade

Preste atenção em como você se sente depois de encontrar um amigo.

"Se você teve um encontro social, pense: foi positivo, deu +2? Você saiu se sentindo melhor? Ou foi neutro, zero? Ou negativo, –2, em que a pessoa está drenando sua energia?"

Você pode ter uma tolerância diferente em relação a outra pessoa, por isso é importante confiar no próprio julgamento sobre quando começar a reduzir o tempo com alguém.

E, se a situação parecer irreparável, Sanghani diz que não é preciso ter medo de encerrar ou dar um tempo na relação.

"Em algumas situações, se for fácil, eu simplesmente me afasto, especialmente se for alguém que acabei de conhecer."

Emily Holt, originalmente, de Londres (UK) para a BBC News, em 04.10.25

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Quarenta anos de democracia

Este sistema político tão arejado quanto flexível tem raízes na administração do 31.º presidente da República, José Sarney

Sarney, ainda como Vice de Tancredo, sobe a rampa do Palácio do Planalto

Como um ponto cego na História, chama a atenção que o aniversário de 40 anos do governo do presidente José Sarney, iniciado em 23 de abril de 1985, não seja lembrado com o reconhecimento merecido. Se hoje o Brasil persiste no ciclo mais amplo e contínuo das liberdades democráticas de sua história, usufruindo de equilíbrio institucional, autonomia e alternância nos Poderes republicanos, garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, acesso irrestrito à Justiça, livre associação partidária e de manifestação do pensamento, entre vários outros pilares do regime democrático, esse sistema político tão arejado quanto flexível tem raízes na administração do 31.º presidente da República.

Levado ao cargo pela morte prematura do presidente eleito Tancredo Neves, Sarney enfrentou resistências à direita e à esquerda por ser o vice que herdaria o governo fruto de uma coligação do MDB e de dissidentes do PDS, partido do regime militar a que ele pertencera. Mas era não só político de longo curso, como um homem de cultura – e logo criou um ministério específico para essa área, entregando-o a um intelectual da estatura de Celso Furtado, um dos maiores intérpretes do Brasil. Caso único de presidente que escreveu romances, como O Dono do Mar, elogiado por Darcy Ribeiro (“não imaginava José Sarney um romancista poderoso”), fez do Estado mecenas das artes com a Lei Sarney, depois chamada de Rouanet. Ainda hoje, aos 95 anos, vai a reuniões da Academia Brasileira de Letras – dividindo a condição de presidente-imortal apenas com Getúlio Vargas.

Com visão de estadista, compreendeu que após duas décadas de regime militar, a sociedade civil carecia de liberdade institucional para se reorganizar e pacificar num pacto republicano que incluísse as diversas forças políticas que tradicionalmente oscilaram entre a disputa e a cooperação na formação social brasileira – associando-se nos movimentos de ruptura como o combate aos holandeses no Nordeste, a Independência, a Abolição, a República e a Revolução de 30. Conservador, surpreendeu ao promover a liberdade partidária, legalizando agremiações que se arrastavam na clandestinidade, a começar dos partidos comunistas, cujos dirigentes pela primeira vez foram recebidos com cerimônia no Palácio do Planalto.

Em seu governo foi concedido o direito de voto aos analfabetos e aos maiores de 16 anos. Em maio de 1985 foi aprovada a emenda constitucional restabelecendo as eleições diretas – primeiro passo para a transição para a democracia com uma nova Constituição. Convocou a Assembleia Constituinte que em 1988 legou a mais democrática Carta Magna de nossa história. Mas foi profeta ao advertir que o desencorajamento da produção contido na nova Carta poderia transformar o Brasil em “uma máquina emperrada”.

Recriando hiatos de política externa independente, restabeleceu relações diplomáticas com Cuba e aproximação com países africanos e asiáticos. Na ONU, defendeu uma nova ordem econômica mundial, insistindo em que muitos países não tinham meios de pagar suas astronômicas dívidas externas. Na vizinhança, esvaziou uma competição latente com a Argentina, brecando uma disputa nuclear entre os dois países e assinando com seu homólogo Raul Alfonsín a Declaração do Iguaçu, semente do Mercosul.

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) contou com seu apoio. Em 1986, participou da 8.ª Conferência Nacional de Saúde, da qual surgiu o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds), e determinou que a iniciativa fosse apoiada pelo governo. Daí surgiu o SUS, instituído pela Constituição em 1988.

Seu maior desafio foi o dragão da hiperinflação, língua de fogo que incinerava a economia e foi atenuada com o jeitinho brasileiro da indexação, a ponto de os dissídios coletivos contemplarem os trabalhadores com enormes reajustes salariais. Uma sucessão de planos (Cruzado, Cruzado II, Bresser e Verão) não obteve o efeito desejado, mas alguns indicadores econômicos do período foram satisfatórios. O Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 3,2%, em média, ao ano. O déficit primário de 2,58% do PIB em 1984 deu lugar a um superávit de 0,8% em 1989. A dívida externa, que exigiu penosas negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e até um ensaio de moratória, não subiu exponencialmente, mas aumentou 14%, passando de US$ 108 bilhões a US$ 123 bilhões, e hoje alcança US$ 364 bilhões.

