segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

EUA superam 500 mil mortos pela covid-19

Pandemia matou mais americanos do que a 1ª Guerra Mundial, a 2ª Guerra e a Guerra do Vietnã juntas. Biden lamenta vítimas e faz um minuto de silêncio na Casa Branca. "Não podemos aceitar um destino tão cruel.'

O presidente dos EUA, Joe Biden, e a primeira-dama Jill Biden fazem minuto de silêncio em homenagem às vítimas da covid-19

"Eu sei como é [perder alguém]", disse Biden, referindo-se ao seu histórico de tragédias familiares

Os Estados Unidos ultrapassaram nesta segunda-feira (22/02) a trágica marca de 500 mil mortes relacionadas à covid-19, apenas pouco mais de um ano depois que o coronavírus Sars-Cov-2 foi confirmado pela primeira vez e causou sua primeira morte no país.

Segundo contagem mantida pela universidade americana Johns Hopkins, ao todo mais de 28 milhões de pessoas foram infectadas pelo vírus nos EUA – que em números absolutos são, de longe, o país mais afetado pela pandemia no mundo.

Os Estados Unidos sozinhos correspondem por 19% do total de mortes em decorrência da covid-19 registradas oficialmente no planeta. O número é desproporcional, uma vez que a nação reúne apenas 4% da população mundial.

"Hoje atingimos um marco verdadeiramente triste e comovente", declarou o presidente Joe Biden em discurso emocionado na Casa Branca. "Mais americanos morreram em um ano nesta pandemia do que na Primeira Guerra Mundial, na Segunda Guerra e na Guerra do Vietnã combinadas."

"Eu sei como é", disse Biden, referindo-se ao seu próprio histórico de tragédias familiares, que lhe fizeram perder sua esposa e dois filhos ao longo da vida. "Peço a todos os americanos que lembrem. Que se lembrem daqueles que perdemos e daqueles que eles deixaram."

Ao mesmo tempo, o presidente pediu que as pessoas permaneçam vigilantes e continuem a seguir as recomendações de saúde para conter a pandemia.

"Como nação, não podemos aceitar um destino tão cruel. Enquanto lutamos contra esta pandemia por tanto tempo, temos que resistir a nos tornarmos entorpecidos pela tristeza", continuou. "Devemos acabar com a política de desinformação que dividiu famílias, comunidades e o país. Isso já causou muitas vidas. Temos que lutar contra isso juntos como um só povo."

Após o pronunciamento, Biden, a primeira-dama Jill Biden, a vice-presidente Kamala Harris e seu marido, Doug Emhoff, fizeram um minuto de silêncio na Casa Branca, em frente a 500 velas dispostas para representar a soma de vidas perdidas no país.

O presidente também ordenou que todas as bandeiras em propriedades federais e em instalações militares sejam hasteadas a meio mastro durante os próximos cinco dias, informou a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki.

"Fizemos pior que quase qualquer país"

O epidemiologista Anthony Fauci, conselheiro de Biden para assuntos de saúde, também lamentou os números "assombrosos" atingidos nesta segunda-feira.

"Se olharmos para trás historicamente, fizemos pior do que quase qualquer outro país, e somos um país rico e altamente desenvolvido", afirmou o especialista, em entrevista à emissora ABC News.

O malsucedido desempenho dos EUA no combate à pandemia reflete a falta de uma resposta nacional unificada no ano passado, quando o governo do ex-presidente Donald Trump, um negacionista da covid-19, deixou os estados à sua própria sorte para enfrentar a maior crise de saúde pública em um século, com Trump muitas vezes entrando em conflito com seus próprios especialistas na área.

Fauci fez também fez um apelo para que os americanos não baixem a guarda e continuem a seguir as medidas de distanciamento, segurança e higiene, enquanto o país corre contra o tempo para vacinar a população. "Precisamos ser muito cuidadosos agora", afirmou o epidemiologista.

Epidemia nos EUA

O primeiro caso de infecção pelo coronavírus nos EUA foi confirmado em 21 de janeiro de 2020, em um homem de cerca de 30 anos que havia retornado de Wuhan, na China. Já a primeira morte foi registrada em 6 de fevereiro de 2020, uma mulher de 57 anos.

O país atingiu a marca de 100 mil vidas perdidas pela covid-19 em maio do ano passado. O número dobrou em setembro, e em dezembro os EUA superaram 300 mil mortes. Já no mês seguinte, em 19 de janeiro, foi alcançada a marca de 400 mil óbitos.

As mortes registradas somente entre dezembro e fevereiro correspondem a 46% de todos os óbitos por covid-19 nos EUA, mesmo depois do início da campanha de vacinação, em dezembro.

Apesar do marco sombrio de 500 mil vítimas, o vírus parece estar dando trégua, com a incidência de infecções caindo pela sexta semana consecutiva. Contudo, especialistas em saúde alertaram que as variantes descobertas no Reino Unido, na África do Sul e no Brasil podem desencadear outra onda de contaminações que ameaça reverter as tendências positivas recentes.


Minutos de silêncio na Casa Branca - O Presidente Joe Biden e a Primeira Dama Jill / A Vice Presidente  Kamala Harris e seu marido, Kerstin Emhoff.

Deutsche Welle Brasil, em 22.02.2021

Brasil tem 639 mortes por covid-19 em 24 horas

Ao todo, mais de 247 mil pessoas morreram devido ao coronavírus no país. Autoridades de saúde registram ainda 26 mil novos casos, e total de infectados vai a 10,19 milhões.


Funcionários de cemitério no Rio carregam caixão em direção a cova

O Brasil registrou oficialmente 26.986 casos confirmados de covid-19 e 639 mortes ligadas à doença nesta segunda-feira (22/02), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e pelo Ministério da Saúde.

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 10.195.160, enquanto os óbitos chegaram a 247.143.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números divulgados às segundas-feiras também costumam ser mais baixos, já que equipes responsáveis pela notificação trabalham em escala reduzida no fim de semana.

Segundo o Ministério da Saúde, 9.139.215 pacientes se recuperaram da doença. O Conass não divulga número de recuperados.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 117,6 no Brasil, a 22ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Segundo um consórcio da imprensa brasileira, formado por O Globo, Extra, G1, Folha de S. Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo, até domingo 5.853.753 pessoas haviam recebido ao menos a primeira dose da vacina contra a covid-19.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 28,1 milhões de casos, e da Índia, com 11 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 500 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 111,6 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,47 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 22.02.2021

Henrique Meireles: Medidas duras para superar o maior desafio desta geração

A pior situação possível seria sair da crise sanitária e entrar numa crise fiscal

Todos se vão lembrar de 2020 como provavelmente o ano mais difícil de sua vida. Pela primeira vez em um século, a população mundial foi exposta a uma ameaça à sobrevivência. A crise gerada pelos efeitos da covid-19 na economia é inédita.

Nós temos experiência no enfrentamento de crises econômicas. Enfrentei algumas delas como presidente do Banco Central (BC) e ministro da Fazenda. Mas esta é uma crise cuja causa não é econômica, mas sanitária. Superá-la é o desafio desta geração.

A primeira etapa é a vacinação em massa. Todos esperávamos começar o ano com a pandemia, se não superada, ao menos atenuada. Mas começamos em meio a uma nova onda de contaminações, que exige medidas restritivas no mundo. A despeito de discursos negacionistas, temos os fatos: sem vacina não há volta do crescimento econômico.

Graças aos esforços do governo do Estado e à competência dos servidores do Instituto Butantan, São Paulo está em condições de vacinar sua população com a Coronavac. Porém, diante das dificuldades do governo central em adquirir doses suficientes de vacina para todos os brasileiros, as projeções sobre crescimento neste ano são incertas.

A segunda etapa é fazer a economia crescer, sem descuidar dos cidadãos. Essa meta em particular exigirá muito dos gestores públicos em 2021. O governo federal enfrenta o desafio de incentivar a economia, mas cumprindo rigorosamente o teto de gastos. O melhor programa de assistência social que existe é a criação de empregos. Para isso é necessário que a economia cresça, o que demanda controle da dívida pública. Se ela continuar crescendo de forma insustentável, teremos aumento da incerteza, do risco País e da taxa de juros.

A solução virá apenas com um forte programa de reformas estruturais, a administrativa e a tributária, além da PEC emergencial e das privatizações. A pior situação possível seria sair da crise sanitária e entrar numa crise fiscal.

A outra frente é relacionada às finanças estaduais. A arrecadação de impostos é diretamente impactada pela atividade econômica, ainda incerta. Por sua vez, as despesas tendem a ser maiores, pelos gastos com saúde. Essa conjunção negativa pressiona os Estados. Ao contrário do governo federal, Estados não podem emitir títulos para captar recursos. Restam, então, duas alternativas: cortar gastos e buscar mais receitas via corte de benefícios fiscais.

O governo de São Paulo, com apoio da Assembleia Legislativa, aprovou uma reforma da previdência que vai poupar R$ 58 bilhões em 15 anos. Aprovou uma reforma administrativa que prevê a extinção de empresas estatais, realocação de recursos e demissão de servidores não estáveis. É uma reforma dura, para cortar despesas. Aprovou ainda um programa de redução linear de 20% nos benefícios fiscais, para aumentar a receita do ICMS por 24 meses. Alguns dos benefícios estão em vigor há mais de 20 anos. No conjunto, faziam o Estado abrir mão de R$ 43 bilhões anuais, que poderiam ser direcionados à população. Houve o cuidado de preservar os itens da cesta básica, que afetam a população carente. Alterações em impostos provocam desgaste. Aberto ao diálogo, o governo ouviu diversos setores e fez ajustes. Reduzir benefícios e cortar gastos neste momento é questão de responsabilidade.

A defesa de medidas de responsabilidade fiscal é inglória. Uma gestão com as contas em dia proporciona uma normalidade com que os cidadãos se habituam, de modo que nem notam os efeitos positivos. Infelizmente, temos muitos exemplos de falta de responsabilidade fiscal. Entre 2011 e 2015, o governo federal ampliou a concessão de subsídios e renúncias fiscais com a intenção de incentivar o crescimento. A combinação disso com o aumento do gasto público levou a uma recessão brutal. Entre maio de 2015 e maio de 2016, o PIB recuou 5,2%, a maior recessão da história recente até aquele momento para um país que não estava em guerra. Ainda hoje o governo federal deixa de arrecadar cerca de R$ 300 bilhões anuais em subsídios, o equivalente a 4% do PIB.

São Paulo não passa por problemas financeiros porque tem coragem de tomar medidas duras, como as que toma agora, para manter em ordem as contas públicas. Está entre os Estados mais bem avaliados na área e se mantém rigorosamente dentro dos parâmetros de prudência da Lei de Responsabilidade Fiscal. Graças a esse cuidado, tivemos recursos para investir na ciência e colher os frutos com a Coronavac.

