sábado, 20 de fevereiro de 2021

O livre exercício da oposição

Alteração no regimento da Câmara para cercear a atuação da oposição não pode prosperar

É preocupante o movimento coordenado por deputados aliados do presidente Jair Bolsonaro que tem por objetivo limitar a atuação de parlamentares da oposição. O grupo bolsonarista pretende alterar o Regimento Interno da Casa de modo a reduzir os instrumentos legislativos de que hoje as bancadas oposicionistas dispõem para que suas vozes sejam ouvidas.

A ideia de cercear a atuação de parlamentares da oposição não nasceu nesta legislatura, mas poucas vezes teve tanta chance de prosperar como agora. A sociedade deve se manter vigilante para que alguns de seus representantes não sejam tolhidos no livre exercício da atividade parlamentar.

Hoje são 17 as ferramentas que compõem o chamado “kit obstrução”, entre as quais a possibilidade de pedido de adiamento de debate sobre determinado projeto, pedido de inversão de pauta de votação e de verificação de quórum.

Alguns dos deputados que defendem a redução desses instrumentos argumentam que, tal como está, o “kit obstrução” paralisa ou retarda a votação de projetos importantes. “Queremos reduzir o número de requerimentos e de obstruções para podermos tramitar a matéria. Há momentos em que chegamos aqui (na Câmara) e passamos a noite só votando obstruções”, disse ao Estado o deputado Nivaldo Albuquerque (PTB-AL). Já os parlamentares da oposição qualificam o movimento como “antidemocrático”. “Reduzir nosso papel é reduzir a representação democrática na Câmara e a opinião do eleitor”, disse o deputado Ênio Verri (PT-PR).

No fundo, o que está em andamento é uma desabrida tentativa de enfraquecer a oposição ao governo de Jair Bolsonaro no Parlamento. A deputada Bia Kicis (PSL-DF), bolsonarista de quatro costados, cotada para assumir a presidência da mais importante comissão permanente da Câmara, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), não esconde o que está por trás da manobra. “A esquerda sempre fez obstrução. A gente quer mexer no regimento para que a Casa seja realmente governada pela maioria, dando espaço para a minoria. Mas, na democracia, é a maioria que vence”, disse a deputada, revelando sua peculiar visão sobre o que vem a ser democracia.

Espera-se que o presidente da Câmara, Arthur Lira, não deixe prosperar o ardil. Em primeiro lugar, porque os instrumentos que fazem parte disso que se convencionou chamar “kit obstrução”, na verdade, são instrumentos legítimos de atuação das oposições em qualquer democracia. Sem eles, abre-se perigoso caminho para que uma “ditadura da maioria” seja instaurada no Parlamento.

Além disso, ainda é muito cedo para esquecer que Arthur Lira foi eleito com uma expressiva votação entre seus pares prometendo ser “a voz de todos” os deputados. Ora, seria um contrassenso o agora presidente da Câmara encorajar o andamento de uma agenda que, ao fim e ao cabo, pretende justamente calar as vozes de alguns de seus colegas.

Como presidente da Casa, Arthur Lira também deve ter uma visão republicana sobre o papel institucional da Câmara dos Deputados, locus de representação permanente da sociedade, independente, por óbvio, das fugazes associações ao governo de turno. Os blocos de apoio e de oposição ao Executivo são mutáveis. A propósito, bastante voláteis atualmente. Logo, cabe lembrar que as eventuais alterações no regimento que limitariam a atuação de deputados que fazem oposição a Jair Bolsonaro serão as mesmas que atingirão em cheio a liberdade de exercício parlamentar de políticos que, se hoje são governistas, amanhã poderão figurar na oposição.

Não há democracia sólida sem que seja dada voz à oposição e aos blocos minoritários no Parlamento. É legítimo que uma ou outra alteração nas atuais regras de obstrução sejam debatidas pelos congressistas, mas sempre no sentido de aprimorar o exercício da atividade parlamentar, nunca para restringi-lo. Não é disso que os parlamentares bolsonaristas estão tratando. Trata-se de uma clara tentativa de tolher o direito à resistência.

Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 20 de fevereiro de 2021 

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