Como era inerente a um período de redemocratização, quando a liberdade recém-conquistada propicia debates e críticas até então represados, o governo foi marcado por ruidosas manifestações de insatisfação, violentas críticas políticas e numerosas greves enfim permitidas. O barco de Sarney não navegou na bonança. Antes, cruzou mares revoltos, exigindo firmeza e serenidade do capitão ao leme, assegurando ao País que a velha e boa democracia estava de volta para garantir, como disse numa entrevista, que, se alguém batesse na casa do cidadão às seis horas da manhã, “ele teria absoluta tranquilidade de que era o leiteiro ou o padeiro, nunca a polícia”. •

Aldo Rebelo, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Foi Presidente da Fundação Ulisses Guimara~es em S. Paulo. Presidiu a Câmara dos Deputados. Foi Relator do Código Florestal, e, ainda - Ministro da Coordenação Politica e Coordenação Institucional; do Esporte, da Ciência, Tecnologia e Inovação; Secretário da Casa Civil do Governo de S. Paulo e de Relações Internacionais do Município de S. Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.09.25

Novo Código Civil demole a ordem jurídica

Travestindo populismo jurídico de modernização, proposta amplia o arbítrio judicial, incentiva a judicialização e mina a segurança jurídica. Catastrófica e irremediável, precisa ser arquivada

Brasília (DF) 04/09/2023 Instalação do colegiado e a primeira reunião de trabalho da Comissão de Juristas criada pelo Senado para propor a revisão e atualização do Código Civil. Foto Lula Marques/ Agência Brasil

O Senado instalou em setembro a comissão temporária encarregada de analisar o Projeto de Lei (PL) n.º 4/2025, que pretende reformar o Código Civil de 2002. O movimento ocorre em meio a uma onda de críticas sem precedentes. Não é para menos: longe de modernizar as bases jurídicas do País, ele ameaça dilapidá-las.

Sob o pretexto de atualização, a proposta, gestada por uma comissão presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, altera quase 900 artigos, acrescenta 300, redesenha a estrutura e a linguagem do código e, na prática, fabrica um novo ordenamento civil – tudo produzido em apenas oito meses, sem debate público minimamente proporcional à magnitude da empreitada. Trata-se de uma artimanha: um novo Código Civil travestido de mera “revisão técnica”. O açodamento e a falta de pactuação social revelam não apenas imprudência, mas ilegitimidade.

Os riscos não são abstratos. O texto multiplica conceitos vagos que funcionam como verdadeiros coringas judiciais – “confiança”, “simetria”, “paridade”, “dignidade” –, franqueando ao Judiciário poder discricionário para decidir conforme a interpretação do momento. Em lugar de previsibilidade, cria-se um convite à judicialização. O resultado será a fragmentação de entendimentos, decisões contraditórias e a degradação daquilo que distingue um Estado de Direito de um regime arbitrário: regras claras, universais e estáveis.

Na seara contratual, a reforma transforma em letra morta a segurança dos negócios. O recurso indiscriminado à “função social” da propriedade e dos contratos – cujas referências aumentaram em 450% – abre margem para invalidar cláusulas a critério dos juízes, estimulando litígios intermináveis. A responsabilidade civil, por sua vez, é dilatada de modo caótico: deixa de se limitar ao dano ilícito para assumir funções punitivas, pedagógicas e moralizantes. O dever de indenizar passa a ser um jogo de azar, regido por máximas vagas e pelo gosto de quem julga.

Em carta aberta, a Federação Nacional dos Institutos dos Advogados foi categórica: o projeto é irremediável e deveria ser arquivado. Além de expor cidadãos e empresas à insegurança, fragiliza liberdades fundamentais e cria obstáculos adicionais à atividade econômica. No campo digital, por exemplo, propõe um marco regulatório sem paralelo em democracias avançadas, com restrições a plataformas virtuais que podem gerar retaliações internacionais e colocar o Brasil em rota de colisão com seus principais parceiros comerciais.

Juristas, entidades e veículos de imprensa convergem na denúncia de que o PL 4/2025 institucionaliza um populismo jurídico: promete proteger os vulneráveis, mas mina a previsibilidade das regras, encarece contratos e transfere ao juiz – e não ao legislador democraticamente eleito – o poder de definir os rumos da sociedade. O projeto mistura regras gerais de Direito Civil com proteção especial ao consumidor, propõe experimentos sociais temerários no direito de família e ignora leis recentes.

Mais grave, fragiliza o próprio Estado de Direito. O que está em jogo não é apenas a técnica legislativa, mas o equilíbrio institucional. Ao multiplicar conceitos indeterminados, o novo código legitima o ativismo judicial e reforça a concentração de poder em instâncias que já se mostram alarmantemente propensas ao arbítrio. A República não pode se dar ao luxo de ser alicerçada sobre a areia.

O Brasil não precisa de aventuras legislativas açodadas. O Código Civil, fruto de décadas de debates, permanece sólido em seus fundamentos. Reformas focadas, calibradas e, sobretudo, legitimamente consensuadas, são sempre possíveis; demolir o edifício inteiro, em nome de uma pretensa modernização, é irresponsabilidade.