Todas as esferas de governo precisam manter-se dentro dos limites fiscais. Tenho defendido a ideia de que, após a justificada expansão do gasto público em 2020, é imprescindível a manutenção rigorosa do teto de gastos em 2021 para preservar o futuro da economia. Se há necessidade de mais gastos sociais, é preciso encontrar espaço dentro do teto. Para isso é preciso fazer reformas, como São Paulo está fazendo. Não podemos fugir da realidade: momentos dramáticos exigem medidas duras e sacrifícios de todos para podermos sobreviver à pandemia e criar empregos e renda com a retomada econômica.

Henrique Meireles, o autor deste artigo, é Secretário da Fazenda e do Planejamento do Estado de São Paulo. Foi Ministro da Fazenda (2016-2018), Presidente do Banco Central (2003-2011) e Presidente Mundial do BankBoston.

Partidos parasitas

Hoje há um círculo vicioso: os partidos aliciam os eleitores nos períodos eleitorais, e depois lhes dão as costas, dedicando-se a administrar seus feudos controlados por poucos caciques
 
As manifestações de 2013 escancararam uma crise de representatividade que só se agravou após as revelações da Operação Lava Jato. Mas o descolamento entre partidos e eleitores não reflete apenas mudanças conjunturais no ideário político, e sim distorções estruturais que só serão sanadas com reformas básicas. 

Um levantamento da ONG Transparência Partidária aponta que apenas 0,1% dos filiados a partidos faz contribuições financeiras frequentes às legendas. O dado expõe a total dependência do dinheiro público por parte dos partidos e a completa desconexão entre suas cúpulas e suas bases. Para praticamente todos os partidos, a proporção de filiados que contribuem frequentemente não chega a 1%, em geral nem a 0,1%. E, dos 18 mil contribuintes frequentes, 8 em 10 se concentram em dois partidos: Novo e PT. Mas mesmo entre os filiados do PT, só 0,43% contribui regularmente.

A única exceção é o Novo, no qual 26% dos filiados contribuem frequentemente. O partido é contrário ao uso de fundos públicos, já devolveu os recursos do fundo eleitoral e pediu autorização para devolver os do fundo partidário – desde que não sejam redistribuídos a outros partidos. A legenda depende das mensalidades cobradas aos filiados, de R$ 30 em média.

Como disse a cientista política Lara Mesquita, da FGV, as regras para distribuição dos recursos possibilitam um “encastelamento” das cúpulas partidárias. “Os partidos adotaram uma estratégia, em certa medida confortável, de garantir sua sobrevivência a partir de recursos públicos.” A estratégia foi consolidada em 2017, quando os partidos no Congresso, não satisfeitos com o fundo partidário, inventaram o fundo para campanhas eleitorais.

Logo que, em 2015, na esteira dos escândalos revelados pela Lava Jato, o STF declarou inconstitucional o financiamento eleitoral por empresas, era compreensível o estabelecimento de um fundo público, a fim de que as campanhas não fossem abruptamente dominadas pelas pessoas físicas ricas. Mas deveria ser um mecanismo de transição, que desse tempo para que os partidos, como entes privados que são, se organizassem para se sustentar com a contribuição de seus simpatizantes.

Mas não foi o que aconteceu. Ao contrário: os recursos públicos para os partidos cresceram a galope. Entre 1995 e 2018, os gastos anuais do fundo partidário saltaram, em valores deflacionados, 9.766%. Em 2000, o Estado respondia por menos de 8% dos custos eleitorais; em 2018, respondeu por quase 70%. Em 2020, o Congresso aprovou um aumento de 18% no fundo eleitoral. Com essa crescente fonte de receita dada a si mesmos pelos partidos com o dinheiro do contribuinte, não surpreende que o número de filiados esteja em queda. Afinal, por qual motivo as legendas se preocupariam em recrutá-los e conservá-los? Não à toa, segundo a Transparência Partidária, nos últimos dez anos o porcentual de mudança da composição das Executivas Nacionais foi de ínfimos 24%.

Se, ao contrário, os partidos fossem progressivamente obrigados a depender dos filiados, seriam forçados a criar “mais espaços de participação, mais prestação de contas e a dividir o poder”, disse Mesquita. A discussão não passa necessariamente pelo valor da contribuição, mas pelo engajamento. Como argumentou Marcelo Issa, da Transparência Partidária, se apenas metade dos 16 milhões de filiados contribuísse com R$ 5 por mês, isso equivaleria a R$ 480 milhões – metade do fundo partidário.

Hoje há um círculo vicioso: os partidos aliciam os eleitores nos períodos eleitorais, e depois lhes dão as costas, dedicando-se a administrar seus feudos controlados por poucos caciques, que, por sua vez, não sofrem pressão nem dos filiados nem do Poder Público para prestar contas. Sem uma reforma que não só elimine o financiamento público aos partidos, mas estabeleça cláusulas de barreira mais estritas e modelos eleitorais mais representativos – como o voto distrital –, a fragmentação partidária em uma pletora de legendas sem conteúdo programático e cada vez mais distantes dos eleitores só aumentará.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de São Paulo, em  22 de fevereiro de 2021 

‘Bolsonarismo radical não se importa com a pauta do País’, diz vice da Câmara

Deputado Marcelo Ramos nega ser o ‘Mourão’ de Lira e diz que a Casa tem coisas mais urgentes para tratar do que a pauta de costumes

Entrevista com

Marcelo Ramos, vice-presidente da Câmara dos Deputados

O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), avalia que o bolsonarismo radical atrapalha a agenda econômica do próprio governo de Jair Bolsonaro ao ocupar o tempo do Legislativo com polêmicas como a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). No segundo mandato federal, Ramos, de 47 anos, começou sua vida política na esquerda, como filiado ao PC do B. Foi eleito outras duas vezes deputado estadual. Agora, no segundo principal cargo na Mesa Diretora comandada por Arthur Lira (PP-AL), um político aliado ao Palácio do Planalto, o parlamentar se considera “independente” em relação ao governo. 

Ele criticou medidas recentes, como os decretos que ampliaram a posse e o porte de armas para caçadores, atiradores e colecionadores. Mesmo diante das divergências, Marcelo Ramos diz que não é o “Hamilton Mourão” de Lira – o vice-presidente da República se notabilizou nos últimos dois anos por discordar em público de Bolsonaro. 

O sr. expressa com frequência opiniões críticas ao governo de Jair Bolsonaro, do qual o presidente da Câmara, Arthur Lira, é aliado. O sr. é uma espécie de Hamilton Mourão de Lira?

Claro que não. Eu sou absolutamente alinhado com o deputado Arthur Lira. Reconheço que o papel de liderança e representação da Câmara é dele, porque ele foi legitimamente eleito para isso. Agora, eu fui para a composição da chapa com o deputado com meu histórico parlamentar e de vida. O meu histórico é o de um político moderado, independente em relação ao governo Bolsonaro. 

O vice-presidente Mourão também é "independente" em relação ao presidente Bolsonaro

É absolutamente diferente. O vice-presidente Mourão foi eleito na chapa; na Câmara são votações individuais. Mas assim, eu sou absolutamente alinhado ao deputado Arthur Lira. Acontece que nas pautas de costumes do governo Bolsonaro, eu não tenho alinhamento com isso. Ele já sabia disso antes de nós compormos. Não acho que um país que tem 14 milhões de desempregados, mais de 220 mil mortos pela pandemia (na sexta-feira, o total era de 244.765 mortos), quase 800 mil micro e pequenas empresas fechadas por conta da pandemia, tem que estar discutindo questão de gênero em escola ou arma. Nós temos coisas mais importantes para resolver. Eu acho que o problema é a hostilidade desse debate de costumes. 

Na quinta-feira, o presidente Arthur Lira foi se encontrar com o Bolsonaro para falar sobre o caso Daniel Silveira (preso por gravar um vídeo com ameaças ao STF). O sr. acha que é adequado consultar o presidente da República sobre como agir quando se trata de um aliado dele?

O caso Daniel Silveira tomou proporções de quase um conflito institucional entre os poderes. É absolutamente natural que os poderes conversem. O presidente Arthur Lira foi ao presidente Bolsonaro como foi ao ministro (Luiz) Fux. Na verdade, em um momento de tensão institucional como essa, não só é cabível como é importante que os presidentes dos poderes conversem. Nós precisamos reafirmar nossa independência, mas não podemos perder nossa capacidade de diálogo entre os poderes.

O tumulto provocado pela prisão Daniel Silveira não seria mais uma vez a ala ideológica do bolsonarismo atrapalhando a agenda legislativa do país?

Certamente. E é importante a gente entender a conjuntura em que isso se deu. O general (Eduardo) Villas Bôas dá uma declaração extemporânea, três anos depois do fato; o ministro (do STF Edson) Fachin reage também de forma extemporânea, três anos depois do fato, e o deputado (Daniel Silveira) se apega nisso para criar um factoide que toma as proporções que tomou e paralisa o País. Nós deixamos de votar, hoje (sexta), uma MP (medida provisória) para comprar vacina porque vamos ter que votar a prisão do deputado Daniel. Veja que absurdo para o País. Então, infelizmente, esses setores do bolsonarismo não têm responsabilidade nem com a pauta econômica do próprio governo Bolsonaro. 

O sr. tem posições moderadas, e o deputado Arthur Lira tem posições um pouco mais próximas às do governo. Isso funciona como uma espécie de ‘dobradinha’? Um fala mais com o Palácio do Planalto, e o outro com os oposicionistas?

Nós nem combinamos isso, mas acaba que, na prática, isso acontece. Eu falo pouco com o governo, nunca fui ao presidente Bolsonaro. Por outro lado, nunca o confrontei de forma desrespeitosa. Respeito a autoridade dele. E (falo com) a oposição, até por uma trajetória minha por um período de militância na esquerda. Pela minha condução com bom diálogo com eles na reforma da Previdência, vez ou outra me fazem de intermediário. 

O ‘Estadão’ noticiou uma proposta em discussão na Câmara para retirar ferramentas do chamado ‘kit obstrução’, que são instrumentos da oposição para travar o andamento de uma pauta. O sr. não acha que isso é uma forma de diminuir a democracia interna da Casa? 

Nós poderíamos produzir muito mais no País, se tivéssemos alguma racionalidade no funcionamento do nosso plenário. Nós vamos apresentá-la (uma proposta sobre o tema) no colegiado de líderes, em uma das próximas reuniões, para debater no colegiado, sentir se tem maturidade pra ela. E só registrá-la após isso. Não tem definido um prazo, a gente tem outras prioridades. 

Bolsonaro decidiu recentemente reduzir os impostos de importação para bicicletas, o que atinge as empresas da Zona Franca de Manaus. O que o sr. achou?

Isso foi um pedido pessoal do presidente. O presidente Bolsonaro, às vezes, toma algumas decisões por impulso. Ele está andando de bicicleta e alguém encontra ele e diz: ‘Presidente, tem que abaixar o imposto da bicicleta, bicicleta é muito caro’. Aí ele vai e toma a medida. 

Como os srs. pensam em atuar nessa questão? 

Nós abrimos um diálogo com o ministro Paulo Guedes, e a bancada (do Amazonas) vai apresentar projeto para sustar a medida. O problema da bicicleta é que as pessoas querem olhar só sob a lógica do ciclista. E elas precisam olhar sob a lógica do operário que trabalha na indústria. Se você abaixa demais o imposto, inviabiliza a indústria local. 

Temos projetos avançando na Casa que afrouxam a punição no caso de improbidade e lavagem de dinheiro. Essa agenda visa minar mecanismos de controle? 

Discordo. A improbidade administrativa, para ter efeitos de cassação, de perda de direitos políticos, é preciso que tenha dolo. Não dá para considerar que um prefeito que entregou um balanço fora do prazo deve ter a mesma punição de um prefeito que desviou dinheiro. E lavagem de dinheiro não pode ser um tipo penal aberto, que cabe tudo. Isso favorece o ativismo judicial. 

André Shalders, O Estado de São Paulo, em 22 de fevereiro de 2021 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Brasil registra 527 mortes por covid-19 em 24 horas

País identificou mais 29 mil casos da doença. Total passa de 10 milhões. Número de mortes supera 246 mil  

O Brasil registrou oficialmente 29.026 casos confirmados de covid-19 e 527 mortes ligadas à doença neste domingo (21/02), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 10.168.174, enquanto os óbitos chegam a 246.504.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 9.067.939 pacientes haviam se recuperado até sábado.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 117,3 no Brasil, a 22ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 28,1 milhões de casos, e da Índia, com 10,9 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 498 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 111 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,46 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 21.02.2021

"Barões evangélicos são parceiros de projeto ultraconservador de Bolsonaro", diz pastor

Ronilso Pacheco, da Comunidade Batista de São Gonçalo, afirma que política e religião sempre se misturam, mas que é "melhor fazer opção que contribua para os direitos humanos".

Bolsonaro e Edir Macedo, fundador da Igreja Universal e aliado do presidente

As igrejas evangélicas poderosas, que dispõem de presença na mídia e influência política , são hoje parceiras de um projeto "ultraconservador" do governo Jair Bolsonaro, que nega direitos e explora a fé dos mais pobres. Os "barões da fé", porém, não representam a totalidade do público evangélico, e parte desses fiéis adota no seu cotidiano práticas de acolhimento e respeito das diferenças, na opinião do teólogo Ronilso Pacheco.

Nascido em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, Pacheco é pastor auxiliar da Comunidade Batista na sua cidade e ativista de direitos humanos. Autor do livro Ocupar, Resistir, Subverter: Igreja e teologia em tempos de racismo, violência e opressão, é hoje  pesquisador da Fundação Ford e está terminando o mestrado em teologia na Universidade Columbia, em Nova York.

Em entrevista à DW Brasil, Pacheco afirma que o vínculo entre igrejas evangélicas e a atuação política conservadora no país data da sua fundação, no século 19, por americanos brancos e racistas que perderam a Guerra da Secessão, migraram ao Brasil em missão evangelizadora e se aproximaram das elites locais. O vínculo com o poder fortaleceu-se na ditadura, consolidou-se na democracia e atingiu maior radicalismo sob Bolsonaro.

"Há um conglomerado dos barões da fé, parceiros de um projeto ultraconservador e fundamentalista, negador de direitos e que se recusa ao diálogo interreligioso. São parceiros de um projeto de poder que exclui os pobres, explorador da fé dos pobres", afirma Pacheco. Segundo ele, a atuação desses setores da igreja só é possível "traindo" a história de Jesus Cristo registrada na Bíblia, como alguém resistente à hierarquia do poder e movido pela missão de "destituir os poderosos, tirar a riqueza dos ricos e dar aos pobres".

Pacheco identifica uma novidade na relação entre o que chama de igreja evangélica hegemônica e o poder sob a gestão Bolsonaro. Além dos tradicionais parlamentares da bancada evangélica, que buscam prestígio e espaço para as suas igrejas, houve a chegada de líderes religiosos interessados em fazer uma "guerra cultural" para influenciar a construção da identidade da sociedade brasileira.

São representantes desse movimento no governo o ministro da Educação, Milton Ribeiro, pastor presbiteriano calvinista, o ministro da Justiça, André Mendonça, pastor presbiteriano, e a ministra Damares Alves, "uma evangélica pentecostal fundamentalista e ultraconservadora na condução de direitos humanos", diz Pacheco. "Tudo atravessado pela afirmação de uma supremacia cristã conservadora".

Ele afirma, porém, que há na comunidade evangélica muitos exemplos de igrejas e pessoas que, por mais que não se identifiquem com a agenda de partidos de esquerda, adotam práticas progressistas no seu dia a dia. Para Pacheco, um "esforço metodológico e pedagógico" e uma abordagem "afetiva" poderia aproximar mais os evangélicos de agendas como direitos LGBT, liberalização de drogas e legalização do aborto.

"Política e religião, queira ou não, sempre se misturam. Por isso, é melhor reconhecer isso e fazer uma opção que contribua para uma política que respeite os direitos humanos e a liberdade", diz.

DW Brasil: Qual é o papel da religião na esfera pública?

Ronilso Pacheco: No contexto da América Latina e do Brasil, tem um papel fundamental para a formação da identidade da sociedade e da tradição popular. A religião serve como uma espécie de pano de fundo e orientadora de decisões, e pode ser determinante para legitimar ou deslegitimar uma determinada política.

Isso não se choca com a laicidade do Estado?

Não, pois laicidade do Estado não é a neutralização da presença da religião, mas a harmonia e o diálogo entre diferentes expressões religiosas. O que fere a laicidade do Estado é a perspectiva de superioridade de uma determinada religião em detrimento da outra, o que tem sido um pouco a nossa tradição.

Religião e política devem se misturar?

A ideia da separação entre religião e política tem muita influência da perspectiva iluminista, da idade da razão, europeia, onde essas distinções são bem marcadas. Mas não faz sentido, por exemplo, se levarmos em consideração a sociedade indígena, que tem uma forma de viver a política indissociável da perspectiva transcendental. Também é impossível separar o que é a vida política da perspectiva religiosa em algumas sociedades do continente africano.

Mesmo em contextos em que se prega um distanciamento entre a religião e a política, a perspectiva religiosa já se impregnou de maneira decisiva na política. A religião é um pano de fundo da perspectiva constitucional e da organização da sociedade. E também da perspectiva de luta e resistência, de pensar em alternativas. Nos assentamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) ou do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) há uma religiosidade forte, com ênfase na mística.

O movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos é indissociável de grandes lideranças das igrejas, principalmente das igrejas negras. Na América Latina não é diferente, se você pensar nos conflitos no Peru ou na Colômbia, e o papel que as igrejas têm de acolher e organizar a comunidade.

Política e religião, queira ou não, sempre se misturam. Por isso, é melhor reconhecer isso e fazer uma opção que contribua para uma política que respeite os direitos humanos e a liberdade, do que tentar fazer com que isso seja dissociável.

Ronilso Pacheco é pastor auxiliar da Comunidade Batista de São Gonçalo, pesquisador e ativista de direitos humanos

Você mencionou o MST e o MTST, que são movimentos de esquerda. Ao mesmo tempo, há movimentos e partidos de direita e extrema-direita vinculados a igrejas. A Bíblia abrange essas duas perspectivas ou é questão de interpretação?

Não é uma questão de interpretação, é uma questão de escolha das histórias que você quer dar ênfase. A Bíblia contém diversas narrativas sobre como Deus interage com as pessoas, ou como os povos interagem com Deus. Ambas [as perspectivas políticas] se expressam na Bíblia, ali há o contexto do mundo real, marcado por pessoas solidárias mas também por déspotas, marcado por traidores e gente muito violenta, mas também por gente disposta a lutar por justiça.

Se você escolhe dar ênfase às histórias do Novo Testamento, às histórias de Jesus, não há crises de interpretação. Ao contrário, você é confrontado em como as opções de algumas lideranças [religiosas] são traidoras da memória de Jesus que está nos Evangelhos.

Não é passível de interpretação que Jesus foi acolhedor, alimentando a multidão e estimulando a partilha. Não é a questão de interpretação como Jesus foi resistente à ideia de superioridade, de uma hierarquia de poder. No Evangelho de Lucas, Jesus fala que veio para libertar os cativos, para acolher os pobres. Não é passível de interpretação a fala de Maria, quando está grávida de Jesus e diz como que ele seria, de maneira bem expressa: ele virá para destituir os poderosos, tirar a riqueza dos ricos e dar aos pobres. A única maneira de burlar isso não é interpretação, é você trair essa memória.

Agora, você pode voltar ao Antigo Testamento e escolher, por exemplo, quando o povo de Israel invadiu um determinado território e assassinou seus habitantes para tomar conta dele. Você pode escolher usar isso para legitimar uma pretensão de poder. Mas as histórias em que Jesus está envolvido não são passíveis de interpretação, e são diferentes de qualquer perspectiva de superioridade e dominação.

Por que a igreja evangélica é hoje predominantemente identificada com a direita?

Eu diria que é a igreja hegemônica [evangélica]. Eles têm tanto poder comunicacional, um império de mídia, que tomam conta da noção sobre o que é a identidade e a estratégia evangélica. Há um conglomerado dos barões da fé, parceiros de um projeto ultraconservador e fundamentalista, negador de direitos e que se recusa ao diálogo interreligioso. São parceiros de um projeto de poder que exclui os pobres, explorador da fé dos pobres.

Esse grupo acabou se tornando um rosto do que seria a igreja evangélica no Brasil, mas a igreja evangélica é muito maior e mais complexa que isso. Ela está presente de maneira cotidiana nas periferias das cidades. E, sem se olhar no espelho e dizer "sou progressista", sua prática diária está mais direcionada a agendas progressistas, no sentido do acolhimento, da solidariedade social, do respeito à diversidade, porque está numa periferia com uma complexidade de pertencimentos.

Não que não existam igrejas e lideranças ultraconservadoras a fundamentalista nas periferias. Mas não diria que isso é a igreja evangélica no Brasil, pois seria desonesto com muitos esforços no território nacional, desde nas comunidades evangélicas do sertão a igrejas importantes nos grandes centros urbanos, que fazem um caminho completamente diferente, inclusive pagando um alto preço por isso.

Como se deu a aliança entre a igreja evangélica hegemônica e a direita? Há paralelos com o que ocorreu nos Estados Unidos?