O Senado tem agora a oportunidade – e a obrigação – de frear esta marcha da insensatez. Só há um caminho responsável: arquivar o PL 4/2025 e abrir, no futuro, um debate sério, amplo e transparente sobre ajustes que de fato se mostrem necessários. Qualquer outra solução será capitulação diante do arbítrio e convite ao caos jurídico.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.09.25

Golpistas não merecem perdão

Rever punições desproporcionais aos bagrinhos do golpe é justo, mas anistiar os líderes da conspiração contra a República, ou abrandar suas penas, seria trair a Constituição e premiar o crime


"Quero dizer aos canalhas que nunca serei preso", garantiu Bolsonaro à sua bagrinhada

O Senado cumpriu sua obrigação de enterrar a infame PEC da Bandidagem, tentativa sem-vergonha de conceder aos próprios parlamentares o poder de decidir se poderiam ou não ser investigados por suspeita de crimes. Agora, cabe à Câmara dos Deputados, se pretende reaver algum resquício de decência, rejeitar de forma igualmente inequívoca o projeto de lei que busca anistiar os golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em especial o principal instigador e beneficiário da sedição, o ex-presidente Jair Bolsonaro.

A anistia aos golpistas não é apenas um disparate jurídico e político. É, sobretudo, um inaceitável retrocesso civilizatório. A Constituição consagra o Estado Democrático de Direito desde o seu preâmbulo. Os princípios basilares do regime das liberdades foram alçados à condição de cláusulas pétreas. Logo, perdoar aqueles que atentaram desabridamente contra a ordem constitucional democrática significa, na prática, demolir a própria fundação estrutural que sustenta esta República.

É verdade que a Procuradoria-Geral da República e o STF, talvez no afã de impor exemplaridade na coerção de condutas inéditas na história recente do País, puniram desproporcionalmente muitos dos idiotas úteis que serviram de massa de manobra no 8 de Janeiro. Casos como o da cabeleireira condenada a 14 anos de prisão por pichar com batom a estátua da Justiça em frente à sede do Supremo merecem revisão criteriosa. O sistema penal não pode ser um instrumento de vingança nem tampouco pode operar em desalinho com os atos que pretende coibir. Mas essa necessária correção de rumos não pode, em hipótese alguma, se estender aos líderes de uma conspiração, sejam civis ou militares, que tramaram e executaram uma tentativa de golpe de Estado.

À luz do direito comparado, a legislação pátria já é bastante branda com crimes contra o Estado Democrático de Direito. O Código Penal prevê penas de 4 a 8 anos de reclusão para abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L) e de 4 a 12 anos para golpe de Estado (359-M). No cotejo internacional, essas sanções são quase prêmios aos golpistas. Alemanha, Argentina, Canadá, França e Reino Unido, por exemplo, preveem prisão perpétua para quem tenta um golpe de Estado. A Espanha estabelece 25 anos de cárcere. Nos Estados Unidos e no México, são até 20 anos de cadeia para os insurgentes. Só a Itália, com pena máxima de cinco anos de reclusão, é menos gravosa que o Brasil.

Ou seja, mesmo sem anistia, a punição aos golpistas brasileiros já é leve. Reduzi-la ainda mais não só nos afastaria do padrão civilizatório estabelecido por democracias mais maduras, como transmitiria à sociedade uma mensagem para lá de infeliz: por aqui, tentar subverter o resultado legítimo de uma eleição não seria crime tão grave. Ora, se os golpistas tivessem tido sucesso em seu intento, decerto não haveria qualquer complacência com os legalistas. É ocioso relembrar aqui o destino reservado por regimes de exceção aos dissidentes e opositores.

O Brasil deu um passo histórico ao condenar, pela primeira vez, um ex-presidente e altas autoridades civis e militares por conspirarem contra a democracia. Esse precedente é um marco institucional que precisa ser preservado, não enfraquecido, pelo Congresso. O Judiciário tem cumprido sua parte ao impor aos golpistas a devida responsabilização. Cabe ao Legislativo não apagar esse legado.

As manifestações no dia 21 passado foram eloquentes. A sociedade bradou “não” à PEC da Bandidagem e também à anistia aos golpistas. Ambas as iniciativas nasceram de um mesmo pacote de impunidade gestado nos corredores do Congresso, em total divórcio com o melhor interesse público. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, afirmou que o grito das ruas revelou a “desconexão” entre sociedade e Parlamento. É verdade. Mas convém lembrar que seu partido, o Republicanos, votou maciçamente pela PEC da Bandidagem. Ademais, Tarcísio encarna pessoalmente a defesa da anistia que as ruas também repeliram.

Rever excessos cometidos contra os bagrinhos da intentona é legítimo. Já abrandar ou perdoar as penas dos articuladores do golpe é inconcebível. Seria um salvo-conduto para que, no futuro, velhos ou novos conspiradores se assanhem.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.09.25

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O Senado não fez mais que a obrigação

Ao rejeitar a PEC da Blindagem, o Senado apenas enterrou o monstrengo fuzilado pela sociedade indignada – que deve permanecer alerta, pois o espectro do corporativismo criminoso segue vivo

CCJ do Senado em reunião

A Câmara dos Deputados escreveu uma das páginas mais vergonhosas da história republicana ao aprovar a chamada “PEC da Blindagem” – ou da “Impunidade”, ou da “Bandidagem”, como queiram. Com ela, os deputados, a título de defender prerrogativas parlamentares, assinaram um pacto de autoproteção criminosa. Ontem, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado rejeitou in totum, por 26 votos a 0, a aberração. Fez bem – mas não fez mais do que a obrigação.

A proposta exumava, em versão ainda mais obscena, o sistema de licença prévia do Congresso para processar parlamentares, mecanismo que vigorou entre 1988 e 2001 e que resultou em quase 300 pedidos de investigação barrados – contra apenas um autorizado. A impunidade de Hildebrando Pascoal, o “deputado da motosserra”, acusado de comandar homicídios brutais e de envolvimento com o narcotráfico, é o emblema desse período de vergonha. Foi justamente para pôr fim a essa era de impunidade que se aprovou a Emenda Constitucional n.º 35/2001. A Câmara, duas décadas depois, quis ressuscitar o cadáver político da licença prévia, pervertendo não só os mais elementares princípios republicanos, mas também o simples bom senso.

Não parava aí. A PEC previa que as decisões sobre prisão em flagrante e formação da culpa fossem tomadas em votação secreta pelo plenário – devolvendo ao submundo o que a Emenda Constitucional n.º 76/2013 havia trazido à luz da transparência. Estendia foro privilegiado a presidentes de partidos, cargo sem função estatal. E hipertrofiava a inviolabilidade parlamentar, tornando-a salvo-conduto absoluto contra qualquer responsabilização. Imunidade pervertida em impunidade, prerrogativa degenerada em privilégio.

Alguns deputados tentaram traficar a falácia de que se tratava de resgatar o “texto original” da Constituição. É um sofisma pernicioso. O dispositivo da licença prévia foi concebido em um contexto de transição democrática, para resguardar os mandatos depois de duas décadas de cassações arbitrárias promovidas pelo regime militar. Hoje, num regime democrático consolidado, o artifício não protege a democracia, mas os corruptos; não defende a liberdade de representação, mas facilita a infiltração do crime organizado no Parlamento. A pretexto de restaurar uma letra morta, a Câmara seviciou o espírito da Constituição.

A indecência foi aprovada com articulação consciente do Centrão e a cumplicidade covarde do presidente da Casa, Hugo Motta. Não houve engano, não houve distração: houve dolo legislativo. O súbito surto de “arrependimento” de alguns deputados, após a reação das ruas e das redes sociais, é oportunismo puro. “Ninguém votou sem saber”, como lembrou o senador Otto Alencar. As desculpas posteriores, de petistas a bolsonaristas, foram apenas exercícios performáticos de marketing de danos.

Coube à sociedade o papel de verdadeiro freio. O recado das multidões nas ruas foi contundente: os brasileiros não toleram um Congresso acima da lei. O Senado, sensível ao custo político das eleições majoritárias e pressionado pela opinião pública, agiu como barreira. Seja pela virtude de alguns ou por instinto de sobrevivência de todos, os senadores rasuraram uma das páginas mais vergonhosas da história do Congresso. Mas não há como apagá-la.

Que ela sirva de lição. A “PEC da Blindagem” não foi acidente, mas sintoma de um padrão corrosivo: o corporativismo voraz que converte o Legislativo em condomínio de interesses privados, blindado contra a Justiça e a sociedade. Esse mesmo espírito explica o uso predatório das emendas orçamentárias, a conivência com “devedores contumazes” ou vendetas contra o Banco Central. É a lógica de um poder capturado, divorciado da nação que deveria representar.

Arquivar a PEC foi o primeiro passo. O segundo é cobrar responsabilidades de quem a patrocinou e blindar – agora sim, de forma legítima – a Constituição contra novos truques regimentais que disfarçam privilégios como “prerrogativas”. A sociedade mostrou que não está anestesiada. A democracia só se sustenta quando a lei vale para todos. E igualdade perante a lei não se negocia.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 25.09.25

terça-feira, 23 de setembro de 2025

As ruas mandam um recado ao Congresso

Protestos mostram que os cidadãos se dispõem a ir às ruas quando se trata de defender não a agenda de um partido, mas os princípios da vida democrática, ameaçados por políticos oportunistas


Protestos de domingo, 21, fortalece STF no conflito com o Congresso Nacional Foto: Evaristo Sa/EVARISTO SA

Milhares de pessoas foram às ruas no domingo passado para dizer um “basta” ao alheamento do Congresso à realidade do País. Em todas as capitais, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, cidadãos protestaram contra dois símbolos recentes da degradação da representação política: a aprovação, pela Câmara, da chamada PEC da Bandidagem, que visa a blindar parlamentares de investigações criminais, e a concessão de anistia “ampla, geral e irrestrita” a Jair Bolsonaro e outros golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O Monitor do Debate Político da USP, que tem metodologia própria, calculou que 42,4 mil pessoas ocuparam cerca de quatro quarteirões da Avenida Paulista e que 41,8 mil encheram a orla de Copacabana. Como se viu, foram mobilizações muito próximas, em escala, daquelas arregimentadas pelo bolsonarismo no Sete de Setembro, mas com pautas diametralmente opostas. Se na data nacional o objetivo dos manifestantes era pressionar o STF pela impunidade de Bolsonaro e seus cúmplices na trama golpista, além de clamar por intervenção dos EUA – inclusive militar – no curso do julgamento, no dia 21 passado a mensagem foi um sonoro “não” à criação de uma casta de mandatários acima da lei e ao perdão a quem ousou atentar contra a ordem constitucional democrática.