Os paralelos são muitos. A presença evangélica no Brasil tem uma herança do universo evangélico conservador dos Estados Unidos. A formação da nossa igreja evangélica se dá com uma imigração significativa de evangélicos cristãos do sul dos Estados Unidos, que perdem a Guerra de Secessão [1861-1865] e vão fazer missões no Brasil. Eles têm um projeto de evangelismo, conquistar territórios, povos, converter almas, abrir novas igrejas. E é um um projeto profundamente conservador, inclinado à escravidão como parte da economia. É uma igreja que cresce associada à perspectiva elitista e de poder. Claro que há fissuras, mas há essa influência.

No início do século 20, sobretudo com a ampliação do campo pentecostal, mais ligado à Assembleia de Deus, eles constroem uma relação com governadores, presidentes, e isso se intensifica durante a ditadura militar. Há um apoio forte à ditadura de algumas igrejas, como as convenções da Assembleia de Deus. Essa parceria atravessa a ditadura e entra na redemocratização. O [deputado] Mateus Iansen, da Assembleia de Deus, foi o autor da emenda que permitia a prorrogação do mandato de José Sarney de quatro para cinco anos. Em seguida, foi beneficiado com uma concessão de rádio. Tudo isso para dizer que estamos falando de uma longa jornada, não é algo do governo Bolsonaro

O que há de novo na aproximação de parte da igreja evangélica com a extrema direita de Trump e Bolsonaro?

Nos Estados Unidos, há uma convicção do nacionalismo cristão de que ele deve pautar a identidade nacional. Há um mito, sobretudo entre os evangélicos brancos do sul dos Estados Unidos, que eles foram um vencedor moral da Guerra de Secessão, pois têm os valores mais nobres, respeitam os valores cristãos, têm amor à Bíblia e à família. A extrema direita nos Estados Unidos foi construída a partir desse nicho.

No Brasil, se for apontar algo novo, é a maneira como o grupo neocalvinista e calvinista conservador conseguiu fazer parte desse governo [Bolsonaro] de uma maneira significativa, dando outro tom para a atuação da extrema direita. Se já tínhamos a forma mais tradicional dessa influência com a bancada evangélica, com políticos que vêm de longas décadas e têm o objetivo de manter seu poder e influência, o grupo neocalvinista e calvinista conservador traz outro elemento, conectado com o que acontece nos Estados Unidos: assumir uma guerra cultural. Mais do que ter poder e recursos para sua igreja, é como influenciar na construção da identidade da sociedade brasileira. Então a disputa está na educação, na cultura.

Por isso, mais do que tomar conta do Legislativo, o importante é fazer as disputas certas nesses lugares e estar na área da educação, na área da cultura, na Suprema Corte, para construir uma identidade cultural que marque a supremacia cristã conservadora. O governo Bolsonaro deu espaço a essa investida, surgiu a oportunidade de não ter vergonha de assumir que a disputa é por uma supremacia cristã. Há a volta do discurso da cristofobia e um presidente que verbaliza isso, inclusive na ONU.

Há postos-chave do governo ocupados por nomes que se orientam por essa lógica. Você tem um pastor presbiteriano calvinista no Ministério da Educação [Milton Ribeiro], um pastor presbiteriano no Ministério da Justiça [André Mendonça], um católico ultraconservador no Ministério das Relações Exteriores [Ernesto Araújo] e uma evangélica pentecostal fundamentalista e ultraconservadora na condução de direitos humanos [Damares Alves], fazendo a disputa do que é direitos humanos e do que não é direitos humanos. Tudo atravessado pela afirmação de uma supremacia cristã conservadora, indiferente ao debate da tolerância e do diálogo interreligioso.



Evangélicos em Brasília oram pela recuperação de Bolsonaro após atentado a faca em 2018

Qual é a representatividade da visão progressista hoje na igreja evangélica?

É um número muito significativo, mas conceituo o evangélico progressista de maneira mais aberta. Se você perguntar se ele é progressista, ele provavelmente vai dizer que não, ou que não sabe o que é isso. Me oriento mais pela prática e pela ética de movimentos e grupos de pessoas do que propriamente um compromisso com uma agenda.

Há muitas comunidades importantes em várias localidades, sobretudo nas periferias. Como por exemplo a Igreja Batista do Pinheiro, que fica em Maceió e foi expulsa da Convenção Batista Brasileira porque passou a aceitar casais homoafetivos na sua congregação e dar a eles o direito de participar da liturgia do culto. Há evangélicos fazendo isso sem alarde, que são acolhedores com o povo LGBTQI+. Há comunidades que têm relação de amizade com lideranças religiosas de outras tradições, como de matriz africana, à revelia dos ataques diários sofridos por muitos terreiros. Essa rede de solidariedade está além dos debates, por exemplo, sobre o aborto. Quando a realidade do aborto chegar, a comunidade vai pensar no que fazer. Ela não está dentro de um debate de legalizar ou não legalizar o aborto.

E como avalia a relação atual entre os partidos políticos de esquerda e centro-esquerda com o público evangélico?

Esse grupo ainda está meio perdido. As derrotas têm sido sucessivas, e há impossibilidade de comunicar e construir alternativas desde o fim da era Lula. No primeiro mandato Lula, houve uma participação mais expressiva de evangélicos progressistas.

Também tem um pouco de uma mentalidade iluminista da esquerda, no sentido de ser dona da razão, de saber propor e apontar os caminhos, de decidir o que é melhor na disputa pelos direitos humanos. Ou de empurrar determinadas agendas que são difíceis de entender, se você não gastar tempo em como tornar aquilo acessível e mostrar que é importante para a sociedade.

O campo progressista de esquerda está com muito receio desse diálogo, há muito pisar em ovos, mas está aberto a aprender que caminhos podem ser construídos.

O campo progressista tem chance de ampliar seu apoio entre os evangélicos se continuar defendendo pautas como direitos da comunidade LGBT e liberalização das drogas e do aborto, ou teria que reduzir o apoio a esses temas?

Não tem como como reduzir o apoio, porque essa é a identidade progressista, são agendas das quais não se pode abrir mão. É muito mais como pensar em como fazer isso ser compreendido e importante no dia a dia.

Alguns lidam com isso na realidade do dia a dia, como em relação à liberação das drogas. Há pessoas que perderam o filho, vizinhos, parentes, amigos. Mas não é imaginar que você vai fazer uma cartilha sobre a liberação das drogas com uma linguagem voltada para o público evangélico e isso vai resolver o problema de comunicação. Precisa estar vinculada à construção de uma relação afetiva.

O campo fundamentalista conservador tem uma aproximação em uma linguagem mais afetiva, e o campo progressista tem uma linguagem mais estética. E, às vezes, a estética não comunica. Precisa de um esforço metodológico e pedagógico de se aproximar e aderir às diversas camadas da comunidade e de fazer com que uma agenda seja compreendida. A mesma coisa com relação à questão do aborto e à questão LGBT.

Deutsche Welle Brasil, em 21.02.2021

Bernardo Mello Franco: Bolsonaro libera mais armas e projeta sua invasão do Capitólio

No dia seguinte à invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro avisou que sua tropa pode replicar a baderna no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse.

Trump questionou o resultado das urnas para mobilizar seus radicais contra a democracia. O capitão mina a confiança no voto eletrônico para justificar uma rebelião em caso de derrota. Na cabeça dele, o “problema” pode ser a solução para se manter no poder pela força.

Na véspera do carnaval, Bolsonaro editou novos decretos que facilitam o acesso a armas e munições. A iniciativa segue a cartilha anunciada na reunião ministerial de abril passado: “É escancarar o armamento no Brasil. Eu quero o povo armado”. Naquele momento, a ideia era fomentar um levante contra governadores e prefeitos. No ano que vem, a mira deve se voltar contra a Justiça Eleitoral.

No discurso de Bolsonaro, armar o “povo” significa municiar aliados e seguidores. Gente como o extremista Daniel Silveira, que incitou a violência contra o Supremo e se disse disposto a “matar ou morrer” pelo chefe.

O deputado marombado foi preso, mas suas ideias estão soltas na base bolsonarista. Na sexta-feira, o ogro foi tratado como mártir pelo Clube Militar. Em nota, a entidade exaltou a ditadura e falou em “arbitrariedades do STF”. Apesar de defender o regime autoritário, reivindicou “liberdade de expressão” para o conspirador.

A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, alerta que a ofensiva armamentista do governo nada tem a ver com o discurso de autodefesa do “cidadão de bem”. Um dos novos decretos permite que o mesmo atirador compre 60 armas.

“Bolsonaro incentiva abertamente a formação de milícias privadas. Esta é a principal ameaça à democracia no Brasil, junto da politização das forças policiais”, afirma a pesquisadora. Neste cenário, milícias que já elegem deputados e vereadores podem ser usadas para subverter a corrida presidencial.

Em entrevista recente à “Folha de S.Paulo”, o ministro Edson Fachin manifestou “preocupação agravada com a corrupção da democracia” no país. Entre os sintomas da doença, listou a “remilitarização do governo civil”, o “incentivo às armas”, as “declarações acintosas de depreciação do valor do voto” e os ataques ao Judiciário e à imprensa.

O ministro desenhou o caminho para uma invasão do Capitólio tupiniquim. Ele assumirá o comando do TSE em fevereiro de 2022, a oito meses da eleição presidencial.

Bernardo Mello Franco é colunista político de O Globo. É autor de "Mil Dias de Tormenta - S crise que derrubou Dilma e deixou Temer por um fio". Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 21/02/2021.

Luiz Sérgio Henriques: Antagonismos em equilíbrio

Um ambiente plural e diversificado é o único antídoto contra aspirantes a ditador

No momento em que somos tentados a fazer o balanço de perdas e danos, lamentando, depois de 30 e poucos anos, as ilusões precocemente perdidas, convém lembrar os bons pressupostos e o início auspicioso deste período mais recente da nossa História política. A impressão generalizada em seguida ao regime militar era de que o País estava finalmente pronto para integrar, de corpo e alma, o grupo de nações que conseguem conjugar, com um grau mínimo de coerência, capitalismo e democracia, economia de mercado e integração social. Um grupo relativamente reduzido, é certo, mas habituado a sinalizar rumos e a atrair a esperança de quem vive sob regimes fechados mundo afora.

Na verdade, essa não era uma ideia surgida aleatoriamente na acidentada trajetória de modernização por que passamos. Na saída de uma dessas ditaduras que conformaram duradouramente as relações entre Estado e sociedade, a ditadura do Estado Novo, um grande conservador como Gilberto Freyre chamava a atenção para a plasticidade da formação social brasileira. Segundo ele, tal plasticidade, própria de um exuberante povo em formação, seria até capaz de irradiar para outras latitudes o amor à diferença, o propósito de conciliar elementos heterogêneos, étnicos ou culturais que fossem.