Isso mostra, como primeiro ponto de destaque, que Bolsonaro, nos estertores de sua relevância política, não é mais o senhor das ruas do País. Nos últimos anos, o ex-presidente exerceu com habilidade o protagonismo da mobilização popular, papel outrora desempenhado com igual força e presença por sua nêmesis, Lula da Silva. Mas algo abalou as estruturas da política nacional, levando às ruas um contingente de cidadãos não necessariamente aferrados às agendas de um ou outro polo. Ao que tudo indica, a indignação popular com a defesa explícita da impunidade – seja para parlamentares, seja para golpistas – parece ter despertado um movimento político mais amplo, que não se confunde com a estrita militância partidária.

É um erro, portanto, reduzir as manifestações de domingo a um triunfo da esquerda, menos ainda do PT. A esquerda, sozinha, mal é capaz de levar meia dúzia de gatos-pingados às ruas, como restou evidente no constrangedor ato pelo Dia do Trabalho no ano passado, no qual a presença de Lula só acentuou o vexame da ausência de povo. O PT tampouco tem legitimidade para tremular a bandeira da moralidade pública depois dos escândalos de corrupção que marcaram os governos lulopetistas. Logo, os protestos de domingo só ganharam corpo porque, obviamente, extrapolaram as trincheiras ideológicas e atraíram cidadãos inconformados com o divórcio entre o Congresso e a sociedade, marcado pelo desabrido desrespeito aos valores republicanos, a começar pela igualdade de todos perante a lei.

Não é de agora que o Legislativo mostra afastamento dos reais interesses da população, capturado que está por uma agenda corporativista em torno das emendas ao Orçamento e dos mais mirabolantes mecanismos de autoproteção de seus membros contra a apuração de desvios desses recursos. Mas raramente essa separação ficou tão evidente. A insistência em alçar parlamentares à condição de inimputáveis e o tempo que muitos no Congresso dedicam à agenda de um clã criminoso como o de Bolsonaro, decerto esperando que a subserviência renda votos, demonstram a captura de parte considerável do Legislativo por interesses que nem remotamente passam perto do bem comum. No domingo, ficou claro que muitos cidadãos não toleram isso.

De melhor, extrai-se que as manifestações contra a PEC da Bandidagem e a anistia aos golpistas evidenciaram que a sociedade brasileira não está anestesiada nem as ruas são cativas do bolsonarismo. Uma parcela expressiva da população mostrou disposição para sair de casa em defesa da Constituição e contra a supremacia de uma cultura de privilégios que parece dominar a política nacional. É claro que Lula e o PT, oportunistas que são, vão tentar tirar uma casquinha dos atos, mas todos sabem que o lulopetismo, aquele que protagonizou o mensalão e o petrolão, não tem nada a ver com a defesa da integridade das instituições republicanas.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 23.09.25

Mirem-se no exemplo de Chico, Gil e Caetano

É muito bonito que o chamado de "vamos às ruas" tenha sido feito por um cidadão de 83 anos que já contribuiu tanto para o Brasil que poderia estar "em casa, guardado por Deus, contando vil metal".

Caetano Veloso, Djavan, Chico Buarque e Gilberto Gil participaram de protesto contra anistia e PEC da Blindagem no Rio de JaneiroFoto: Bruno Kaiuca/AFP/Getty Images

"É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte!" Com os braços levantados, fazendo gestos revolucionários e cheios de energia, os cantores gritavam esses versos para uma multidão que cantava junto. A cena seria bonita de qualquer jeito. Mas, nesse caso, podemos usar o adjetivo "histórico". Isso porque os moços no palco eram os autores da canção Divino, Maravilhoso: Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos com 83 anos. Atrás deles, sentados no palco, estavam Chico Buarque, 81, e Djavan, 76.

A cena aconteceu em Copacabana, Rio de Janeiro, no último domingo, quando os agora octogenários ícones da música brasileira subiram de novo juntos em um palco de um protesto e cantaram hinos de resistência à ditadura e que fazem parte da história do Brasil, como Cálice, Vai passar e Aquele Abraço. O show fez parte de uma manifestação contra a "PEC da Blindagem" e a proposta de anistia aos condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

O chamado tinha sido feito três dias antes por Caetano Veloso em um desabafo revoltado publicado nas redes sociais. "A gente tem que ir para a rua! Para frente do Congresso, como já fizemos outras vezes!", desabafou, visivelmente indignado: "não admitimos isso como nação, como povo, não admitimos!".

Além de Gil, Chico e Djavan, Paulinho da Viola, 82 anos, também participou do protesto ao lado dos "colegas". É muito bonito que o chamado de "vamos às ruas", em um momento tão importante da história brasileira (temos a chance de punir golpistas pela primeira vez), tenha sido feito por Caetano, um cidadão de 83 anos que já contribuiu tanto para a música brasileira e que poderia estar "em casa, guardado por Deus, contando vil metal", como diz a música Como os nossos pais, cantada no evento por Maria Gadú.

Nunca é tarde para ir às ruas

Mas também não chega a ser surpreendente. Chico, Caetano e Gil nunca se furtaram de participar da vida pública do país e de lutar pela democracia. Eles sempre estiveram lá. E o comprometimento em ser um cidadão atuante no mundo não é algo que "passe com o tempo".

Nas redes sociais, muitos recuperaram uma foto histórica, onde Caetano, Chico e Gil marcham juntos na "Passeata dos 100 mil", de braços dados, contra a ditadura militar, em 1968, há 57 anos. A foto faz parte dos livros de história. Em 1984, eu era criança, mas mesmo assim meus pais me levaram no Comício das Diretas, no Rio de Janeiro. Chico e Caetano, obviamente, estavam lá.