Freyre, no texto a que aludimos (A Nação e o Exército, de 1948), fechava os olhos para os aspectos novamente repressivos do governo da época, imerso na guerra fria e mecanicamente alinhado a um dos seus polos. Nada desprezível o impacto que teriam em futuros eventos a ilegalização do Partido Comunista e as intervenções arbitrárias no movimento sindical. Não era esse o caminho do Ocidente político que aspirávamos a ser, como o demonstravam, na mesma altura, os casos exemplares de França e Itália. Mesmo assim, o sociólogo nos descrevia como um país cujo destino tinha raízes na capacidade de manter o equilíbrio de antagonismos ou, o que assegurava ser a mesma coisa, a tolerância entre contrários.

Ocidente político não é nenhuma expressão cifrada, ainda que exija rigor conceitual e adesão consciente. Trata-se de uma situação, descrita classicamente por Gramsci, em que entre sociedade política e sociedade civil há um saudável equilíbrio. A primeira não esmaga a segunda nem tolhe arbitrariamente seus movimentos. Partidos, ONGs, imprensa, vida sindical, associativismo popular, tudo isso compõe um ambiente plural e diversificado, que, na verdade, é o único antídoto contra a permanente insídia dos autoritários e aspirantes a ditador. Para falar a verdade, é o anticorpo infalível contra a repetição das experiências totalitárias do século 20, entre as quais, ao lado dos fascismos, cabem muito bem o comunismo stalinista e suas derivações.

Freyre, apesar do tempo transcorrido entre o seu e o nosso tempo, estava bem consciente desse requisito “ocidental”. Um Estado “organizado” – particularmente o Exército, a instituição da força por excelência – e uma sociedade “desorganizada” caracterizam estruturas politicamente subdesenvolvidas, fadadas a sofrer periódicas recaídas autoritárias e recorrentes candidatos a Bonaparte. E foi essa lição decisiva que liberais, progressistas e até ampla parte da esquerda incorporaram como patrimônio na saída da segunda experiência de governo “forte” da modernização, entre 1964 e 1985. Um patrimônio que, como é de conhecimento público, tomou corpo na Carta de 1988, que passou a ser desde então a linha discriminatória entre democratas e não democratas.

Nem sempre os governos de esquerda estiveram à altura da ideia democrática rigorosamente concebida. Não me refiro só ao desvirtuamento do Parlamento ou a práticas de loteamento de estatais poderosas, mas também, e talvez principalmente, a orientações anacrônicas de valor, como concessões ao horizonte da “revolução” que se tentava reatualizar em outros contextos. Mas é forçoso admitir que hoje as democracias de tipo ocidental, entre as quais obstinadamente nos queremos incluir, estão sob evidente ameaça da extrema direita arregimentada sob a bandeira do nacional-populismo. Como em tempos sombrios do século passado, essa direita não democrática mimetiza o gesto revolucionário, produzindo paródias grotescas de assalto aos palácios de poder, como a vista no 6 de janeiro norte-americano. Efeito paródico que também se sente quando, por aqui, setores desgarrados do establishment desenham planos e balbuciam palavras de ordem antiestablishment, como se jacobinos fossem.

A democracia de 1946 durou menos de duas décadas e, no fim, não teve quem a defendesse, dada a variedade de atores que apostavam no confronto. Nada consolador o fato de que o regime nascido desse confronto viria a ser desenvolvimentista, remodelando a sociedade no sentido de “mais capitalismo”. A conta apareceu na forma de incultura cívica, menoridade intelectual e atraso político, que agora voltam a se manifestar como negação da tolerância e do equilíbrio de antagonismos. Um preço alto demais que, estejamos à direita ou à esquerda, devemos rejeitar com convicção.

Luiz Sérgio Henriques, o autor deste artigo, é tradutor e ensaísta. É um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 21 de fevereiro de 2021.

Daniel Silveira: o fã de Robocop que quis enfrentar o Supremo

 Antes de ser preso, o deputado divulgou 30 vídeos durante sete meses ameaçando e ofendendo os ministros

“Pega a placa! Pega a placa!”, gritava, para alguém lá embaixo, o então futuro deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), no alto de um trio elétrico, em Petrópolis, na Região Serrana fluminense, em comício no fim de setembro de 2018. Outros dois candidatos que seriam eleitos na onda de direita que varreu o País naquele ano – Rodrigo Amorim, hoje deputado estadual pelo mesmo partido, e Wilson Witzel (PSC), governador do Rio, afastado por suspeita de corrupção – o acompanhavam. A multidão urrava. 

Logo, chegou o retângulo azul escuro e branco, com as palavras “Rua Marielle Franco”. Homenageava a vereadora do PSOL morta a tiros sete meses antes, quando também o motorista Anderson Gomes foi metralhado. Enquanto Silveira exibia o objeto, Amorim discursava. “Acabou PSOL! Acabou PCdoB! Acabou essa porra aqui! Agora é Bolsonaro, porra!”, gritou o futuro deputado estadual, sob aplausos. Silveira, cuja carreira política – como a de Witzel – está em perigo, vibrava com promessas como “sentar o dedo (dar tiros) nesses vagabundos (a esquerda)”. 

Então com quase 36 anos, cabeça raspada, mais de dois metros de altura em um corpo musculoso malhado diariamente em academia, Silveira ganhou muita notoriedade no episódio. Com essa persona, foi eleito em primeiro mandato para a Câmara dos Deputados, com 31.789 votos. Os obteve em campanha que custou R$ 10.291,00, com despesas contratadas e pagas com dinheiro do Fundo Partidário. No Legislativo, exerceu um mandato beligerante. O Supremo Tribunal Federal (STF), que o mandou para a cadeia no carnaval após receber ataques e insultos do parlamentar, era seu alvo frequente. Desde julho de 2020, quando já era investigado pelo STF, ele produziu 30 vídeos contra a Corte, publicados em sua conta no YouTube. Entre as acusações infundadas está a de que ministros defendem a pedofilia, postada em 26 de julho. 

Imagem viralizou nas redes sociais após ser publicada na tarde de quarta-feira Foto: Instagram/Reprodução

Com uma média de 3,8 mil visualizações, seus vídeos raramente atraíam mais de 10 mil pessoas – seu canal foi aberto há quatro anos e tinha 72,9 mil inscritos. Além do Supremo, seus alvos prediletos eram a esquerda, as telenovelas, as vacinas contra a covid-19, o governador João Doria (PSDB), a China, o youtuber Felipe Neto e até a apresentadora Xuxa Meneghel. “A Xuxa vai lançar um livro LBGT para crianças. Ela cantava para os baixinhos ‘não gosto de homem de bilau pequeno’ nos programas dos anos 80.” Acusou-a de ser uma precursora da doutrinação ideológica e revelou que, na infância, gostava de Mara Maravilha. “Lembram dela?” 

No dia 8 de julho começou a sequência de 30 vídeos contra o Supremo. As agressões e ataques escalaram pouco a pouco. “O STF é completamente socialista. Todos, sem exceção.” Em 13 de agosto, afirmou. “Hoje posso afirmar que o STF apoia o narcoterror, as facções criminosas. E quem apoia o narcoterror não passa de vagabundo.” 

No dia 17 de novembro, afirmou: “Quero que o povo entre no STF, pegue o Alexandre de Moraes pelo colarinho, sacuda a cabeça de ovo dele e o jogue em uma lixeira”. Defendeu “a ucranização do Brasil”, referindo-se à rebelião que derrubou o governo da Ucrânia em 2014. 

A última produção, postada no carnaval, provocou a reação de Alexandre de Moraes. O ministro é relator de inquéritos que investigam atividades antidemocráticas – como manifestações que pediam fechamento do Congresso e intervenção militar – e disseminação de fake news. Silveira é um dos alvos nas duas investigações. 

“Daniel sempre foi contundente”, disse Octavio Sampaio, amigo e vereador pelo PSL em Petrópolis. Foi ele que apresentou Silveira ao hoje senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Na época, Flávio presidia o PSL no Rio. Para tentar a carreira política, Daniel afastou-se da Polícia Militar. Sua passagem pela corporação fora marcada por prisões e detenções administrativas e repreensões. Ele mesmo as contabilizou: mais de 80 dias, no período em que esteve na ativa, de 2012 a 2018. 

Era então o cabo Lúcio, do 26.º Batalhão da PM, sangue O Positivo, segundo a identificação no uniforme. Foi no “comício da placa” que começou a virar o deputado hoje preso no Batalhão Especial Prisional. 

Quase três anos após aquele comício, Amorim, amigo de Silveira, disse que eles não se arrependem do que fizeram. Ressaltou que a morte da vereadora foi um crime e afirmou respeitar e se solidarizar com a dor da família de Marielle. Na campanha, a foto dos dois futuros deputados, posando sorridentes com a placa partida, correu sites, jornais, emissoras de televisão. Silveira, de camisa amarela, retesava os músculos e agitava o punho. Amorim segurava os pedaços do objeto. 

Nascido na Região Serrana

Daniel Lúcio da Silveira nasceu em Petrópolis, na Região Serrana fluminense, em novembro de 1982. Era um bebê – segundo a mãe, dona Matildes, tinha cinco quilos ao nascer – quando a ditadura militar se aproximava do fim. O mandato agressivo do político com pinta de marombeiro contrasta com o passado de adolescente que cresceu numa estrada bucólica de Araras, em Petrópolis. 

Lá, ele é lembrado pelos vizinhos como um garoto alegre e tranquilo. Era franzino e atencioso com a mãe. “Ele é uma boa pessoa, não é isso que tentam mostrar. Até ser preso, me ligava todos os dias para saber como eu estava e me pedir a bênção”, disse a mãe, que conta se ajoelhar e orar pelo filho todos os dias. Ela concorreu a vereadora pelo PSL em Petrópolis, em 2020, mas não se elegeu. “Foi um pedido do meu filho.” Era a “Tia Matildes”. Teve 158 votos e ficou em 143.º lugar. 

O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), que teve a prisão confirmada pelo plenário da Câmara Foto: Dida Sampaio/Estadão (7/2/2019)

O deputado morou com a mãe quase toda a vida – a mulher e os dois filhos também viviam ali. Ele se mudou para uma casa maior na mesma estrada há poucos meses. Foi lá que, na chuvosa noite de terça-feira, a PF bateu para prendê-lo. O filho de Matildes foi cobrador de ônibus na juventude e acabou acusado de apresentar atestados médicos falsos para faltar ao trabalho, segundo o jornal O Globo. A apuração, que foi arquivada, quase lhe custou o ingresso na PM – a investigação social o barrou, mas a Justiça garantiu o ingresso. “Ele sempre gostou de armas, sempre. Nunca escondeu isso”, disse a mãe, vendo aí um motivo para o filho querer trabalhar na polícia. 