Não seria diferente agora que envelheceram. Inclusive, essa parece ser mais uma das lições dadas por vários representantes dessa geração: nunca é tarde para estar nas ruas e para tentar mudar as coisas. No Brasil, temos Chico, Gil, Caetano, Djavan e Paulinho da Viola. No exterior, temos Jane Fonda, por exemplo, a atriz e ativista do meio ambiente de 87 anos que vive sendo detida em protestos.

Ver esses gênios octogenários indo "para as ruas" de novo é emocionante. Em uma imagem que circula nas redes sociais, uma jovem chora copiosamente enquanto canta Cálice na frente do palco. É de chorar mesmo. Mas é também uma inspiração.

Tomara que a gente consiga fazer como eles e "levantar a bunda do sofá" cada vez que tem preguiça de lutar contra coisas revoltantes ou que repetimos o coro dos acomodados: "ah, mas isso não vai dar em nada". Se Gil, Chico e Caetano pensassem assim, estariam em casa quietos há tempos, não?

"Mamadores da Lei Rouanet"

Os últimos anos não foram fáceis para a cultura brasileira. E nem para Chico, Gil e Caetano. Os três, assim como muitos artistas brasileiros, foram apelidados de "mamadores da Lei Rouanet", chamados de corruptos, desrespeitados e xingados nas ruas e nas redes sociais. Eles poderiam simplesmente ter se cansado de dar a cara a tapa e de se envolver com a vida pública do país, mas algo me diz que eles jamais conseguiriam fazer isso, para nossa sorte.

"Nós não poderíamos deixar de responder aos horrores que vêm se insinuando à nossa volta", disse Caetano na manifestação, ao convidar os "colegas". "Vários de nós aqui já passamos juntos por momentos no Brasil parecidos com esse, e estamos sempre em busca da autonomia cada vez maior do nosso povo. Esse é um momento em que estamos fazendo de novo essa exigência", disse Gil. Ele se referia a um momento em que a extrema direita avança no mundo todo e em que o presidente dos EUA, Donald Trump, faz um dos maiores ataques contra a soberania do Brasil da história. Caetano e Gil têm razão: "é preciso estar atento e forte. Atenção!"

Nina Lemos, a autora deste texto, é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 23.09.25

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Sem anistia

A anistia seria uma derrota do estado de direito diante da exigência de um grupo político condenado justamente por ter atentado contra a democracia.

O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro acena em sua residência em Brasília no último dia do julgamento que selou sua condenação a 27 anos e 3 meses de prisão pela trama golpista — Foto: Sergio Lima/AFP

Não há razão para anistiar o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus companheiros de aventura golpista, sobretudo porque a reivindicação vem a bordo de uma chantagem política baseada na ameaça de um governo estrangeiro. A anistia, assim, seria uma derrota do estado de direito diante da exigência de um grupo político condenado justamente por ter atentado contra a democracia. Seria uma incoerência em si mesma uma decisão nesse sentido, que destoaria dos demais processos históricos anteriores, quando a anistia sempre foi dada como maneira de pacificação por parte do governo legitimamente eleito, ou, como no caso da anistia no golpe militar de 1964, da ditadura agonizante que buscava salvar os seus diante da tendência majoritária no país contrária à sua permanência.

Tanto que a extinção do AI-5 já havia sido decretada e, em seguida, a eleição, mesmo indireta, garantiu o fim da ditadura elegendo Tancredo Neves presidente da República. Em todos os casos, a anistia veio como um gesto de pacificação de governos legítimos ou de ditaduras decadentes. Agora, os perdedores querem anistia para continuar a ameaçar a democracia, aproveitando-se dela para tentar desmontar o estado de direito por dentro.

Os diversos casos acontecidos na nossa História, de anistiados que voltaram a atentar contra a democracia até vencerem no golpe militar de 1964, só demonstram que os governos democráticos que deram anistia como gesto pacificador tiveram como resposta a renovada tentativa de golpe. Desta vez, se os derrotados na tentativa de golpe mesmo assim se sentirem em condições de exigir uma anistia a seus crimes, nada indica que novas tentativas não serão feitas.

A onda de violência política que domina tanto o Brasil quanto os Estados Unidos, para ficarmos nesses dois países que, no momento, vivem ambientes políticos radicalizados, não pode ser alimentada por leniência diante dos que a fazem instrumento de uma guerra insana, distorcendo sua finalidade, que é a ordenação moral das sociedades. Carl von Clausewitz, filósofo e teórico militar escreveu que “a guerra é a continuação da política por outros meios”, mas não queria dizer que a guerra existia depois de esgotados os recursos da política. Pelo contrário, achava que a política sempre deveria ser usada para o intercâmbio entre as forças em disputa, mesmo durante a guerra.

Não há desculpa, portanto, para que se deixe de fazer política, no sentido de dialogar com forças adversas, para se partir para a guerra. Nos tempos atuais, o assassinato do líder extremista de direita Charlie Kirk nos Estados Unidos, ou a facada que sofreu Jair Bolsonaro na campanha eleitoral de 2018, são exemplos de atitudes “de guerra” contra o adversário, assim como a invasão da Praça dos Três Poderes foi parte de uma tentativa de golpe contra a democracia. Nos dois primeiros casos citados, tudo indica que foram atos isolados de pessoas envenenadas pelo clima violento em vigor. No caso da intentona de janeiro de 2023, e na invasão do Capitólio nos Estados Unidos, são fatos culminantes de uma tentativa de impedir que a vitória do adversário político se oficializasse.

Não é aceitável qualquer desses atentados à democracia, vindos da direita ou da esquerda. É preciso aceitar a alternância de poder e compreender as eleições como o único instrumento válido para reverter o resultado negativo para a força política derrotada. Se o objetivo das forças partidárias em disputa é o progresso do país que almejam governar, qualquer tentativa de burlar a legislação vigente, ainda mais com violência, só pode trazer retrocessos. Os excessos de qualquer um dos Poderes constituídos, anulando o sistema de pesos e contrapesos imaginado por Montesquieu, mesmo que em busca de uma suposta Justiça, só faz abrir brecha para golpistas.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. (Presidente da Academia Brasileira de Letras). Publicado originalmente n'O Globo, em 14.09.25

O país e o julgamento

A democracia não se vinga, mas não pode ignorar o que deu errado no passado, nem deixar de almejar um futuro diferente para as próximas gerações

Primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da trama golpista — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo

A democracia não se vinga, mas deve se proteger. Durante mais de um século, esteve frágil diante dos atentados, por um erro plantado no berço da República: a pretensão de que os militares seriam os tutores do poder civil. De tempos em tempos, os que têm as fardas e as armas, fornecidas pelos cofres públicos, assombraram o país ou tomaram o poder diretamente. Sou da geração que pagou o preço mais alto. Pela primeira vez, temos a chance de construir um pacto novo, no qual os militares terão seu papel, sempre essencial, mas jamais para exercer o poder.

A poesia de Affonso Romano de Sant’anna foi trazida aos autos, no voto da ministra Cármen Lúcia que condenou os réus. No poema “Que país é este?”, há versos que parecem simples e são definitivos. “Uma coisa é um país, outra um regimento”.

O ministro Luiz Fux ficou sozinho no seu voto divergente. A democracia sempre aceitará os divergentes, mas o erro do ministro foi ver fatos isolados, onde havia um plano. Ele foi executado à luz do dia, gritado nos palanques de avenidas, analisado em reuniões ministeriais, dito em datas nacionais, escrito em documentos. O mais macabro dos papéis descobertos pela Polícia Federal foi impresso no Palácio do Planalto, e trazia o nosso verde-amarelo entregue a um punhal.

As penas foram duras, mas equivalentes ao mal que viveríamos caso a trama fosse bem-sucedida. “Conhecemos o caminho maldito”, alertou a figura solar de Ulysses Guimarães, quando promulgava a Constituição. As penas foram duras, mas o ultraje foi maior e o Brasil o sofreu por quatro anos. As penas foram duras, mas é fácil imaginar como seria o Brasil, neste momento, caso eles tivessem tido êxito. Nem precisamos da imaginação para construir o cenário, nós o temos de memória.

A História do Brasil tem requintes. O ministro Alexandre de Moraes ter nascido em 13 de dezembro de 1968 é um deles. No dia da decretação do terrível AI-5, nascia a pessoa que um dia seria o relator da primeira ação penal que julgaria generais por golpe de Estado. O governante que ofendeu tanto as mulheres foi condenado pelo voto de uma mulher. A lei usada para condená-los foi sancionada pelo líder da sedição, e tem a assinatura de outros três conspiradores. Uma mulher está no comando do Superior Tribunal Militar no momento em que o tribunal vai analisar a perda de patentes dos oficiais envolvidos, julgando-os pelo tipo penal “indignidade para o oficialato”.

A história tem idas e vindas, dirão. O Congresso pode votar uma anistia. Pode. A Constituição será consultada. A pessoa eleita em 2026 pode indultar os condenados. Pode. A Constituição nos orientará. São cenários possíveis e a beleza da democracia é que o país debate e escolhe seus caminhos em cena aberta. “Uma coisa é um país, outra o confinamento”.

Durante o governo Bolsonaro, não foram poucas as vezes em que escrevi aqui que ele cometia crimes e que a democracia era seu maior alvo. Organizei 153 dessas colunas em um livro publicado em 2021. Queria que fosse um alerta. O título é “A democracia na armadilha”. O último texto avisava que “a democracia morre no fim deste enredo”. Esta coluna começava sustentando: “O agressor da democracia não vai parar. É como o agressor da mulher que após ser perdoado volta a atacar e, muitas vezes, o fim é a morte da vítima.” E concluía: “A democracia está sendo agredida, o agressor é o presidente da República. Ele tem ajudantes militares e civis.” O país estava naquele 2021 na escalada autoritária cujos autores acabam de ser condenados.

O fato de o Brasil receber ameaças dos Estados Unidos quando está tomando decisões institucionais chega a ser caricato. Era o que chamávamos antigamente de “imperialismo ianque”. Mas a verdade é esta. O país foi alvo de hostilidades concretas, com as tarifas e com palavras ameaçadoras que incluíam a alusão ao poderio militar dos Estados Unidos. Parte da oposição aplaudiu, parte ficou em silêncio.