Em seis anos de PM, Silveira ganhou fama de exibicionista. Em um vídeo, revelou uma preferência dos tempos de menino, que pode ajudar a entendê-lo. “Eu gostava do Robocop.” Por seu tamanho incomum, o deputado parece o personagem do filme de 1987, um policial transformado em cyborg. Do diretor holandês Paul Verhoeven, o filme trata de uma distopia de uma Detroit decadente e tomada pelo crime. O personagem é programado para combater bandidos segundo quatro diretrizes. A quarta delas, secreta, o proíbe de atacar a empresa que o criou – uma alegoria para o sistema dominante. 

Em 2018, o comando da PM do Rio decidiu que devia incentivar candidaturas militares. Nascia na corporação a ideia de que policial votava em polícia e que a corporação e seus familiares seriam capazes de eleger até três deputados. Para o coronel Ubiratan Ângeli, ex-comandante-geral da PM, na véspera da eleição, a escolha recaiu sobre alguns nomes que se haviam destacado durante a campanha sem que “a família azul” verificasse a plataforma ou a ficha dos candidatos. 

Silveira parecia entender o sistema que o gerou. Sempre manteve intensa atividade na internet. “É um cara que sempre defendeu bandeiras de direita, de maneira contundente”, contou Sampaio. “E passava as mensagens de uma forma muito boa, alcançava as pessoas.” Os dois se conheciam no mundo virtual. Aproximaram-se em 2017, por iniciativa de um amigo em comum, oficial da PM. “Daniel veio ao gabinete do Flávio Bolsonaro aqui na Assembleia”, relatou Amorim. “Ele, com o Flávio, definiu que seria candidato a deputado federal.” 

Silveira não teve dificuldade para registrar a candidatura. Declarou à Justiça Eleitoral não ter nenhum bem. Curiosamente, pediu a correção de um dado: informou que não é pardo, mas branco. Na Câmara, integrou a tropa de choque do bolsonarismo, admitiu ter gravado a reunião da bancada do PSL em que o então líder do partido, Delegado Waldir (GO), chamou o presidente Bolsonaro de “vagabundo” e disse que ia “implodir o presidente”. 

Sua lista de projetos incluiu boa parte das convicções e teorias que animam a extrema-direita. Entre as propostas, estão a prorrogação do serviço militar obrigatório até o limite de 180 meses (quinze anos); a instituição de 31 de Março como Dia Nacional em Memória das Vitimas do Comunismo no Brasil e o veto à retirada da internet, pelo provedor, de mensagens do usuário. Afirma que a pandemia de covid-19 “foi criada para acabar com os governos de Bolsonaro e de Trump” e criticava o uso de máscara como uma “focinheira ideológica”. A estratégia beligerante do mandato também ocorreu fora da Câmara. Com Amorim, Silveira participou de “inspeções” no Colégio Pedro II, em outubro de 2019, e na ocupação Aldeia Maracanã, localizada no terreno do antigo Museu do Índio, na zona norte carioca, em setembro de 2020. Houve tumulto e polêmica nas duas ocasiões. A direção do colégio reclamou de não ter sido avisada com antecedência da visita dos parlamentares; os indígenas, de declarações supostamente racistas de Amorim. 

A revolta com o STF se acentuou após o amigo, major Elitusalem Gomes de Freitas (PSC), não se reeleger vereador no Rio. “Como ele teve dois mil votos? Como um cara do PSOL tem 100 mil?” Para ele, o resultado da eleição era “a prova” da fraude. Dizia não estar falando só por si. “Quando bater um cabo e um soldado na porta de vocês não adianta fechar, porque vai ser arrombada. Sabe por quê? Vocês estão abrindo essa precedência (sic). Sim, as Forças Armadas podem intervir. É algo que nós queremos? A maioria absoluta dos brasileiros quer isso. O STF não precisa existir. Ele deveria ser extinto.” E lançou um desafio: “Me prendam, que eu quero ver. Cármen Lúcia, vem me prender! Eu desafio vocês a me prender.”

Na noite do dia 16, o amigo Amorim recebeu um telefonema de Silveira. "Ele me disse: a Federal chegou aqui para me prender'.” Três dias depois, na sessão da Câmara que manteve sua prisão, Silveira pediu desculpas cinco vezes. Não adiantou. A ordem do ministro Moraes foi confirmada em votação esmagadora: 364 a 130. O fã de Robocop vai esperar na cadeia o julgamento pela mesma Corte cujo fechamento defendeu.

Wilson Tosta, Marcio Dolzan e Marcelo Godoy, O Estado de São Paulo, em 21 de fevereiro de 2021

A responsabilidade do Congresso

Atuasse o Congresso com presteza e rigor, não seria o STF instado com tanta frequência a lembrar os limites da lei

Cumprindo o que determina a Constituição, a Câmara dos Deputados decidiu na sexta-feira passada sobre a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), decretada por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A expressiva votação referendando a prisão – 364 votos favoráveis, 130 contrários e 3 abstenções – evidencia que a Câmara entendeu a gravidade do comportamento do parlamentar bolsonarista.

Ao divulgar um vídeo com pregação de caráter golpista, além de ofensas e ameaças a ministros do Supremo, o deputado Daniel Silveira violou o compromisso assumido de respeitar a Constituição e o Estado Democrático de Direito e praticou crimes tipificados pela lei brasileira. A imunidade parlamentar, que protege a manifestação de opiniões, palavras e votos, não é autorização para a prática impune de crimes.

Com a manutenção da prisão referendada pela Câmara, fica evidente que não foi negada ao deputado bolsonarista nenhuma garantia constitucional. Seu encarceramento não se deu por um ato autoritário do Judiciário fora dos trilhos legais. O plenário da Câmara, cumprindo o rito previsto na Constituição, entendeu que a prisão do deputado Daniel Silveira tinha fundamento legal.

Ao proteger o Estado Democrático de Direito – mantendo a prisão do deputado que defende o Ato Institucional (AI) n.º5, ameaça ministros do Supremo e incita a ruptura institucional –, a Câmara mostrou que deseja distância do discurso bolsonarista. A agenda do Legislativo não é a do conflito, tampouco da violência e do desrespeito às instituições.

Vale lembrar que o deputado Daniel Silveira não é apenas uma figura excêntrica, que teria exagerado ao se expressar. O conteúdo do vídeo publicado nas redes sociais tem grande sintonia com o que Jair Bolsonaro vem pregando em sua carreira política, também durante o exercício da Presidência da República. No primeiro semestre de 2020, por exemplo, Bolsonaro incentivou e participou de atos de caráter golpista.

Trata-se, sem dúvida, de uma desafiadora situação. O próprio presidente da República testa os limites do Estado Democrático de Direito. Por isso, é alvissareiro constatar que mais de dois terços dos deputados avaliam como criminosa a conduta de quem se vale do cargo para afrontar o regime democrático, ameaçar adversários e descumprir princípios constitucionais. O recado foi dado: ninguém, ainda que tenha mandato eletivo, está autorizado a infringir a Constituição e as leis do País.

Na sexta-feira passada, a Câmara comportou-se à altura de seus deveres institucionais. É preciso reconhecer, no entanto, que também o Congresso tem responsabilidade sobre esse caso e tantos outros que afrontam descaradamente o decoro parlamentar. Ao longo dos anos – a rigor, ao longo das décadas –, tem havido uma amplíssima tolerância das Casas legislativas com parlamentares que não honram o cargo.

Não é difícil de ver o descuido do Congresso com os limites do decoro. Por exemplo, o Conselho de Ética da Câmara estava parado desde março do ano passado. Atuasse o Congresso com presteza e rigor, não seria o Supremo instado com tanta frequência a lembrar os limites da lei e do Estado Democrático de Direito. 

Ao permitir de forma recorrente comportamentos intoleráveis em um Estado Democrático de Direito, o Congresso não apenas atua de forma corporativista, com uma proteção desproporcional dos seus membros, como também, a rigor, está atuando contra si mesmo, enfraquecendo sua autoridade, diminuindo sua funcionalidade e esfarelando seu prestígio. Nesse sentido, a votação de sexta-feira passada foi um contundente ato de defesa do Congresso e de suas prerrogativas institucionais.

O regime democrático exige responsabilidade, uma responsabilidade que não seja bissexta. Os direitos e liberdades constitucionais não deixam as instituições democráticas à mercê dos autoritários. É antes o contrário. Como lembraram nesta semana o Supremo e a Câmara, tais garantias vêm precisamente proteger a liberdade e a democracia. Não há zona cinzenta. Com suas reiteradas ofensas às instituições, o bolsonarismo enxovalha as liberdades e, por isso, deve ser contido.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de São Paulo, em 21 de fevereiro de 2021 

Cantanhede: Chávez, um amador

Bolsonaro, em suas novas variantes, e o coronavírus, em suas novas cepas, dominam o País

Os fatos ganham velocidade atordoante: o presidente Jair Bolsonaro intervém na Petrobrás e põe mais um general como escudo, Supremo e Congresso às voltas com um personagem sarado, desbocado, armado e perigoso como um miliciano, Estados e municípios em desespero com falta de vacinas e sistema de saúde à beira do colapso. Bolsonaro, com suas variantes convenientes, e o coronavírus, com suas novas cepas oportunistas, avançam e ampliam seus raios de ação. 

A demissão do “Chicago Boy” Roberto Castello Branco e a intervenção na Petrobrás encerram definitivamente o teatro de um governo liberal, no qual o presidente assumia não entender nada de economia e prometia não se meter onde não devia. Falam em “dilmização” de Bolsonaro, mas tem uma diferença. A ex-presidente Dilma Rousseff tinha mão pesada na Petrobrás (e em juros, por exemplo) por concepções equivocadas e obsoletas sobre economia, enquanto Bolsonaro mete por uma única motivação: populismo, a seu próprio favor. 

Com as ações da Petrobrás esfarelando aqui e lá fora, o ministro Paulo Guedes faz o triste papel de quem perdeu a pauta, o timing e os brios. O Brasil foi dormir com a expectativa de reação, até de demissão, do ministro. Mas acordou com ele prometendo um jeitinho de compensar a isenção de tributos do diesel e do gás de cozinha. Patético. “Um manda, outro obedece.” A máxima de Eduardo Pazuello atinge todas as áreas, onde pululam generais e almirantes e vaga o economista Guedes. 

É preciso saber até onde o prestigiado general de Engenharia Joaquim Silva e Luna, de quatro estrelas, vai se equiparar ao general intendente Pazuello, de três. Assim como Pazuello não sabia o que era SUS nem curva epidemiológica, Silva e Luna, ao que consta, não sabe a diferença de gasolina e óleo diesel e não tem a menor ideia da importância da política de preços independente numa empresa – seja ela pública ou privada. 

Quem não sabe se cerca de quem sabe. Pazuello, porém, entupiu a Saúde de militares, como ele, sem expertise nenhuma na área, em plena pandemia. Dá no que dá. E Silva e Luna parece compelido a pescar militares da reserva para preencher a diretoria da Petrobrás. A atual, de alto nível, está em debandada. Quem, com credibilidade e experiência no setor, vai entrar nessa fria? 