A democracia não se vinga, mas não pode ignorar o que deu errado no passado, nem pode deixar de almejar um futuro diferente para as gerações que estão chegando. “Espero que tenha sido encerrado o ciclo do atraso, marcado pelo golpismo”, disse o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, ao fechar a sessão final do julgamento que condenou o ex-presidente, oficiais-generais e alguns civis pelo crime de atentar contra o estado democrático de Direito.

Míriam Leitão, a autora deste artigo, é jornalista - o olhar único que há 50 anos acompanha o que é notícia no Brasil e no mundo. Publicado originalmente n'O Globo, em 14.09.25

Julgamento dá orgulho

Cármen Lúcia foi concisa, de clareza não entediante e natural, o que é raridade entre as disputas por holofotes do colegiado

Cármen Lúcia, durante julgamento da trama golpista — Foto: Evaristo Sa / AFP

Dependendo do que cada um faz da própria vida, 27 anos é uma medida de tempo que se esgota rápido. Tomem-se gigantes da cultura musical como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones, Kurt Cobain, Amy Winehouse. Cada um escolheu um viver em intensidade máxima, acelerada, que durou 27 anos. Morreram prematuramente de forma trágica, deixando órfãs suas legiões de seguidores. No outro extremo está Jair Bolsonaro. A sentença de 27 anos e três meses de prisão, mesmo se algum dia reduzida para um sexto da pena ou aliviada para prisão domiciliar, encontra um homem condenado a um perpétuo vazio. O vazio da desumanidade que semeou.

O que fez da própria vida, em 70 anos? Desperdiçou-a, sempre em busca de atalhos, vantagens, conluios, arranjos. Como militar, foi inglório — chegou a capitão reformado por uma dessas maracutaias, mas a partir da sentença desta semana pode perder também a patente. Como parlamentar, foi desprezível, juntando-se ao que há de mais corrosivo na vida política nacional. E, como presidente, envenenou de tal forma as instituições democráticas que algumas levarão tempo para ser sanitizadas. Uma delas, o Supremo Tribunal Federal (STF), felizmente ficou de pé para julgá-lo.

Ironicamente, é a partir do voto soberano de quatro dos cinco togados da Primeira Turma do STF que Jair Messias Bolsonaro adquire agora uma marca inédita, histórica e indelével para chamar de sua: primeiro ex-presidente do Brasil condenado por tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, liderar uma organização criminosa armada para se manter no poder, além de dois outros crimes consoantes. Nosso 11 de setembro também passa a ser data histórica de consequências ainda inalcançáveis. Mas, ao contrário do golpe militar no Chile em 1973 e do atentado terrorista às Torres Gêmeas de 2001, seu sentido exemplar e civilizatório dá orgulho.

Ainda assim, Bolsonaro conseguiu escapar de ser julgado como ser desumano. Não existe tribunal para isso.

— Presidentes não são treinados para ter ou aparentar empatia, nem para fazer as vezes de pastores de almas doídas — escreve o jornalista John Dickerson, autor de “The hardest job in the world — the American presidency”.

Só que esse papel também faz parte do cargo, pois tragédias ocorrem, e a nação precisa receber conforto e atenção do cuidador em chefe. É conhecida a história do pai de um soldado americano morto na Guerra da Coreia que enviou uma carta ao então presidente Harry Truman. Inclusa no envelope, estava a condecoração militar Purple Heart recebida pelo filho. O texto dizia:

— Como o senhor foi diretamente responsável pela morte de nosso filho, pode ficar com essa insígnia para sua coleção de troféus... Lamentamos que sua filha não estivesse na guerra para receber o mesmo tratamento dado a ele.

Truman guardou a carta numa gaveta de sua mesa de trabalho até morrer.

O desdém, o sarcasmo e a irresponsabilidade com que Bolsonaro abandonou perto de 700 mil compatriotas à morte por Covid-19 durante seu mandato permanecem sendo um libelo à parte na avaliação dos males que sua Presidência trouxe ao país. Embora estrangeira à condenação atual, a dimensão desse apagão cívico irreparável também faz parte do DNA do personagem julgado. O desprezo pela vida humana e a tentativa de desconstrução da normalidade democrática andaram de mãos dadas naquele país à deriva, capitaneado por um grupo de salteadores civis e militares.

— A presente ação penal é quase um encontro do Brasil com seu passado, com seu presente e com seu futuro — disse a ministra do STF Cármen Lúcia, no voto que formou a maioria pela condenação dos réus.

O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro acena em sua residência em Brasília no último dia do julgamento que selou sua condenação a 27 anos e 3 meses de prisão pela trama golpista - Sergio Lima/AFP

Condenado, Bolsonaro pode começar a se 'desapegar' do dinheiro que recebe do PL

Foi concisa, de clareza não entediante e natural, o que é raridade entre as disputas por holofotes do colegiado. Única mulher entre os cinco magistrados da Primeira Turma (e também única mulher do total de 11 integrantes da Corte), ela se referia especificamente à área das políticas públicas dos órgãos de Estado.

Pois seria mais do que hora para o atual ou futuros(a)s presidentes da República tirarem o Brasil do atraso e equilibrarem essa composição antediluviana. Pelo menos antes do ano 2060, quando Jair Bolsonaro, então com 105 anos de idade, poderá deixar de ser inelegível.

Dorrit Harazim, a autora deste artigo, é Jornalista e Documentarista. Publicado originalmente n'O Globo, em 14.09.25