Guedes chegou cheio de si, tão avalista do “momento liberalizante” quanto Sérgio Moro das intenções moralizantes de Bolsonaro. Hoje, perde controle sobre a estratégica Petrobrás e não convence ninguém de fora a preencher vagas no governo. Logo, vai ter de engolir mais e mais militares, bolsonaristas, corporativistas, estatizantes e, obviamente, o Centrão. Um bololô infernal. “E na semana que vem (nesta) tem mais”, avisa Bolsonaro. 

O presidente não se meteu com a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), legítimo porta-voz das causas mais caras ao bolsonarismo: ataque ao Supremo, implosão do Congresso, descrédito da mídia, armas, armas e armas, exatamente como na Venezuela. Mas, se ele lavou as mãos, o filho 03 deu o recado no voto. 

Agora, é ver para crer como fica o Brasil. Bolsonaro botou as Forças Armadas no bolso, cooptou as polícias, arma as milícias, dá carne aos leões bolsonaristas, enquanto cala o Congresso, faz política de boa vizinhança com o Supremo e o STJ e troca o falso liberalismo econômico por intervencionismo, corporativismo e populismo. 

É assim que multidões defendem um governo que trabalhou a favor do vírus, chegou atrasado e a conta-gotas às vacinas e tem um presidente capaz de inventar que rasuraram a carteira de vacinação da mãe só para fingir que era a “vacina chinesa do Dória”. O coronel Hugo Chávez era um amador.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal (PE) e do Tele Jornal Globo News Em Pauta. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 21 de fevereiro de 2021.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Brasil registra 1.212 mortes por covid-19 em 24 horas

País identificou mais 57 mil casos da doença. Total passa de 10 milhões. Número de mortes supera 245 mil.

O Brasil registrou oficialmente 57.472 casos confirmados de covid-19 e 1.212 mortes ligadas à doença neste sábado (20/02), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

Com isso, o total de infecções identificadas no país subiu para 10.139.148, enquanto os óbitos chegam a 245.977.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 9.029.159 pacientes haviam se recuperado até sexta-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 117,0 no Brasil, a 21ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 28 milhões de casos, e da Índia, com 10,9 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 496 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 110,9 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus no mundo, e 2,4 milhões de pacientes morreram.

 Deutsche Welle Brasil, em 20.02.2021

'Se tudo depender de mim, não seria este regime', diz Bolsonaro

Presidente diz que, 'apesar de tudo', representa a democracia no Brasil


O presidente Jair Bolsonaro disse neste sábado que "se tudo dependesse" dele, o país não viveria o regime que vive hoje. Em seguida, afirmou que, "apesar de tudo", representa a democracia no Brasil.

A declaração foi dada durante cerimônia de entrada de novos alunos da escola preparatória de cadetes do Exército, em Campinas (SP).

— Alguns acham que eu posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo. E, apesar de tudo, eu represento a democracia no Brasil. Nunca a imprensa teve um tratamento tão leal e cortês como o meu. Se é que alguns acham que não é desta maneira é porque não estão acostumados a ouvir a verdade — afirmou.

Ele acrescentou, em seguida, que o Brasil é um país livre e afirmou que defenderá a Constituição:

— Nós vivemos em um país livre, esta liberdade vale mais que a própria vida para cada um de nós. Tenho certeza que, junto às Forças Armadas e as demais instituições do governo, tudo faremos para cumprir a nossa Constituição para fazer com que a nossa democracia funcione e a nossa liberdade esteja acima de tudo.

A fala se soma a outras em que o presidente comparou a democracia à ditadura, inclusive em referência ao golpe militar de 1964.

Em janeiro deste ano, Bolsonaro afirmou que quem decide se um povo vive sob uma democracia ou uma ditadura são as Forças Armadas do país. Ele disse que o Brasil ainda tem liberdade, mas que "tudo pode mudar" se a população não reconhecer o valor dos militares.

Na ocasião, ele fez a declaração quando comentava sobre o  fornecimento de oxigênio da Venezuela para Manaus" e apontou que trata-se de uma oferta da empresa multinacional brasileira White Martins, também presente no país vizinho. Ele então criticou o presidente venezuelano, Nicolás Maduro.

— Agora, se o Maduro quiser fornecer oxigênio para nós, vamos receber, sem problema nenhum. Agora, ele poderia dar auxílio emergencial para o seu povo também, né? O salário mínimo lá não compra meio quilo de arroz. Não tem mais cachorro lá, por que será? Alguma peste? Comeram os cachorros todos. Comeram os gastos todos. E vem uns idiotas, eu vejo aí, elogiando 'olha o Maduro, que coração grande ele tem'. Realmente, daquele tamanho, 200 quilos, dois metros de altura, o coração dele deve ser muito grande. Nada mais além disso — afirmou.

A fala de Bolsonaro neste sábado provocou reação de deputados da oposição. No Twitter, o deputado Marcelo Freixo (Psol-RJ) afirmou que a "declaração mostra que Daniel Silveira é só um souvenir golpista, a conspiração real está ocorrendo dentro do Palácio do Planalto".

Na terça-feira, Silveira foi preso em flagrante após insultar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) com discurso de ódio. A decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes pela prisão do deputado foi confirmada pelo plenário do Supremo na quarta e pela Câmara na sexta.

Também na rede social, a deputada Erika Kokay (PT-DF) afirmou que o presidente é o "grande inimigo da democracia". "Daniel Silveira não agia sozinho. O golpe está sendo urdido no Planalto!", acrescentou.

Já o deputado Camilo Capibaribe (PSB-AP) citou a frase de Bolsonaro e afirmou: "Impossível ser mais objetivo sobre seu projeto de impor uma ditadura no Brasil, o que torna ainda mais importante a decisão de ontem".

Presidente já disse que 'não houve golpe' em 1964

Em março do ano passado, no aniversário do golpe militar de 1964 Bolsonaro afirmou que a ditadura instaurada naquele ano não foi um golpe.

O presidente afirmou que a chegada de Marechal Castelo Branco à Presidência obedeceu a Constituição Federal daquela época. O regime instaurado naquele ano inaugurou um período ditatorial que se estendeu até 1985.

"A verdade: o Marechal foi eleito de acordo com a Constituição e não houve golpe em 31 de março", escreveu o mandatário em redes sociais, após relatar sequência de eventos que levaram o militar ao comando do país.

Em abril do ano passado, Bolsonaro participou de ato em Brasília no qual manifestantes pediam "intervenção militar", pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) e defendiam o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que marcou o período mais duro da ditadura.

O presidente não fez referência aos pedidos dos manifestantes, mas discursou durante o protesto e afirmou que "acabou a época da patifaria"

— Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder. Mais que direito vocês têm obrigação de lutar pelo país de vocês. Contem com seu presidente para fazer tudo aquilo que for necessário para manter a nossa democracia e garantir aquilo que é mais sagrado de nós, que é nossa liberdade — disse, na ocasião.

O Globo, em 20/02/2021 - 14:03 / Atualizado em 20/02/2021 - 15:05

O livre exercício da oposição

Alteração no regimento da Câmara para cercear a atuação da oposição não pode prosperar

É preocupante o movimento coordenado por deputados aliados do presidente Jair Bolsonaro que tem por objetivo limitar a atuação de parlamentares da oposição. O grupo bolsonarista pretende alterar o Regimento Interno da Casa de modo a reduzir os instrumentos legislativos de que hoje as bancadas oposicionistas dispõem para que suas vozes sejam ouvidas.

A ideia de cercear a atuação de parlamentares da oposição não nasceu nesta legislatura, mas poucas vezes teve tanta chance de prosperar como agora. A sociedade deve se manter vigilante para que alguns de seus representantes não sejam tolhidos no livre exercício da atividade parlamentar.

Hoje são 17 as ferramentas que compõem o chamado “kit obstrução”, entre as quais a possibilidade de pedido de adiamento de debate sobre determinado projeto, pedido de inversão de pauta de votação e de verificação de quórum.

Alguns dos deputados que defendem a redução desses instrumentos argumentam que, tal como está, o “kit obstrução” paralisa ou retarda a votação de projetos importantes. “Queremos reduzir o número de requerimentos e de obstruções para podermos tramitar a matéria. Há momentos em que chegamos aqui (na Câmara) e passamos a noite só votando obstruções”, disse ao Estado o deputado Nivaldo Albuquerque (PTB-AL). Já os parlamentares da oposição qualificam o movimento como “antidemocrático”. “Reduzir nosso papel é reduzir a representação democrática na Câmara e a opinião do eleitor”, disse o deputado Ênio Verri (PT-PR).

No fundo, o que está em andamento é uma desabrida tentativa de enfraquecer a oposição ao governo de Jair Bolsonaro no Parlamento. A deputada Bia Kicis (PSL-DF), bolsonarista de quatro costados, cotada para assumir a presidência da mais importante comissão permanente da Câmara, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), não esconde o que está por trás da manobra. “A esquerda sempre fez obstrução. A gente quer mexer no regimento para que a Casa seja realmente governada pela maioria, dando espaço para a minoria. Mas, na democracia, é a maioria que vence”, disse a deputada, revelando sua peculiar visão sobre o que vem a ser democracia.

Espera-se que o presidente da Câmara, Arthur Lira, não deixe prosperar o ardil. Em primeiro lugar, porque os instrumentos que fazem parte disso que se convencionou chamar “kit obstrução”, na verdade, são instrumentos legítimos de atuação das oposições em qualquer democracia. Sem eles, abre-se perigoso caminho para que uma “ditadura da maioria” seja instaurada no Parlamento.

Além disso, ainda é muito cedo para esquecer que Arthur Lira foi eleito com uma expressiva votação entre seus pares prometendo ser “a voz de todos” os deputados. Ora, seria um contrassenso o agora presidente da Câmara encorajar o andamento de uma agenda que, ao fim e ao cabo, pretende justamente calar as vozes de alguns de seus colegas.

Como presidente da Casa, Arthur Lira também deve ter uma visão republicana sobre o papel institucional da Câmara dos Deputados, locus de representação permanente da sociedade, independente, por óbvio, das fugazes associações ao governo de turno. Os blocos de apoio e de oposição ao Executivo são mutáveis. A propósito, bastante voláteis atualmente. Logo, cabe lembrar que as eventuais alterações no regimento que limitariam a atuação de deputados que fazem oposição a Jair Bolsonaro serão as mesmas que atingirão em cheio a liberdade de exercício parlamentar de políticos que, se hoje são governistas, amanhã poderão figurar na oposição.

Não há democracia sólida sem que seja dada voz à oposição e aos blocos minoritários no Parlamento. É legítimo que uma ou outra alteração nas atuais regras de obstrução sejam debatidas pelos congressistas, mas sempre no sentido de aprimorar o exercício da atividade parlamentar, nunca para restringi-lo. Não é disso que os parlamentares bolsonaristas estão tratando. Trata-se de uma clara tentativa de tolher o direito à resistência.

Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 20 de fevereiro de 2021 

Bolsonaro volta a atacar a Petrobrás

Jair Bolsonaro agora resolveu governar para os caminhoneiros e dá palpite na gestão de uma empresa estatal de capital aberto

O presidente Jair Bolsonaro anunciou a decisão de trocar o comando da Petrobrás, indicando para o posto o general Joaquim Silva e Luna, presidente da Itaipu Binacional. Incapaz de cuidar de um país assolado por uma pandemia, famoso pelo desprezo à vida dos brasileiros e conhecido pela incompetência administrativa, Bolsonaro resolveu governar para os caminhoneiros – aqueles por ele apoiados, em 2018, quando bloquearam o transporte rodoviário, usaram violência para impor sua vontade e causaram enorme prejuízo ao País. Para agradar esse eleitorado, o presidente voltou a criticar a política de preços da Petrobrás, dando palpite na gestão de uma empresa estatal de capital aberto.

As tentativas de interferência são agravadas pela absoluta inépcia de Bolsonaro em assuntos de economia e de administração empresarial. Além do mais, só essa inépcia torna explicável sua insistência em mandar na política de preços da Petrobrás. Falta saber quão obediente será o novo comandante da empresa.

“Não posso interferir, nem iria interferir (na empresa)”, disse Bolsonaro em seu destampatório de quinta-feira, para logo em seguida se desmentir: “Alguma coisa vai acontecer na Petrobrás nos próximos dias, tem de mudar alguma coisa”. Em outro momento, a ameaça foi mais explícita. Depois de citar uma frase atribuída ao presidente da Petrobrás (“Eu não tenho nada a ver com caminhoneiro”), anunciou: “Isso vai ter uma consequência, obviamente”. “Anuncio que vamos ter mudança, sim, na Petrobrás”, confirmou o presidente na sexta-feira, reiterando logo depois a promessa, muitas vezes descumprida, de nunca interferir na companhia.

Para os analistas de mercado, a estatal tem simplesmente ajustado seus preços às condições internacionais. A essas condições é necessário, obviamente, acrescentar a evolução do câmbio, com o dólar sempre afetado pelas barbaridades ditas, prometidas ou concretizadas pelo presidente da República. Ele se referiu aos aumentos de preços dos combustíveis como “excessivos” e “fora da curva”, mas quem é esse presidente para falar sobre o mecanismo de preços ou de qualquer fato econômico?

Além de criticar a política de preços da estatal, Bolsonaro reagiu também à recusa do presidente da Petrobrás de levar em conta pressões de caminhoneiros, tratadas com muito mais atenção, no Palácio do Planalto, que as necessidades de saúde de um país com mais de 240 mil mortos pela covid-19. Todos vão morrer algum dia, já lembrou o chefe de governo.

Sem disposição, ou sem condição, de mexer imediatamente na política de preços de combustíveis, o presidente da República decidiu seguir um caminho indireto, anunciando a eliminação de tributos federais sobre o óleo diesel, por dois meses, e sobre o gás de cozinha, de forma permanente. Isso custará alguns bilhões ao Tesouro Nacional, mas esse é um detalhe desprezível, para o presidente, quando se trata de atender alguns eleitores tão importantes. Além disso, ele se absteve de explicar imediatamente como seria compensada essa generosidade tributária – se por algum outro imposto ou por algum corte de gasto.

Bolsonaro já havia tentado mexer no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o mais importante tributo estadual, para conter o encarecimento dos combustíveis. Foi uma tentativa duplamente errada. Primeiro, porque é bobagem atribuir a variação de um preço a um tributo indireto definido como porcentagem do valor. Segundo, porque esse imposto pertence à jurisdição estadual.

Ao reabrir ostensivamente a porteira da interferência, o presidente Bolsonaro deu espaço para o general da reserva Augusto Heleno dar palpite sobre a gestão da Petrobrás. Os aumentos de preços incomodam e é preciso dar “um basta nisso”, disse o general, em entrevista a uma rádio. Ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o general Heleno – aquele que confessou haver mandado espionar brasileiros participantes da Cúpula do Clima em Madri, em 2019, para, em suas palavras, flagrar “maus brasileiros” – agora resolveu se ocupar da Petrobrás. Até ele? 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 20 de fevereiro de 2021

Manter Daniel Silveira preso é freio a radicalismo bolsonarista, afirmam analistas

Deputado federal Daniel Silveira aparece falando no telão da Câmara durante sessão em que colegas decidiram mantê-lo preso. (Crédito, Reuters / Adriano Machado).

A manutenção da prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) pela Câmara dos Deputados nesta sexta-feira (19) terá o efeito de conter ataques à democracia, avaliam analistas políticos ouvidos pela BBC News Brasil.

O parlamentar foi preso por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) após divulgar um vídeo com exaltações à ditadura militar (1964-1985) e fortes críticas e ameaças a ministros da Corte.

Sua gravação repete discursos antidemocráticos que têm reverberado entre autoridades nos últimos anos, como a defesa do fechamento do STF e a exaltação do AI-5 (ato institucional de 1968 que aprofundou o autoritarismo da ditadura), sem que tenham gerado punições tão graves — o próprio presidente Jair Bolsonaro quando era deputado federal exaltou em 2016 um dos principais torturadores do regime militar, Carlos Ustra, durante votação do impeachment de Dilma Rousseff, mas o processo aberto contra ele por isso foi depois arquivado no Conselho de Ética da Câmara.

Já Silveira deve enfrentar um processo criminal no STF e uma representação no Conselho de Ética da Câmara, correndo o risco de perder seu mandato.

O parlamentar não recebeu nos últimos dias uma palavra sequer de apoio de Bolsonaro, que preferiu não se desgastar com os demais Poderes para defender o parlamentar de sua base.

Para o cientista político Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ipespe), o abandono do deputado bolsonarista pelo presidente e a confirmação de sua prisão na Câmara refletem o novo momento do governo de aliança com o Centrão no Congresso, em que o Palácio do Planalto "busca governabilidade, não ruptura".

"Esse episódio (a prisão de Silveira) vai ter um importante efeito dissuasório sobre esses remanescentes do bolsonarismo radical antissistema. Esse bolsonarismo que se tornou obsoleto a partir da aliança com o Centrão", analisa.

"As pessoas (parlamentares com discurso radical) vão olhar a prisão de Silveira e vão pensar: 'primeiro, se eu exagerar, não vou ter o respaldo do Congresso, dos meus pares, e, segundo, não vou ter o apoio sequer do meu líder, o presidente'. É um efeito dissuasório poderoso", reforça Lavareda.

Três manifestantes em rua segurando cartaz em formato de coração dizendo 'Bolsonaro' e outro 'O STF precisa ser destituído'. (Crédito, Nelson Almeida / AFP via Getty Images). 

Eleito presidente da Câmara no início de fevereiro com forte apoio do Palácio do Planalto, o líder do Centrão Arthur Lira (PP-AL) disse nesta sexta-feira que o episódio envolvendo Silveira é um "ponto de inflexão".

"Sou ferrenhamente defensor da inviolabilidade do exercício da atividade parlamentar. Mas, acima de todas as inviolabilidades, está a inviolabilidade da Democracia. Nenhuma inviolabilidade pode ser usada para violar a mais sagrada das inviolabilidades, a do regime democrático", discursou Lira na abertura da sessão que manteve a prisão.

"Esse episódio servirá também como um ponto de inflexão para o modo de comportamento e de convivência internos, que trarão de volta maior urbanidade, respeito e empoderamento do Conselho de Ética para que o ambiente da democracia nunca se contamine a ponto de se tornar tóxico", disse ainda o presidente da Câmara, em outro trecho de seu discurso.

Já Silveira, que teve direito a falar por transmissão online, adotou um tom bem mais comedido do que o habitual ao tentar convencer seus pares a derrubar a prisão. Ele se disse arrependido pela gravação e atribuiu sua fala a "um momento de emoção" e "muita raiva".

"Já disse desculpas ao povo brasileiro, pedi (desculpas) a todo Parlamento. Me equivoquei, me arrependi, portanto jamais gostaria de fazê-lo dessa maneira novamente. Serviu de amadurecimento", disse ainda.

'Manutenção da prisão é primeiro passo contra ameaças democráticas'

Bolsonaro discursa em ato em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília.  (CRÉDITO, EVARISTO SA/AFP E GETTY IMAGES)

Presidente Jair Bolsonaro discursou no ano passado em ato que pediu fechamento do Congresso e do STF

O cientista político e sócio da Tendências Rafael Cortez também vê na manutenção da prisão de Silveira um novo momento do governo Bolsonaro, menos conflituoso com os demais Poderes, a partir da aliança com o Centrão.

Ele ressalta que o momento é de queda da popularidade do presidente, em meio a problemas como falta de vacinas para conter a pandemia e a continuidade da crise econômica.

"Esse ambiente polarizado dificulta a construção de acordos. E se tem uma característica do chamado Centrão é a vocação para acordos. Até por conta da maleabilidade política dessas siglas, não são legendas que têm uma reputação consolidada junto ao eleitorado", nota Cortez.

"O próprio Arthur Lira quando publicamente se colocou como um nome do Centrão (para presidir a Câmara) fez a defesa dessa maleabilidade, dessa capacidade de adaptação desse grupo político para minimizar conflitos. E para quem opera com consensos, esse comportamento de atores associados à nova política (como Silveira), que é de ruptura institucional, ele se choca com o modus operandi desses atores políticos (do Centrão)", acrescenta.

Cortez considera a prisão de Silveira é "um primeiro passo importante" na contenção de discursos autoritários no país. Para ele, no entanto, não é algo suficiente para conter uma série de movimentos que estão fragilizando a democracia brasileira.

Nesse sentido, ele destaca a redução da confiabilidade no sistema eleitoral, que pode abrir espaços para questionamentos infundados do resultado da eleição de 2022 — algo que tem sido alimentado por falas do próprio presidente Bolsonaro, que, sem apresentar provas, diz que a urna eletrônica pode ser fraudada.

Outros pontos que despertam preocupação, segundo Cortez, é o aumento do acesso a armas promovido pelo governo Bolsonaro, assim como manifestações vindas de integrantes das Forças Armadas pressionando o Supremo Tribunal Federal, como ocorreu no julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2018.

"A prisão de um deputado, nas condições que foram desenhadas, referendada de forma unânime na Corte Suprema e respeitada pelos pares (mantida na Câmara), é por si só um sinal de contraposição a um discurso que corrói o jogo democrático", afirma.

"O problema é que não pode ser só uma decisão isolada. Tem que de fato ter um sistema de redução do risco, inclusive para evitar questionamentos do resultado eleitoral em 2022", defende.

Mariana Schreiber - @marischreiber, de Brasília para a BBC News Brasil, em 20.02.2021